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Processo n.º 292/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 78º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da decisão
proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, que julgou não tomar
conhecimento do recurso de fiscalização de constitucionalidade interposto pelo
reclamante do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
2 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – B. e A., identificados nos autos, interpuseram recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa da decisão proferida na 8.ª Vara Criminal de
Lisboa que os condenou na pena de três anos e seis meses de prisão, pela prática
de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1,
204.º, n.º 2, alínea a), e 202.º, alínea b), do Código Penal.
Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – de fls. 547 e
seguintes –, foi decidido rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso do
arguido B. e negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A..
2 – Inconformado, o arguido B. interpôs recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, o qual, por despacho do Desembargador Relator, foi
considerado inadmissível, e, consequentemente, não foi recebido.
Notificado de tal decisão, veio o arguido “interpor recurso para o Tribunal
Constitucional do despacho que decidiu não conhecer do recurso interposto para o
STJ, onde se arguiu a inconstitucionalidade da aplicação do disposto no artigo
412.º, n.º 3, do CPP, da forma que foi interpretado pelo Tribunal da Relação de
Lisboa, por violação do disposto no art. 32.º da Constituição da República
Portuguesa”.
3 – Por sua vez, o arguido A., uma vez notificado do Acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, requereu – fls. 588 e seguintes – a aclaração desse juízo
decisório, tendo o Tribunal, por Acórdão de 15 de Fevereiro de 2005, indeferido
“o pedido de aclaração (...) por não enfermar de qualquer contradição, erro,
lapso, obscuridade ou ambiguidade”.
Dizendo-se inconformado, o arguido interpôs, ao abrigo do disposto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(LTC), recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a
«(in)constitucionalidade de: a) A norma do art. 123.º do CPP, na interpretação
acolhida no douto acórdão recorrido de que a deficiente gravação de produção de
prova produzida em audiência de julgamento de um co-arguido não põe em causa as
garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º da Lei Fundamental,
uma vez que “... o recorrente A. não se serviu como meio de prova do
depoimento...”; b) A norma do n.º 1 do artigo 123.º do CPP, quando interpretada
no sentido de que deve ser arguida no próprio acto a violação do artigo 138.º do
CPP, por violação do n.º 2 do art. 32.º da Lei Fundamental; c) Violação do
Princípio “In dubio pro reo”, ínsito no art. 32.º da Lei Fundamental ao valorar
e contra o recorrente os artigos n.ºs 128.º, 129.º do CPP e Falsidade de
testemunho (n.º 1 do art. 360.º do CP); d) Violação do Princípio de Presunção de
Inocência, ínsito no n.º 2 do art. 23.º da Lei Fundamental, no douto acórdão ora
recorrido, ao valorar, em detrimento, o falso testemunho; e) A norma do art.
203.º do CP, por violadora do art. 32.º da Lei Fundamental quando haja
insuficiência de factos que conduzam, inabalavelmente, à consumação ou tentativa
do ilícito», sendo que, na perspectiva do recorrente, «tais normas violam os
artigos 32.º da CRP e os Princípios de Verdade Material, Presunção de Inocência
e “In dubio pro reo” da Constituição da República Portuguesa» e “a questão de
inconstitucionalidade foi, suscitada quando do recurso de primeira instância,
foi praticada no douto acórdão proferido em 2.ª instância e foram suscitadas na
aclaração por via do referido acórdão”.
4 – Ambos os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional foram admitidos
pelo tribunal a quo. Como, porém, o despacho que os admitiu não vincula o
Tribunal Constitucional (art. 76.º, n.º 3, da LTC) e por, em qualquer dos casos,
se configurar uma factispécie processual que se enquadra no âmbito normativo do
artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, passa a decidir-se imediatamente.
5 – Recurso do arguido B.:
5.1 – São requisitos específicos para o conhecimento de um recurso de
constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da
LTC: que a decisão judicial tenha aplicado a norma reputada de inconstitucional;
que o juízo sobre a constitucionalidade da norma tenha sido uma verdadeira ratio
decidendi e não um mero obiter dictum da decisão recorrida; que a questão de
inconstitucionalidade haja sido suscitada “durante o processo”, entendida esta
expressão em sentido funcional – em termos de tal invocação dever ser feita num
momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão, “antes
[portanto] de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que
respeita”, e, finalmente, que se encontrem esgotados todos os recursos
ordinários.
Ora, in casu, é manifesto que este último requisito não se encontra verificado.
Na verdade, como resulta dos autos, o recorrente não reclamou para o
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho (proferido pelo Juiz
Relator do Tribunal da Relação de Lisboa) que não admitiu o recurso interposto
para aquele tribunal superior, como poderia ter feito nos termos do disposto no
art.º 405º do Código de Processo Penal (CPP), tendo, ao invés, o arguido
recorrido de imediato para o Tribunal Constitucional do despacho de não admissão
do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
5.2 – Ora, constitui jurisprudência reiterada deste Tribunal, desde o
Acórdão nº 65/85 (D.R., II Série, de 31 de Maio de 1985), que a reclamação de
despacho de não admissão de recurso desempenha função idêntica à de um recurso e
deve ser qualificada como recurso ordinário para os efeitos do disposto no
artigo 70º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional (cf., nomeadamente, os
Acórdãos n.ºs 473/93, 83/94 e 323/94, D.R., II Série, de 19 de Janeiro, de 31
de Março e de 7 de Junho de 1994, respectivamente).
Com efeito, seguindo de perto tal jurisprudência, pode considerar-se
que o princípio da exaustão dos recursos ordinários visa habilitar o tribunal
que decide a causa a considerar, pelo menos na fase de recurso, a questão de
inconstitucionalidade, dado o sistema de controlo difuso da constitucionalidade
consagrado no artigo 207º da Constituição, pelo que, nessa medida, o Tribunal
Constitucional apenas deve intervir, no âmbito da fiscalização concreta da
constitucionalidade, quando já foi proferida a última decisão pela ordem
judiciária a que pertence o tribunal que aplicou a norma cuja
inconstitucionalidade foi suscitada.
Assim sendo, é certo que o despacho de não admissão do recurso
proferido pelo juiz a quo não é uma decisão definitiva, na medida em que é ainda
possível a reclamação para o presidente do tribunal ad quem e, em rigor, apenas
a decisão deste resolve definitivamente a questão, daí decorrendo que deve
considerar-se a reclamação um 'recurso ordinário', em sentido material e
funcional.
Tal jurisprudência mostra-se, hoje, de resto, plasmada no n.º 3 do
art.º 70º da LTC, na sua actual versão.
Destarte, na falta da aludida reclamação, conclui-se que não foram esgotados os
recursos ordinários que no caso cabiam. No caso sub judicio dir-se-á que só do
despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido na sequência de
reclamação, caberia recurso para o Tribunal Constitucional: só nessa
eventualidade teriam sido exauridos os recursos ordinários, pelo que, nessa
medida, não pode tomar-se conhecimento do recurso interposto pelo arguido B..
6 – Recurso do arguido A.:
6.1 – Como é consabido, para o conhecimento do objecto dos recursos interpostos
ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, é essencial, a par de
outros requisitos já mencionados, que se questione, sub species constitutionis,
uma norma que haja constituído a ratio decidendi do juízo recorrido e cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada “de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Destes termos resulta que a questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada
“durante o processo”, entendida esta expressão em sentido funcional – ou seja,
em termos de tal invocação dever ser feita num momento em que o tribunal a quo
ainda possa conhecer da questão, “antes [portanto] de esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre a matéria a que respeita”, como se depreende do
facto de a intervenção do Tribunal Constitucional apenas ocorrer em via de
recurso, para apreciação ou reexame de uma questão que o Tribunal a quo pudesse
e devesse ter apreciado (cf., entre a vastíssima jurisprudência deste Tribunal,
os Acórdãos nos 90/85, 352/94, 560/94, 155/95 (todos publicados na 2ª Série do
Diário da Republica, respectivamente, em 11 de Julho de 1985, 6 de Setembro de
1994, 10 de Janeiro de 1995 e 20 de Junho de 1995), e, mais recentemente, os
Acórdãos nos 23/2003 e 24/2003, ainda inéditos).
E isto porque, como constata Cardoso da Costa (A jurisdição constitucional em
Portugal, em “Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró”,
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e
ss.), «quanto ao controlo concreto – ao controlo incidental da
constitucionalidade (…), no decurso de um processo judicial, de uma norma nele
aplicável – não cabe o mesmo, em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas
ao tribunal do processo. Na verdade, não obstante a instituição de uma
jurisdição constitucional autónoma, manteve-se na Constituição de 1976, mesmo
depois de revista, o princípio, vindo das Constituições anteriores (…), segundo
o qual todos os tribunais podem e devem, não só verificar a conformidade
constitucional das normas aplicáveis aos feitos em juízo, como recusar a
aplicação das que considerarem inconstitucionais (…). Este allgemeinen
richterlichen Prüfungs- und Verwerfungsrecht encontra-se consagrado
expressamente (…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente permanece
fiel ao princípio, tradicional e característico do direito constitucional
português, do “acesso” directo dos tribunais à Constituição (…). Quando, porém,
se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é ainda necessário
que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo,
em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…). Compreende-se, na
verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente ex post factum
(depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o recurso para o
Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter num mero
expediente processual dilatório)».
Por isso se afirma, conforme se salientou, que o entendimento funcional do
requisito em apreciação impõe que a invocação de uma inconstitucionalidade deva
ser feita num momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão,
isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre tal matéria. Daí
que este Tribunal tenha já repetidamente sustentado que os requerimentos de
aclaração ou arguição de nulidades não constituem momentos processualmente
oportunos para a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade – cf., entre
muitos outros, o Acórdão 352/94, publicado no DR II Série, de 6 de Setembro de
1994: “porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da
sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não
constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna
esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma
decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios
idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade”.
6.2 – Assim sendo e perscrutando os autos, torna-se patente que o recorrente não
suscitou durante o processo qualquer questão de constitucionalidade normativa em
termos de o Tribunal da Relação ter ficado vinculado ao seu conhecimento.
De facto, consideradas as peças processuais relevantes, principaliter a
motivação do recurso interposto da decisão de 1.ª instância, vislumbra-se que,
na perspectiva do recorrente, «(...) a produção de prova [gravada] não contém a
totalidade das declarações do arguido C. (...) [o que implica] como consequência
a impossibilidade de conhecimento do recurso, pois o Tribunal da Relação, para
reapreciar a prova produzida em audiência tem, obviamente, que ter acesso à
gravação integral daquela bem como a sua transcrição; [que] o tribunal “a quo”
violou, durante a audiência, o disposto no artigo 138.º e n.º 2 do art. 343.º
ambos do CPP (...); que o acórdão recorrido não fez um exame crítico das provas
que permitiram formar a sua convicção, nem (...) uma enumeração dos factos dados
como provados (...) [sendo] violados os n.ºs 2 e 3 do art. 374.º do CPP (...)
estipula[ndo] o n.º 1 do art. 379.º do CPP que é nulo o acórdão (...); [que] ao
condenar, como condenou o recorrente, o tribunal “a quo” usou simples
presunções, errada convicção porque desfasada da sequência lógica dos factos e
assim valorou prova que não existe (...) viol[ando] o princípio “in dubio pro
reo”, princípio relativo à prova e à matéria de facto (...); [que] há manifesta
falta de prova e erro na valoração da mesma (...) [pelo que] a decisão recorrida
padece assim dos vícios constantes do artigo 410.º, n.º 2, existindo uma clara
insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insolúvel
entre a fundamentação e a decisão recorrida e ainda erro notório na apreciação
da prova (...); que a decisão recorrida não considerou a presunção de inocência
do arguido, presumindo-se desde o início a culpa do recorrente em violação do
princípio “in dubio pro reo”; [que] a decisão recorrida padece dos vícios
constantes nos n.ºs 2 e 3 do art. 412.º do CPP, nomeadamente com violação de
normas, com errada valoração fáctica, sendo que ainda valora o invalorizável
(...); [e que] a prova é manifestamente insuficiente para a sua condenação, pelo
que o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do CPP,
não se deve nem se confunde com a apreciação arbitrária da prova nem com a
novação de factos arbitrários».
Ora, em todo o seu discurso alegatório – de que se transcreveram os aspectos
principais e pertinentes à compreensão da questão a decidir –, é notório que não
se encontra formulado ou suscitado qualquer problema de constitucionalidade
normativa, sendo que, in casu, não se está perante uma daquelas situações
excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade ou não era lhe
exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma
aplicação de todo insólita e imprevisível, hipóteses onde ainda seria possível
valorar, para efeitos da sindicância da verificação dos requisitos do recurso de
constitucionalidade, uma suscitação lavrada em incidente pós-decisório.
Na verdade, a resposta dada pelo Tribunal da Relação aos problemas
equacionados pelo recorrente nada tem de insólito ou de imprevisível, não sendo
por isso desproporcionado ou desrazoável exigir-lhe que, na formulação do seu
recurso, o recorrente antecipasse a ponderação dos critérios normativos
conducentes a uma decisão diferente daquela que, num domínio jurídico por si
claramente delimitado, acabou por sustentar.
Na verdade, tendo o recorrente fundado o seu recurso, entre o mais, na
deficiente gravação das declarações de um co-arguido na audiência de julgamento
era inteiramente de exigir-lhe que antecipasse a aplicação do art.º 123º do CPP,
em qualquer das acepções cuja constitucionalidade pretende sindicar, porquanto
as questões a que respeitam as dimensões de tal preceito que o recorrente vê
como tendo sido aplicadas constituem aspectos jurídicos que são directamente
apreensíveis da omissão ou deficiência alegada.
Alegando, na motivação do seu recurso, a deficiência de gravação das
declarações prestadas em audiência de julgamento pelo seu co-arguido, mas ao
mesmo tempo não as assumindo como meio de prova dos factos cujo diverso
julgamento pretendia alcançar por via do recurso, não poderia o recorrente, se
tivesse agido com a prudência técnica exigida pela profissão que exerce, deixar
de considerar que o tribunal de recurso pudesse vir a considerar que a
deficiência alegada se traduziria, dentro da perspectiva que coloca (mas que não
corresponde, como abaixo se verá à ratio decidendi), em uma simples
irregularidade que em nada prejudicava o seu direito de defesa relativo à
matéria de facto.
Do mesmo passo, convocando a existência de uma omissão, deficiência ou
irregularidade de um acto processual – no caso, a referida deficiência de
gravação – e devendo saber que o CPP distingue entre nulidades insanáveis,
nulidades dependentes de arguição (sanáveis) e simples irregularidades (art.ºs
119º a 123º), não se afigura absolutamente nada desproporcionado que o mesmo
antecipasse que o tribunal de recurso poderia vir a ajuizar que a omissão em
causa se enquadraria nas simples irregularidades, sanáveis pelo decurso do prazo
de arguição.
Nessa linha, mesmo a admitir-se, dentro da linha argumentativa do
recorrente, que foi considerado sanada, nos termos do artigo 123.º do Código de
Processo Penal, a alegada violação do disposto no artigo 138.º e 343.º, n.º 2,
do mesmo diploma, não pode tal entendimento considerar-se como decisão-surpresa,
posto que, ao alegar tal “irregularidade” no momento processual em que o fez, o
recorrente não podia deixar de configurar – e, em rectas contas, de se estribar
– numa determinada leitura do artigo 123.º do Código de Processo Penal, que lhe
permitisse invocar apenas no momento em que o fez a sobredita irregularidade,
nada tendo de surpreendente, por isso, o critério normativo mobilizado pelo
Tribunal da Relação.
Mutatis mutandis, o mesmo se dirá, para além do que infra se
explicitará relativamente ao critério normativo que determinou a improcedência
do juízo do recorrente, quanto à deficiente gravação da prova do arguido.
Também este problema foi, como já se disse, expressamente enunciado na
motivação de recurso, tendo o recorrente aí, nesse momento, uma clara
oportunidade processual para suscitar a inconstitucionalidade do critério
normativo que viesse a determinar, por esse motivo, a desnecessidade de
realização de um novo julgamento.
Tal é a solução que decorre do entendimento segundo o qual “ao
encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, as
partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas
poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa
das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em
face da lei fundamental. E é claro que não poderá deixar de entender-se que o
recorrente tem essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é
aplicada numa decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado
no(s) articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear
juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por
antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se
poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados
pelo juiz (...). Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na
antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à
sua conformidade constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade
durante o processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros
acabados de definir” (cf. Acórdão n.º 678/04, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Destarte, pelo exposto, considera-se não ter sido adequadamente
suscitada, durante o processo, qualquer questão de constitucionalidade
normativa.
6.3 – Mas, para além desse facto, subsistem ainda outros motivos que
permitem concluir pela não verificação dos pressupostos relevantes para o
conhecimento do recurso.
Na verdade, se nada impede que, ao invés de se suscitar a
inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento
ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do
Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR II série, de 7
de Setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode
questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma
interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do
preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado
inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de,
tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a
saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não
deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), sempre importa
reconhecer que, em tal hipótese, é necessário – apodíctico, mesmo – que a norma
que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido, efectivamente,
aplicada in casu com a interpretação que se entende inconstitucional (e que
tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido - cf., nesse sentido,
entre outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão n.º 197/97, publicado no Diário da
República II Série, n.º 299, de 29 de Dezembro de 1998 e, mais recentemente, o
Acórdão n.º 214/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim sendo, é igualmente manifesto que, quanto à invocada deficiência na
gravação da prova, a ratio decidendi do acórdão recorrido, como decorre
linearmente do seu discurso de fundamentação, não se louva em qualquer dimensão
normativa extraída do artigo 123.º do Código de Processo Penal, como o
recorrente explicita na alínea a) do seu requerimento de interposição de
recurso, mas sim numa interpretação do artigo 412.º do Código de Processo Penal,
que, nos termos em que o recorrente o definiu, não integra o objecto do presente
recurso.
O mesmo pode dizer-se quanto ao problema da constitucionalidade da norma “do
artigo 203.º do CP (...) quando haja insuficiência de factos que conduzam
inabalavelmente, à consumação ou tentativa do ilícito”, porquanto, além de não
se esquecer que a dimensão normativa invocada acaba por reconduzir-se a um
problema de valoração probatória que deve equacionar-se nos termos da lei
processual, o juízo recorrido afirma, clara e inequivocamente, não ocorrer
qualquer falta dos elementos de facto indispensáveis para alcançar a “solução
legal e justa”, sendo a matéria de facto tida como provada suficiente para ser
proferida uma correcta decisão de direito.
6.4 – A tudo o que se deixou referido acresce ainda que não cabe a este Tribunal
sindicar se a decisão recorrida violou, ou não, o princípio do in dubio pro reo,
o princípio da presunção de inocência e o princípio da verdade material,
invocados pelo recorrente no seu requerimento de interposição de recurso.
Assim é porque, entre nós, o objecto da fiscalização jurisdicional da
constitucionalidade são apenas normas jurídicas, não podendo o Tribunal
Constitucional pronunciar-se sobre uma (eventual) “inconstitucionalidade da
decisão judicial”, como, de resto, tem sido unanimemente acentuado pela
jurisprudência deste Tribunal – cf. nesse sentido o Acórdão n.º 199/88,
publicado no DR, II Série, de 28 de Março de 1989, onde se afirmou que “este
Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder
ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ – o que exige
que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o
preceito legal cuja legitimidade se questiona, ou no caso de se questionar certa
interpretação de uma determinada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa
do preceito que se tem por violador da lei fundamental”.
Por isso se afirma que os recursos de constitucionalidade, embora interpostos de
decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que nelas se contém sobre
a violação ou não violação da Constituição por normas mobilizadas na decisão
recorrida como sua ratio decidendi, não podendo visar as próprias decisões
jurisdicionais, identificando-se, nessa medida, o conceito de norma jurídica
como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que
apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal
recurso – cf., nestes exactos termos, o Acórdão n.º 361/98 e, entre muitos
outros, os Acórdãos n.os 286/93, 336/97, 702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos
disponíveis para consulta em www.tribunalconstitucional.pt.
Na verdade, este Tribunal não está configurado como uma instância de amparo com
competência para sindicar o mérito jurídico da aplicação da lei efectuada pelas
demais instâncias jurisdicionais, apenas lhe competindo apurar, nesses termos,
da inconstitucionalidade de normas, pelo que, não pode o Tribunal Constitucional
conhecer de recursos interpostos com fundamento em violação da lei por banda da
decisão judicial recorrida, nem, pelos mesmos motivos, apurar se a decisão
judicial é, ou não, “inconstitucional”.
O que, no presente caso, impede, para além do que já se expôs, que o Tribunal
Constitucional se pronuncie sobre a questão de saber se a valoração efectuada na
decisão recorrida conduz, em si, à preterição dos mencionados princípios
constitucionais, na medida em que tal vício apenas vem considerado na
perspectiva da subsunção do direito aos factos invocados, integrando, assim, a
decisão judicial na sua estrita dimensão aplicativo-concreta relativamente à
qual este Tribunal não pode pronunciar-se.
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento dos recursos interpostos pelos arguidos B. e A..
Custas por cada um dos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 8 Ucs.».
3 – Sintetizando os fundamentos da sua reclamação, o reclamante formulou as
seguintes conclusões:
«1ª - A audiência de julgamento decorreu em 5 sessões e foi objecto de gravação
da prova.
2ª - A gravação, ou registo da prova tem como finalidades, principais, permitir
ao tribunal de recurso a reapreciação da matéria probatória e às partes a
invocação de erros de apreciação dessa mesma prova, quando a impugne, ao abrigo
e nos termos do art. 412º do CPP.
3ª - A disciplina e direcção da audiência cabe ao juiz.
4ª - Quando o recorrente elaborava o recurso a impugnar a matéria de facto, foi
surpreendido pelo não registo de uma parte substancial das declarações prestadas
por um co-arguido.
5ª - Face à matéria de facto dada como provada e não provada, que não pode
enquadrar-se nas declarações dos depoentes que constam na gravação, terá que
resultar, em princípio, da não registada.
6ª - O recorrente arguiu esta irregularidade.
7ª - Irregularidade que em pleno impede a reapreciação de toda a prova produzida
em sede de julgamento, pelo tribunal de recurso e pelas partes, sendo certo que
a mesma também não está transcrita.
8ª - O tribunal recorrido negou provimento alegando que o recorrente não se
serviu do depoimento do co-arguido, aquele do qual não consta uma parte
substancial das suas declarações no suporte.
9ª - Era impossível o recorrente servir-se do depoimento do co-arguido pois que,
repete-se, parte substancial das suas declarações não estavam gravadas e daí não
se saber o que disse ou não disse.
10ª - O recorrente e o tribunal recorrido, não possuíam toda a prova produzida
em sede de julgamento na 1ª instância.
11ª - Ora, o que releva para efeitos de garantias de defesa ao arguido,
consagradas no art. 32º da CRP, é que o tribunal de recurso possa ter acesso a
toda a prova produzida na audiência de julgamento na 1ª instância de molde a
poder valorá-la em sede de reapreciação da decisão recorrida,
12ª - Consequentemente, como não tinha, o tribunal de recurso violou o nº 1 do
art. 32º da CRP uma vez que deu cobertura a um vício que foi o de o recorrente
não se poder servir de todas as garantias constitucionalmente lhe são
conferidas.
13ª - Sendo certo que em situações idênticas o tribunal de recurso tem decidido
de maneira diferente face à vária jurisprudência publicada, donde
14ª - A decisão, inesperada, causou perplexidade nos recorrentes.
15ª - Contudo, se doutamente for entendido que existiu uma irregularidade e que
a mesma cai na previsibilidade do art. 123º do CPP, sempre se dirá que a mesma
não poderá ser considerada sanada.
16ª - Tal irregularidade foi invocada em sede de recurso,
17ª - Porque só foi alcançada quando da elaboração do mesmo, sendo certo que era
impossível detectá-la em momento anterior uma vez que quem tinha o comando das
operações de gravação não era o recorrente.
18ª - Assim, a norma contida no n.º 1 do art. 132º do CPP é inconstitucional por
violação do n.º 1 do art. 32º da CRP quando interpretada no sentido de que ela
imporá a arguição no próprio acto em que foi cometida.
19ª - De igual sorte a invocada irregularidade cometida por ofensa ao arts. 138º
e 343º do CPP, e que o douto tribunal ora recorrido considerou sanada.
20ª - Alegou o recorrente na conclusão 22 do recurso interposto para o tribunal
da relação que não foi considerado, logo violado, o Princípio da Presunção de
Inocência ínsito no n.º 2 do art. 32º da CRP.
21ª- Efectivamente, não só nas declarações prestadas pela testemunha José Alves,
como pelo comportamento do tribunal, afere-se total acção culpatória dos
arguidos e do recorrente em especial.
22ª - Ao longo de grande parte da audiência, através da gravação da prova que
resta e da transcrição da mesma, mesmo sem a imediação, é alcançável, daí a
invocação, também, da violação dos arts. 138º e 343º do CPP.
23ª - Mas, tal se alcança ainda no douto acórdão proferido pelo tribunal da
Relação quando, categoricamente, afirma que a prática dum acto, se o foi, só
poderia ser praticado pelos arguidos por serem os únicos a aproveitar-se da
situação. Sendo certo que,
24ª - Se alcança na prova produzida que o mesmo acto também poderia ser
efectuado da sala do chefe que era a testemunha de acusação, aquele que
inicialmente negou tal possibilidade, em ostensivas falsas declarações ao
colectivo e este do mesmo se resignou.
25ª - Assim, ao se imputar única e exclusiva, sem a mínima prova, de sustentação
da culpabilidade do recorrente, viola-se o Princípio da Presunção da Inocência,
ínsito no n.º 2 do art. 32º da CRP.».
4 – Respondendo à reclamação, o Procurador-Geral Adjunto no Tribunal
Constitucional disse:
«1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à inverificação dos pressupostos do recurso
interposto.».
B – Fundamentação
5 – A argumentação do reclamante em nada abala a consistência dos fundamentos da
decisão sumária que refuta, fundamentos esses que aqui novamente se assumem.
Independentemente de o reclamante não dirigir agora a sua crítica, sob a
perspectiva constitucional, contra quaisquer dimensões normativas dos preceitos
que refere, cuja definição nem sequer especificou, mas directamente contra a
decisão judicial – o que, desde logo, conduziria a que o Tribunal não pudesse
conhecer do recurso por apenas poder conhecer de questões de
inconstitucionalidade normativa e não da violação directa da Constituição por
parte das decisões judiciais - , constata-se que, mesmo admitindo que o
reclamante apenas tivesse sabido da irregularidade da falta parcial da gravação
da prova da audiência de julgamento por ocasião da motivação do seu recurso para
a Relação, sempre ocorreria a inverificação do pressuposto do recurso de
constitucionalidade de prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade
normativa, mas agora apontada para o art.º 123º do CPP enquanto obrigando à
arguição da nulidade no prazo considerado pelo acórdão recorrido. Ou seja,
incumbiria, ao recorrente, segundo os deveres de prudência técnica do mandato
forense que exerce como profissão, antecipar a aplicação do art.º 123º do CPP,
bem como igualmente a possibilidade de consideração do prazo de arguição da
nulidade nele estabelecido. Todavia, o recorrente não fez uma coisa nem outra.
A reclamação é, pois, de indeferir.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir
a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça de 20 Ucs.
Lisboa, 25 de Maio de 2005
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos