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Processo n.º 131/05
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo - Sul, em que figuram como recorrente A. e como recorrido o Ministério Público, por decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, de 9 de Junho de 2004, foi indeferido um requerimento da recorrente, no qual esta defendia que o Ministério Público não pode socorrer-se do artigo 62° do Código do Processo dos Tribunais Administrativos em sede de processos cautelares, e foi determinado o prosseguimento da instância – após desistência do requerente inicial -, agora com o referido Ministério Público como autor/requerente.
2. Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo. Este, por acórdão de 28 de Outubro de 2004, negou provimento ao recurso.
3. Novamente inconformada com esta decisão do Tribunal Central Administrativo, a recorrente interpôs recurso para este Tribunal, através de um requerimento com o seguinte teor:
“ [...], notificada do douto Acórdão de fls., de 13-01-2005, e não podendo com o mesmo conformar-se vem [...] interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do art.º 70º da referida Lei 28/82, consistindo a inconstitucionalidade invocada na interpretação que é dada no douto Acórdão recorrido, ao confirmar a decisão da 1ª Instância, ao art.º 62º do C.P.T.A, interpretação que viola o art.º 219 da Constituição da República Portuguesa.[...]”
4. Admitido o requerimento de interposição do recurso no Tribunal Central Administrativo e enviados os autos a este Tribunal, verificada, por parte do Relator do processo, a falta de elementos previstos no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional - LTC, proferiu este o seguinte despacho:
“A recorrente afirma, no requerimento de interposição, que vem «interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do art.º 70º da referida Lei 28/82, consistindo a inconstitucionalidade invocada na interpretação que é dada no douto Acórdão recorrido, ao confirmar a decisão da 1ª Instância, ao art.º 62º do C.P.T.A, interpretação que viola o art.º 219 da Constituição da República Portuguesa» Tendo em atenção o teor daquele requerimento, convido a recorrente a dar cabal e integral cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da LTC. E, sendo questionada determinada interpretação, convido-a a esclarecer, em termos claros e perceptíveis, qual a exacta e precisa interpretação normativa do artigo 62º do C.P.T.A. cuja constitucionalidade pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, de tal modo que, se este Tribunal a vier a julgar desconforme com a Constituição, a possa enunciar claramente na decisão que proferir. Na verdade, incumbindo à recorrente a definição do objecto do recurso, não é suficiente, quando se questiona determinada interpretação normativa, afirmar que tal interpretação (sem a identificar) é a que “é dada no douto Acórdão recorrido, ao confirmar a decisão da 1ª Instância”, (como se faz no requerimento de interposição do recurso atrás citado), sob pena de, assim, se transferir para o Tribunal Constitucional o ónus de delimitar aquele objecto.”
5. Em resposta a este convite do Relator, veio a recorrente responder o seguinte:
“[...], notificada do douto despacho de fls., de 28-02-2005 para vir precisar em que consiste a inconstitucionalidade em causa nos autos, vem expor e requerer a V. Exa. o seguinte:
1. O art.º 219°, n° 1., da Constituição da República Portuguesa estabelece o seguinte:
“Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.
2. Claro fica, sob pena de incongruência da Constituição, que a defesa dos interesses que a lei determinar não o poderá ser em colisão com a representação do Estado ou entidades investidas de poder político.
3. O n° 2., do art.º 9° do C.P.T.A. estabelece, por sua vez, o seguinte:
'Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território a qualidade de vida o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.'
4. Claro fica que naqueles domínios e por razões óbvias de interesse público o Mº Pº tem legitimidade, tanto para os processos principais como cautelares.
5. Por sua vez o n° 1., do ano 62° do C.P.T.A. estabelece:
' O Ministério público pode, no exercício da acção pública, assumir a posição de autor, requerendo o prosseguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor '.
6. Acontece que a interpretação dada ao Acórdão recorrido a esta última disposição legal inconstitucionaliza-a a dois níveis, por que remete ao MºPº a possibilidade de intervenção como parte, designadamente em providências cautelares, em procedimentos que excedam o âmbito da acção pública fixado no ano
9° do CPTA, o mesmo é dizer o âmbito que o n° 1., do artº 219° da CRP admite a sua intervenção, nos termos previstos na lei, que não sejam obviamente incompatíveis com a sua função de representante do Estado e órgãos ou entidades públicas que dele dimanam.
7. Por outro lado e na situação concreta a inconstitucionalidade é ainda maior, porquanto é o mesmo Agente do MºPº que, nos autos representa o Estado, que veste outro fato e sucede a entidade privada, como requerente da providência cautelar em causa nos autos.
8. Ora, ao considerar que o art.º 62° comporta esta leitura e interpretação, parece manifesta a violação do quadro de atribuições que o art.º 219° da CRP confere ao MºPº.
9. É que, como lembra o Prof. Vieira de Andrade [1]: 'Como é evidente, a diversidade de funções cometidas ao Ministério Público é susceptível de causar problemas e embaraços, quer na medida em que ele tenha de desempenhar no mesmo processo funções incompatíveis, quer na medida em que atribui à instituição um papel dúplice, como parte processual, em que ora surge do lado do Estado, defendendo-o contra as acções do particular, ora aparece contra a Administração, ao lado do administrado, ou em vez dele. Se é possível evitar as contradições práticas decorrentes da incompatibilidade de funções nos processos - determinando, como faz a lei, que estas funções serão desempenhadas por diferentes agentes -, já se toma mais difícil conciliar as
«atitudes espirituais» requeridas para o exercício profícuo das tarefas que lhe são cometidas'.
10. Só que no caso, não há diferentes agentes do MºPº a desempenhar cada um dos papeis, - um a representar o Estado e outro a assumir o papel de sucessor do privado, que desistiu do procedimento cautelar e da acção principal. É um e o mesmo que desempenha as duas funções, pelo que a interpretação dada pelo Acórdão recorrido ao art.º 62° do CPTA, consentindo tal entendimento, inconstitucionaliza aquela disposição legal, por violação do art.º 219° da CRP.”
6. Foi, então, proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na parte ora relevante, o seu teor:
“6. Admitido o recurso no Tribunal Central Administrativo, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC).
6.1. Com efeito, nos termos do artigo 75º - A, n.º 2 da LTC, se o recurso for interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da mesma Lei, deve constar do requerimento de interposição do recurso, entre outros elementos, a indicação “da peça processual em que o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade.” Ora, verifica-se que nem no requerimento de interposição do recurso nem na resposta ao convite do relator para que fosse dado “cabal e integral cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da LTC” consta qualquer indicação “da peça processual em que o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade.” Ora, constituindo pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC que a questão de inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa - tenha sido suscitada, durante o processo e de modo processualmente adequado, pela recorrente e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso, há que constatar que ao Tribunal não foram fornecidos os meios legalmente exigidos para proceder à verificação da existência de tal pressuposto de admissibilidade. Tanto basta para que o Tribunal Constitucional não possa tomar conhecimento do recurso.
6.2. Acresce que, como sucintamente se verá já de seguida, sempre seria, em qualquer caso, impossível ao Tribunal conhecer do recurso. Com efeito, nos termos do artigo 75º-A, n.º 1 da LTC, o recorrente deve, logo no requerimento de interposição do recurso, indicar, designadamente, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, nada obstando a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Nesses casos, porém, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. De facto, como se afirmou, por exemplo, entre muitos outros, no Acórdão n.º
178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118), “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”. No caso concreto, não tendo a recorrente identificado logo no requerimento de interposição do recurso a exacta interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada por este Tribunal, foi a mesmo notificada, conforme disposto no n.º 6 do artigo 75º-A da LTC, para suprir a irregularidade verificada, sendo-lhe expressamente indicado de que deveria esclarecer, “em termos claros e perceptíveis, qual a exacta e precisa interpretação normativa do artigo 62º do C.P.T.A. cuja constitucionalidade pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, de tal modo que, se este Tribunal a vier a julgar desconforme com a Constituição, a possa enunciar claramente na decisão que proferir”. A verdade, porém, é que, como claramente se pode concluir pela simples leitura da sua resposta, cuja integral transcrição supra se efectuou, uma vez mais, não o fez, preferindo, nas suas próprias palavras, “vir precisar em que consiste a inconstitucionalidade em causa nos autos”. Assim, quanto à identificação da dimensão normativa questionada a recorrente veio afirmar que “a interpretação dada ao Acórdão recorrido a esta
última disposição legal [sem identificar qual ela seja] inconstitucionaliza-a a dois níveis” e que “a interpretação dada pelo Acórdão recorrido ao art.º 62° do CPTA [que nunca é identificada, muito menos em termos claros e perceptíveis], consentindo tal entendimento, inconstitucionaliza aquela disposição legal, por violação do art.º 219° da CRP”. Ora, incumbindo à recorrente a definição do objecto do recurso, não é suficiente, quando se questiona uma determinada interpretação normativa, a afirmação de que se trata de “a interpretação dada ao Acórdão recorrido a esta
última disposição legal [sem identificar qual ela seja]”, ou de que se trata da
“interpretação dada pelo Acórdão recorrido ao art.º 62° do CPTA”, assim transferindo para o Tribunal Constitucional - de forma inadmissível - o ónus de delimitar aquele objecto. Além disso, a não identificação pela recorrente, de forma clara e perceptível, da exacta dimensão normativa do preceito cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, impede este Tribunal de enunciar um eventual juízo de inconstitucionalidade “por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental” e obsta a que o Tribunal Constitucional possa verificar se se encontram preenchidos outros pressupostos de admissibilidade do recurso que pretendeu interpor, nomeadamente: (i) se a recorrente suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade dessa exacta dimensão normativa; (ii) se a decisão recorrida utilizou, como ratio decidendi, a precisa dimensão normativa cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada. Dessa forma, fica ainda o Tribunal impedido de verificar um eventual carácter manifestamente infundado da questão de constitucionalidade. Assim, a omissão da recorrente coloca o Tribunal numa situação de verdadeira impossibilidade de conhecer do recurso, porquanto impossibilita a identificação do seu exacto objecto.
7. Nestes termos, torna-se evidente que não pode conhecer-se do recurso interposto pela recorrente, por manifesta falta dos seus pressupostos legais de admissibilidade. [...]”
7. Notificada desta decisão, veio a recorrente aos autos, “nos termos do artº
700º, nº3., do CPCivil, requerer que recaia acórdão sobre o despacho do Exmo. Juiz Conselheiro-Relator, de fls., que decidiu não conhecer do recurso”. Começa o seu requerimento por descrever a sequência de actos processuais, para, de seguida, reproduzir, ipsis verbis, as alegações que apresentara no recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo – Sul, que concluíra do seguinte modo:
“[...] Tudo isto revela que o douto despacho recorrido decidiu mal, salvo o devido respeito, quando determina que os autos prossigam, assumindo o MºPº a posição de requerente.
É que, face ao papel que o artº 219º da C.R.P. reserva ao MºPº, não restam dúvidas de que a interpretação dada ao artº 62º do C.P.T.A , inconstitucionaliza-o, por violadora daquela disposição constitucional, inconstitucionalidade que para todos os efeitos se alega e suscita.”,
Efectuada esta transcrição, afirma, então, a recorrente:
“8. Ficou desde logo claro que ao interpretar o artº 62° do CPTA, em termos de que o MºPº podia, ao abrigo daquela disposição, em providência cautelar, requerer o seu prosseguimento, depois da desistência da requerente particular, sucedendo-lhe no processo ao abrigo do exercício da acção pública, inconstitucionalizara aquele preceito, por exorbitar o âmbito de competência e intervenção que o artº 219° da C.R.P. reserva ao MºPº.
9. Está assim identificada claramente a inconstitucionalidade suscitada.
10.O Tribunal Central Administrativo no seu Acórdão de 13-01-2005, em bom rigor não conheceu da inconstitucionalidade suscitada, limitando-se a referir que ela não ocorria.
11. Assim, se há insuficiência é naquela decisão e não na alegação da recorrente, mas tal insuficiência deve ser integrada com o despacho do Meritíssimo Juiz da 1º Instância que aquele acórdão confirmou.
12. Não podia, pois, a recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, configurá-lo de outro modo ou noutros termos. [...]”.
Após tais afirmações, a recorrente transcreveu a resposta ao convite do relator
- que se reproduziu integralmente no ponto 5. supra – para terminar a sua peça da seguinte forma:
“14. É esta leitura que confere competências ao MºPº, que exorbitam as constitucionalmente cometidas, que levou o Prof. Diogo Freitas do Amaral a escrever «Com todos estes poderes excessivos, com todos estes privilégios exorbitantes, o Ministério Público tem aparecido aos olhos da opinião pública como um ente «quase divinizado». O Ministro da Justiça, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (também, por inerência, Presidente do Conselho Superior da Magistratura) e o Procurador-Geral da República -, é o último que surge e se comporta como se fosse o primeiro”.
15. Ora, uma coisa é ser Advogado do Estado, outra é identificar-se com interesses privados e suceder a um particular numa providência cautelar de que aquele desistira, por estar em causa interesses que não integram a acção pública que o MºPº deve prosseguir, sendo para esta, e apenas para esta, que o artº 219° da CRP lhe confere competência. Requer-se, pois, que sobre o despacho do Exmo. Senhor Doutor Juiz Conselheiro-Relator recaia acórdão que ordene o prosseguimento dos autos e o conhecimento da inconstitucionalidade suscitada.”
8. Notificado o Ministério Público recorrido, disse o seguinte:
“1° É duvidoso, salvo melhor opinião, que a entidade recorrente haja conseguido identificar perfeitamente a interpretação normativa que considera inconstitucional.
2° Sendo inquestionável que, na resposta ao convite para aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, omite indicação da peça processual em que suscitou a questão de inconstitucionalidade
(embora o tenha feito, em termos suficientemente inteligíveis, na alegação apresentada perante o Tribunal Central Administrativo, a fls. 222).
3° Consideramos, porém, que - para além destas deficiências formais - existe um outro obstáculo ao conhecimento do recurso, já que o acórdão recorrido não interpretou a norma questionada com o sentido que a entidade recorrente lhe atribui.
4° Na verdade, a interpretação, pretensamente inconstitucional, consistiria em ao n° 1 do artigo 62° do CPTA ter sido atribuído o sentido de o Ministério Público poder intervir como parte em procedimentos cautelares, findos por desistência do requerente originário, “que excedam o âmbito da acção pública fixado no artigo 9° do CPTA”, com vista à defesa de interesses puramente privados do requerente da providência cautelar.
5.º Ora, bem pelo contrário, o acórdão recorrido fundamentou-se, como verdadeira
“ratio decidendi” na constatação de que “esta norma confere ao Ministério Público efectiva legitimidade activa para intervir em processos principais e cautelares, no domínio da defesa da legalidade da administração em geral, directa ou indirecta, e em particular dos respectivos actos em procedimento concursal, constituindo valor constitucional a defesa da legalidade da administração”. (Cfr. Fls. 307).
6° Deste modo, entendeu o acórdão recorrido que a dita 'acção pública' contempla a autónoma defesa da legalidade administrativa pelo Ministério Público, mesmo fora âmbito dos vários valores constitucionalmente tutelados, enumerados exemplificativamente na parte final do n° 2 do artigo 9° do CPTA, disposição cuja constitucionalidade não vem questionada pelo recorrente; e, portanto, não foi realizada a interpretação normativa alegadamente inconstitucional, já que o reconhecimento da legitimidade activa do Ministério Público não assentou, na
óptica da decisão recorrida, em qualquer ampliação do âmbito possível da legitimidade do Ministério Público, decorrente autonomamente da norma do referido artigo 62°, n° I, do CPTA.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
III – Fundamentação
9. Da decisão sumária proferida, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, pelo relator do processo no Tribunal Constitucional
é possível reclamar para a conferência, nos termos do n.º 3 deste mesmo artigo, não tendo, aqui, cabimento a invocação do disposto no artigo 700º, n.º 3 do Código de Processo Civil. Assim sendo, será o presente requerimento da recorrente tratado como se de uma reclamação ao abrigo daquele n.º 3 do artigo
78º da Lei do Tribunal Constitucional se tratasse.
10. A decisão ora reclamada concluiu pela impossibilidade de conhecer do objecto de um recurso que fora interposto pela ora reclamante ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por dois motivos, a saber: não ter a ora reclamante dado, na resposta ao convite que lhe fora dirigido pelo relator, “cabal e integral cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da LTC”, indicando a peça processual em que alegadamente suscitara a questão de inconstitucionalidade e não ter a ora reclamante identificado “de forma clara e perceptível, []a exacta dimensão normativa do preceito cuja constitucionalidade pretende ver apreciada”.
A ora reclamante vem impugnar essa decisão, mas - como resulta inequivocamente da fundamentação que acompanha a presente reclamação - apenas na parte em que nela se considerou que não estava identificada de forma clara e perceptível “a exacta dimensão normativa do preceito cuja constitucionalidade pretende ver apreciada”.
No essencial, considera a ora reclamante que, ao contrário do que se decidiu na decisão reclamada, terá a questão de inconstitucionalidade sido suficientemente identificada nas alegações para o Tribunal Central Administrativo, não podendo
“a recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, configurá-lo de outro modo ou noutros termos”.
Ora, constatando-se que o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional não contém todos os elementos constantes do artigo 75º - A da Lei do Tribunal Constitucional – o que, sem discussão, se verifica no presente caso -, tem o relator (salvo nos casos em que tal acto lhe seja vedado pelo princípio da limitação dos actos, previsto no artigo 137º do Código de Processo Civil), o poder-dever de convidar o recorrente a dar cabal cumprimento ao citado artigo 75º - A. Foi isso que , nos presentes autos, aconteceu.
É, porém, patente, como se considerou na decisão ora reclamada, em termos que merecem a nossa concordância, e resulta da transcrição da resposta ao referido convite que supra se efectuou, que, na sua resposta, a ora reclamante não identificou, de forma clara e perceptível, a exacta dimensão normativa do preceito cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, preferindo, nas suas próprias palavras, “vir precisar em que consiste a inconstitucionalidade em causa nos autos” e limitando-se, quanto à identificação da dimensão normativa questionada, a afirmar simplesmente que “a interpretação dada ao Acórdão recorrido a esta última disposição legal [sem identificar qual ela seja] inconstitucionaliza-a a dois níveis” e que “a interpretação dada pelo Acórdão recorrido ao art.º 62° do CPTA [novamente sem nunca a identificar], consentindo tal entendimento, inconstitucionaliza aquela disposição legal, por violação do art.º 219° da CRP”. Isto não corresponde, porém, à identificação da dimensão normativa questionada, conduzindo, pelo contrário, precisamente, à transferência para o Tribunal Constitucional do ónus que, nessa matéria, impende sobre a recorrente. Aliás, em rigor, a ora reclamante em parte alguma do requerimento agora apresentado contesta esta conclusão.
De facto, identificar uma interpretação normativa é fazer, no mínimo, precisamente aquilo que a ora reclamante veio fazer, não, como devia, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, ou, pelo menos, na resposta ao convite que lhe foi expressamente formulado para que desse cabal cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da LTC e identificasse, em termos claros e perceptíveis, a exacta e precisa interpretação normativa que questionava, mas apenas - embora agora já tarde demais -, no ponto 8. da presente reclamação. De facto, aí, vem a ora reclamante dizer: “ao interpretar o art.º 62° do CPTA, em termos de que o MºPº podia, ao abrigo daquela disposição, em providência cautelar, requerer o seu prosseguimento, depois da desistência da requerente particular, sucedendo-lhe no processo ao abrigo do exercício da acção pública, inconstitucionalizara aquele preceito, por exorbitar o âmbito de competência e intervenção que o art.º 219° da C.R.P. reserva ao MºPº ”. Ponto é que, ao só agora fazê-lo, não dissipou, em tempo útil e oportuno, a dúvida legítima sobre qual a verdadeira interpretação normativa do preceito que pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Nomeadamente, e para referir apenas três hipóteses possíveis em face das peças mencionadas pela reclamante, não dissipou, quando devia, a dúvida sobre se essa interpretação respeitava à inaplicabilidade pura e simples do artigo 62º, n.º 1 do CPTA às providências cautelares, à inaplicabilidade de tal preceito, fora dos casos previstos na parte final do n.º 2 do artigo 9º do mesmo CPTA ou se, como afirma na resposta ao convite do relator, tal interpretação consiste em permitir que, na “falta de diferentes agentes do MºPº a desempenhar cada um dos papeis – um a representar o Estado e outro a assumir o papel de sucessor do privado, que desistiu do procedimento cautelar e da acção principal” – a instância prossiga.
Ora, como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
Não o tendo feito, a ora reclamante não só inviabiliza que o Tribunal Constitucional possa produzir uma decisão nos termos referidos no Acórdão n.º
178/95, como impossibilita, sequer, que este Tribunal verifique, ao menos, se se encontram preenchidos outros pressupostos de admissibilidade do recurso que pretendeu interpor, nomeadamente se a decisão recorrida utilizou, como ratio decidendi, a exacta dimensão normativa cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada.
Por este motivo improcede a presente reclamação.
Aliás, não questionando a ora reclamante a decisão quanto ao não cumprimento da obrigação legal de, convidada pelo relator nos termos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, dar cabal e integral cumprimento ao disposto naquele artigo, de igual modo improcederia a presente reclamação.
11. Assim sendo, e igualmente pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira validade, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que a ora reclamante pretendeu interpor.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Abril de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício
[1] in A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, p. 157