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Processo n.º 351/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
1. A. recorre para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido nos autos pelo
Supremo Tribunal de Justiça, em 24 de Janeiro de 2007, que negou provimento ao
recurso por si interposto (na parte em que dele tomou conhecimento) do acórdão
do Tribunal da Relação de Évora que confirmara a decisão do Tribunal Judicial de
Vila Real de Santo António, que, em síntese, o havia condenado, pela prática,
como autor material, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário
(previsto e punível pelo artigo 347° do Código Penal), de um crime de dano
qualificado (previsto e punível pelo artigo 213° n°1, alíneas a) e c), do Código
Penal) e de um crime de homicídio qualificado (previsto e punível pelos artigos
131º, 132°, n°1 e 2, alíneas f), g) e j), do Código Penal), em cúmulo jurídico,
na pena conjunta de dezassete anos de prisão.
O requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, em que
se invoca o disposto no artigo 70°, n°1, alínea b), da Lei n°28/82, de 15 de
Novembro, é do seguinte teor (fls. 2579 e seguintes):
“ […]
O objecto do recurso ora interposto é:
a) Invocar a inconstitucionalidade e ilegalidade do espírito que norteou a
decisão proferida, por entender o recorrente que o entendimento perfilhado pelo
STJ quanto à norma do art. 434° CPP (relativa aos respectivos poderes de
cognição), que confirma o entendimento anteriormente perfilhado pelo Tribunal da
Relação de Évora quanto à norma do artigo 431° do CPP (modificabilidade da
decisão recorrida), bem como o entendimento quanto à prova produzida trazem
ínsitas interpretações daquelas normas que ofendem o disposto no artigo 32° n°2
da Constituição da República Portuguesa. A presunção de inocência é um Direito
Fundamental nos termos dos artigos 18° n° 1 da Constituição da República
Portuguesa, 11° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 6° n°2 da
Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais e 14°
n° do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. O recorrente considera,
salvo melhor opinião, que se verifica uma violação do princípio in dubio pro
reo, uma vez que a fundamentação constante do acórdão proferido na primeira
instância, adoptada como correcta pelo Tribunal da Relação de Évora e ora
confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça baseia-se em questões não ponderadas
ou erradamente ponderadas que permitem verificar que deveria ter havido lugar a
dúvidas que deveriam ter pesado a favor do arguido e ora recorrente. Isto porque
ficou provado que o arguido procurou contornar a barreira policial; tentou
passar pelo espaço existente entre dois veículos; e que os agentes desviaram-se
(página 26 do acórdão do STJ), pelo que facilmente se verifica que o arguido
sempre tentou fazer passar o veículo por espaços livres, só não o conseguindo
devido à precipitação e rapidez dos acontecimentos, o que permite presumir uma
conduta negligente, nada existindo na matéria factual provada que leve a
concluir com certeza pelo dolo, ainda que eventual. As instâncias anteriores,
incluindo o STJ, basearam-se numa presunção para concluir que a conduta do
recorrente terá sido dolosa e não negligente, como o mesmo tem vindo a defender.
Como consta do acórdão do STJ na página 25, o dolo só é susceptível de prova
indirecta, já que a prova incide «sobre factos materiais indiciantes de que, por
meio de raciocínios assentes nas regras da experiência comum, da ciência ou da
técnica...». Também o Acórdão da Relação de Évora, nas páginas 103 e 104, cuja
posição foi confirmada pelo acórdão do STJ, entendeu que o dolo eventual que foi
atribuído à conduta do arguido não se baseou nem nas declarações deste, nem das
testemunhas, nem em qualquer outro meio de prova, mas sim nas regras da
normalidade. Contudo, entende o recorrente que as regras da normalidade não
podem nem devem levar a presumir contra o arguido, sob pena de ser violado —
como o recorrente entende que foi — o princípio in dubio pro reo;
b) Invocar a inconstitucionalidade e ilegalidade da interpretação conjunta dos
artigos 71° n°2, d), 1ª parte e 40° n°1 ambos do Código Penal na sua aplicação
ao caso concreto na decisão recorrida, por consequentemente violar o disposto no
artigo 72° n°1 da Constituição da República Portuguesa. O recorrente considera,
salvo opinião melhor fundamentada, que ao ser-lhe aplicada uma pena de 17 anos
de prisão não foi considerada uma condição pessoal do agente que se refere à sua
idade, que à data da condenação era de 53 anos e por isso a pena de prisão
aplicada não está, salvo o devido respeito, orientada no sentido da reintegração
social do recorrente, mas irá na prática, caso cumpra a pena na íntegra, puni-lo
para o resto da vida, o que é inconstitucional nos termos do n°1 do artigo 30°
da Constituição da República Portuguesa. Ao fim de 17 anos o recorrente terá 70
anos de idade, próximo do final da sua vida, sem oportunidade de se reinserir na
sociedade e de viver uma velhice digna, como está consagrado no artigo 72° n°1
da Constituição da República Portuguesa, cujo espírito não será respeitado, na
prática, caso a aplicação de tal pena se torne definitiva.
A interpretação dada aos referidos preceitos fundamenta a decisão em crise e
cuja constitucionalidade e legalidade se requer que seja apreciada, tendo sido
suscitada esta questão aquando da apresentação das motivações de recurso para o
STJ e também já o havia sido aquando da apresentação das motivações para o
Tribunal da Relação de Évora.
[…]”.
O recurso foi admitido pelo despacho de fis. 2589, que, nos termos do artigo
76°, n°3, da Lei do Tribunal Constitucional, não vincula este Tribunal.”
2. Por decisão sumária, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78º-A da Lei
do Tribunal Constitucional, foi decidido não conhecer do objecto do recurso,
exarando-se o seguinte:
“Apesar de, em certos passos do requerimento de interposição do presente
recurso, se pedir ao Tribunal Constitucional que aprecie a
‘inconstitucionalidade e legalidade’ da ‘interpretação’ dada a certos preceitos
e de se afirmar que ‘a questão’ foi suscitada ‘aquando da apresentação das
motivações de recurso para o STJ e também já o havia sido aquando da
apresentação das motivações para o Tribunal da Relação de Évora’, verifica-se,
pelos termos utilizados pelo recorrente para delimitar o objecto do recurso, que
o verdadeiro objecto deste recurso consiste na apreciação da
inconstitucionalidade (e legalidade) da decisão recorrida, em si mesma
considerada.
Na verdade, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional sindique, por um
lado, a valoração da prova pelo tribunal recorrido que, na sua perspectiva, não
teria obedecido aos princípios que a devem orientar e, por outro lado, a medida
da pena que lhe foi aplicada.
Ora, este objecto do recurso manifestamente não se enquadra na alínea b) do n°1
do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional — nem, aliás, em nenhuma das
outras alíneas do mesmo preceito. O Tribunal Constitucional não tem competência
para controlar a valoração da prova nem a medida da pena aplicada pelo tribunal
recorrido, apenas podendo, no âmbito do recurso interposto pelo recorrente,
controlar a conformidade constitucional de normas que constituíram o fundamento
jurídico da decisão sob recurso.
Assim sendo, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do presente recurso, em
virtude da atipicidade do respectivo objecto.
3. Acresce que o recorrente não suscitou, durante o processo, qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa, contrariamente ao que sustenta no respectivo
requerimento de interposição (supra, 1.).
Com efeito, na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de
Justiça (fls. 2491 e seguintes) — a peça processual a ter em conta, atento o
disposto no artigo 72°, n°2, da Lei do Tribunal Constitucional —, o recorrente
apresentou, para o que agora releva, as seguintes conclusões:
‘XXXIV – Existe erro notório na apreciação da prova (art. 410° n°2, c) do
C.P.P.) quando, sem fundamentação que o sustente, se considera provado que a
responsabilidade pela passagem do veículo entre as viaturas policiais e pelo
embate seria apenas do recorrente e não dos co – arguidos como constava da
acusação.
XXXV – O ora recorrente continua a considerar que foi violado o princípio in
dubio pro reo, consagrado no artigo 32º n° 2 da CRP e que constitui um Direito
Fundamental.
XXXVI – O acórdão proferido na segunda instância e ora recorrido entende que o
Tribunal na primeira instância não tem dúvidas porque tal não resulta da sua
fundamentação.
XXXVII – O recorrente considera, salvo melhor entendimento, que não é necessário
que a fundamentação deixe transparecer dúvidas para que seja violado o princípio
in dubio pro reo.
(…)
XXXIX – Para que haja violação do princípio in dubio pro reo basta que a
fundamentação apresente falhas como as já apontadas que permitam verificar que
deveria ter havido lugar a dúvidas.
(…)
L – Foi violado o disposto no artigo 43° n°1 do C.P. porque a pena aplicada ao
recorrente não está orientada no sentido da sua reintegração social mas vai
puni-lo para o resto da vida.
LI – O arguido tem 53 anos e ao fim de 17 terá 70.
LII – Saindo da prisão com 70 anos, o arguido não terá oportunidade de se
reinserir socialmente.
LIII – Não poderá viver uma velhice digna, pelo que a pena de 17 anos viola o
disposto no artigo 72° n°1 da Constituição da República Portuguesa. (…) ‘.
Nas expressões utilizadas não pode ver-se a invocação em termos processualmente
adequados de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de
constituir objecto idóneo de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n°1
do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional; concretamente, o recorrente não
suscitou perante o tribunal recorrido qualquer questão de inconstitucionalidade
a propósito dos preceitos legais indicados no requerimento de interposição do
presente recurso: os artigos 434° do Código de Processo Penal e os artigos 71°,
n°2, alínea d), 1ª parte, e 40°, n°1, ambos do Código Penal.
Deste modo, tem de concluir-se, sem necessidade de outras considerações, que não
se encontra preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso — a
invocação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade das normas
que o recorrente pretende submeter à apreciação deste Tribunal (cf. também o
artigo 72°, n°2, da mesma Lei)
Não pode, assim, também por esse motivo, conhecer-se do objecto do recurso.”
3. O recorrente veio, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do
Tribunal Constitucional, reclamar para a conferência, invocando tão-somente:
“A., tendo sido notificado da decisão sumária proferida nos presentes autos,
vem, nos termos do n° 3 do artigo 78°-A da LTC (redacção da Lei n°13-A/98 de 26
de Fevereiro, reclamar para a conferência, porquanto:
A decisão sumária foi proferida nos termos do n°1 do artigo 78°-A da LTC. Ora,
nos termos do nº 2 do mesmo artigo, o disposto no n°1 só se aplica se o
recorrente for notificado nos termos do n°5 ou n°6 do artigo 75°-A do mesmo
diploma, o que não sucedeu in casu.
Nestes termos, requer que a decisão sumária proferida não produza efeitos e que
seja o recorrente previamente notificado nos termos do n°5 do artigo 75°-A da
LTC.”
4. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, em resposta, defende que a
reclamação é manifestamente infundada.
Da mesma opinião partilha a recorrida B..
5. Decidindo:
Verifica-se que o ora Reclamante apenas afronta a decisão sumária proferida com
o argumento de que a mesma não produz qualquer efeito, porquanto não foi
notificado previamente nos termos do n.º 5 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal
Constitucional.
Ora, é inquestionável que a lei não sufraga o entendimento do Reclamante, isto
é, não impõe a sua audição antes de ser proferida a decisão pelo que, nenhum
acto devido foi omitido (vide, neste sentido, os Acórdãos nºs 714/98, 402/2005,
420/2005, 124/2006 e 263/2006, todos disponíveis na página “Internet” do
Tribunal Constitucional).
6. Assim, sem necessidade de maiores considerações, acordam em conferência
indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão
reclamada no sentido de não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 24 de Abril de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos