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Processo n.º 205/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. recorre, ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão da Relação do Porto, de 29 de Outubro de 2003, acusando de inconstitucional o artigo 14º n. 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei 15/2001 de 5 de Junho), em seu entender violador do artigo 27º da Constituição e, ainda, os artigos 411º ns. 1 e 3, 414º n. 2 e 420º n. 1 do Código de Processo Penal, por violação dos artigos 13º, 29º, e 32º da Constituição, e do acórdão da Relação do Porto, de 5 de Maio de 2004, acusando de inconstitucionais os citados artigos
411º ns. 1 e 3, 414º n. 2 e 420º n. 1 do Código de Processo Penal, e também por violação dos artigos 13º, 29º, e 32º da Constituição.
Nos termos do artigo 78º-A n. 1 da LTC decidiu-se, neste Tribunal, não ser de conhecer dos recursos interpostos pelas seguintes razões:
Observe-se que o recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC cabe das decisões dos tribunais que apliquem norma, anteriormente acusada de inconstitucional, que constitua sua ratio decidendi. Na verdade, a utilidade do recurso implica que a norma acusada de inconstitucional e sobre a qual recairá a pronuncia do Tribunal tenha ou produza reflexos na decisão jurisdicional recorrida, pois só assim a procedência do recurso pode determinar a reformulação da decisão.
É assim patente que o Tribunal não poderá conhecer da questão relativa à inconstitucionalidade do artigo 14º n. 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei 15/2001 de 5 de Junho), preceito que não foi aplicado no acórdão recorrido de 29 de Outubro de 2003.
É ainda patente que o acórdão de 5 de Maio de 2004 não aplicou as normas acusadas de inconstitucionais constantes dos artigos 411º ns. 1 e 3, 414º n. 2 e
420º n. 1 do Código de Processo Penal. Este aresto pronunciou-se tão-somente sobre as nulidades invocadas pelo recorrente contra o acórdão de 29 de Outubro de 2003 e não aplicou tais normas como razão de decidir.
Finalmente, quanto ao acórdão de 29 de Outubro de 2003 e na parte em que está impugnada norma constante dos artigos 411º ns. 1 e 3, 414º n. 2 e 420º n. 1 do Código de Processo Penal, cumpre reconhecer que esta questão não foi suscitada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Isto mesmo aceita o interessado, sustentando, porém, que a questão “resultou de uma decisão-surpresa” da Relação do Porto, “ao rejeitar o recurso apresentado”. Este Tribunal tem admitido conhecer de questões de inconstitucionalidade normativa não suscitadas perante o tribunal recorrido, quando o recorrente não beneficiou de oportunidade processual para suscitar a questão. Todavia, não é essa a situação presente. Na verdade, ao recorrente foi expressamente dada oportunidade de suscitar esta questão quando foi notificado do parecer do Ministério Público ao pronunciar-se pelo não conhecimento do recurso por força de norma retirada dos artigos 411º ns. 1 e 3, 414º n. 2 e 420º n. 1 do Código de Processo Penal. O recorrente respondeu, mas na sua peça não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
(...)
Inconformado com esta decisão, reclama o interessado, nos seguintes termos:
- Tribunal Constitucional tem afirmado em Jurisprudência unânime, que um dos requisitos específicos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do art. 70º da LTC, consiste na necessidade da inconstitucionalidade ter sido suscitada durante o processo, sob pena de não poder tomar-se conhecimento do recurso - Cfr. entre dezenas Acórdão de 22 de Maio de 1996 no processo 96-317, relator Ribeiro Mendes.
- A semântica 'durante o processo' é entendida de forma a ter sido dada ao juiz
'a quo', a possibilidade de se pronunciar sobre a questão antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
- Existem, contudo, casos excepcionais em que se tem entendido dispensada a exigência de suscitação durante o processo, de tal questão.
- Um desses casos verifica-se quando a aplicação da norma cuja adequação constitucional se discute, surpreende o recorrente, sem que lhe seja exigível que o previsse.
- Na decisão reclamada é vertido que a questão não constituiu perturbação súbita para o arguido, uma vez que o Sr. Procurador junto da Relação do Porto, no seu parecer, havia reclamado o indeferimento do recurso por extemporaneidade.
- Contudo, a resposta a tal parecer para além de não ter carácter obrigatório e na prática processual, não ter qualquer relevância prática, não constituiu uma aplicação concreta de uma norma jurídica, por parte de um órgão com poder jurisdicional, mas apenas de um parecer referente a um recurso interposto pelo arguido.
- Com o parecer junto ao processo, não foi aplicada de forma inconstitucional qualquer norma jurídica.
- Se assim fosse, deveria o arguido tomar posição sobre todos os despachos e promoções do MP, invocando preventivamente qualquer inconstitucionalidade?!
- Não é assim.
- Não era exigível ao recorrente prever, no momento de interposição do recurso junto do Tribunal Judicial de Vila do Conde, que o Tribunal da Relação do Porto viria a alterar um despacho da Juiz da primeira instância, que declarou suspenso o prazo para apresentação do recurso, frustrando a confiança legítima depositada pelo arguido numa anterior decisão judicial, contra a qual nenhum outro sujeito processual reagiu.
- O recorrente foi confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa imprevista ou inesperada, sendo desrazoável impor ao recorrente que tivesse efectuado um juízo de prognose coincidente.
- De facto, se os recursos de constitucionalidade não podem servir de instrumento de dilação e de retardamento do normal curso processual, no caso
'sub judicio' não pode ser extirpada ao arguido, quando estão em causa direitos fundamentais (v.g. liberdade), a possibilidade de dupla jurisdição, através de decisões surpresa, aplicando-se as normas jurídicas em sentido completamente inesperado.
- A 1ª instância determinou a concessão ao arguido de uma verdadeira prorrogação para exercer o seu direito de recurso da decisão condenatória proferida, assentando toda a sua estratégia processual subsequente, na consolidação de tal situação processual.
- Assim, como é manifesto, a oficiosa revogação de tal despacho, afecta a segurança e confiança processual do arguido, pondo em crise severa o exercício do direito ao recurso, ínsito no principio constitucional das garantias de defesa.
- “... um processo assim configurado, em que a garantia do recurso é deste modo postergada, contra a confiança legitimamente fundada em decisão anterior não impugnada que determinara a prorrogação do prazo, não pode ser considerado um due process of law, e não se conforma com as garantias de defesa que a Constituição assegura em processo penal - designadamente, com o reconhecimento, entre estas, do direito ao recurso. Assim, no contexto de aplicação dessa norma ao caso dos autos, o que se tem de concluir é que a interpretação do art. 420º, n° 1, do Código de Processo Penal, ao levar a considerar intempestivo o recurso interposto dentro do prazo fixado por despacho judicial do tribunal a quo, apesar de este não ter sido impugnado, afronta directamente o n° 1, do art. 32° da Constituição da Republica Portuguesa, ofende os princípios da segurança e certeza jurídicas...' - vide Acórdão do Tribunal Constitucional de 14 de Janeiro de 2004, Proc. 124/03, 28 Secção, relator Paulo Mota Pinto
- Nos trâmites da retórica exposta, a decisão sumária em reclamação é ela própria inconstitucional, na medida em que colide frontalmente com os princípios da plenitude das garantias de defesa e o direito de recurso consagrados no art.
32°, n.ºs 1 e 5, da CRP .
- Nestes termos deverá ser concedido provimento à presente reclamação seguindo-se os ulteriores termos processuais. Cumpre decidir, tendo desde logo em conta que a reclamação não ataca a decisão sumária impugnada quanto à determinação de não conhecer da questão relativa à inconstitucionalidade do artigo 14º n. 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei 15/2001 de 5 de Junho), e, ainda, a de não admitir o recurso do acórdão de 5 de Maio de 2004.
Em causa está, portanto, apenas o acórdão de 29 de Outubro de 2003, na parte em que está impugnada norma constante dos artigos 411º ns. 1 e 3, 414º n. 2 e 420º n. 1 do Código de Processo Penal.
Ponderou-se na decisão reclamada, aliás com a concordância do recorrente, que esta questão nunca foi suscitada perante o Tribunal recorrido. No entanto, o recorrente discorda da decisão de não conhecer do recurso por entender que a aplicação da norma resultou de uma decisão-surpresa da Relação do Porto.
A questão a decidir consiste, portanto, em saber se há ou não razões para considerar justificada a não suscitação da questão de inconstitucionalidade no Tribunal recorrido.
Continua este Tribunal a entender, porém, que o recorrente teve oportunidade processual de levantar a questão no Tribunal recorrido. A Relação do Porto limitou-se a interpretar a norma em questão no seu sentido literal – sendo assim imediatamente previsível a sua aplicação, com o mencionado sentido, ao caso –, a que decisivamente acresce que o recorrente foi inequivocamente alertado para esta situação pelo parecer do Ministério Público, devidamente notificado, que expressamente invocou a norma em causa.
É certo que o recorrente não deu relevo a esta circunstância e, ao responder ao Ministério Público, não quis suscitar a questão da inconstitucionalidade da norma: mas daqui não se retira que a decisão que aplicou essa mesma norma constitua, objectivamente, uma decisão-surpresa.
Termos em que se decide confirmar a decisão de não conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos