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Processo n.º 894/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., identificado com os sinais dos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), pretendendo ver
apreciada a constitucionalidade “das normas dos artigos 97.º, n.º 4, 379.º, n.º
1, alínea a) e 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal se interpretadas no
sentido, segundo o qual, a fundamentação da decisão em matéria de facto,
proferida em acórdão de recurso que confirmou a decisão de pronúncia se basta
com remissão para a prova indicada na decisão recorrida, sem enumeração dessa
prova, sem especificação dos motivos de facto que fundamentam a decisão e sem
análise crítica da mesma, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1,
da Constituição da República Portuguesa”.
2 – Com o mesmo fundamento foi arguida, invocando-se “deficiente fundamentação”,
a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Dezembro de
2003, que se estribou na seguinte argumentação:
«(...) Colhidos os Vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir:
A questão em análise no presente recurso é a questão de saber se no Despacho
recorrido se procedeu a uma análise criteriosa da prova recolhida nos Autos -
seja em fase de inquérito, seja na instrução - a fim de verificar se daquela se
indicia suficientemente, ou não, a prática pelos Arguidos dos crimes que lhe são
imputados.
Cabe, por isso começar por transcrever o Despacho em questão:
(...)
Alega, em síntese, a assistente no seu requerimento de abertura de Instrução que
à data dos factos relatados nos autos (28 de Janeiro de 2001), um pinheiro
existente na sua propriedade tombou sobre o muro confinante com a linha férrea,
ficando alguns ramos a afectar a circulação dos comboios. Por esse motivo os
bombeiros, acompanhados de agentes da PSP , compareceram ao local e procederam
ao corte das ramadas do referido pinheiro.
Após a PSP e os bombeiros se terem ausentado e sem contacto prévio com a
assistente, o arguido ordenou a 4 indivíduos que saltassem o muro da propriedade
e que abatessem todas as árvores ali existentes, designadamente magnólias
centenárias, que se encontravam a cerca de 5 metros do muro e não mostravam
sinais de doença ou risco de caírem, pelo que não punham em risco a circulação
ferroviária.
O arguido manteve-se na linha férrea, dando ordens directas aos 4 indivíduos que
procederam ao derrube das magnólias, contra a vontade expressa de um vendedor da
assistente que se encontrava na propriedade.
Entende, por isso, que tal conduta faz incorrer o arguido na autoria dos crimes
denunciados.
A prova produzida em instrução consistiu nas declarações do representante legal
da assistente, que afirmou que as árvores abatidas a mando do arguido eram
centenárias e embelezavam e valorizavam particularmente a propriedade e que nos
termos do projecto da Câmara para o local tais árvores deveriam ser
obrigatoriamente conservadas.
Mais afirmou que tais árvores não tinham aspecto envelhecido, nem estavam em
risco de cair. Mas, ainda que tal acontecesse, cairiam dentro do seu terreno,
uma vez que a que se encontrava mais próxima do muro estava a cerca de três
metros de distancia da ribanceira que dava para a linha do comboio.
A testemunha B., ouvido a fls. 115/116, autor do projecto levado a efeito na
propriedade da assistente, relatou as condicionantes impostas pela Câmara e que
teve de respeitar na elaboração do projecto, aprovado ao fim de seis diferentes
soluções por si apresentadas. Uma das condicionantes relacionava-se directamente
com as árvores abatidas, que representavam barreira ambiental natural, de valor
patrimonial muito elevado.
Esclareceu que se tratava de plantas centenárias e que o seu projecto respeitou
rigorosamente a posição de cada uma delas. Aliás, foi imposta desde o início do
projecto, a obrigatoriedade de um arquitecto paisagista.
Acrescentou que as árvores abatidas não representavam qualquer risco imediato,
nem nunca antes daquele dia fora levantado qualquer problema de segurança da
linha de comboios, de contrário ele próprio, como autor do projecto, teria
tomado as iniciativas pertinentes a eliminar tal risco. Acresce que, segundo
afirmou, nem todas as árvores abatidas estavam próximas do muro e não estavam
alinhadas.
Finaliza explicando que, ainda que o arguido tivesse entendido existirem razões
de segurança, deveria ter contactado a Câmara, ou o autor do projecto, ou o
proprietário da Quinta, por forma a discutir o assunto e encontrar solução para
o problema, que poderia passar pelo transplante das árvores, caso tal fosse
entendido necessário, correspondendo tal solução a prática comum nos dias de
hoje.
A testemunha C., autor do projecto de arquitectura paisagística na propriedade
da assistente confirmou a existência de condicionantes no projecto, impostas
pela Câmara e relacionadas com a existência das árvores aqui em causa.
Esclareceu que tais árvores não estavam em risco de cair , apresentando bom
estado de saúde, confirmado pela posterior dificuldade em arrancar os
respectivos cepos. Não estavam alinhadas e encontravam-se implantadas a cerca de
4 a 6 metros dentro do muro que delimitava a propriedade.
Referiu, por fim, que em caso de risco poderia sempre de ter sido adoptada a
solução do transplante das árvores, sem necessidade do respectivo abate.
A testemunha D., responsável pela obra, confirmou que apesar de não estar
presente no local quando ocorreram os factos, foi contactado por um funcionário
seu pelo telefone que lhe comunicou o que se passava. Disse a esse funcionário
que não autorizasse o corte das árvores e que o mandasse de imediato suspender,
por se tratar de árvores centenárias. Pediu, ainda, ao funcionário para passar o
telefone ao responsável da E., o arguido, o qual não quis falar ao telefone,
dizendo ao seu funcionário que não era criado da testemunha e que se quisesse
que fosse lá falar com ele.
Acrescentou que as árvores abatidas não representavam qualquer perigo para a
linha férrea e estavam completamente consolidadas, o que causou posteriormente
grandes dificuldades em arrancar os troncos respectivos.
Já durante a pendência do debate instrutório foi ouvido, a seu pedido, o
arguido, que declarou, em síntese, que ao chegar ao local no dia em que
ocorreram os factos aqui tratados, já lá se encontravam os bombeiros da Parede,
do Estoril, bem como a Protecção Civil.
Analisou os factos, contactou a sua hierarquia por telemóvel e recebeu
instruções para decidir e actuar em conformidade com a situação concreta.
O pinheiro que estava caído foi cortado. Uma das companhias de bombeiros saiu do
local.
Esclareceu que constatou depois que três das árvores ali existentes, com cerca
de 5 metros de altura, estavam no mesmo enfiamento do pinheiro e tinham as copas
a penderem para a via férrea. A terra encontrava-se remexida no local e havia
intempéries em todo o país.
Perante estas circunstâncias tomou a decisão que lhe pareceu a mais acertada de
mandar abater essas três árvores, que se encontravam, segundo afirmou, a cerca
de dois metros e meio do muro que dá para a linha férrea.
Quando mandou abater as árvores ainda ali se encontravam uma corporação de
bombeiros e o representante da Protecção Civil, tendo sido utilizados pelos seus
homens alguns dos equipamentos destas instituições.
Durante o período que esteve no local só foi contactado por um vendedor da
assistente e por nenhum outro representante da mesma.
A testemunha apresentada pelo arguido, F., prestou declarações coincidentes com
as do arguido. No entender desta testemunha e segundo as suas declarações, a
decisão de abater as três árvores tomada pelo arguido, com a qual concordou
totalmente, foi a mais acertada, pois as árvores colocavam em perigo a
circulação ferroviária, uma vez que tinham cerca de 5 metros de altura, tinham
os ramos inclinados para a linha e encontravam-se a cerca de metro e meio do
muro da propriedade.
Esclareceu que os homens da E. que procederam ao abate utilizaram duas moto
serras disponibilizadas pelos bombeiros da Parede que ainda ali se encontravam.
Manteve-se com o arguido no local durante cerca de três horas, sempre do lado da
linha, fora da propriedade da assistente e só se apercebeu da presença de um
funcionário da assistente com um telemóvel na mão.
Estes os elementos disponíveis nos autos, a partir dos quais cumpre averiguar se
existirão indícios suficientes que suportem as imputações feitas pela assistente
ao arguido.
Apreciada a prova produzida nos autos, verifica-se que, segundo a versão do
arguido, que fora já acolhida no despacho de arquivamento proferido pelo MºPº,
este agiu numa situação de emergência, tendo ponderado as circunstâncias
concretas que apurou no local. Entendeu que as árvores que mandou abater
representavam perigo concreto para a circulação dos comboios, pondo em risco
bens materiais e humanos e decidiu nessa convicção.
A assistente, por sua vez, entende que a situação de emergência só se verificava
quanto ao pinheiro cujos ramos se encontravam caídos sobre a linha de comboio.
Por causa desse pinheiro , deslocaram-se os bombeiros ao local e procederam ao
respectivo abate, não merecendo tal conduta qualquer reparo da sua parte.
Já quanto as três magnólias abatidas, entende a assistente que nenhum perigo
representavam, pelo que a decisão do arguido, sem qualquer diligência ou
contacto prévio com a assistente é recriminável do ponto de vista penal.
Destina-se a presente fase processual a verificar a existência de indícios
suficientes que justifiquem a submissão do arguido a julgamento.
Por indícios suficientes deve entender-se aqueles de que resulte possibilidade
razoável de vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança
(art. 283º do CPP).
Assim, devem ser pronunciados os arguidos sempre que, até ao encerramento da
instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os
pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, isto
é, terem-se verificado factos susceptíveis de integrar a prática de um crime e a
respectiva imputação desses factos aos arguidos (art. 308º CPP).
O que se exige, pois, na pronúncia, não é um juízo de certeza, mas tão só de
probabilidade. Não obstante tal probabilidade dever ser séria, ainda assim não
deixa de ser apenas uma possibilidade.
Ponderados os .elementos recolhidos em instrução, através da inquirição das
testemunhas indicadas pela assistente e tida em conta a posição assumida pelo
arguido, entende-se encontrar-se suficientemente suportada a posição assumida no
requerimento de abertura de instrução, nomeadamente que o arguido ordenou o
derrube de árvores, de elevado valor patrimonial (fls. 12), que não aparentavam
qualquer risco imediato, sem contacto prévio com a assistente, recusando, aliás,
tal contacto através do telefone. Para executar as ordens do arguido, os
funcionários permaneceram na propriedade da assistente, sem consentimento ou
autorização da mesma.
Justifica-se, por isso a submissão do arguido a julgamento.
(...)
A questão em análise no presente recurso é a questão de saber se a prova
recolhida nos Autos - seja em fase de inquérito, seja na instrução – indicia
suficientemente, ou não, a prática pelo Arguido dos dois crimes que lhe são
imputados.
Os elementos de prova que, nestes Autos, sustentam o juízo incriminatório
imputado ao Arguido são os indicados no Despacho acima transcrito, da sua
análise resulta claro existir uma séria probabilidade de o Arguido ter cometido
os factos denunciados nos Autos.
É sabido que, nesta fase processual' a valoração a fazer da prova sustentará não
um juízo de absoluta certeza da prática pelo Arguido dos ilícitos criminais
imputados, mas tão-somente um juízo de forte probabilidade.
Como, aliás, ensina o Prof. Cavaleiro Ferreira: «Em processo penal a pronúncia
dos Arguidos depende de prova bastante ou prova indiciária dos elementos da
infracção ou de quem foram os seus agentes. (...)
A prova indiciária permite a introdução do processo em juízo e a sujeição a
julgamento dos arguidos. A estes efeitos processuais se limita o seu valor. Não
constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está
provado já não carece de prova, e a pronúncia torna apenas legítima a discussão
judicial da causa. Tão pouco determina uma presunção legal, pois que a prova que
pode servir de fundamento à decisão judicial é somente a que tiver sido
produzida na discussão da causa, em audiência, e não a que, para fins
intermédios do processo consta do corpo de delito.
A prova indiciária (...) conduz à pronúncia. A pronúncia não traduz uma
presunção legal de culpabilidade, nem dá origem a uma obrigação de contraprova
para a destruição da inexistente presunção legal.
(...)
A prova indiciária, portanto, tem por objectivo primacial autorizar o juiz a não
rejeitar a acusação, com o fundamento de falta de prova; conduz não à convicção
definitiva da certeza do facto, mas á convicção da sua probabilidade, isto é de
que os factos são naturalmente susceptíveis de vir a ser provados.» - Curso de
Processo Penal, Vol. II, pág. 284-5, Lisboa, 1981 -.
Analisando a prova recolhida nos Autos à luz destes ensinamentos surge como
evidente a conclusão que tais elementos constituem suficiente prova indiciária
da prática pelo Arguido dos ilícitos criminais que lhe são imputados.
E tal prova indiciária é idónea e bastante para sustentar a pronúncia do
Arguido.
V
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo integralmente o
douto Despacho de Pronúncia recorrido».
3 – E, relativamente à inconstitucionalidade suscitada na arguição de nulidade
desta decisão, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 7 de Julho de
2004, veio afirmar que:
“(...) A questão em apreciação prende-se com a questão de saber se
as decisões judiciais que não se consubstanciem em Sentenças finais devem, ou
não, obediência aos mesmos preceitos normativos no que toca à sua motivação de
facto e de direito.
Sem que se ponha em crise a necessidade de fundamentação, de facto e
de direito, de qualquer decisão judicial, por força do constitucionalmente
preceituado, considera a jurisprudência dever ser feita uma distinção entre as
Sentenças, ou Acórdãos, que decidem a final e as restantes decisões.
Tal entendimento decorre do estipulado no CPP, o qual nos seus
artigos 374.º n.º 3, e 379.º, n.º 1, al. a), especifica pormenorizadamente os
requisitos da fundamentação relativamente às Sentenças finais, uma vez que estas
consubstanciam o acto decisório por excelência.
No que respeita às restantes decisões judiciais bastará que estas
contenham, ainda que de forma resumida ou sumária, os elementos que permitam
concluir que: “o julgador ponderou os motivos de facto e de direito da sua
decisão – isto é, não agiu discricionariamente; a) a decisão tem virtualidade
para os interessados e os cidadãos em geral se convencerem da sua correcção e
justeza; e b) o controlo da legalidade não é prejudicado pela forma como foi
proferido” – Ac. da Relação de Lisboa, de 22.03.94, CJ XIX, 1994.
Assim sendo, e considerando que o texto do acórdão proferido nestes
autos fundamenta a sua opção pela pronúncia do Arguido na circunstância de que a
prova recolhida é suficiente e bastante para alicerçar um juízo indiciário da
prática pelo Arguido dos ilícitos criminais que lhe são imputados pelo
Assistente, e como tal para o sujeitar a Julgamento, considera-se que aquela
decisão se encontra devidamente fundamentada, nos termos legais.
Pelo que, se considera improceder a nulidade arguida.
Sendo certo que se considera não estar inquinado de
inconstitucionalidade um tal juízo, por se entender que este não viola as
garantias constitucionais de defesa, consignadas no art. 32.º da CRP, nem o já
invocado dever de fundamentação imposta pelo art. 205.º da Lei Fundamental.
E tal, porque os elementos de prova em que assenta o juízo confirmatório da
indiciação são exactamente os mesmos que os indicados na decisão recorrida, não
se acrescentando qualquer outro elemento relativamente ao qual não tivesse já o
ora arguente a correspondente possibilidade de impugnar, ou ainda não se
fundamenta a apreciação do juízo de indiciação em outro argumento, ou outra
valoração dos elementos de prova que não a constante do despacho recorrido.
Isto é, havendo lugar a uma total confirmação do anteriormente
decidido, quer quanto às suas premissas de facto, quer quanto à sua conclusão de
direito, não será exigível à decisão a proferir que explicite,
especificadamente, os fundamentos dessa adesão, mas tão só que indique as razões
pelas quais valida a conclusão fáctica e jurídica em apreço
Diferentemente se procederia caso se considerasse que determinado elemento de
prova não havia sido considerado, ou o haveria sido de modo julgado inadequado,
ou ainda também caso se não aderisse ao enquadramento jurídico-penal dos factos
indiciados.
No caso vertente, o Acórdão procedeu a uma análise do conjunto da prova carreada
para os autos, louvando-se no modo de apreciação e enquadramento jurídico-penal
a que procedeu a decisão recorrida, não tendo coarctado qualquer garantia de
defesa do recorrente ou ainda descurado o dever de fundamentação, como já se
explicitou
Nestes termos, considera-se ser de concluir pela improcedência do arguido
(...)”.
4 – Recebido o recurso neste Tribunal e ordenada a notificação do Recorrente e
dos Recorridos para apresentação das respectivas alegações e contra-alegações,
vieram as partes sustentar os argumentos infra transcritos.
4.1 – Por banda do Recorrente:
“1ª - O recorrente, na sequência do acórdão de 3/12/03, suscitou a nulidade
desse acórdão, nos termos do art. 379º, n.º 1, alínea a), do C.P.P. e arguiu a
inconstitucionalidade das normas dos artºs 97º, n.º 4, 379º, n.º 1, alínea a) e
425º n.º 4, do C.P.P. se interpretadas no sentido, segundo o qual, a
fundamentação da decisão em matéria de facto, proferida em acórdão de recurso
que confirmou a decisão de pronúncia, se basta, com remissão para a prova
indicada na decisão recorrida, sem enumeração dessa prova, sem especificação dos
motivos de facto que fundamentam a decisão e sem análise critica da mesma, por
violação dos artºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.
2ª - A decisão recorrida, a propósito da questão da inconstitucionalidade
suscitada, considerou que é conforme à exigência constitucional de fundamentação
de acórdãos que não sejam de decisão final, em caso de confirmação do decidido
em 1ª instância, a adesão ao aí decidido, sem necessidade de especificação
autónoma.
3ª - Porém, não se afigura, salvo melhor opinião, que tal interpretação tenha
acolhimento constitucional.
4ª - Com efeito, nos termos dos artºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da C.R.P., o
processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa, devendo as
decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente serem fundamentadas na
forma prevista na lei.
5ª - No caso concreto, a lei aplicável, lei processual penal, impõe, na
fundamentação dos actos decisórios, como é o que está em questão, a
especificação dos motivos de facto e direito da decisão, nos termos do art. 97º,
n.º 4, do C.P.P. e, nos acórdãos proferidos em recurso, como é o caso, o exame
crítico da prova que serviu para formar a convicção, sob pena de nulidade, nos
termos dos artºs 379º, n.º 1, alínea a), e 425º, n.º 4, do C.P.P.
6ª - Exame crítico esse que, aliás, se impunha, tendo em consideração que a
redução a escrito dos diversos depoimentos e factos considerados na decisão
instrutória de 1ª instância, permitem o seu confronto, para formação do juízo do
Tribunal 'ad quem'.
7ª - Neste contexto, a apreciação da questão nos moldes referidos em 2 destas
conclusões, faria com que os destinatários da decisão ficassem, também, privados
de saber quais os factos que foram considerados, e os motivos pelos quais,
designadamente, se optou por valorizar um segmento probatório em detrimento do
outro, para se chegar à decisão, o que constitui uma quebra nas garantias de
defesa com redução constitucionalmente insustentável do dever de fundamentação
da decisão.
8ª - Sendo certo que a decisão de pronúncia, até constitui uma das mais
importantes decisões proferidas em processo penal, dado que, da mesma, depende o
envio dos autos para julgamento ou o seu arquivamento, impondo-se, assim, com as
devidas diferenças em relação a um acórdão da decisão final, que se especifiquem
os motivos de facto relevantes para a decisão e se faça a análise crítica da
prova.
9ª - Devendo assim ser declarada a inconstitucionalidade supra-deduzida, em 1
das presentes conclusões.
NESTES TERMOS e noutros de direito doutamente supridos deverá ser declarada a
inconstitucionalidade das normas dos artºs 97º, nº 4, 379º, n.º 1, alínea a) e
425º, n.º 4, do C.P.P. se interpretadas no sentido, segundo o qual, a
fundamentação da decisão em matéria de facto, proferida em acórdão de recurso
que confirmou a decisão de pronúncia, se basta, com remissão para a prova
indicada na decisão recorrida, sem enumeração dessa prova, sem especificação dos
motivos de facto que fundamentam a decisão e sem análise crítica da mesma, por
violação dos artºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa, e em consequência, ordenada a reforma da decisão recorrida em
conformidade com o decidido sobre a questão de constitucionalidade, fazendo-se,
assim, JUSTIÇA”.
4.2 – Pelo Recorrido Ministério Público:
“1 - Em processo penal o dever de fundamentação das decisões judiciais com
especificação dos motivos de facto e de direito não é violado quando o Tribunal
Superior concorda e adere às razões constantes da decisão da primeira instância,
do completo conhecimento do arguido.
2 - Não merece censura constitucional a fundamentação por remissão ou
transcrição de despachos já proferidos no processo, quando tal facto, como é o
caso, não introduz qualquer dificuldade na compreensão dos fundamentos do assim
decidido.
3 - Motivos pelos quais deverá improceder o presente recurso”.
4.3 – Pelo Recorrido G.:
«[...]
I. O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Lisboa, ao aderir, na íntegra, à valoração da prova e à fundamentação constantes
do despacho instrutório, por forma a confirmar a pronúncia do arguido, preenche
os requisitos de fundamentação estabelecidos no artigo 97º, n.º 4, do CPP, e no
artigo 205º, n.º 1, da CRP.
II. O Acórdão em causa é absolutamente claro no que respeita ao sentido e razão
de ser da decisão do Tribunal da Relação, pelo que não houve qualquer violação
das garantias de defesa do recorrente.
III. O disposto no artigo 379º e no artigo 374º, ambos do CPP, aplicam-se à
sentença e não aos demais actos decisórios, pelo que a remissão constante do
artigo 425º, n.º 4, do mesmo diploma, deve ser interpretado com as necessárias
adaptações, quando está em causa o recurso de uma decisão instrutória.
IV. O Acórdão em causa, ao aderir e remeter para a valoração e fundamentação
constantes da decisão do tribunal inferior, não sofre de uma omissão de
fundamentação, ou de uma deficiente fundamentação, devendo ser admitido este
processo de fundamentação que visa, em termos formais, uma maior celeridade e
simplificação das decisões.
Termos em que, no caso sub judice, não deve ser declarada a
inconstitucionalidade dos artigos 97º, n.º 4, 379º, n.º 1, al. a), e 425º, n.º
4, todos do CPP, por violação dos artigos 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da CRP».
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
B – Fundamentação
5 – Importa, antes de mais, proceder à exacta delimitação do objecto
do recurso, sendo que, para tal, deve partir-se do requerimento de interposição
do recurso para este Tribunal, relevando-se, igualmente, o teor do acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa que indeferiu a arguição da nulidade invocada pelo
Recorrente.
Assim, atentando na definição normativa suscitada pelo Recorrente,
resulta que se pretende a apreciação da constitucionalidade “das normas dos
artigos 97.º, n.º 4, 379.º, n.º 1, alínea a) e 425.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal, se interpretadas no sentido, segundo o qual, a fundamentação da
decisão em matéria de facto, proferida em acórdão de recurso que confirmou a
decisão de pronúncia se basta com remissão para a prova indicada na decisão
recorrida, sem enumeração dessa prova, sem especificação dos motivos de facto
que fundamentam a decisão e sem análise crítica da mesma, por violação dos
artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
Por seu turno, da decisão recorrida igualmente emerge que “havendo
lugar a uma total confirmação do anteriormente decidido, quer quanto às suas
premissas de facto, quer quanto à sua conclusão de direito, não será exigível à
decisão a proferir que explicite, especificadamente, os fundamentos dessa
adesão, mas tão só que indique as razões pelas quais valida a conclusão fáctica
e jurídica em apreço”.
Encontrando-se aqui a ratio decidendi do juízo proferido, maxime, no
que tange com a inconstitucionalidade suscitada, tal não pode ignorar-se na
concretização interpretativa das “dimensões normativas” invocadas pelo
recorrente para ilustrar o alcance da “fundamentação por remissão”.
Nesses termos, pode precisar-se que, no caso sub judicio, estará em
causa a apreciação da constitucionalidade “das normas dos artigos 97.º, n.º 4,
379.º, n.º 1, alínea a), e 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal,
interpretadas no sentido de que havendo lugar a uma total confirmação do
anteriormente decidido, a fundamentação da decisão em matéria de facto,
proferida em acórdão de recurso que confirmou a decisão de pronúncia se basta
com remissão para a prova indicada na decisão recorrida, não sendo exigível à
decisão a proferir que explicite, especificadamente, os fundamentos dessa adesão
– autonomizando a enumeração dessa prova, a especificação dos motivos de facto
que fundamentam a decisão e a análise da mesma –, mas tão só que se indiquem as
razões pelas quais valida a conclusão fáctica e jurídica em apreço, por violação
dos artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.
Consideradas de per se, as normas do Código de Processo Penal
invocadas pelo Recorrente apresentam a seguinte redacção:
“Artigo 97.º (Actos decisórios)
1. (...)
2. (...)
3. (...)
4. Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados
os motivos de facto e de direito da decisão.”
“Artigo 379.º (Nulidade da sentença)
1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no artigo 374.º, n.os 2 e 3,
alínea b); ou
(...)”.
Artigo 425.º (Acórdão)
1. (...)
2. (...)
3. (...)
4. É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o
disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for
lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento.
(...)”.
Por seu turno, as normas constitucionais consideradas violadas têm a seguinte
redacção:
Artigo 32.º (Garantias de processo criminal)
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o
recurso”.
(...)”.
“Artigo 205.º (Decisões dos tribunais)
1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas
na forma prevista na lei.
(...)”.
6 – A questão da fundamentação das decisões judiciais constitui uma
das problemáticas mais relevantes envolvida no âmbito da concreta realização
judicativo-decisória do direito.
Essa importância específica resulta, desde logo, em termos
metodológicos, do reconhecimento de que qualquer “decisão, ao radicar
imediatamente na voluntas de quem a profere, é marcada por uma ineliminável
subjectividade, pelo que só não se perverterá em arbítrio se for adequadamente
fundamentada (...) “(Fernando José Bronze, Lições de Introdução ao Direito,
Coimbra, 2002, pp. 569-571).
Não se estranha, pois, que tal preocupação tenha sido manifestada,
expressis verbis, no texto constitucional, ainda que, nesta sede, se tenha
remetido para o legislador a tarefa de concretizar os aspectos
processuais[-formais] concretizadores daquela exigência, e que, em face da
regulamentação contida na norma normarum, o Tribunal Constitucional tenha já
sido, por diversas vezes, chamado a considerar alguns problemas suscitados nesse
domínio particular jurídico-processual (cf., inter alia, os Acórdãos n.ºs
680/98, 102/99 e 396/03, publicados, respectivamente, no Diário da República II
Série, de 5 de Maio de 1989, de 1 de Abril de 1999 e de 4 de Fevereiro de 2004,
e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41º vol., pp. 539, 42º vol., pp. 457 e
56º vol. 801).
E nessa jurisprudência têm-se reflectido as particulares exigências
jurídico-constitucionais que densificam o dever de fundamentação das decisões
jurisdicionais, considerando, a esse propósito, a importância funcional de que
se encontra revestido tal dever no âmbito das decisões proferidas em processo
penal.
Atente-se a esse nível no que se escreveu no Acórdão nº 680/98,
estando aí em causa a inconstitucionalidade de 'uma interpretação das normas
pertinentes do CPP, nomeadamente do artigo 374º, n.º 2, e 410º, n.º 2, als. b) e
c), no sentido de dispensar a indicação dos elementos que conduziram a que a
convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de
determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência':
«(...) [7.] Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205º, que 'as decisões dos
tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista
na lei'. Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio
substituir o n.º 1 do artigo 208º, que determinava que 'as decisões dos
tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei'. A
Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da
obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais,
que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões
que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já
que as decisões deixam de ser fundamentadas 'nos termos previstos na lei' para o
serem 'na forma prevista na lei'. A alteração inculca, manifestamente, uma menor
margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de
fundamentação.
A verdade, porém, é que, estando em causa um elemento da sentença que releva
para efeitos da respectiva validade, deve avaliar-se da conformidade
constitucional da norma em apreciação à luz do texto constitucional vigente à
data da prolação do acórdão. Diga-se porém, desde já, que a alteração do texto
constitucional é, neste caso, irrelevante, pois sempre se chegaria à mesma
conclusão.
É certo que a Constituição não determina, ela própria, o alcance do dever de
fundamentar as decisões judiciais, remetendo para a lei a definição do
respectivo âmbito. Certo é também, igualmente, que o legislador, ao concretizar
a liberdade de conformação que a Constituição lhe confere, não a pode reduzir de
tal forma que, na prática, venha a inutilizar o princípio da fundamentação.
Como se escreveu no acórdão n.º 310/94 deste Tribunal (Diário da República II,
de 29 de Agosto de 1994), ficou 'devolvido ao legislador, em último termo, o seu
‘preenchimento’, isto é, a delimitação do seu âmbito e extensão. Com efeito, o
legislador constituinte consagrou o dever de fundamentação das decisões
judiciais – fê-lo na revisão constitucional de 1982 –, em termos prudentes,
evitando correr o risco de estabelecer uma exigência de fundamentação demasiado
extensa e, por isso, inapropriada e excessiva. Daí o ter-se limitado a consagrar
o aludido princípio ‘em termos genéricos’, deixando a sua concretização ao
legislador ordinário.
Isso não significa, tal como se vincou nos arestos citados deste Tribunal (cfr.
ponto 8. do acórdão citado), que assiste ao legislador ordinário uma liberdade
constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de
fundamentação das decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a
imposição constitucional.
Do princípio consagrado no artigo 208º, n.º 1, da Constituição, enquanto
garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (artigo
2º), há-de decorrer para o legislador, pelo menos, a obrigação de prever a
fundamentação das ‘decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa
em juízo, como instrumento de ponderação e legitimidade da própria decisão
judicial e de garantia do direito ao recurso’ (cf. J. J. Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 1993, pp. 798-799). De qualquer modo, os limites a tal liberdade
constitutiva do legislador (ou ‘discricionaridade’ legislativa) hão-de ser muito
largos e respeitar a um núcleo essencial mínimo de decisões judiciais. De outro
modo, na verdade, ‘subverter-se-á o próprio sentido da cláusula constitucional
(que é intencionalmente o de uma ‘incumbência’ ao legislador) e o seu citado
propósito cautelar' (...)
Ora, tal como se afirma no mesmo acórdão nº 310/94, a determinação do alcance
que o legislador ordinário há-de conferir à obrigação de fundamentar as decisões
judiciais obriga a indagar quais as funções desempenhadas pela fundamentação,
tendo em conta que, diferentemente do caso ali em análise, nos encontramos
perante uma decisão condenatória proferida em processo penal.
Assim, desde logo, a fundamentação de uma sentença contribui para a sua
eficácia, já que esta depende da persuasão dos respectivos destinatários e da
comunidade jurídica em geral. Escreve EDUARDO CORREIA: 'só assim racionalizada,
motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao
menos, 'convencer' as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria
penal a própria designação do condenado por 'convencido' sugere' (Parecer da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto,
em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII (1961), pág. 184).
A fundamentação permite, ainda, quer pelas próprias partes, quer, o que é de
realçar, pelos tribunais de recurso (v. MICHELE TARUFFO, Note sulla garanzia
costituzionale della motivazione in Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, vol. LV (1979), págs. 31-32), fazer, como escreve
MARQUES FERREIRA, 'intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou
racional que lhe subjaz, pela via do recurso (...)' ('Meios de prova, in
Jornadas de Direito Processual Penal - o novo Código de Processo Penal, Coimbra,
1992, pág. 230).
Mais importante, todavia, é a circunstância de a obrigação de fundamentar as
decisões judiciais constituir um verdadeiro factor de legitimação do poder
jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a
base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris
dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade,
da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (v. MICHELE
TARUFFO, op. cit., págs. 34-35, que escreve: 'a garantia constitucional do dever
de fundamentação ocupa um lugar central no sistema de valores nos quais deve
inspirar-se a administração da justiça no Estado democrático moderno').
É indiscutível que 'o princípio da motivação das decisões judiciais constitui
uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito e no Estado
Social de Direito contra o arbítrio do poder judiciário', v. PESSOA VAZ, Direito
Processual Civil - do antigo ao novo Código, Coimbra, 1998, pág. 211.
Embora não venha ao caso fazer a história, nem sequer para o direito português,
da obrigação de fundamentar as decisões judiciais, não podemos, a concluir este
ponto, deixar de citar BENTHAM: 'In legislation, in judicature, in every line of
human action in which the agent is or ought to be accountable to the public or
any part of it, – giving reasons is, in relation to rectitude of conduct, a
test, a standard, a security, a source of interpretation. Good laws are such
laws for which good reasons can be given: good decisions are such decisions for
which good reasons can be given' (An Introductory view of the Rationale of
Evidence, in The Works of Jeremy Bentham, ed. de 1962, Nova Iorque, vol. VI,
pág. 357), e de repetir que a motivação das decisões judiciais é uma garantia da
possibilidade de controlo democrático do exercício do poder judicial em face dos
cidadãos e do próprio Estado, exigência do princípio do Estado de Direito
(artigo 2º da Constituição).
[8.] Não sendo naturalmente uniformes as exigências constitucionais de
fundamentação relativamente a todo o tipo de decisões judiciais, como já se
referiu, algumas destas hão-de ser objecto de um dever de fundamentar de
especial intensidade. Entre elas, facilmente se convirá estarem as decisões
finais em matéria penal, mormente as condenatórias, na primeira linha.
Atentos os fundamentos encontrados para o dever de fundamentação, é inelutável
que abrange a decisão em matéria de facto e a decisão em matéria de direito. Ora
a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças
condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades
e garantias das pessoas – deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram
a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o
princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação
pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à
decisão concretamente proferida. Afigura-se ser este o núcleo central da
exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais».
Subscrevendo-se, nesta sede, a bondade substantiva subjacente a esta
argumentação, importa, em face do caso sub judicio, apurar se a reconhecida
fundamentação por remissão cumpre tais exigências constitucionais (lembrando-se
que, in casu, não se está perante uma decisão condenatória, mas perante um
acórdão de recurso que confirmou a decisão de pronúncia do arguido).
Ora, numa aproximação a esta concreta questão de constitucionalidade,
faz sentido recordar, desde já, a jurisprudência deste Tribunal que, apesar de
em hipótese não coincidente, considerou a legitimidade constitucional de uma
fundamentação por remissão no seio do processo penal.
Atente-se, por exemplo, na argumentação constante do Acórdão n.º 147/00
(onde se apreciou “a questão de saber se é conforme à CRP a norma do artigo
123º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de se considerar como mera
irregularidade, sanável por falta de impugnação, o despacho que decreta a prisão
preventiva fundamentado por remissão para as razões – que faz suas – de outras
peças processuais”):
«(...) Ora, disse-se já que o artigo 205º, n.º 1, da CRP deixa ao legislador
ordinário a conformação da matéria relativa à forma da fundamentação, dispondo
aquele de uma margem de determinação apenas condicionada pelo respeito do núcleo
essencial do dever de fundamentação.
O que a fundamentação visa – disse-se já também – é assegurar a ponderação do
juízo decisório e permitir às partes – no caso, ao arguido – o perfeito
conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e
não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não)
adequada à defesa dos seus direitos.
Não se vê que a Constituição, no caso de decretamento de prisão preventiva, vá
para além dessa exigência; quer a informação imediata e de forma compreensível
das razões da prisão que a Constituição impõe que seja prestada à pessoa privada
da liberdade (artigo 27º, n.º 4), quer a comunicação do juiz ao arguido das
causas que determinaram a detenção, quando se procede ao interrogatório (artigo
28º, n.º 1), quer, por fim, a comunicação a parente ou pessoa de confiança do
detido, por esta indicada, da decisão judicial que ordene ou mantenha uma medida
de privação de liberdade (artigo 28º, n.º 3) são comandos que nada têm a ver com
a fundamentação do acto judicial que decreta a medida de coacção.
Mas se isto é assim, não é o facto de, na sua fundamentação, o despacho judicial
remeter para as razões expressas noutras peças processuais que, só por si, põe
em causa a razão de ser da imposição constitucional. Sucede, apenas, que a
leitura do despacho em causa não é directa e imediata, como o seria se o acto
decisório contivesse, ele mesmo, as razões do decidido; ela só se completa com o
conhecimento das outras peças processuais para que o despacho remete, o que, de
todo, não compromete as garantias de defesa do arguido.
No limite, poderia, apenas, suscitar dúvidas a constitucionalidade da norma em
causa, nos casos em que, pelo facto da remissão, a acessibilidade dos
fundamentos se tornasse labiríntica ou particularmente complexa. Mas não é o
caso.
E nem poderá argumentar-se com a falta de conhecimento da peça para que, por sua
vez, a promoção do Ministério Público, em parte também remetia – a questão seria
aqui, como bem se acentua no acórdão recorrido, de validade do acto de
notificação, mas não da fundamentação do acto decisório.
O que se deixa dito e que poderá justificar a conformidade constitucional de uma
norma que expressamente permitisse a fundamentação por remissão não nos desvia
da questão concreta de constitucionalidade agora em causa.
É que a 'deficiência formal' da fundamentação por remissão, na interpretação
dada no acórdão recorrido ao regime das nulidades em processo penal e, em
especial, do citado artigo 123º, geraria, ainda, a irregularidade do despacho
que dela enfermasse. E isto significa que se abre sempre a possibilidade de o
arguido, no próprio acto, com a assistência do seu defensor, invocar essa
irregularidade; só não o fazendo, a irregularidade fica sanada.
Ora, concluindo que a Constituição não obsta à fundamentação por remissão e não
impõe, por isso, que a ela corresponda a nulidade do acto decisório, por maioria
de razão se convirá que a não violará a sujeição do despacho que ordena a prisão
preventiva, proferido com tal forma de fundamentação, ao regime das
irregularidades em processo penal, por força das normas do Título V do Livro II,
em particular do artigo 123º, n.º 1, do CPP (...)».
7 – Assim recortado o âmbito material dos parâmetros constitucionais
aqui relevantes, pode antecipar-se, desde já, que “as normas dos artigos 97.º,
n.º 4, 379.º, n.º 1, alínea a) e 425.º, n.º 4 do Código de Processo Penal
interpretadas no sentido de que havendo lugar a uma total confirmação do
anteriormente decidido, a fundamentação da decisão em matéria de facto,
proferida em acórdão de recurso que confirmou a decisão de pronúncia se basta
com remissão para a prova indicada na decisão recorrida, não sendo exigível à
decisão a proferir que explicite, especificadamente, os fundamentos dessa adesão
– autonomizando, em texto próprio, a enumeração dessa prova, a especificação dos
motivos de facto que fundamentam a decisão e a análise da mesma –, mas tão só
que se indiquem as razões pelas quais valida a conclusão fáctica e jurídica em
apreço”, não padecem de inconstitucionalidade por violação dos artigos 32.º, n.º
1, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Como é consabido – e foi, de resto, exemplarmente concretizado nos
arestos supra referidos –, apesar do dever de fundamentação das decisões
judiciais poder assumir, conforme os casos, uma certa geometria variável, o seu
cumprimento só será efectivamente logrado quando permitir revelar às partes – e,
bem assim, à comunidade globalmente considerada – o conhecimento das razões
“justificativas” e “justificantes” que subjazem ao concreto juízo decisório,
devendo, para isso, revelar uma “sustentada aptidão comunicativa ou
compreensividade” sustentada na exteriorização do(s) critério(s) normativo(s)
que presidem à sua resolução e do seu respectivo juízo de valoração de modo a
comunicar, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial
do decidido.
Não se esquecendo que o juízo decisório (e por ser “juízo”...)
envolve sempre uma “ponderação prudencial de realização concreta orientada por
uma fundamentação”, é imprescindível que esta, como base desse juízo, seja
exteriorizada em termos de permitir desvelar o iter “cognoscitivo” e
“valorativo” justificante da concreta decisão jurisdicional.
Ora, esta função não fica materialmente prejudicada quando uma
decisão, como a recorrida, sindicando um juízo que considera totalmente
adequado, remeta para as razões aí invocadas, autonomizando – ou, recte,
explicitando – “as razões pelas quais se valida a conclusão fáctica e jurídica
em apreço”.
É claro que, em sede de recurso, está sempre em causa uma avaliação
crítica incidente sobre o seu objecto - in casu, a já referida “questão de saber
se a prova recolhida nos Autos, seja em fase de inquérito, seja na instrução
indicia suficientemente, ou não, a prática pelo Arguido dos dois crimes que lhe
são imputados”.
Todavia, nada impede que o resultado dessa avaliação crítica – que não pode
deixar de ser cabalmente equacionada – acabe por conduzir ao “acolhimento” das
razões fundamentantes da decisão recorrida, hipótese na qual, mostradas que
estejam as razões pelas quais se valida tal juízo, se há-de ter por fundamentada
uma decisão que, ao concordar integralmente com a valoração previamente
efectuada – que se encontra transcrita e até formalmente integrada na parte
decisória do aresto em crise –, remeta para a motivada ponderação do
anteriormente decidido, fazendo seus os argumentos aí explicitados.
Ora, como transparece dos autos, a decisão recorrida louvou-se numa total adesão
ao que previamente havia sido decidido, concluindo expressamente que a prova
indiciária constante da decisão em crise “é idónea e bastante para sustentar a
pronúncia do Arguido”, não deixando de avaliar ou analisar – e fazer suas – as
razões pelas quais “os elementos de prova que, nestes Autos, sustentam o juízo
incriminatório imputado ao Arguido [que] são os indicados no Despacho (...)
[permitem afirmar que] resulta claro existir uma séria probabilidade de o
Arguido ter cometido os factos denunciados nos autos”.
Assim sendo, é indubitável que o Acórdão recorrido sindicou e ponderou “a
questão de saber se a prova recolhida nos Autos – seja em fase de inquérito,
seja na instrução – indicia suficientemente, ou não, a prática pelo Arguido dos
dois crimes que lhe são imputados”, tendo, na sua decisão, manifestado
concordância com a fundamentante argumentação que constava da decisão recorrida.
Por isso, a autonomização, em texto próprio, da enumeração da prova, da
especificação dos motivos de facto que fundamentam a decisão e da análise da
mesma, num caso, como o dos autos – em que o tribunal manifesta total
concordância com a prova enumerada, os motivos de facto que fundamentaram a
decisão e análise crítica efectuada na decisão recorrida –, nada acrescentaria,
num plano material-substantivo, à decisão aqui em crise.
Assim sendo, nestas circunstâncias, não poderá dizer-se que o Acórdão sindicando
se louvou numa interpretação normativa dos preceitos supra citados que se haja
de considerar inconstitucional, designadamente por daí pode resultar, como
sustenta o Recorrente, “que os destinatários da decisão ficassem, também,
privados de saber quais os factos que foram considerados, e os motivos pelos
quais, designadamente, se optou por valorizar um segmento probatório em
detrimento do outro, para se chegar à decisão, o que constitui uma quebra nas
garantias de defesa com redução constitucionalmente insustentável do dever de
fundamentação da decisão”.
Tal resultado apenas ficaria comprometido se a fundamentação para a qual se
remeteu não permitisse lograr o cabal conhecimento das razões determinantes do
juízo fixado, o que, in casu, é patente não suceder – basta considerar, a esse
nível, as próprias alegações do Recorrente em sindicância ao despacho de
pronúncia.
Não se duvida, como é óbvio, que estando em causa o recurso de uma “sentença”
jurisdicional, o Acórdão que, em recurso, sindique o mérito jurídico da decisão
controvertida não pode deixar de equacionar os fundamentos em que aquela se
baseia, existindo aqui sempre um “plus”, concretizado na avaliação crítica do
juízo sindicando, sendo que, por isso, é impreterível que se afirmem os motivos
determinantes da confirmação da decisão sindicada.
Todavia, como resulta do critério normativo que presidiu, como ratio decidendi,
ao juízo decisório aqui sindicado, é manifesto que tal exigência também foi
normativamente cumprida.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente, com 20 (vinte) UC de taxa de justiça.
Lisboa, 25 de Maio de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos