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Processo n.º 528/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
reclamante A. e reclamado o Ministério Público, vem a primeira reclamar,
conforme previsto no artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido naquele
Tribunal, em 18 de Maio de 2005, que decidiu não admitir, por extemporaneidade,
o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
2. Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13 de Outubro de 2004, foi,
para o que agora releva e no que concerne à ora reclamante, arguida nos autos,
julgado improcedente o recurso da decisão condenatória da primeira instância.
Interposto então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, veio este Tribunal,
por acórdão de 6 de Janeiro de 2005, a decidir rejeitá-lo, por não ser
recorrível a decisão que se pretendia impugnar.
3. Notificada desta decisão, a arguida apresentou no Supremo Tribunal de
Justiça, com data de registo de correio de 24 de Janeiro de 2005, requerimento
de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, com o seguinte teor:
“A. (…) não se conformando com o Acórdão proferido, por o mesmo não admitir
recurso ordinário, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei 28/82 de 15 de Novembro, pois na decisão recorrida faz-se a
interpretação e aplicação de uma norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada
durante o processo.
As normas constitucionais que foram violadas foram as dos artigos 26.º n.º 1,
32.º n.º 4 e n.º 8, e 34.º n.º 1, todas da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, ocorreu apreensão de correspondência endereçada à arguida, apreensão
essa que foi feita em violação do estabelecido na Constituição da República
Portuguesa.
A recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da apreensão de
correspondência na contestação crime que deduziu e depois em sede de recurso,
pois só no Acórdão recorrido – da primeira instância – é que se decidiu validar
a apreensão da correspondência feita decidindo-se, também que só estava tutelado
pelo segredo da correspondência a que se encontrava em trânsito. Como a que
tinha sido apreendida à arguida não estava em trânsito, inexistia qualquer vício
uma vez que não beneficiava dessa tutela.
Termos em que deverá ser admitido o presente recurso, fixando-se o efeito
suspensivo devendo o mesmo subir de imediato e nos próprios autos”.
4. Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho:
“(...) notifique a recorrente para, em cinco dias, esclarecer de que Acórdão
recorre para o Tribunal Constitucional, se do Acórdão deste Supremo de 6 de
Janeiro de 2005, se do Acórdão da Relação de Coimbra de 13 de Outubro de 2004”.
5. A arguida esclareceu então recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão
do Tribunal da Relação de Coimbra, face ao que foi determinada a remessa dos
autos a este Tribunal, pelo seguinte despacho:
“Uma vez que a recorrente de fls. 2869 veio esclarecer que interpunha recurso
para o Tribunal Constitucional do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Coimbra (fls 2898), o que poderá estar em prazo, dado o disposto no art.º 75.º,
n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, remeta os autos, oportunamente, para
o Tribunal da Relação, onde tal recurso deverá ou não ser recebido”.
6. Por despacho, de 18 de Maio de 2005, que constitui a decisão reclamada agora
em apreciação, o Tribunal da Relação de Coimbra não admitiu o recurso para o
Tribunal Constitucional, invocando o seguinte:
“Nos termos do art.º 75.º, n.º 1, da L 28/82, o prazo da interposição do recurso
é de 10 dias.
O Ac. desta Relação, datado de 13-10-04, notificado às partes em 14-10-04.
Logo aqui, estaria ultrapassado o prazo quando interpôs o 1º recurso do Acórdão
da Relação.
Mas, apenas em 24-01-05 (data registo do correio) interpôs recurso para o T.C.
Logo, é manifesta a extemporaneidade do recurso de fls. 2869 para o Tribunal
Constitucional”.
7. É deste despacho de não admissão do recurso que a arguida vem agora reclamar,
com a fundamentação que aqui se transcreve:
“a) O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida tendo-a acusado da
prática de um crime de dissimulação de bens ou produtos p. e p. pelo artigo 23.º
n.º 1 b) do Dec.Lei 15/03 de 22-01 e de um crime de tráfico de estupefacientes
sob a forma de cumplicidade p. e p. nos termos dos arts. 21.º n.º 1 e 24.º als.
b) e c) do supra dito diploma legal.
b) Submetida a julgamento a arguida foi condenada pelo crime de dissimulação de
bens ou produtos, na pena de um ano e meio de cadeia, suspensa por três anos.
c) No decurso do processo, a arguida suscitou em primeira instância uma questão
de inconstitucionalidade de apreensão de correspondência indicando a violação de
normas constitucionais: as dos artigos 26.º n.º 1, 32.º n.º 4 e 8 e 34.º n.º 1
todos da CRP.
d) A recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da apreensão de
correspondência na contestação crime. Depois em sede de recurso, pois essa
questão suscitada só foi decidida no Acórdão recorrido da primeira instância. E
a decisão naquela instância decidiu validar a apreensão da correspondência
feita, decidindo-se que só estava tutelado pelo segredo de correspondência a
correspondência que estava em trânsito.
e) Inconformada com a decisão a arguida recorreu para Tribunal da Relação de
Coimbra, arguindo novamente a mesma inconstitucionalidade.
(...) o Supremo Tribunal de Justiça sentenciou a impossibilidade de recurso da
decisão, isto é: que todos os recursos ordinários estavam esgotados.
h) Por estarem esgotados todos os graus de recurso, então, de seguida, sem que
em relação à arguida recorrente a decisão tenha transitado em julgado, a arguida
recorreu para o Tribunal Constitucional, a fim de naquele tribunal ver serem
decididas as questões sobre a inconstitucionalidade que suscitou.
i) Por despacho, foi o signatário notificado para esclarecer se estava a
recorrer da decisão que não admitiu o recurso proferida pelo Supremo Tribunal de
Justiça, ou se pretendia recorrer da decisão proferida pelo Tribunal da Relação
de Coimbra.
j) Ao receber essa notificação, a arguida informou que pretendia que fosse
declarada inconstitucional uma determinada interpretação feita dum artigo. Se o
Supremo Tribunal de Justiça entendia que não podia conhecer do recurso, não era
dessa decisão que se suscitava a inconstitucionalidade, mas outrossim da decisão
que se pronunciou sobre a substância da causa, isto é, do Acórdão da Relação de
Coimbra. Ao ser sentenciado que a decisão não tinha recurso ordinário possível,
de imediato e em prazo foi interposto o requerimento de recurso da decisão para
o Tribunal Constitucional.
k) Em face desta posição, por despacho, foi ordenada a remessa dos autos ao
Tribunal da Relação de Coimbra para que este se pronunciasse sobre o
requerimento de recurso interposto pela arguida, uma vez que se entendeu que se
o recurso versava sobre o Acórdão do Tribunal da Relação, então quem tinha
competência para decidir era o Tribunal da Relação.
l) O recurso para o Tribunal Constitucional é do Acórdão do Tribunal da Relação
porque a arguida não questionou a inconstitucionalidade da não admissão do
recurso. E só foi sobre isso que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu quanto à
arguida recorrente: que já não podia recorrer para o Supremo Tribunal de
Justiça, por a lei não admitir recurso. Certo ou errado a arguida não quis
discutir esse assunto.
m) O Tribunal da Relação de Coimbra veio dizer que como o recurso para o
Tribunal Constitucional foi interposto em 24-01-2005 e o Acórdão do Tribunal da
Relação foi proferido em 13-10-2004 e notificado aos sujeitos processuais, por
correio expedido em 14-10-2004, que está ultrapassado o prazo do recurso.
n) Com todo o respeito que é muito, entende a arguida não assistir razão ao
despacho proferido, tendo que ser admitido o recurso.
o) Assim, nos termos do disposto no artigo 70.º n.º 2 da Lei 28/82 de 15 de
Novembro, recursos como é o caso do que a arguida interpôs só cabem das decisões
que não admitam recurso ordinário.
p) Mais, o n.º 4 desse artigo 70.º estabelece que: “entende-se que se acham
esgotados todos os recursos ordinários, nos termos do n.º 2 quando tenha havido
renúncia, haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou os
recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual”.
E foi o que aconteceu: no Supremo Tribunal de Justiça entendeu-se que a lei não
admitia o recurso da decisão. Só após esta decisão ser proferida é que, sem
dúvidas e na prática, ficaram esgotados todos os recursos ordinários. E só
depois disso é que a arguida pôde interpor o recurso para o Tribunal
Constitucional.
q) Por outro lado, para efeitos da lei supra citada, também se equiparam a
recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores,
nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, conforme preceitua o n.º 3
do artigo 70.º. E isto, precisamente porque se o sujeito processual entendesse
reclamar do despacho que julga o recurso indeferido por se entender ser
inadmissível, ficaria em caso de improcedência da sua reclamação sem a
possibilidade de recorrer para o Tribunal Constitucional. Ora, não é este o
espírito da lei.
O que a lei pretende e é este o espírito do julgador, que se materializou nas
normas constantes do artigo 70.º n.º 2, 3 e 4 da lei supra identificada, é que
se esgotem todos os meios antes de se recorrer para o Tribunal Constitucional.
Que não fiquem dúvidas sobre se existe ou não a possibilidade de recurso. E
havendo dúvidas, desde que as mesmas sejam desfeitas, admitindo-se ou não o
recurso, está-se perante a possibilidade de recorrer para o Tribunal
Constitucional. E se o recorrente obtém uma decisão a sentenciar a inexistência
do recurso então a partir desse momento tem que se contar o prazo para recorrer
para o Tribunal Constitucional.
r) Imagine-se que o recurso pode não ser admitido, o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça pode entender que a decisão é recorrível e admitir o
recurso, para depois os Juízes poderem entender que a decisão é irrecorrível.
Ainda neste caso terá de ser admitido depois o recurso interposto para o
Tribunal Constitucional.
s) Pelo exposto, o recurso deve ser admitido”.
8. Neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se
pronunciou pela forma seguinte:
“O recurso de constitucionalidade interposto é, a nosso ver, tempestivo, face ao
regime preceituado no n.º 2 do art. 75º da Lei nº 28/82: na verdade, tal recurso
– expressamente reportado ao acórdão proferido pela Relação – foi interposto nos
10 dias seguintes ao trânsito do acórdão, proferido pelo STJ, que considerou
legalmente inadmissível o recurso perante si interposto pela arguida, por essa
via se tendo esgotado ou exaurido os “recursos ordinários possíveis”.
A procedência da presente reclamação implicaria, porém, que se devessem ter por
preenchido os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto: ora, no
caso dos autos, face ao teor das conclusões da motivação do recurso para a
Relação, é duvidoso que se deva considerar suscitada, em termos processualmente
adequados, a questão da inconstitucionalidade da norma identificada no
requerimento de fls. 168, já que a arguida/recorrente se limitou a controverter
a validade de certo acto de apreensão de extractos bancários, existentes no seu
domicílio, onde se realizou a busca judicialmente autorizada (cf. nomeadamente a
parte final da conclusão 24, a fls. 105 verso) – constituindo entendimento
jurisprudencial reiterado o de que não constitui forma idónea de suscitar uma
questão de inconstitucionalidade normativa a alegação de que certa actuação
processual teria violado uma disposição legal e, simultaneamente, certo preceito
ou princípio constitucional.
Acresce que, a nosso ver, a questão suscitada, embora de forma deficiente,
sempre seria de qualificar como manifestamente infundada, não havendo qualquer
razão de índole constitucional para incluir no conceito de “correspondência”
meros extractos bancários, detidos pelo arguido no seu domicílio, sem que se
vislumbre qualquer conexão relevante entre tal prova documental e o modo como,
no passado mais ou menos remoto, a mesma chegou ao “domínio” do seu actual
detentor: é que, neste caso, o que está em causa não será seguramente a tutela
de um “sigilo de correspondência”, mas do “sigilo bancário”, enquanto expressão
da reserva da intimidade da vida privada, acautelado, em termos adequados, pela
autorização judicial da busca e pela validação das eventuais apreensões de
objectos ou documentos, nos termos previstos no art. 178º, n.ºs 4 e 5, do CPP.
Por estas razões, somos de parecer que a presente reclamação deverá improceder,
embora por razões diferentes das invocadas no despacho reclamado”.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação
1. Vem a presente reclamação interposta do despacho do Tribunal da Relação de
Coimbra que considerou extemporânea a interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional. Face aos elementos factuais a ter em conta, desde já se adianta
ser de acompanhar a posição expressa pelo Ministério Público, quanto à
tempestividade do recurso.
Na verdade, estabelece o nº 2 do artigo 75º da LTC que interposto recurso
ordinário (…) que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da
decisão, o prazo [de dez dias – nº 1 do mesmo artigo] para recorrer para o
Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão
que não admite recurso. Ora, confrontado o teor de tal disposição com o descrito
supra, pontos 3. a 5., verifica-se haver sido tempestivamente apresentado o
requerimento de interposição de recurso para este Tribunal.
2. No caso presente, apesar da tempestividade da interposição do recurso,
decorre, porém, da análise dos elementos dos autos, que não se mostram reunidos
os pressupostos do recurso de constitucionalidade que a reclamante pretendeu
interpor (o previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC).
Na verdade, da análise das peças processuais que a arguida identifica, em
cumprimento do disposto na parte final do nº 2 do artigo 75º - A da LTC, como
aquelas em que suscitou a questão de inconstitucionalidade (contestação e
alegações de recurso para o Tribunal da Relação), decorre não ter sido ali
suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa. Mostrando-se, pois,
desrespeitado o disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC.
Assim, pode ler-se na contestação:
“(...) tendo sido apreendidos documentos bancários ou correspondência bancária,
estando esta categoria de documentos inserida os documentos apreendidos em casa
da arguida. Deste modo, recaindo sobre estes documentos o segredo bancário, só
se podem apreender documentos bancários, numa busca, se for o Mmo. Juiz de
Direito a liderar essa busca e ordenar a sua apreensão. Não faz sentido que ao
banco ou instituição de crédito tenha de ir o Mmo. Juiz de Direito, mas a casa
se possam apreender os mesmos documentos sem a sua intervenção! Ora seria a
subversão do sistema, tanto mais que o segredo bancário se insere dentro dos
direitos, liberdades e garantias, nomeadamente no direito à reserva da
intimidade da via privada de cada um (...)
Sob a égide dos direitos, liberdades e garantias, o artigo 26.º da Constituição
da República Portuguesa, consagra o direito à reserva da intimidade da vida
privada e familiar. Porém, em reforço deste artigo encontra-se também o artigo
101.º da nossa lei fundamental, onde se estabelece a segurança das poupanças dos
cidadãos como princípio do sistema financeiro português.
Protegendo-se a reserva da vida privada e familiar, sabendo-se que a conta
bancária espelha a vida do (s) seu (s) titular (es), uma divulgação, sem
consentimento, do titular de uma conta bancária viola o direito à reserva da
intimidade da vida privada do cidadão, bem como, implica, ou pode implicar, uma
violação à segurança das poupanças do cidadão.
Ora, em face do exposto, urge concluir que com a divulgação da conta bancária de
uma qualquer pessoa, revelam-se factos que estão a coberto do sigilo bancário,
inserindo-se, esta divulgação, na violação ‘do direito à reserva da intimidade
da vida familiar e privada’, artigo 26.º da Constituição da República
Portuguesa. Quando uma pessoa abre uma conta bancária, fá-lo sob o manto do
sigilo bancário, sabendo que está protegido da divulgação dos seus passos, que
se encontram espelhados e retractados na sua conta bancária. Ao divulgarem-se
factos, sem consentimento do titular, estaremos a expor, desnudando, a vida de
um cidadão ao público, sendo certo que essa pessoa, tem o direito de não querer
expor a sua vida nem de vê-la exposta por terceiros a público. Sem consentimento
do titular da conta, ao ser divulgada a mesma, estar-se-á a violar o disposto
nos artigos 26.ºe 101.ºda CRP’, Joaquim Malafaia, ‘O Segredo Bancário Como
Limite à Investigação Criminal’, Revista da Ordem dos Advogados, 1999, tomo I,
págs. 418, 419” (sublinhado aditado).
Por seu turno, as conclusões das alegações de recurso têm o seguinte teor:
“l.ª - As buscas realizadas não foram empreendidas de modo válido, pelo que essa
prova, por estar inquinada de invalidade, nulidade, não pode ser valorada contra
a arguida.
2.ª - O artigo 32.º n.º 8 estabelece a nulidade das provas obtidas mediante a
intromissão no domicílio. Significa isto que uma vez que a Constituição da
República Portuguesa remeteu para o legislador ordinário a conformação normativa
das proibições de prova nos domínios da intromissão no domicílio.
' As provas obtidas sem a observância destes mecanismos ou são abusivas ou
restringem os direito liberdades e garantias de formas inadmissível e, portanto,
também são proibidas', João Conde Correia, ob e loc. cits..
3.ª - As buscas sacrificam directamente direitos fundamentais de expressa
consagração constitucional e tão eminentes como a inviolabidade do domicílio e
da correspondência- art.º 34.º n.º 1 da CRP .
4.ª - A lei não se basta com o respeito no essencial pelas formalidades legais,
exige, outrossim, a observância completa e integral de todas elas, sob pena de
faltando uma que seja, inquinar de vez a prova que passará a ser 'envenenada' e
não poderá ser usada no processo atenta a proibição de prova, sendo a sua
utilização proibida pela constituição, ou seja inconstitucional.
Concretizando: só é possível a obtenção de prova mediante violação do domicílio
mediante a observância de todos os requisitos estatuídos na lei, para onde o
legislador constitucional remeteu. Faltando algum requisito estabelecido na lei,
de imediato, se tem de considerar que pela sua falta, o direito fundamental do
buscado foi agredido, vigora o disposto no artigo 32.º n.º 8 da Constituição da
República Portuguesa que fulmina de nulas todas as provas assim obtidas.
5.ª - A lei estabelece como formalidades para a busca que esta deve ser
realizada pelo Juiz que, contudo, na fase de inquérito pode ser substituído pelo
Ministério Público que não poderá delegar, nos termos do disposto nos artigos
269.º e 270.º n.º 1 e 2 d) e e), neste sentido, por todos, Gil Moreira dos
Santos, ob. e loc. cits.. Atenta a redacção do artigo 177.º n.º 2 do Cód. Proc.
Penal, as buscas domiciliárias podem ser ordenadas pelo Ministério Público ou
ser efectuadas por órgão de polícia criminal somente no caso do artigo 174.ºn.º
4.
6.ª - A requerimento do Ministério Público, foi ordenada a busca, pela Mma. Juiz
de Direito em casa da arguida A., vd. apenso XI, fls. 58 e seguintes, tendo a
mesma busca sido efectuada sem a presença do Ministério Público, o qual não pode
delegar nos órgãos de polícia criminal, isto é, tem de ir ele próprio. Assim
sendo é nula e como tal fulminada a busca efectuada não podendo os objectos
apreendidos fazer prova contra a arguida, e, bem assim, os outros arguidos.
(...)
9.ª - A busca efectuada na casa da A. sem a presença do Ministério Público, o
qual não pode delegar nos órgãos de polícia criminal, isto é, tem de ir ele
próprio, é nula e como tal fulminada a busca efectuada não podendo os objectos
apreendidos fazer prova contra a arguida, e, bem assim, os outros arguidos.
Foram, por conseguinte, violados os artigos 177.º, 269.º e 270.º n.º 1 e 2 d) do
Código de Processo Penal e 34.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
10.ª - Nessa busca foi apreendida correspondência, extractos do banco dirigidos
ao arguido B. mas em nome da arguida. A apreensão de correspondência não foi
ordenada previamente, pelo que é nula, nos termos do estabelecido no artigo 32.o
n.º 8 da CRP e como tal deve ser declarada para os devidos efeitos legais.
11.ª - Não foi ordenada a apreensão de correspondência pelo Mmo. Juiz que
ordenou a busca nos termos do disposto no artigo 179.ºdo Cód. Proc. Penal.
12.ª - Os extractos bancários apreendidos, inserem-se no conceito de
correspondência a que alude o artigo 179.º do Cód. Proc. Penal, não se devendo
entender por correspondência aquele que se encontre em trânsito ou a que não
tenha sido aberta.
13.ª - O legislador protege toda a correspondência e nesse conceito se deve
entender aquela que resulte de envio pelos correios. Os extractos bancários
apreendidos foram enviados por uma instituição bancária à arguida e como tal
merecem a tutela da lei e fazem parte do conceito de correspondência trocada,
neste caso entre um banco e uma pessoa.
(...)
15.ª - A lei não estabelece que a correspondência tem de se encontrar em
trânsito ou que tenha acabado de chegar. E bem vistas as coisas nem tinha de o
fazer, porquanto a inviolabilidade da correspondência está relacionada com o
direito à reserva da intimidade da vida privada previsto no artigo 26.ºda
Constituição da República Portuguesa, considerando-se a correspondência como uma
extensão da própria pessoa.
16.ª - 'O conteúdo do direito ao sigilo da correspondência e de outros meios de
comunicação privada abrange toda a espécie de correspondência de pessoa a pessoa
(cartas postais, impressos), cobrindo mesmo as hipóteses de encomendas que não
contêm qualquer comunicação escrita, e todos as telecomunicações (telefone, etc
).
Aqui as restrições estão autorizadas apenas em processo criminal (n.º 4) e estão
igualmente sob reserva de lei (art.º 18.º2 e 3), só podendo ser decididas por um
juiz (art. 32.º4). A constituição não abre qualquer excepção ao sigilo da
correspondência no âmbito de relações especiais do poder. . . A inviolabilidade
da correspondência impõe-se naturalmente também fora das relações
estado-cidadão, vinculando toda e qualquer pessoa a não devassar as
correspondência ou comunicações de outrem', Constituição da República Portuguesa
Anotada, 2.ª edição revista e actualizada, 1.ºvolume, Coimbra editora, pág. 224,
Gomes Canotilho, Vital Moreira.
17.ª - Tendo sido lida e guardada a correspondência, nem por isso, legislador
constitucional o não estabelece distinções correspondência, e em abono da
verdade nem o legislador ordinário o faz, perde o carácter de ser
correspondência e de para ser apreendida necessitar de ordem do Juiz antes de o
ser. Repare-se que a correspondência se insere na direito à reserva da
intimidade da vida privada da pessoa, uma vez que se considera a correspondência
como uma extensão da própria pessoa, vd. Gomes Canotilho, Vital Moreira, ob.
cit. pág. 223.
18.ª - O entendimento que se faz no Acórdão recorrido de entender que os
extractos do banco enviados por correio para a recorrente não constitui
correspondência é inconstitucional, violando o disposto no artigo 34.º n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa e como tal deve ser declarado. Apesar de já
não estar em trânsito os extractos bancários apreendidos, tinham sido enviados
por correio e estavam guardados, merecendo por isso e por ser uma extensão da
própria pessoa, a tutela da reserva da intimidade da vida privada, artigos 26.º
n.º 1 e 34.º n.º 1 ambos da Constituição da República Portuguesa, são
correspondência e só pode ser apreendida nos termos do estatuído no artigo 179.º
n.º 1 do Cód. Proc. Penal. O facto de a correspondência ser apreendida depois de
lida não faz com que deixe de o ser, isto é que perca as características de ser
correspondência e que continue protegida pelos artigos 179.º do Cód. Proc. Penal
e 26.º e 34.ºda Constituição da República Portuguesa.
(...)
22.ª - Aplicando o direito constitucional, o Código de Processo Penal faz
depender a legalidade e validade da apreensão da correspondência, de despacho
prévio do Juiz a ordenar a sua apreensão, sob pena de nulidade. O que significa
que, mesmo em se tratando de requisitos formais, a falta ou violação de qualquer
um deles determina, sem mais e insuprivelmente, a nulidade da apreensão da
correspondência. Noutros termos, aqui não tem lugar a distinção entre
formalidades essenciais e não-essenciais. Aqui todas as formalidades são
essenciais: tanto as relativas à competência, como as atinentes às regras
procedimentais, aos prazos, etc. . .
23.ª - A lei não se basta com o respeito no essencial pelas formalidades legais,
exige, outrossim, a observância completa e integral de todas elas, sob pena de
faltando uma que seja, inquinar de vez a prova que passará a ser 'envenenada' e
não poderá ser usada no processo atenta a proibição de prova, consagrada no
artigo 179.º do Cód. Proc. Penal, sendo a sua utilização proibida pela
constituição, ou seja inconstitucional.
24.ª - As apreensões foram feitas em violação do estatuído no Código de Processo
Penal, pelo que, por não corresponderem ao conceito de verdade material prova
obtida de forma intra-processualmente válida e são fulminadas pela lei como
nulas e violadoras do princípio da legalidade, devendo como tal ser declaradas,
não valendo como provas, neste sentido Teresa Beleza, 'A Prova', Apontamentos de
Direito Processual Penal', AAFDL, 1992, II Vol., págs. 151/2; Germano Marques da
Silva, Processo Penal, Vol. II, pág. 120, Manuel Monteiro Guedes Valente,
'Revistas e Buscas', págs. 128/9.
Por conseguinte, atento todo o exposto, foram violados os artigos 26.º n.º 1 e
34.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e bem assim o artigo 179.º do
Código de Processo Penal, sendo por isso a prova recolhida, a correspondência
apreendida nula nos termos do disposto no artigo 179.º n.º 1 Cód. Proc. Penal,
nulidade essa insanável e por força do disposto no artigo 32.º n.º 8 da
Constituição da República Portuguesa” (sublinhado aditado).
Da análise dos excertos transcritos resulta que não foi pela reclamante ali
suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma, designadamente do artigo
179º, nº 1, do Código de Processo Penal, referida a fl. 168 dos autos, embora
não no requerimento de interposição de recurso, que não identifica qualquer
norma cuja inconstitucionalidade questione.
O “Tribunal Constitucional português é concebido essencialmente como um órgão
jurisdicional de controlo normativo – de controlo da constitucionalidade e da
legalidade” (Cardoso da Costa, 'A jurisdição constitucional em Portugal',
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 223) – pelos artigos 280º e
281º da Constituição da República Portuguesa e 70º da LTC, cabendo-lhe a
apreciação da conformidade constitucional de normas e não de decisões. Ora, no
caso presente, durante o processo não foi suscitada uma qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, nos termos previstos no nº 2 do artigo 72º da
LTC, ou seja, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a
decisão, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Por outro lado, importa assinalar que, mais do que uma vez, nas passagens acima
transcritas, a reclamante afirma a violação, em simultâneo, de normas da
Constituição e de direito processual penal ordinário. Tal significa que a
reclamante considera, in casu, existir consonância entre os referidos preceitos
da Constituição da República Portuguesa e as normas de direito
infra-constitucional. Ora, é justamente a situação inversa que justifica o
recurso para o Tribunal Constitucional: “se se utiliza uma argumentação
consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e,
simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo
que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial,
enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico
infra-constitucional que se tem por violado com essa decisão, pois que se posta
como contraditório sustentar-se que há violação desse ordenamento e este é
desconforme com o Diploma Básico. Efectivamente, se um preceito da lei ordinária
é inconstitucional, não deverão os tribunais acatá-lo, pelo que esgrimir com a
violação desse preceito, representa uma óptica de acordo com a qual ele se
mostra consonante com a Constituição” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº
489/04, não publicado).
Assim, embora por razões diferentes das que fundamentaram o despacho reclamado,
é de concluir, como bem assinala o Ministério Público, que o recurso não pode
ser admitido.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 14 de Julho de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício