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Processo n.º 113/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Nos autos de execução pendentes no 1.º Juízo Cível do
Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, em que são exequente a Caixa de
Crédito Agrícola Mútuo de … e executados A. e outros, no acto de abertura das
propostas relativas à venda de prédio misto, propriedade de A. e de B.,
realizado em 21 de Setembro de 2005, após ter sido aceite, por despacho
judicial, por ser a de valor mais elevado e superior ao valor anunciado para a
venda, a proposta apresentada por C., L.da, no valor de € 481 350,00, foi
perguntado às filhas do executado A., presentes ao acto, se pretendiam exercer
o direito de remição, ao que D. respondeu afirmativamente, “declarando contudo
que não tem condições para efectuar o depósito da totalidade de imediato, vindo
preparada com um cheque visado no valor de € 51 840,00” (correspondente a 20% do
valor base da venda – € 259 200,00), na sequência do que foi proferido o
seguinte despacho:
“Uma vez que nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 912.º do Código de
Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março
(aplicável a estes autos, uma vez que os mesmos deram entrada em juízo no dia 28
de Outubro de 2002), «o preço há‑de ser depositado no momento da remição»,
considera‑se, e face ao que foi declarado por D., não validamente exercido o
direito de remição.”
A remidora interpôs recurso deste despacho para o
Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, nas respectivas alegações, para além do
mais, suscitado a questão da inconstitucionalidade, por violação do artigo
67.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (CRP), da
redacção do artigo 912.º do Código de Processo Civil (CPC) anterior ao
Decreto‑Lei n.º 38/2003. Essas alegações terminam com a formulação das seguintes
conclusões:
“1 – De acordo com o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, incumbe
ao Estado proteger a família, promovendo a independência social e económica dos
agregados familiares.
2 – No âmbito desta obrigação, está instituído o regime legal de remição de
bens familiares nas vendas judiciais dos mesmos.
3 – O artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior à redacção
introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, obrigava o remidor a
depositar o preço no acto da remição.
4 – Esta obrigação não era exigida de nenhum dos concorrentes à compra do
bem, ficando assim o remidor em situação de tal inferioridade que muitas vezes
se tornava impossível o exercício dessa remição.
5 – Foi o que aconteceu no presente caso, em que a praça, através da
abertura das propostas em carta fechada, marcada para as 14 horas,
impossibilitou à remidora a hipótese de conseguir obter um cheque visado do
valor do preço num banco e o depositar na Caixa Geral de Depósitos.
6 – Além disso, a dificuldade da remidora, no presente caso, aumentava ainda
pela surpresa que foi a apresentação de um preço, que venceu a praça, muito
superior ao valor da avaliação do bem, que constava nos autos.
7 – Por tudo isto, considera‑se que a redacção do artigo 912.º, n.º 2, do
CPC, anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, ofende o citado artigo
67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, já que tira por um lado as
oportunidades que, de outro lado, se pretendem dar aos elementos da família.
8 – E na medida em que esse artigo 912.º deveria ter sido considerado
inconstitucional pela Meritíssima Juíza, esta deveria considerar a nova
redacção dos artigos 912.º e 913.º do CPC dada pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003 a
aplicada ao caso.
9 – Esta nova redacção do CPC, que, no regime da remição, concede ao remidor os
mesmos direitos quanto ao depósito do preço que concede aos demais concorrentes
à praça é que deveria ter sido aplicada ao caso pela Meritíssima Juíza, pelo
regime definido pelo artigo 13.º do Código Civil (leis interpretativas).
10 – Conforme se verifica pela acta respectiva, a ora recorrente apresentou‑se
na praça com um cheque visado no valor de 20% do valor base do bem como exigido
pelo artigo 897.º do CPC (redacção actual), aplicável pelo artigo 913.º, n.º 2
(actual redacção).
11 – A Meritíssima Juíza deveria ter aceitado o depósito do cheque dos 20% e dar
à remidora o prazo de 15 dias para fazer o depósito do restante do preço, como
ordenam os normativos referidos na conclusão anterior.
12 – Não aceitando a remição oferecida nas condições citadas, a Meritíssima
Juíza violou nomeadamente o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
13 – A recorrente pediu que fosse dado ao recurso efeito suspensivo, uma vez que
o prédio vendido é casa de morada de família e a entidade que venceu a praça é
uma sociedade de materiais de construção, transportes e máquinas, que pode
causar graves prejuízos à habitação se entrar na posse do prédio.
14 – O agravado não se pronunciou sobre esta alegação e pedido da recorrente,
pelo que, nos termos do artigo 740.º, n.º 2, alínea d), e n.º 3, do CPC, deveria
a Meritíssima Juíza ter atribuído o efeito suspensivo ao recurso e não efeito
devolutivo, como ficou determinado.
15 – Deve assim revogar‑se o douto despacho da Meritíssima Juíza do Tribunal de
Vila Franca de Xira, de não aceitação da remição, por ter violado o artigo 67.º,
n.º 2, alínea a), da Constituição e dar‑se como válido o exercício do direito de
remição do bem vendido nos autos pela recorrente, ordenando‑se que esta deposite
o preço nos termos do artigo 897.º do CPC (redacção actual) e deve revogar‑se
também o douto despacho que atribuiu ao presente recurso efeito devolutivo, por
ter violado o artigo 740.º, n.º 2, alínea d), e n.º 3, do CPC, devendo dar‑se ao
recurso o efeito suspensivo.”
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de
Outubro de 2006, negou provimento a esse recurso, com a seguinte fundamentação:
“Quanto ao exercício do direito de remição exercido pela recorrente:
A recorrente, Senhora D., com o objectivo de exercer o direito de remição,
quanto ao imóvel em venda nos autos, apresentou, no termo da abertura das
propostas, um cheque visado no montante de 20% do valor base do bem e informou
simultaneamente o Tribunal que não possuía condições para efectuar o depósito
imediato da totalidade do preço.
A sua pretensão foi indeferida, por o tribunal a quo não considerar válido o
direito de remição exercido pela agravante, visto não ter a requerente cumprido
o estipulado no artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção anterior ao Decreto‑Lei
n.º 38/2003, de 8 de Março, que dispunha que o preço tinha de ser depositado no
momento da remição.
Não se suscita dúvida de que ao caso sob recurso se aplica a lei na redacção
antiga, uma vez que a presente acção deu entrada em juízo em 28 de Outubro de
2002 e, nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 38/2003, as
alterações ao Código de Processo Civil só se aplicam relativamente aos processos
instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2003.
De resto, nem a agravante parece colocar em causa este entendimento.
O que a agravante considera é que a redacção do artigo 912.º, n.º 2, do CPC,
anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, ofende o artigo 67.º, n.º 2,
alínea a), da Constituição da República, já que, em seu entender, tira por um
lado as oportunidades que, de outro lado, se pretendem dar aos elementos da
família e, deste modo, esse artigo deveria ter sido considerado
inconstitucional e deveria considerar‑se a nova redacção do artigo 912.º do CPC
a aplicada ao caso, uma vez que esta nova redacção concede ao remidor os mesmos
direitos quanto ao depósito do preço que concede aos demais concorrentes à
praça.
Assim, diz a recorrente, a meritíssima Juíza deveria ter aceitado o depósito do
cheque dos 20% e dar à remidora o prazo de 15 dias para fazer o depósito do
restante do preço, como ordenam os normativos referidos, e, não aceitando a
remição oferecida nas condições citadas, a meritíssima Juíza violou nomeadamente
o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
Ora, o preceito constitucional citado diz apenas que incumbe, designadamente,
ao Estado, para protecção da família, «promover a independência social e
económica dos agregados familiares».
Como se vê, trata‑se de uma norma de natureza meramente programática dirigida
ao Estado, erigindo em dever constitucional o de o mesmo Estado impulsionar a
independência, social e económica, da família, obviamente mediante a criação de
condições e incentivos que conduzam à realização de tal desiderato.
Contendo a norma tal cariz, não se vislumbra que o artigo 912.º, n.º 2, do CPC,
na redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, ofenda a mesma
norma e, por isso, se possa falar em relação ao mesmo de inconstitucionalidade.
É certo que a nova versão do citado artigo 912.º, n.º 2, do CPC, poderá
constituir um aperfeiçoamento da lei, tornando‑a mais justa e equitativa em
relação à versão anterior, mas isso não é bastante para que não deva continuar a
aplicar‑se a lei antiga relativamente aos processos instaurados antes de 15 de
Setembro de 2003.
Não está em causa no caso vertente o exercício do direito à remição, pois que à
agravante estava facultado exercê‑lo, exercício que apenas foi indeferido por
não dispor aquela de meios necessários para preencher os pressupostos da
remição, exigidos pelo artigo 912.º, n.º 2, do CPC, [na redacção anterior ao]
Decreto‑Lei n.º 38/2003.
Como não estaria em causa o exercício do direito à remição e, consequentemente,
também a violação do invocado preceito constitucional, caso a agravante se
apresentasse a requerer a remição sem pretender depositar, por falta de meios, a
importância exigida na nova versão da lei.
A remição só pode ser autorizada, tanto em face da lei antiga como em face da
lei moderna, mediante a condição de certo depósito imediato: integral do valor
da venda do bem na lei antiga e de 20% na lei moderna.
Não dispondo a agravante de meios para depositar o preço integral do valor da
venda, não podia a remição ser autorizada, mesmo que tivesse oferecido um valor
que seria bastante perante a nova versão da lei, por esta não ser susceptível de
aplicação ao caso, como se demonstrou.
E isto mesmo a admitir‑se que o artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção
anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, traduzia uma situação de desfavor para a
remidora, pois que era essa a lei que existia, sendo por isso aplicável, sem
qualquer excepção, quer aos presentes autos, quer a todos os processos
anteriores a 15 de Setembro de 2003.
Pelo exposto, e ao contrário do que a agravante procura demonstrar, não houve
qualquer violação constitucional, designadamente da norma invocada, pelo que se
entende que bem se decidiu no despacho recorrido ao não se admitir a agravante
a exercer o direito de remição nos termos em que se propôs fazê‑lo.
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter os despachos
recorridos.”
É contra este acórdão que por D. vem interposto o
presente recurso, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por
violação do artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da CRP, da norma do artigo 912.º, n.º
2, do CPC, “na versão anterior à redacção introduzida pelo Decreto‑Lei n.º
38/2003, de 8 de Março, que obrigava o remidor a depositar o preço no acto da
remição”.
Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações,
concluindo:
“1 – De acordo com o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, incumbe
ao Estado proteger a família, promovendo a independência social e económica dos
agregados familiares.
2 – No âmbito desta obrigação, está instituído o regime legal de remição de
bens familiares nas vendas judiciais dos mesmos.
3 – O artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior à redacção
introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, obrigava o remidor a
depositar o preço no acto da remição.
4 – Esta obrigação não era exigida de nenhum dos concorrentes à compra do
bem, ficando assim o remidor em situação de tal inferioridade que muitas vezes
se tornava impossível o exercício dessa remição.
5 – Foi o que aconteceu no presente caso, em que a praça, através da
abertura das propostas em carta fechada, marcada para as 14 horas,
impossibilitou à remidora a hipótese de conseguir obter um cheque visado do
valor do preço, num banco e o depositar na Caixa Geral de Depósitos.
6 – Por tudo isto, considera‑se que a redacção do artigo 912.º, n.º 2, do
CPC, anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, ofende o citado artigo
67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, já que tira por um lado as
oportunidades que, de outro lado, se pretendem dar aos elementos da família.
7 – E na medida em que esse artigo 912.º deveria ter sido considerado
inconstitucional pela Meritíssima Juíza, esta deveria considerar a nova
redacção dos artigos 912.º e 913.º do CPC dada pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003 a
aplicada ao caso.
8 – Esta nova redacção do CPC, que, no regime da remição, concede ao remidor
os mesmos direitos quanto ao depósito do preço que concede aos demais
concorrentes à praça é que deveria ter sido aplicada ao caso pela Meritíssima
Juíza, pelo regime definido pelo artigo 13.º do Código Civil (leis
interpretativas).
9 – Conforme afirma o douto acórdão recorrido, este novo regime é mais justo
e equitativo.
10 – Conforme se verifica pela acta respectiva, a ora recorrente
apresentou‑se na praça com um cheque visado no valor de 20% do valor base do
bem, como exigido pelo artigo 897.º do CPC (redacção actual), aplicável pelo
artigo 913.º, n.º 2 (actual redacção).
11 – A Meritíssima Juíza deveria ter aceitado o depósito do cheque dos 20% e
dar à remidora o prazo de 15 dias para fazer o depósito do restante do preço,
como ordenam os normativos referidos na conclusão anterior.
12 – Não aceitando a remição oferecida nas condições citadas, a Meritíssima
Juíza violou nomeadamente o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
13 – O douto acórdão da Relação de Lisboa indeferiu a pretensão da
recorrente, e, embora julgando a nova redacção do normativo processual mais
justa e equitativa, relativamente à anterior, decidiu manter a decisão da 1.ª
Instância, por tomar o princípio constitucional em causa meramente programático
para o Estado.
14 – Ora, os normativos processuais devem em tudo conformar‑se com o
programa constitucional e têm de ser considerados ilegais quando não se
conformem com esse programa.
15 – Deve assim revogar‑se o douto acórdão da Relação de Lisboa, assim como
o douto despacho da Meritíssima Juíza do Tribunal de Vila Franca de Xira, de não
aceitação da remição, por ter violado o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da
Constituição e dar‑se como válido o exercício do direito de remição do bem
vendido nos autos pela recorrente, ordenando‑se que esta deposite o preço nos
termos do artigo 897.º do CPC (redacção actual).”
A recorrida C., L.da, contra‑alegou, concluindo:
“A. Considera a recorrente que o artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção
anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, viola o princípio
constitucional definido pelo artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da
Republica Portuguesa, na medida em que, por um lado, retira as oportunidades
que, de outro lado, se pretendem dar aos elementos da família.
B. O artigo 67.º, n.º 2 alínea a), da Constituição da Republica Portuguesa
diz apenas que incumbe, designadamente ao Estado, para protecção da família,
«promover a independência social e económica dos agregados familiares».
C. Tal norma, por ser de natureza programática, é dirigida unicamente ao
Estado, incumbindo ao mesmo o dever constitucional de promover a independência
social e económica dos agregados familiares, através da criação de condições que
propiciem a realização de tal objectivo.
D. Contendo a referida norma apenas natureza programática, não se vislumbra
qualquer inconstitucionalidade no que concerne ao artigo 912.º, n.º 2, do CPC,
na redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março.
E. No entanto, sempre foi permitido à recorrente exercer o direito de
remição. Tal faculdade é que não foi devidamente exercida por esta.
F. Isto porque o artigo 897.º, n.º 1, do CPC, com a redacção dada pelo
Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, não é susceptível de aplicação ao caso
presente.
G. Sendo, nos termos da legislação em vigor, aplicável o artigo 912.º do
CPC, na redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março.
H. O qual, mesmo que consubstanciasse uma situação de desfavor para a
remidora, era a lei que existia, sendo, por isso, aplicável, sem qualquer
excepção, quer aos presentes autos, quer a todos os processos anteriores a 15
de Setembro de 2003.”
Por seu turno, a recorrida Caixa de Crédito Agrícola
Mútuo de … sintetizou o expendido nas suas contra‑alegações nas seguintes
conclusões:
“1. A acção executiva permite o ataque directo ao património do executado;
2. O processo executivo foi alvo de reforma legislativa;
3. Para salvaguardar os casos pendentes, o legislador estabeleceu, no n.º 1
do artigo 21.º do Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, que as alterações
legislativas só se aplicarão aos processos propostos a partir de 15 de Setembro
de 2003;
4. A acção executiva da qual se recorre foi proposta em 28 de Outubro de
2002, pelo que não têm aplicação as novas disposições do Código de Processo
Civil;
5. O Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, não alterou substancialmente o
direito de remição;
6. A recorrente não exerceu o direito de remição, não obstante a M.ma Juiz a
quo ter‑lhe conferido tal direito, porque não dispunha de meios económicos para
o fazer, tal como reconheceu na abertura e aceitação de propostas;
7. Não foi violado o artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa,
norma programática, dado que o exercício do direito de remição sempre esteve
garantido.
8. O presente recurso não passa de um expediente dilatório.
Termos em que requer‑se a V. Ex.as se dignem manter a interpretação de
constitucionalidade proferida em douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
não declarando o artigo 912.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior
ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, inconstitucional, por não violar a
alínea a) do n.º 2 do artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir:
2. Fundamentação
2.1. O direito de remição ora em causa – que
“consiste essencialmente em se reconhecer à família do executado a faculdade de
adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de
execução” (José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, reimpressão,
Coimbra, 1982, p. 476) – “tem raízes profundas no nosso sistema jurídico”, que
remontam às Ordenações e que, com ligeiras variações quanto ao leque dos
familiares em que era encabeçado e à natureza dos bens sobre que podia ser
exercitado, foi mantido desde o Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832 (artigo
153.º), passando pela Reforma Judiciária de 1837 (artigo 248.º), pela Novíssima
Reforma Judiciária (artigo 602.º), pela Lei de 16 de Junho de 1855 (artigo
16.º), até aos Códigos de Processo Civil de 1876 (artigo 888.º), de 1939 (artigo
912.º) e de 1967 (artigo 912.º) – cf. autor e obra citados, p. 477, e Eurico
Lopes‑Cardoso, Manual da Acção Executiva, Lisboa, 1987, pp. 660‑662.
Embora na sua actuação prática o direito de remição
funcione como um direito de preferência dos titulares desse direito
relativamente aos compradores ou adjudicatários, “os dois direitos têm natureza
diversa, já pela base em que assentam, já pelo fim a que visam”. Quanto à
diversidade de fundamento, “ao passo que o direito de preferência tem por base
uma relação de carácter patrimonial”, sendo a razão da titularidade o condomínio
ou o desdobramento da propriedade, já “o direito de remição tem por base uma
relação de carácter familiar, sendo a razão da titularidade o vínculo familiar
criado pelo casamento ou pelo parentesco (a qualidade de cônjuge, de
descendente ou de ascendente)”. Quanto à diversidade de fim, enquanto “o
direito de preferência obedece ao pensamento de transformar a propriedade comum
em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou de favorecer a
passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita”, já “o direito
de remição inspira‑se no propósito de defender o património familiar, de obstar
a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas”
(José Alberto dos Reis, obra citada, pp. 477‑478).
A protecção da família, através da preservação do
património familiar, evitando a saída dos bens penhorados do âmbito da família
do executado, é objectivo da consagração do direito de remição unanimemente
reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina (cf., além dos autores já
citados, Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, 1998, p.
381; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6.ª edição,
Coimbra, 2004, p. 341; José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Coimbra, 1993,
p. 272; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil
Anotado, vol. 3.º, Coimbra, 2003, p. 621; e J. P. Remédio Marques, Curso de
Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, Porto, 1998, p. 357).
Como refere José Alberto dos Reis (obra citada, pp.
488‑489):
“Com a atribuição deste direito não se prejudicam os credores, pois que a estes
pouco importa que o adquirente seja uma pessoa da família do devedor, ou uma
pessoa estranha. O que aos credores interessa é o preço por que os bens são
vendidos; ora os remidores hão‑de pagar, pelo menos, o preço que pagaria um
comprador alheio à família do devedor.
Desta maneira, o direito de remição representa uma homenagem prestada à família
do devedor. Homenagem justa, porque evita a desagregação do património familiar;
homenagem inocente, porque nenhum prejuízo causa aos credores.”
Ao direito de remição sempre (cf. artigo 914.º, n.º
1, do CPC de 1967, norma inalterada desde a redacção inicial até aos nossos
dias, e correspondente à primeira parte do artigo 914.º do CPC de 1939) foi
atribuída prevalência sobre o direito de preferência (embora, naturalmente, se
houver vários preferentes e se abrir licitação entre eles, a remição tenha de
ser feita pelo preço correspondente ao lanço mais elevado), o que levou certos
autores a qualificar o direito de remição como um “direito de preferência
qualificado” (José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., p. 272) ou um
“direito de preferência reforçado” (J. P. Remédio Marques, obra e local
citados).
O artigo 913.º do CPC, na redacção posterior à
reforma de 1995/1996 (operada pelos Decretos‑Leis n.ºs 329‑A/95, de 12 de
Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro) mas anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003,
de 8 de Março – versão considerada pelas instâncias como a aplicável ao caso dos
presentes autos –, regulava o momento até ao qual o direito de remição podia ser
exercido, momento que variava consoante a modalidade da venda [deixando em
aberto a questão de saber se o direito de remição é exercitável em todas as
modalidades de venda ou se será incompatível com a “venda directa a entidades
que tenham direito a adquirir determinados bens” e com a “venda em
estabelecimentos de leilões”, como sustentava Eurico Lopes‑Cardoso, obra
citada, p. 661, ou só com a “venda directa”, como defende J. P. Remédio Marques,
obra citada, p. 357] e a formalização (ou não) desta por escrito. Assim:
– no caso de venda judicial (sempre por propostas em
carta fechada, uma vez que a reforma de 1995/1996 eliminou a modalidade de venda
judicial por arrematação em hasta pública), o direito de remição podia ser
exercido até ser proferido despacho de adjudicação dos bens ao proponente (este
despacho de adjudicação só podia ser proferido “após se mostrar integralmente
pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão” –
artigo 900.º do CPC);
– no caso de venda extrajudicial documentada por
título, até à assinatura do título; e
– no caso de venda extrajudicial não documentada por
título, até ao momento da entrega dos bens (a referida reforma eliminou a
possibilidade, prevista na parte final da alínea b) da versão originária do
artigo 913.º, de, no caso de venda por negociação particular, o direito de
remição poder ainda ser exercido no prazo de dez dias a contar da data em que o
remidor teve conhecimento da venda).
Por último, o n.º 2 do artigo 912.º do CPC, também na
redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, exigia que o preço fosse
“depositado no momento da remição”.
Esta última disposição foi objecto de entendimentos
divergentes da jurisprudência, designadamente quanto à exigência, ou não, de
prévio despacho judicial a admitir a remição e a fixar prazo para a efectivação
do depósito do preço. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de
Dezembro de 1990, proc. n.º 41 782, decidiu que “Pedido o direito de remição,
não há que proceder ao depósito do preço enquanto não for proferido o competente
despacho de deferimento” (sumário disponível em www.dgsi.pt/jtrl). No mesmo
sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de Novembro de 2000,
proc. n.º 31 496, decidiu: “I – O depósito do preço da remição – artigo 912.º,
n.º 2, do Código de Processo Civil – é precedido de despacho a admiti‑la e a
mandar efectuar aquele em prazo para tanto fixado. II – Esse prazo não é
peremptório, sendo admissível a prova de justo impedimento – artigo 146.º, n.ºs
1 e 2, ex vi artigo 145.º, n.º 4, do Código de Processo Civil” (sumário
disponível em www.dgsi.pt/jtrp). Em sentido oposto decidiram os acórdãos do
Tribunal da Relação do Porto, de 27 de Novembro de 2000, proc. n.º 51 063
(“Quem for titular do direito de remir bens adjudicados ou vendidos
judicialmente e quiser exercer essa prerrogativa mediante o pagamento do preço
oferecido por tais bens deverá, com o pedido de remição, fazer o pedido de
guias para depósito do preço e custas prováveis”), e de 6 de Julho de 2001,
proc. n.º 1110/03 (“Ao exercer o direito de remição, deve o requerente
demonstrar que depositou o preço correspondente à proposta aceite, acrescido do
montante respeitante às obrigações fiscais inerentes à transmissão, ou solicitar
a emissão de guias para depósito imediato desses valores”), ambos com sumários
disponíveis em www.dgsi.pt/jtrp, e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
de 8 de Fevereiro de 2007, proc. n.º 9893/2007, que decidiu que “A necessidade
de depósito do preço «no momento da remição» é incompatível com quaisquer
dilações, designadamente implicadas por necessidade de prévia notificação de
despacho a admiti‑la e a mandar efectuar aquele em prazo para tanto fixado”
(texto integral disponível em www.dgsi.pt/jtrl).
2.2. Este quadro legal foi substancialmente alterado
pela chamada “reforma da acção executiva”, operada pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003,
quer quanto ao momento até ao qual pode ser exercitado o direito de remição,
quer quanto à oportunidade para o depósito do preço pelo remidor (cf. Miguel
Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, 2004, pp. 201‑202; José
Lebre de Freitas, A Acção Executiva depois da Reforma, Coimbra, 2004, pp.
334‑335; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, obra e volume citados,
pp. 620‑624; Fernando Amâncio Ferreira, obra e edição citadas, pp. 341‑343; e
Rui Pinto, A Acção Executiva depois da Reforma, Lisboa, 2004, pp. 196‑197, e “A
execução e terceiros – em especial na penhora e na venda”, Themis, ano V, n.º 9,
2004, pp. 227‑261, em especial pp. 246‑247).
A aludida reforma eliminou a distinção entre venda
judicial e venda extrajudicial, prevendo‑se agora seis modalidades de venda –
venda mediante propostas em carta fechada, venda em bolsas de capitais ou de
mercadorias, venda directa a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir
os bens, venda por negociação particular, venda em estabelecimento de leilões e
venda em depósito público (artigo 886.º, n.º 1). No caso da venda mediante
propostas em carta fechada [que, segundo Carlos Francisco de Oliveira Lopes do
Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. II, Coimbra,
2004, p. 129), continua “a configurar‑se como verdadeira venda judicial, atento
o papel atribuído ao juiz”], desapareceu o despacho judicial de adjudicação,
previsto no n.º 2 do anterior artigo 900.º, tendo sido instituído o título de
transmissão, a emitir pelo agente de execução, nos termos do n.º 1 do actual
artigo 900.º, que dispõe que “mostrando‑se integralmente pago o preço e
satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são
adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de
execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se
certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o
cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens
foram adjudicados”.
Estas alterações implicaram ajustamentos na norma do
actual artigo 913.º, n.º 1, relativa ao momento até ao qual pode ser exercido o
direito de remição. Esse prazo passou a ser: (i) “no caso de venda por propostas
em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o
proponente ou no prazo e nos termos do n.º 4 do artigo 898.º” (esta disposição
confere ao preferente que não tenha exercido o seu direito no acto de abertura e
aceitação das propostas a faculdade de, na hipótese de o proponente ou
preferente não depositar o preço no prazo fixado nos termos do n.º 2 do artigo
897.º, efectuar, no prazo de cinco dias posteriores ao termo do prazo anterior,
o depósito do preço oferecido pelo proponente ou preferente faltosos, a ele se
fazendo então a adjudicação); e (ii) “nas outras modalidades de venda, até ao
momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documente”.
Finalmente, quanto à questão do depósito do preço
pelo remidor, a reforma de 2003 eliminou o n.º 2 do artigo 912.º (que,
recorde‑se, dispunha que “o preço há‑de ser depositado no momento da remição”),
dispondo agora o n.º 2 do artigo 913.º:
“Aplica‑se ao remidor, que exerça o seu direito no acto de abertura e
aceitação das propostas em carta fechada, o disposto no artigo 897.º, com as
adaptações necessárias, bem como o disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 898.º,
devendo o preço ser integralmente depositado quando o direito de remição seja
exercido depois desse momento, com o acréscimo de 5% para indemnização do
proponente se este já tiver feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 897.º,
e aplicando‑se, em qualquer caso, o disposto no artigo 900.º.”
Resulta desta disposição que:
A) Quando, na modalidade de venda mediante propostas
em carta fechada, o direito de remição é exercido no acto de abertura e
aceitação das propostas: 1) o remidor deve apresentar, no acto, como caução, um
cheque visado, à ordem do solicitador de execução ou, na sua falta, da
secretaria, no montante correspondente a 20% do valor base dos bens, ou garantia
bancária no mesmo valor (n.º 1 do artigo 897.º); 2) e, no prazo de 15 dias,
depositar numa instituição de crédito, à ordem do solicitador de execução ou, na
sua falta, da secretaria, a totalidade ou a parte do preço em falta (n.º 2 do
artigo 897.º); 3) sob pena de, não depositando o preço nesse prazo, o agente de
execução liquidar a respectiva responsabilidade e promover perante o juiz o
arresto [arresto que será levantado logo que o pagamento seja efectuado, com os
acréscimos calculados (n.º 2 do artigo 898.º)] em bens suficientes para garantir
o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento
criminal, sendo o remidor simultaneamente executado no próprio processo para
pagamento daquele valor e acréscimos (n.º 1 do artigo 898.º, com as necessárias
adaptações); 4) salvo se, ouvidos os interessados na venda, o agente de execução
optar por determinar que a remição fique sem efeito, aceitando a proposta
relativamente à qual foi exercitado esse direito (ou o lanço de valor
imediatamente inferior feito por outro titular do direito de remição, na
hipótese de se ter aberto licitação entre eles, nos termos do n.º 2 do artigo
915.º), ou determinando que os bens voltem a ser vendidos mediante novas
propostas em carta fechada ou por negociação particular, não sendo o remidor
remisso admitido a exercitar de novo esse direito e perdendo o valor da caução
constituída nos termos do n.º 1 do artigo 897.º (n.º 3 do artigo 898.º, com as
necessárias adaptações);
B) Quando, na modalidade de venda mediante propostas
em carta fechada, o direito de remição for exercido em momento posterior ao acto
de abertura e aceitação das propostas, e nas restantes modalidades de venda: o
remidor deve, no momento do exercício do direito de remição, depositar
integralmente o preço (eventualmente com o acréscimo de 5% para indemnização do
proponente, nos casos em que este já tenha feito o depósito referido no n.º 2 do
artigo 897.º).
2.3. Como é sabido, não compete ao Tribunal
Constitucional apreciar a correcção da interpretação e aplicação do direito
infraconstitucional efectuadas pelo tribunal recorrido, mas apenas apurar se o
critério normativo seguido na decisão impugnada – que é acolhido como um dado
da questão de constitucionalidade – viola, ou não, normas ou princípios
constitucionais.
No presente caso, no próprio acto de abertura e
aceitação de propostas em carta fechada, modalidade de venda adoptada na
execução de que emerge o presente recurso, uma vez aceite a proposta apresentada
por C., L.da, no valor de € 481 350,00, por ser a mais elevada e ser superior ao
valor anunciado para a venda (€ 259 200,00), a Juíza que presidia ao acto tomou
a iniciativa de interpelar as filhas do executado, que se encontravam presentes,
perguntando‑lhes se pretendiam exercer o direito de remição, mas, apesar da
resposta afirmativa da ora recorrente, decidiu‑se não julgar validamente
exercido o direito de remição, por esta ter reconhecido não ter condições para
efectuar no momento a depósito da totalidade do preço da proposta vencedora e o
artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, tida
por aplicável, dispor que “o preço há‑de ser depositado no momento da remição”.
Seguiu‑se, assim, uma interpretação do artigo 912.º,
n.º 2, do CPC, na versão anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, interpretação
reafirmada no acórdão ora recorrido, segundo a qual só se considerada
validamente exercido o direito de remição, por um descendente do executado, no
acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se for acompanhado
do depósito da totalidade do preço oferecido na proposta aceite.
Constitui objecto do presente recurso a questão da
constitucionalidade desta interpretação normativa, independentemente – repete‑se
– da sua correcção ao nível do direito ordinário, designadamente face ao
disposto no artigo 896.º, n.º 1, que apenas prevê, após a aceitação de uma
proposta, a interpelação dos titulares do direito de preferência presentes ao
acto de abertura e aceitação das propostas para que declarem se querem exercer o
seu direito, sendo certo que, em regra (ressalvada a possibilidade de proposição
de acção de preferência, nos termos gerais – artigo 892.º, n.º 4), é nesse acto,
para o qual devem ser expressamente notificados (artigo 892.º, n.ºs 1 a 3), que
os preferentes devem exercitar o seu direito, e face ao disposto no artigo
913.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, que permite o exercício do direito de
remição, no caso de venda judicial, até ser proferido despacho de adjudicação
dos bens ao proponente, sendo certo que, no caso, no momento em que não se
admitiu o exercício do direito de remição, esse despacho (que só pode ser
emitido após estar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações
fiscais inerentes à transmissão – artigo 900.º) ainda não havia sido proferido,
sendo nesse mesmo acto que foi fixado o prazo de 15 dias para o proponente
vencedor depositar o preço na Caixa Geral de Depósitos.
2.4. O Tribunal Constitucional só pode julgar
inconstitucional a norma que a decisão recorrida tenha aplicado, mas pode
fazê‑lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais
diversos daqueles cuja violação foi invocada (artigo 79.º‑C da LTC).
No presente caso, entende‑se mais adequado confrontar
a interpretação normativa questionada com o direito de acesso aos tribunais e o
princípio do processo equitativo (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP) do que
directamente com a incumbência constitucional de o Estado, para protecção da
família, promover a independência social e económica dos agregados familiares
(artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da CRP). Na verdade, o reconhecimento do direito
de remição constitui um elemento adequado à protecção do património familiar,
estando antes em causa, mais directamente, no presente recurso, a regulamentação
adjectiva do exercício desse direito, que – adiante‑se desde já – se entende não
respeitar adequadamente o princípio da proporcionalidade reportado ao direito de
acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo.
Como assinala Carlos Lopes do Rego (“Os princípios
constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e
cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em Homenagem ao
Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs.
835‑859), “a garantia da via judiciária – ínsita no artigo 20.º da Constituição
e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos – envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do
direito de acção judicial (...), mas também a garantia de que o processo, uma
vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias
fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão
constitucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente
consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional”. O referido autor destaca
ainda o “princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e
preclusões impostas pela lei de processo às partes”, o qual, no seu entender,
“pode fundar‑se cumulativamente no princípio da proporcionalidade das
restrições (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição) ao direito de acesso à
justiça, quer na própria regra do processo equitativo”.
Da análise da jurisprudência do Tribunal
Constitucional sobre esta garantia da via judiciária, desenvolvida no citado
estudo e retomada, por último, no recente Acórdão n.º 179/2007, apura‑se que o
juízo de proporcionalidade a emitir neste domínio tem de tomar em conta três
vectores essenciais: (i) a justificação da exigência processual em causa; (ii) a
maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e (iii) a
gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus.
O ónus de o remidor depositar, para exercitar
validamente o direito de remição, a totalidade do preço por que tenha sido feita
a adjudicação ou a venda, não é, à partida, desajustado, uma vez que visa
acautelar, com plena eficácia, os interesses dos credores, designadamente do
exequente, e afastar o risco de declarações de exercício do direito de remição
não sérias ou não consistentes. E nem se poderá considerar intoleravelmente
pesado desde que seja concedido ao remidor o tempo minimamente suficiente para
se habilitar a efectuar tal depósito. É o que sucederia se, por exemplo, no
presente caso, uma vez conhecido o valor de venda do bem, correspondente à
proposta aceite, à recorrente tivesse sido facultado o exercício do direito de
remição até ser proferido despacho de adjudicação do bem ao proponente, o que
sempre lhe concederia tempo (recorde‑se que ao proponente vencedor foi
concedido o prazo de 15 dias para proceder ao depósito do preço e que o
despacho de adjudicação só poderia ser proferido após, para além do depósito do
preço, se mostrarem satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão).
Não foi este, porém, o critério normativo seguido
pelas instâncias, mas antes o de que, manifestada pelo familiar do requerente a
decisão de exercitar o direito de remição, na sequência de interpelação que
oficiosamente lhe foi dirigida no próprio acto de abertura e aceitação das
propostas, a constatação da impossibilidade de, nesse momento, proceder ao
depósito da totalidade do preço implica que se considera invalidamente exercido,
e definitivamente precludido, o direito de remição.
Este ónus, assim delineado e com as consequências que
se lhe associaram, viola o aludido princípio da proporcionalidade, quer por se
revelar excessivamente pesada a sua satisfação, quer atenta a extrema gravidade
dessas consequências. Desde logo, é desconhecido, à partida, o montante do
depósito a efectuar: no presente caso, sendo o valor base do bem de € 259
200,00, a recorrente terá sido surpreendida com a exigência de depositar, de
imediato, € 481 350,00, valor da proposta aceite. Depois, a exigência de
efectivação do depósito no próprio momento em que se exercita o direito de
remissão inviabiliza, na prática, o recurso à banca, quer para emissão de cheque
visado quer para eventual concessão de crédito, sendo sabido que o custo de uma
e de outro varia consoante o montante em causa. Finalmente, a consequência
associada ao reconhecimento da impossibilidade de proceder ao depósito da
integralidade do preço é manifestamente desproporcionada, pois se traduz na
perda definitiva e irreversível do direito de remição, ocorrida, aliás, numa
altura em que ainda não se teria esgotado o prazo “normal” para o seu exercício
(até à prolação do despacho de adjudicação), não fora a “interpelação” feita no
próprio acto de abertura e aceitação das propostas.
Por todas estas razões se considera que o critério
normativo acolhido na decisão ora recorrida viola o artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da
CRP.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito
de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo, consagrados nos
n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a
interpretação da norma do n.º 2 do artigo 912.º do Código de Processo Civil, na
redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, segundo a qual só
se considera validamente exercido o direito de remição, por um descendente do
executado, no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se
for acompanhado do depósito da totalidade do preço oferecido na proposta
aceite; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando‑se a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
Custas pelas recorridas, fixando‑se a taxa de justiça
em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Maio de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Carlos Pereira
Rui Manuel Moura Ramos