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Processo n.º 994/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão do Tribunal Judicial da Comarca da Moita, de 26 de Maio de 2004, foi A., ora recorrente, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro (na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 20/99, de 21 de Janeiro), em cúmulo, na pena de cento e oitenta dias de multa, à taxa diária de seis euros, a que correspondem cento e vinte dias de prisão subsidiária, caso a multa não seja voluntária ou coercivamente paga, e na pena acessória de publicitação da decisão em publicação periódica editada na área da comarca.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu dela para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, para o que agora importa, formulado as seguintes conclusões:
“1. Na pronúncia, foram imputados aos arguidos factos que integram a prática do crime de fraude sobre mercadorias sob a forma de dolo directo ou, pelo menos, de dolo necessário.
2. A douta sentença recorrida imputou aos arguidos factos que integram a prática do crime de fraude sobre mercadorias sob a forma de dolo eventual, quer quanto aos elementos objectivos do tipo, quer quanto aos elementos subjectivos, designadamente o «dolo específico», consubstanciado na «intenção de enganar outrem nas relações comerciais».
3. Assim, o tribunal a quo efectuou uma alteração, embora não substancial, dos factos pela prática dos quais o arguido vinha pronunciado,
4. Essa alteração dos factos não foi comunicada aos arguidos e tinha e tem relevo para a decisão da causa.
5. Com efeito, dolo eventual e o dolo directo e, consequentemente, os factos que lhes estão subjacentes, são incompatíveis.
6. As diferenças são, aliás, tão relevantes que o legislador teve necessidade de as especificar e das mesmas resultam diferenças de intensidade de dolo e, consequentemente, de culpa, com implicações não só na escolha e na determinação da medida das penas, como também, por vezes, no preenchimento, ou não, de tipos legais de crime.
7. No caso em apreço, a referida alteração dos factos, por não ter sido comunicada ao arguido, pôs em causa as garantias de defesa do mesmo e os princípios do contraditório e do acusatório assegurados no artigo 32.º n.ºs 1 e
5 da CRP.
8. Com efeito, ficou o arguido impedido de apresentar provas que pusessem em causa a imputação da prática dos factos subsumidos aos elementos objectivos e subjectivos do tipo sob a forma de dolo eventual.
9. Deste modo, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 358.º n.º 1, do CPP e 32.º n.ºs 1 e 5, da CRP , que deveriam ter sido interpretados no sentido de (i) constituir uma alteração dos factos darem-se por provados, na sentença, factos que integram a prática de um crime sob a forma de dolo eventual quando o crime, cujo tipo subjectivo até é composto por um «dolo específico», se encontrava imputada na pronúncia a título de dolo directo ou, pelo menos, necessário, e (ii) de que exigem a comunicação aos arguidos, de forma a lhes ser concedida possibilidade de defesa, dessa alteração.
10. É inconstitucional por violação das garantias de defesa e dos princípios do acusatório e do contraditório constantes dos artigos 32.º n.ºs 1 e 5, da CRP, a norma prevista no artigo 358º n.º 1, do CPP, designadamente conjugada com as do artigo 14.º, do Código Penal, quando interpretada no sentido de não ser aplicável (quer por se entender que não há alteração de factos, quer por se entender que essa alteração não é relevante para a decisão) às situações em que um crime imputado a título de dolo directo ou necessário passa a ser imputado a título de dolo genérico, mormente como rio caso dos presentes autos.
11. Inconstitucionalidade que se suscita e que deve ser declarada.
[...]
18. A norma prevista no n.º 1 do artigo 23.º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, deve ser julgada e declarada inconstitucional, por violação dos artigos 1.º e
29.º n.º 1, da CRP , quando interpretada, como faz a sentença recorrida, no sentido de a expressão «intenção» incluir o dolo eventual, isto é de se aplicar
às situações em que o agente agiu com dolo eventual no que diz respeito a um possível engano de terceiros nas relações comerciais, sendo essa inconstitucionalidade ainda mais flagrante quando o agente também agiu com dolo eventual relativamente aos factos que preenchem os elementos objectivos do tipo.
19. Foram, assim, violadas as normas jurídicas dos artigos 1.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal e 1º, 29º n.º 1 e 32º n.ºs 1 e 5, da CRP.
[...]”.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 13 de Outubro de 2004, negou provimento ao recurso, decisão que, para o que agora importa, fundamentou nos seguintes termos:
“[...] 8. 1 - Da (invocada) verificação de uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia. Defende o recorrente, neste particular, que:
- no despacho de pronúncia, imputou-se ao arguido a seguinte materialidade:
«A B., representada pelo seu sócio-gerente, A., sabia que o álcool marca C. supra descrito não obedecia na sua composição aos parâmetros legais, quanto à quantidade de cetrimida utilizada na desnaturação. Não obstante, quis vender e manter esse produto em depósito, com vista à sua posterior colocação em circulação no mercado a título oneroso, fazendo-o passar por não alterado, bem sabendo que, constando do rótulo que o mesmo era álcool sanitário, parcialmente desnaturado, os consumidores pensariam que tal correspondia à verdade, obedecendo tal produto às características que são legalmente exigidas. Pretendeu, assim, ludibriar aqueles que com esta sociedade mantivessem relações comerciais, designadamente consumidores finais e agentes/vendedores intermediários, sabendo que estava a colocar em crise a confiança dos consumidores na autenticidade da composição dos produtos transaccionados. O arguido A. agiu deliberada, livre e conscientemente, em representação da sociedade B., com o propósito de, enganando terceiros quanto à verdadeira composição do álcool marca C., alcançar um benefício ilegítimo, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei»
- enquanto, na sentença, veio a considerar-se como provada a seguinte distinta, materialidade: Apesar de os arguidos terem disso conhecimento, utilizaram a citada misturadora nas operações de diluição do cetrimida no álcool apreendido. Admitindo como possível que dessa forma a cetrimida não desnaturava correctamente o referido álcool, conformando-se com tal resultado. A B., representada pelo seu sócio-gerente A., admitiu como possível que o álcool marca C. supra descrito não obedecia na sua composição aos parâmetros legais, quanto à quantidade de cetrimida utilizada na desnaturação, conformando-se com tal resultado. Não obstante, quis vender e manter esse produto em depósito, com vista à posterior colocação em circulação no mercado a título oneroso, bem sabendo que, constando do rótulo que o mesmo era álcool sanitário, parcialmente desnaturado, os consumidores pensariam que tal correspondia à verdade, e que tal produto obedecia às características que são legalmente exigidas, visando dessa forma obter um benefício económico com a venda do produto, que sabia não ser legítimo. Admitiu assim como possível, conformando-se com tal resultado, enganar aqueles que com esta sociedade mantivessem relações comerciais adquirindo o produto supra descrito, designadamente, consumidores finais e agentes/vendedores intermediários, e admitindo como possível que estava a colocar em crise a confiança dos consumidores na autenticidade da composição dos produtos transaccionados. O arguido A. agiu livre e conscientemente, em representação da sociedade B., admitindo como possível que estava a enganar terceiros quanto à verdadeira composição do álcool marca C. e ainda assim quis vender o produto e dessa forma alcançar um beneficio para a B. que sabia ser ilegítimo, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei. Conclui por dizer que:
(i) pronunciado o arguido pelo crime de fr[a]ude sobre mercadorias a título de dolo directo, mas apurado posteriormente, em julgamento, que o mesmo terá cometido o mesmo crime mas antes a título de dolo eventual, verificou-se uma alteração, ainda que não substancial, dos factos, com relevo para a decisão da causa;
(ii) uma vez que essa alteração não foi oportunamente comunicada ao arguido, nos termos e para os efeitos prevenidos no n.º 1 do art. 358.º, do CPP, fez-se lesão das respectivas garantias de defesa dos princípios do contraditório e do acusatório assegurados no art. 32.º n.ºs 1 e 5, da Constituição. Opõe-lhe o respondente que a alteração verificada, relativamente à factualidade atinente ao elemento subjectivo - entre os factos que, na pronúncia, constituem uma actuação com dolo directo e aqueles que, na sentença, constituem uma actuação com dolo eventual -, não configura a alteração dos factos (substancial ou não) a que se refere o invocado art. 358º, pois que «consideração da actuação do recorrente a título de dolo eventual mais não representa do que um minus, relativamente ao quadro factual da pronúncia (dolo directo), e por isso também nele contido, sendo certo que o recorrente teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime pelo qual veio a ser condenado e teve possibilidade de os contradizer». Afigura-se que o respondente tem inteira razão. Vejamos porquê. Afigura-se ser entendimento do recorrente que a comutação fáctica acima verificada consubstancia violação dos princípios do contraditório e do acusatório consagrados, maxime, nos n.ºs 1 e 5 do art. 32º, da Constituição, de que a al. b) do n.º 1 do art. 379º, do CPP constitui clara emanação, colocando sob o labéu processual de nulidade qualquer veleidade de condenação por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e condições prevenidos nos arts. 358º e 359º, do CPP. Não é assim. Desde logo, tendo por referência o disposto no art. 1º n.º 1 al. f), do CPP, havendo de conceder-se que a definição da alteração não substancial dos factos se alcança por antinomia: trata-se daquela modificação dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que não tem por efeito atribuir ao arguido a prática de um crime diverso ou alteração das sanções máximas aplicáveis, desde que com relevo para a decisão da causa. Ora, no caso, a comutação da materialidade em questão não tem qualquer relevo para a decisão da causa, como é exigido pelo disposto no n.º 1 do referido art.
358º, do CPP [1]. Com efeito, mesmo concedendo a pretextada comutação de factos, traduzida numa divergente, in melius, intensidade dolosa na respectiva conduta pronunciado por que «sabia» que o álcool utilizado, o arguido foi condenado por que «admitiu como possível» esse facto -, tem de reconhecer-se que a alteração não substancial dos factos só releva, processualmente, quando tenha relevo para a decisão da causa, vale por dizer, quando puder ter repercussões agravativas na medida da punição ou na estratégia de defesa do arguido[2]. In casu, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, a «convolação» operada (traduzindo a comutação de uma actuação com dolo directo para uma acção com dolo eventual) só pode (não oferece quaisquer dúvidas) ter repercussões atenuativas. Por outro lado, não se vê (nem o arguido, a respeito, explicita cabalmente a conclusão proclamada) que, por tal via, se haja posto em causa ou se pudesse por em causa a estratégia da defesa, pois que, designadamente e neste particular, não se detecta qualquer decisão surpresa - basta relembrar os termos da contestação inserta nos autos. Como assim, não se pode julgar infringida a normação enunciada, a propósito deste item recursório, pelo arguido/recorrente. Termos em que, neste segmento, o recurso não pode lograr procedência. [...]”
O Tribunal considerou, ainda, que a interpretação do n.º 1 do artigo 23.º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, efectuada pelo tribunal a quo, não enfermava de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da LTC, o presente recurso, através de um requerimento em que se afirma:
“[...] Com o recurso pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das seguintes normas: a) A constante do artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, designadamente conjugada com as do artigo 14º do Código Penal, quando interpretada no sentido de não ser aplicável quer por se entender que essa alteração não é relevante para a decisão) às situações em que, por alteração dos factos, um crime imputado a título de dolo directo ou necessário, na pronúncia, passa a ser imputado a título de dolo genérico, na sentença, mormente como em casos como o dos presentes autos; b) A constante do artigo 23.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, quando interpretada no sentido de a expressão “intenção” incluir o dolo eventual, isto é, quando interpretada no sentido de se aplicar às situações em que o agente agiu com dolo eventual no que diz respeito a um possível engano de terceiros nas relações comerciais e, mais ainda, a situações em que o agente também agiu com dolo eventual relativamente aos factos que constituem os elementos objectivos do tipo previstos no nº 2 do aludido artigo. Considera o recorrente que aquelas normas, quando interpretadas com os referidos sentidos, violam, respectivamente, os seguintes princípios e normas constitucionais: a) Os princípios do acusatório e do contraditório e as garantias de defesa previstos no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa; b) Os princípios da legalidade e da tipicidade artigos 29.º, n.º 1, e 32.º e o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1.º, todos da Constituição da República Portuguesa. [...]”
5. Por parte do Relator do processo neste Tribunal foi, na sequência, proferido despacho que delimitou, nos seguintes termos, o objecto do recurso:
“[...] Importa, porém, delimitar o recurso assim delineado, na medida em que na parte em que o recorrente pretende que o Tribunal aprecie a alegada violação pelo artigo 23º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, quando interpretado no sentido de a expressão “intenção” incluir o dolo eventual, dos princípios da legalidade e da tipicidade, não pode conhecer-se do seu objecto, por não vir colocada, nessa parte, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa susceptível de integrar o recurso de constitucionalidade que vem interposto. Com efeito, ainda recentemente, no Acórdão n.º 196/03, tirado em Plenário, bem como, por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 176/03, 331/03, 336/03 e 494/03
(disponíveis na página do Tribunal na Internet, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), foi reafirmado pelo Tribunal, (embora não unanimemente), que não são questões de constitucionalidade normativa, susceptíveis de ser conhecidas pelo Tribunal Constitucional, hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal. Na jurisprudência citada, afirmou-se que, nos casos em que vem questionado que o julgador possa alcançar um concreto conteúdo normativo através de um determinado processo interpretativo - porque, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, violaria necessariamente o princípio da legalidade penal (artigo 29º, n.ºs 1 e 3 da CRP) -, o que vem impugnado não é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido, questão que, por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional. Concluiu, por isso, o Tribunal, reiterando o que já antes havia afirmado, por exemplo, no Acórdão n.º 674/99, que “não é questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, a que se refere à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, isto é, a um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal ou fiscal, decorrentes do princípio da legalidade, constante dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição, conduz a uma aplicação analógica ou extensiva de determinados preceitos, ultrapassando o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador”. Não pode, por isso, pelas razões constantes daquela jurisprudência, que agora se reiteram, conhecer-se, nesta parte, do objecto do recurso que vem interposto pelo recorrente. Com esta delimitação, notifique-se para alegações”.
6. Alegou, então, o recorrente, tendo concluído da seguinte forma:
“I. O douto acórdão recorrido interpretou o artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, dele retirando a norma segundo a qual, por não ser relevante para a decisão, não é de comunicar ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia verificada na audiência de julgamento se de tal alteração resultar a imputação a título de dolo eventual de um crime anteriormente imputado a título de dolo directo, não havendo também, consequentemente, que lhe conceder o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, se ele o requerer. II. Aquela norma, designadamente conjugada com as do artigo 14º do Código Penal, viola os princípios do acusatório e do contraditório e as garantias de defesa previstos no artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. III. Assim, a norma do artigo 358º, n.º 1, do CPP, quando interpretada no sentido de a sua estatuição não ser aplicável (quer por se entender que não há alteração dos factos, quer por se entender que essa alteração não é relevante para a decisão) às situações em que, por alteração dos factos, um crime imputado a título de dolo directo ou necessário, na pronúncia, passa a ser imputado a título de dolo genérico, na sentença, mormente como em casos como o dos presentes autos – em que um crime de fraude sobre mercadorias inicialmente imputado com dolo directo quer quanto aos elementos objectivos genéricos do tipo, quer quanto ao elemento subjectivo específico do tipo, passa a ser imputado com dolo eventual quer quanto aos primeiros quer quanto ao segundo elementos - é inconstitucional por violação dos princípios do acusatório, do contraditório, da “igualdade de armas' e das garantias de defesa previstos no artigo 32.º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. IV. O artigo 358.º, n.º 1, do CPP, deveria ter sido interpretado no sentido de, nas situações referidas, ser obrigatório comunicar ao arguido a alteração não substancial dos factos e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. V. As normas dos artigos 32.º, n.º 1 e 5, da CRP deveriam ter: sido interpretadas no sentido de exigirem a obrigatoriedade da comunicação daquela alteração não substancial dos factos e da concessão, querendo o arguido, do referido prazo para apresentação de defesa. VI. Em consequência, o douto acórdão recorrido deverá ser revogado, devendo ser proferido novo acórdão que julgue nula a sentença proferida em primeira instância, bem como o respectivo julgamento”.
7. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disso o Ministério Público, ora recorrido, a concluir:
“1 – Face ao disposto no n.º 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, ao arguido deve ser comunicada uma alteração não substancial de factos ocorridos no decurso da audiência, com relevo para a decisão da causa.
2 – Não preenchem o conceito de alteração não substancial relevante, situações em que os factos integrem o mesmo tipo legal de crime e representam “um minus” em relação ao que constava da pronúncia, traduzindo uma verificação menos intensa da forma que o dolo pode revestir.
3 – Daí que, no caso em apreço, não tenha havido violação de normas ou princípios constitucionais no que às garantias de defesa em processo penal está consagrado, tendo o arguido podido preparar convenientemente a sua estratégia, sem necessidade de ser prevenido de qualquer alteração nos termos em que a mesma operou.
4 – Motivo pelo que não deverá proceder o presente recurso”.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir
II – Fundamentação
8. Delimitação do objecto do recurso
No requerimento de interposição do recurso, afirmou o recorrente pretender ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do “artigo 23.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, quando interpretada no sentido de a expressão “intenção” incluir o dolo eventual, isto é, quando interpretada no sentido de se aplicar às situações em que o agente agiu com dolo eventual no que diz respeito a um possível engano de terceiros nas relações comerciais e, mais ainda, a situações em que o agente também agiu com dolo eventual relativamente aos factos que constituem os elementos objectivos do tipo previstos no n.º 2 do aludido artigo”.
Contudo, pelo acima transcrito despacho de 22 de Novembro de 2004, entretanto transitado, foi decidido excluir aquela norma do objecto do recurso. Está este, assim, limitado no seu objecto exclusivamente à apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 358º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação com que foi aplicada pela decisão recorrida e que vem questionada pelo recorrente.
9. Julgamento do objecto do recurso.
9.1. Importa, antes de mais, evidenciar que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a bondade da decisão recorrida na perspectiva da correcta interpretação, que nela se fez, do direito ordinário – nomeadamente do artigo 358º do Código de Processo Penal. Ao Tribunal cabe apenas decidir se a interpretação normativa deste último preceito por que optou efectivamente a decisão recorrida é ou não compatível com a Constituição e, designadamente, com os princípios e normas invocados pelo recorrente.
Com esta advertência, vejamos então.
9.2. A questão de constitucionalidade que vem colocada ao Tribunal pode, em suma, enunciar-se nos seguintes termos: é inconstitucional, designadamente por violação das garantias de defesa em processo penal e, especificamente, dos princípios do acusatório e do contraditório, consagrados no artigo 32º, n.ºs 1 e
5 da Constituição, a interpretação normativa do n.º 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal que considera não existir alteração dos factos quando um crime de fraude sobre mercadorias, que, na pronúncia, vem imputado ao arguido a título de dolo directo ou necessário, passa, na sentença, a sê-lo a título de dolo eventual ?
9.3. O Tribunal Constitucional tem sido, frequentemente, chamado a pronunciar-se sobre a compatibilidade com a Constituição de diversas interpretações normativas extraídas dos artigos 358º ou 359º do Código de Processo Penal (cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs 173/92 – in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 350 e seguintes -, e 279/95, 330/97, 445/97,
130/98, 442/99, 674/99 e 463/04, todos estes disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Da análise da jurisprudência do Tribunal, verifica-se, em síntese, que, nesta matéria, especialmente problemática é a questão da compatibilidade desses preceitos - ou, mais rigorosamente, das dimensões normativas que, por interpretação, deles vão sendo extraídas -, com o princípio constitucional das garantias de defesa em processo penal e, especificamente, com os princípios do acusatório e do contraditório, consagrados no artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição. Neste sentido, com particular desenvolvimento, se pronunciou o acórdão n.º 674/99, que, discorrendo sobre a relação da questão da vinculação temática com o quadro constitucional e, designadamente, com o artigo 32º da Constituição, ponderou:
“61. No seu artigo 32º, a Constituição da República Portuguesa estabelece, entre os direitos, liberdades e garantias pessoais, as Garantias de processo criminal. Nos termos do preceituado nesse artigo 32º, «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» (n.º 1), sendo que o mesmo
«processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório» (n.º 5). A propósito do princípio acusatório, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que ele «é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal» e
«uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial», significando essencialmente que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205). Relativamente ao princípio do contraditório, assinalam os mesmos comentadores que ele implica o dever «de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão», bem como o «direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão», e ainda o «direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo», sendo certo que «o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição» (ibidem, nota X ao artigo 32º, pág. 206).
62. Os princípios do acusatório e do contraditório, enquanto princípios estruturantes do processo penal, movem-se necessariamente no quadro de um sistema processual que tem também – como vimos – de assegurar todas as garantias de defesa, ou seja, no quadro de um processo penal justo e equitativo. Escreveu-se no Acórdão n.º 172/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 350), acerca das garantias de defesa do arguido: O processo penal há-de, assim, configurar-se - como se disse já - em termos de ser “um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido”
(cf. acórdão deste Tribunal n.º 61/88, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 375, p. 138; cf. também o já citado acórdão n.º 393/89).
[...] O princípio do contraditório, encarado do ponto de vista do arguido, pretende, antes de mais, realizar, o seu direito de defesa. “A máxima audiatur et altera pars ou ne absens damnetur” é, justamente, no dizer de EDUARDO CORREIA, “a expressão”, nesse sentido, “do princípio do contraditório” (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110º, p. 99). Dizendo com a Comissão Constitucional, no seu Parecer n.º 18/81, publicado em Pareceres da Comissão Constitucional, volume 16º, p. 147: o sentido essencial do princípio do contraditório “está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar”. A descoberta da verdade material em processo penal há-de, portanto, necessariamente compaginar-se com aquelas garantias de defesa do arguido. E assim se reconhecerá, como corolário do princípio do acusatório, o da vinculação temática do tribunal e da correlação entre a acusação (e a pronúncia) e a sentença.
63. Como realça Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág. 45), a concepção típica de um «processo acusatório» implica a «estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa», em sede de determinação do objecto do processo como em sede de poderes de cognição e dos limites da decisão. E, mais adiante (id., pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, afirma este autor: Deve pois firmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal [...] e a extensão do caso julgado. Como também se pode ler no Acórdão n.º 173/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 361): A questão não pode ser apresentada ao tribunal para julgamento sem que tenha sido previamente delimitado o seu objecto num documento (a acusação, ou requerimento acusatório) que indique os factos de que o arguido é acusado e qual o seu enquadramento jurídico-penal (esta questão está sistematicamente concatenada com o princípio da legalidade vigente em direito penal substantivo, do qual decorre a necessidade de fixação prévia de um determinado quadro fáctico e de uma determinada moldura penal adequada a esse quadro fáctico); por vezes, exige-se até que um juiz se pronuncie previamente sobre essa acusação (através da pronúncia) antes de a questão ser apresentada ao tribunal do julgamento. Mas a acusação não basta, porque é preciso dar também ao arguido a possibilidade de produzir ele próprio um documento (a contestação) que contrarie o anterior. Em segundo lugar, o princípio da correlação entre acusação e sentença. Como a acusação fixa o objecto do processo, o julgamento incide sobre a matéria da acusação e o tribunal não pode, por sua iniciativa, ou por iniciativa da parte acusadora, apreciar questões diversas das descritas na acusação, julgar um arguido por factos que foram atribuídos a outro, nem muito menos julgar pessoas nela não indicadas. Uma norma legal que o permitisse violaria este princípio processual penal. Como assinala António Quirino Duarte Soares (ibidem), do «princípio da acusação
(segundo o qual é esta que define e fixa perante o juiz o objecto do processo)» decorre logicamente um outro princípio, corolário do primeiro - «tal princípio é o da identidade do objecto do processo, que representa a ideia de que o objecto da acusação se deve manter idêntico, o mesmo, desde aquela, até à sentença final». Ora, este princípio da identidade do objecto do processo significa, desde logo, que a correlação entre a acusação e a pronúncia se há-de prolongar numa necessária correlação entre a pronúncia e a sentença. Quando esta imputar ao arguido factos absolutamente novos, estranhos ao objecto do processo, tal como este resulta da pronúncia, ainda aí se estará, pois, perante uma ofensa ao princípio do acusatório. [...]”
9.4. Concretizando o particular aspecto daqueles princípios constitucionais potencialmente afectado por determinadas interpretações normativas dos artigos
358º ou 359º do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional tem vindo, desde o Acórdão n.º 173/92, a colocar o acento tónico na necessidade de garantir ao arguido todas as condições de uma defesa eficaz. Com efeito, logo nesse acórdão, em que estava fundamentalmente em causa uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, ponderou, a dado passo, o Tribunal:
“[...] Ora a referida preparação da defesa pode ser gravemente prejudicada não só se a acusação for omissa no que diz respeito à incriminação legal dos factos, mas também se, depois de encerrada a discussão, o tribunal vier a optar por uma qualificação jurídico-penal com que a defesa não contava. Não só a estratégia da defesa do arguido como a própria utilidade da defesa produzida podem resultar inteiramente frustradas por essa surpresa processual, conforme notam Silva e Sousa e Eduardo Correia [...].»
No mesmo sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 279/95:
“[...] um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar de ter por referência um enquadramento jurídico-criminal preciso. Dele decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégia de defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.) em termos que de modo algum podem ceder perante os valores subjacentes à liberdade (mesmo que lhe chamemos correcção) na qualificação jurídica do comportamento descrito na acusação.
É da essência das garantias de defesa que a operação de subsunção que conduz o juiz à determinação do tipo penal correspondente a determinados factos seja previamente conhecida e, como tal, controlável pelo arguido. Através da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, na acusação ou na pronúncia (v. artigos 283º, n.º 3, e 308º, n.º 2, do CPP), é fornecido ao arguido um modelo determinado de subsunção constituído por aqueles factos entendidos como correspondendo a um específico crime. Tal modelo serve de referência à fase do julgamento - destinando-se esta, aliás, à sua comprovação - e é em função dele que o arguido organiza a respectiva defesa. Importa aqui sublinhar que o conhecimento pelo arguido desse modelo, tornando previsível a medida em que os seus direitos podem ser atingidos naquele processo, constitui como se disse um imprescindível ponto de referência na estratégia de defesa, funcionando, assim, como importante garantia de exercício desta. As limitações quanto à possibilidade de conhecimento de novos factos (artigos
358º e 359º do CPP) visam precisamente impedir que o arguido seja confrontado com uma subsunção diversa daquela em função (na previsão) da qual preparou a sua defesa. Ora, é diverso e - num processo após a acusação ou a pronúncia - é novo tanto o modelo de subsunção que recaindo sobre novos factos leva a uma incriminação diversa, como o modelo que baseando-se nos mesmos factos tem como ponto de chegada uma incriminação diversa. Sendo mais gravosa para o arguido esta nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que, sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração. A solução está assim na compatibilização da liberdade de qualificação com um mecanismo processual que torne efectivo esse direito a ser ouvido, face a uma convolação que, mantendo os factos descritos na acusação ou pronúncia, naturalisticamente considerados, importe condenação em pena mais grave. O arguido deve ser prevenido da possibilidade da nova qualificação, quando esta importar pena mais grave, facultando-se-lhe quanto a ela oportunidade de defesa.
[...]”
E, ainda no mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão n.º 330/97:
“O “direito a ser ouvido”, enquanto direito a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, particularmente as tomadas contra o arguido, integra as garantias de defesa, no que à respectiva estratégia respeita, de outro modo se violando o princípio do contraditório. Compreende-se que assim seja uma vez que, em princípio, a faculdade de alteração da incriminação constante da acusação, se operada sem ao arguido se dar ensejo de a conhecer e de organizar a sua defesa em função da mesma, pode-lhe causar grave prejuízo (neste sentido, para além dos arestos citados, mencionem-se inter alia, os Acórdãos nºs. 402/95, 22/96 e 596/96, publicados no Diário da República, II Série, de 16 de Novembro de 1995, 17 de Maio e 6 de Julho de 1996, respectivamente).
Finalmente, no também já referido Acórdão n.º 445/97, ponderou-se:
“[...] Sendo facilmente admissível perante a realidade das coisas que diferente pode ser a estratégia da defesa consoante a qualificação jurídico-criminal dos factos cujo cometimento é imputado ao arguido, há-de reconhecer-se que - independentemente da liberdade que deve ser concedida ao tribunal do julgamento para proceder a uma correcta subsunção jurídica - uma alteração da qualificação que foi acolhida na acusação ou na pronúncia pode vir a ter, e até por vezes acentuadamente, repercussão nos objectivos pelos quais aquela estratégia foi delineada. [...]”
Em suma: na perspectiva do Tribunal, decisivo para aferir da compatibilidade de uma determinada interpretação normativa dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal com a Constituição é, como se concluiu no Acórdão n.º 674/99, a questão de saber se essa interpretação normativa impede a possibilidade de uma defesa eficaz do arguido. Como então se afirmou, resumindo a anterior jurisprudência do Tribunal sobre a questão, “erige-se assim em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do ponto de vista daquela defesa
[...]”.
9.5. Por outro lado, com particular relevância para a questão que se discute nos presentes autos, importa sublinhar que o Tribunal já julgou que não é censurável constitucionalmente a dimensão normativa do artigo 358º que considere não constituírem alteração não substancial dos factos relevante quer as situações em que os factos em que assenta a condenação integrem o mesmo (ou até outro) tipo legal de crime e representem “um minus” em relação ao que constava da pronúncia, quer aquelas alterações de factos, relativas a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes, isto é, que se não apresentem com relevo para a decisão da causa (cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 674/99, que, quanto à primeira questão, reitera o que já havia sido afirmado no Acórdão n.º
330/97). Com efeito, pode ler-se no Acórdão n.º 674/99:
“[...] liminarmente se exclui a eventual inconstitucionalidade das normas em causa enquanto interpretadas no sentido de se não considerar como alteração dos factos a consideração no acórdão condenatório de factos que se afastam da pronúncia tão-só em decorrência de nem toda a factualidade nesta descrita ter vindo a ser dada como provada na audiência de julgamento, ou então porque os factos provados constituem uma redução relativamente aos factos constantes da própria pronúncia. [...] E idêntica solução se há-de adoptar relativamente àquelas alterações de facto, relativas a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes, isto é, que se não apresentem «com relevo para a decisão da causa»
(assim o tem entendido também o STJ, citando-se, entre outros, o Acórdão de 3 de Abril de 1991, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 406, pág. 287; o Acórdão de
11 de Novembro de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 421, pág. 309; e o Acórdão de 19 de Outubro de 1995, no processo n.º 48271, www.dgsi.pt, n.º convencional JSTJ00029484) [...]”.
9.6. No caso que agora nos ocupa o arguido foi pronunciado pela prática de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º do DL n.º
28/84, de 20 de Janeiro (na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 20/99, de 21 de Janeiro), considerando-se, no que se refere ao título de imputação subjectiva dos factos, que agora está em causa, que “o arguido [...] agiu deliberada, livre e conscientemente, em representação da sociedade B., com o propósito de, enganando terceiros quanto à verdadeira composição do álcool marca C., alcançar um benefício ilegítimo, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei”. Por sua vez, na sentença condenatória, deu-se como provado, no que ao mesmo título de imputação subjectiva se refere, que “o arguido [...] agiu livre e conscientemente, em representação da sociedade B., admitindo como possível que estava a enganar terceiros quanto à verdadeira composição do álcool marca C. e ainda assim quis vender o produto e dessa forma alcançar um beneficio para a B. que sabia ser ilegítimo, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei”
(negrito aditado).
Alega o arguido recorrente que, enquanto na pronúncia lhe foram imputados factos que integram a prática do crime de fraude sobre mercadorias sob a forma de dolo directo ou, pelo menos, de dolo necessário, na decisão recorrida lhe foram imputados factos que integram a prática desse crime sob a forma de dolo eventual, quer quanto aos elementos objectivos do tipo, quer quanto ao elemento subjectivo especial, consubstanciado na «intenção de enganar outrem nas relações
[negociais]». Considera, por isso, que, dessa forma, o tribunal a quo efectuou uma alteração, embora não substancial, dos factos pela prática dos quais vinha pronunciado, alteração que, sendo relevante para a decisão da causa, o impediu de apresentar provas que pusessem em causa a imputação da prática dos factos subsumidos aos elementos objectivos e subjectivos do tipo sob a forma de dolo eventual.
Por sua vez, na perspectiva da decisão recorrida, não existiu qualquer alteração
– substancial ou não substancial – dos factos que devesse ser comunicada ao arguido. No essencial, por três razões: (i) em primeiro lugar, porque a conclusão, a que se chegou na sentença, de que o arguido actuou a título de dolo eventual mais não representa do que um minus relativamente ao quadro factual da pronúncia - em que os factos lhe eram imputados a título de dolo directo, e por isso também nele contido -, sendo certo que o recorrente teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime pelo qual veio a ser condenado e teve possibilidade de os contradizer; (ii) em segundo lugar, porque a comutação da materialidade em questão não tem qualquer relevo para a decisão da causa, como é exigido pelo disposto no n.º 1 do referido art. 358º, do CPP. Como então se afirmou, “mesmo concedendo a pretextada comutação de factos, traduzida numa divergente, in melius, intensidade dolosa na respectiva conduta - pronunciado por que «sabia» que o álcool utilizado, o arguido foi condenado por que «admitiu como possível» esse facto -, tem de reconhecer-se que a alteração não substancial dos factos só releva, processualmente, quando tenha relevo para a decisão da causa, vale por dizer, quando puder ter repercussões agravativas na medida da punição ou na estratégia de defesa do arguido. In casu, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, a «convolação» operada
(traduzindo a comutação de uma actuação com dolo directo para uma acção com dolo eventual) só pode (não oferece quaisquer dúvidas) ter repercussões atenuativas;
(iii) finalmente, porque entendeu que, ao proceder-se deste modo, se não pôs em causa a estratégia da defesa, como considera resultar dos termos da contestação do arguido inserta nos autos.
9.7. Face à jurisprudência do Tribunal e ao quadro factual que se deixou descrito, verificamos, pelas razões já a seguir enunciadas, que a norma que vem questionada não é inconstitucional e, designadamente, que não colide com os princípios do acusatório ou do contraditório invocados pelo recorrente.
9.7.1. Em primeiro lugar, decisivamente, porque a afirmação - feita na sentença
- de que o arguido representou como possível e aceitou o risco de, através da sua acção, poder vir a realizar o facto típico e a enganar outrem, já está logicamente contida na afirmação - feita na pronúncia - de que o arguido actuou com intenção de realizar o facto típico e de enganar outrem. Dito de outra forma: a acusação de ter o arguido agido com intenção de realizar o facto típico e de enganar outrem - feita na pronúncia - já contém logicamente a acusação - em que se funda a decisão recorrida - de que o arguido representou como consequência possível da sua acção a realização do facto típico e a possibilidade de vir a enganar outrem e se conformou com essa representação. E isto é assim porque, ao contrário do que afirma o recorrente, dolo directo e dolo eventual não são, para o que agora importa, coisas diferentes, mas antes distintos graus de intensidade das mesmas coisas - de representação e de vontade de realizar um facto típico -, sendo certo que o dolo eventual constitui, em qualquer caso, um grau menos intenso de vontade (conformação) do que aquela que está presente no dolo directo (intenção).
Nessa medida – como se concluiu no acórdão recorrido e é sustentado pelo Ministério Público na sua alegação - a condenação a título de dolo eventual representa um minus em relação ao que já constava da pronúncia, onde o arguido fora acusado de ter praticado os factos com dolo directo, pelo que, pelas razões constantes dos Acórdãos n.ºs 330/97 e 674/99, que agora se reiteram, não pode ver-se nesta situação uma violação dos princípios do acusatório ou do contraditório constitucionalmente censurável.
9.7.2. Acresce que, como também se demonstrou na decisão recorrida, a alteração verificada é, na perspectiva daquela decisão, irrelevante para a verificação da factualidade típica, uma vez que, na interpretação que o Tribunal a quo fez do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro – a qual, como está decidido, não é sindicável neste processo – foi a de equiparar, para efeitos de preenchimento dos elementos subjectivos do respectivo tipo legal, o dolo directo e o dolo eventual.
9.7.3. Finalmente, também não procede a afirmação de que a alteração, nos termos descritos, do título subjectivo de imputação do facto compromete a possibilidade de uma defesa eficaz por parte do arguido, uma vez que, ao acusar o arguido de ter actuado com intenção de praticar o facto descrito no tipo legal de crime, lhe foi dada oportunidade - que o arguido, aliás, concretamente aproveitou na sua contestação – para, da forma que julgou mais adequada, se defender de tudo o que essa acusação implicava.
9.8. Há, assim, que concluir que a norma questionada, tal como foi interpretada e aplicada pelo acórdão recorrido, não se revela violadora da Constituição, nomeadamente do princípio da plenitude das garantias de defesa, consagrado no referido artigo 32º.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta. Lisboa, 11 de Fevereiro de 2005
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício
[1] S/ os conceitos de alteração substancial e de alteração não substancial dos factos e respectiva distinção, vd CASTANHEIRA NEVES, «Sumários de Processo Criminal», pág. 229; FREDERICO ISASCA, «Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português», Coimbra, 1992, pp. 100-153; EDUARDO CORREIA, «A Teoria do Concurso em Direito Criminal», Coimbra, 1983, pp. 394-418; MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, «Curso de Processo Penal», Lisboa, 1986, pp.
233.238; «O direito de punir - abuso de confiança e convolação - atenuação extraordinária», na Scientia Iuridica, tomo XV, 1966, n.º 78, p. 158 e n.ºs
79/80, p. 337; GERMANO MARQUES DA SILVA, «Curso de Processo Penal», Lisboa, III,
2.. edição, 273 ss.; «Objecto do processo penal: a qualificação jurídica dos factos, comentário ao assento 2/93», na «Direito e justiça», VIII (1), 1994; MANUEL MARQUES FERREIRA, «Da alteração dos factos objecto do processo penal», na Revista Portuguesa de Ciência Criminal. ano I, fasc. 2, Abril/junho de 1991, pp.
221-239; ANTÓNIO QUIRINO DUARTE SOARES, «Convolações», na Colectânea de Jurisprudência Acórdãos do S1J, ano II, 1994, tomo III, p. 14; TERESA PIZARRO BELEZA, «As variações do objecto do processo no Código de Processo Penal de Macau», na Revista jurídica de Macau, vol. IV , n.º 1, Jan/Abril-1997; ANTÓNIO LEONES DANTAS, «A definição e evolução do objecto do processo no processo penal», na Revista do Ministério Público, ano 16.º, Julho/Setembro 1995, n.º 63, p. 89; GIL MOREIRA DOS SANTOS, «A estabilidade objectiva da lide em processo penal», na Revista Português de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 4, Out./Dez 1992, p. 593; MARIO TENREIRO, «Considerações sobre o objecto do processo penal», na Revista da Ordem dos Advogados, ano 47º, p. 997; JOSE SOUTO DE MOURA, «Notas sobre o objecto do processo (a pronúncia e a alteração substancial dos factos)», na Revista do Ministério Público, ano 12.º, n.º 48, pág. 41. Cfr. Acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-4-92 (CJ XVII-2-22), de
11-11-92 (Boletim do Ministério da Justiça 421.º,.pp. 309 e segs.), de 9-11-90
(BMJ 401.0, pp. 443 e segs.), do Tribunal Constitucional, n.º 674/99, de
15-12-99 (BMJ 492.0, pp. 62 e segs.), Assento do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 2/93, de 27-1-93 (Diário da República, 1ª Série A, de 10-3-93, pp. 1105 e segs.), Acórdão, do Tribunal Constitucional, n.º 445/97, de 25-6-97 (DR 1ª Série A, de 5-8-97, pp. 4054 e segs.), e Assento, do Supremo Tribunal de Justiça, n.º
3/2000, de 15-12-99 (DR, 1ª Série A, de 11-2-2000, pp. 512 e segs.).
[2] Neste sentido, por mais impressivo para o caso, para além daquele enunciado pelo respondente, de 29-9-1994, vd o Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de
25-3-1999 (BMJ 485º, pp. 286 e segs. / 316 e segs:).
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050072.html ]