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Processo n.º 655/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos foi proferida a Decisão Sumária n.º 540/2012, pela qual se determinou o não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto por A., e cujos termos se transcrevem parcialmente:
«I. Relatório
1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado, por acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, na pena de 3 anos de prisão pela prática, em coautoria material, de um crime de burla qualificada, por apropriação ilegítima de bens do setor cooperativo, previsto e punido pelos artigos 313.º, 314.º, alínea c) e 332.º, n.º 1 do Código Penal. Foi decretada a suspensão da execução da pena, pelo período de 5 anos, condicionada ao pagamento, à demandante, da quantia de €300.000,00. Foi ainda solidariamente condenado, relativamente ao pedido de indemnização civil que havia sido deduzido pela demandante, no pagamento da quantia de €623.497,38, acrescida de juros de mora.
Interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora, ao qual, por acórdão de 5 de dezembro de 2006 (fls. 4614 e seguintes), foi negado provimento. Deduziu novo recurso, dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão de 17 de outubro de 2007 (fls. 4767 e seguintes), foi o então acórdão recorrido declarado nulo. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Évora, foi prolatado novo acórdão, em 21 de dezembro de 2010 (fls. 5001 e seguintes), negando-se, uma vez mais, provimento ao recurso.
Interposto novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi ao mesmo concedida procedência parcial, por acórdão de 8 de junho de 2011 (fls. 5228 e seguintes). Volvidos os autos, uma vez mais, à Relação de Évora, foi negado provimento ao recurso em acórdão de 13 de dezembro de 2011 (fls. 5301 e seguintes).
2. De tal aresto foi interposto, pelo recorrente, novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, no qual invocou, designadamente, nulidade por omissão de pronúncia. Por acórdão de 12 de julho de 2012 (fls. 5613 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça apenas concedeu provimento ao recurso na parte respeitante ao montante da condição da suspensão de execução da pena de prisão, o qual foi reduzido para €100.000,00, tendo, no mais, rejeitado o recurso.
Os fundamentos da decisão, na parte relevante para os presentes autos, são os seguintes:
[…]
3. É desta decisão que vem interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), em requerimento com o teor que parcialmente se transcreve:
“(…) O acórdão recorrido aplicou as disposições do art. 374.2 do Código de Processo Penal no sentido de que, “quando aplicada aos tribunais de recurso (...) não tem aplicação em toda a sua extensão, nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação, ou quando referida a acórdão do STJ funcionando como tribunal de revista.
Ou no sentido de que “se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da primeira instância, é suficiente que do respetivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respetiva, não se descortinaram razões para exercer censura sobre o decidido.”
Ou ainda no sentido de que “a fundamentação decisória da Relação é exercida sobre uma outra decisão que, por seu turno, já motivou a convicção; nesse sentido, não é uma fundamentação originária, mas uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções”.
O art. 374 do Código de Processo Penal tem por epigrafe “Dos Requisitos da Sentença e diz no seu n.º 2 que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
A interpretação da norma expressa no art.º 374.2 CPP, no sentido de que o tribunal de recurso, em matéria de facto está dispensado de julgar fazendo e fundamentando o seu próprio juízo autónomo e substitutivo relativamente à matéria de facto que lhe compete conhecer, e aderindo meramente ao juízo expresso pelo tribunal de primeira instância, sentido que lhe dá o acórdão agora em recurso, viola manifestamente a garantia de defesa e o direito ao recurso consagrado no art. 32.1, bem como o princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32.2. e a exigência de fundamentação das sentenças, constante do art. 205, todos da Constituição da República Portuguesa de 1976, como melhor se explicitará nas alegações.
O recorrente não levantou a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 374.2 CPP na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, durante a tramitação do processo, porque, como se passa a justificar, a questão só foi levantada, em termos de apreciação de constitucionalidade, com o acórdão acima referido.
Com efeito, como se pode constatar pelo exame dos autos, o ora Recorrente interpôs recurso do acórdão do Coletivo da primeira instância que o condenou pela prática de um crime de burla agravada e qualificada por apropriação ilegítima de bens do setor cooperativo na pena de três anos de prisão, suspensa pelo período de cinco anos, sob condição de, nesse período, proceder ao depósito à ordem deste processo da quantia de € 300.000.00.
Desta decisão foi pelo arguido interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora, no qual se impugnava o julgamento quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto.
Após aperfeiçoamento das conclusões da motivação do recurso, foi proferido acórdão em que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da primeira instância.
Deste acórdão foi interposto novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, cuja alegação terminava pedindo a declaração da nulidade o acórdão da Relação por violação do art. 127 (ao não motivar racionalmente e de acordo com as regras da experiência a valoração das provas produzidas na primeira instância), do art. 379.1.c) por remissão do art. 425.4 (ao não se pronunciar específica e autonomamente sobre as provas produzidas cm primeira instância e sobre as concretas razões aduzidas pelo recorrente para impugnar o julgamento de facto em primeira instância e ainda ao não se pronunciar sobre a possibilidade de o arguido proceder ao pagamento, durante o prazo de suspensão da execução da pena, da quantia a que ficou sujeita a suspensão), todos do Código de Processo Penal.
Na fundamentação deste recurso, invocou o ora Recorrente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (ac. de 14.09.2006, proc. 2669/06-5) em que nomeadamente se diz que “O efetivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto que a lei coloca sobre os ombros da Relação, obviamente sai frustrado, afetando de modo mais ou menos grosseiro o direito ao recurso, se não mesmo outros com assento na Constituição – como o direito à defesa – com a operação que se diria meramente “cosmética”, a que se propôs o tribunal ora recorrido de apenas apurar se a convicção do tribunal recorrido tem suporte razoável na prova presente...”.
O Supremo Tribunal de Justiça, com base nos argumentos deduzidos pelo Recorrente e nos mais que, no seu alto entender, achou pertinentes, acordou em anular o acórdão recorrido por falta ou insuficiência de fundamentação e omissão de pronúncia, na parte que recaiu sobre a decisão da primeira instância sobre matéria de facto.
Da fundamentação genérica do acórdão do Supremo, salientamos:
Por outro lado, o art 32.º., n.º 1, da CRP consagra, agora expressamente, o direito ao recurso como uma das garantias de defesa que deve ser assegurada pelo processo penal. Garantia que só o será se, no caso de recurso da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal ad quem fizer uma apreciação substantiva e não meramente formal dessa decisão. Não lhe cabe, repete-se, realizar novo julgamento. Mas a sindicância da decisão sobre a matéria de facto, para constituir a garantia de defesa constitucionalmente consagrada, para se traduzir em efetiva tutela dos direitos de defesa, exige, repetimos, que o tribunal ad quem aprecie de forma completa, ainda que concisa, os concretos fundamentos do recurso para depois concluir pela procedência ou improcedência da impugnação. Isto é, como exige o nº 2 do art 374º do CPP, o tribunal da relação tem de motivar a sua decisão de modo a que também ela possa permitir o seu controlo do exterior.
Invocando, de novo, o Acórdão anulatório de fls. 2765 e segs. Que, por sua vez, reitera a doutrina do acórdão, também deste Tribunal, de 20-09.2006, P.º nº 2267/06, dir-se-à que «a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal superior não pode limitar-se a juízos genéticos de, conformidade com as provas, impondo-se, também, a emissão de “juízo autónomo” a reponderação especificada dos factos, um “juízo substitutivo”. Ou seja, repetindo argumentos do acórdão de 20.04.05. Pº nº 453/05-3.ª Secção, “... se, nos termos da disposição acabada de citar [a do art 412º. n.º 3, do CPP], o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto tem de especificar as provas que impõem decisão diferente da recorrida, o tribunal da relação, em sede de fundamentação do seu acórdão, terá necessariamente de abordar especificadamente cada uma das provas e argumentos indicados, salvo naturalmente aqueles cuja consideração tiver ficado prejudicada pela resposta dada a outros.”
Ainda:
O princípio da imediação, por sua vez, também não pode constituir obstáculo à efetivação do recurso em matéria de facto, a pretexto de, na respetiva decisão, intervirem elementos não racionalmente explicáveis. «Bem ao invés, sendo esse o primeiro aspeto do próprio processo de valoração da prova, revela- aí um momento particularmente sensível e cauteloso de comunicabilidade e i posição a terceiros de escolhas e decisões do julgador – sob pena de todo o demais processo de valoração da prova resultar inexorável e totalmente viciado. Compreender a decisão, e a ela aderir, de eleição de um meio de prova como sendo mais credível do que outro, é precisamente o primeiro momento em que a livre apreciação da prova como processo objetivado e motivado se impõe».
Finalmente,
“… a exigência de fundamentação que vimos ser imposta pelo nosso sistema jurídico, repele o conceito de imediação que parece ínsito” naquele trecho das «breves considerações» e que geralmente anda associado à “conceção intimista da livre convicção», segundo o qual o juiz, em «contacto direto com as fontes pessoais de prova, perceciona discursos, e também gestos, maneiras de estar, linguagem verbal e corporal [e], por meio não se sabe de que habilitação, gozaria supostamente da capacidade de interpretar o que receberia desse modo, sendo inclusivamente capaz de ter nas atitudes e nos gestos».
O sentido do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça era pois claro, quanto à maneira como o Tribunal da Relação deveria sanar a nulidade apontada, que determinava a formulação de novo e autónomo juízo sobre a matéria de facto.
Surpreendentemente, o Tribunal da Relação não corrigiu os erros de critério de julgamento apontados pelo Supremo e proferiu novo acórdão em que, em substância, continuava a fundamentar o seu juízo na apreciação da prova feita na primeira instância.
O Recorrente voltou a interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, cujo objeto era, em síntese, pedir a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por outro em que a Relação seguisse a doutrina expressa no acórdão anulatório.
Ao recorrente nunca se poderia representar a hipótese de o Supremo Tribunal de Justiça alterar radicalmente a sua doutrina passando agora a dizer que:
“... tal aplicabilidade (do art. 374.2, por força do art. 425.4 do Cód. Proc. Penal) terá os limites decorrentes da própria natureza da intervenção do tribunal de recurso a nível da fundamentação de facto e mais especificamente da motivação ode o exame crítico das provas, que têm lugar na 1ª instância, com amplas possibilidades de cognição e investigação, atuando em registo de oralidade, imediação e concentração, o que não acontece com a Relação.”
E
“Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da primeira instância, é suficiente que do respetivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respetiva, não se descortinaram razões para exercer censura sobre o decidido.”
Ou
“... a fundamentação decisória da Relação é exercida sobre uma outra decisão que, por seu turno, já motivou a convicção: nesse sentido, não é uma fundamentação originária, mas uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções.”
Ao Recorrente não era exigível que previsse que, no mesmo processo, a orientação do Supremo Tribunal de Justiça fizesse uma viragem de 180º e que viesse sucessivamente afirmar uma coisa e o seu contrário.
O Recorrente, perante a posição doutrinal afirmada pelo Supremo no acórdão anulatório, ciente embora da inconstitucionalidade que a posição do Tribunal da Relação comportava, não a invocou no recurso para o Supremo, tendo em consideração que este mesmo Tribunal, no acórdão anulatório, tinha claramente afirmado que a posição da Relação violava a Constituição. Esperou que o Supremo, em coerência com a sua posição inicial, anulasse de novo o acórdão da Relação. Viu frustrada a sua legítima confiança na coerência das instituições.
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excecionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respetivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de maio de 1994 e Ac. n.º 116/2007, proc. 522/06. 3.ª sec.).”
4. Admitido o recurso no tribunal a quo e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, ao abrigo do artigo 75.º-A, n.º 5 da LTC, convidando-se o recorrente a indicar, em termos claros e concisos, qual a interpretação do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP) que, tendo sido aplicada enquanto ratio decidendi na decisão impugnada, pretende ver apreciada neste recurso de constitucionalidade. Na sequência desse despacho, o recorrente juntou a seguinte resposta:
“(…) Nos autos acima indicados, tendo sido notificado para proceder à indicação, em termos claros e concisos, da norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, vem dar cumprimento ao despacho pela forma seguinte:
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 12.07.2012 no processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1.3.ª Sec, rejeita o recurso interposto pelo ora recorrente, por o considerar manifestamente improcedente, uma vez que em seu entender, o Tribunal da Relação de Évora não incorreu em omissão de pronúncia, conforme alegado pelo recorrente.
Para chegar a tal conclusão, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça considerou conforme à Lei e ao Direito que o Tribunal da Relação de Évora tivesse mantido a decisão da matéria de facto da primeira instância com fundamento em que a norma do art. 374.º CPP não tem aplicação aos tribunais de recurso, porque “a fundamentação decisória da Relação é exercida sobre uma outra decisão, que, por seu turno, já motivou a decisão: neste sentido, não é uma fundamentação originária, mas uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação de decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções”.
Tal como o próprio Supremo Tribunal de Justiça tinha alertado no acórdão de 08.06.2011, proferido neste mesmo processo, o direito ao recurso, consagrado no art.32.1 da Constituição da República como uma das garantias de defesa que deve ser assegurado em processo penal, só o será se, no caso de recurso de decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal ad quem fazer uma apreciação substantiva e meramente formal dessa decisão (vd. pág. 43 do acórdão de 08.06.2001).
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça fundamentou a sua decisão no art. 374.2 do Código de Processo Penal, na interpretação de que, em fase de recurso, a fundamentação decisória da Relação é exercida sobre uma outra decisão que, por seu turno, já motivou a convicção; neste sentido, não é uma fundamentação originária mas uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções”.
Esta interpretação do art. 374.2 CPP torna a disposição legal inconstitucional, por violação do art. 32. n.ºs 1 e 2. (garantias de defesa em processo penal e direito ao recurso, e presunção de inocência), e do art. 205.1 (dever constitucional de fundamentação das sentenças), todos da Constituição da República Portuguesa.
Renova o requerimento de que o recurso seja recebido, siga os demais termos do recurso de fiscalização concreta dos arts. 69 e segs da Lei do Tribunal Constitucional e, a final, seja julgado procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da norma do art. 374.2 CPP, na interpretação com que o acórdão recorrido a aplicou nos autos. (…)”
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. Não pode ser proferida decisão sobre o mérito do recurso uma vez que não se encontram satisfeitos pressupostos necessários ao conhecimento do mesmo. Por isso, profere-se decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC uma vez que, não obstante o recurso ter sido admitido no tribunal a quo, esta decisão não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76.º, n.º 3 da LTC).
6.1. Assinale-se, em primeiro lugar, que a questão de constitucionalidade não foi suscitada no momento próprio, isto é, durante o processo, antes da decisão final do tribunal recorrido (cfr. artigo 280.º, n.º 1 alínea b) da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC). O recorrente invoca a dispensabilidade, em concreto, da verificação deste pressuposto, sustentando que não lhe seria exigível antecipar uma mudança na orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, o qual teria alterado a posição assumida anteriormente. Esta justificação, no entanto, carece de fundamento.
Desde logo, como o Tribunal Constitucional tem repetido a propósito deste pressuposto do recurso de constitucionalidade, compete ao recorrente a adoção de uma estratégia processual adequada durante o processo, de modo a acautelar a possibilidade futura de interposição de um recurso de constitucionalidade.
Depois, e no seguimento do que se acabou de referir, não é verdade que tenha ocorrido qualquer “viragem de 180º” na orientação do Supremo Tribunal de Justiça, ou que o mesmo tenha vindo “sucessivamente afirmar uma coisa e o seu contrário”, como sustenta o recorrente. Com efeito, o que sucedeu foi que, num primeiro momento, o Supremo Tribunal de Justiça anulou anterior acórdão da Relação por falta ou insuficiência de fundamentação e omissão de pronúncia, na parte referente à decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, tendo ficado prejudicada a apreciação das questões de direito suscitadas pelo recorrente, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP; e, já num segundo momento – o correspondente à decisão ora recorrida – o Supremo Tribunal de Justiça, quanto à alegada omissão de pronúncia, rejeitou o recurso por manifestamente improcedente tendo, portanto, deliberado no sentido de não se verificar esse vício apontado pelo recorrente à decisão da Relação. Ora, entre as duas decisões referidas não se verifica qualquer alteração jurisprudencial nem qualquer “viragem”.
Aliás, a tese que o Tribunal veio a subscrever na decisão ora impugnada encontrava-se já patente naqueloutra pronúncia anterior. O que então o Tribunal aferiu foi que, em concreto, não haviam sido suficientemente expressadas e fundamentadas as razões que tinham conduzido a Relação a decidir naquele sentido. Mas logo alertou também para o facto de que, em sede recurso, a decisão “não tem que obedecer rigorosamente a modelo do artº 374º, nº 2 no CPP”, não se traduzindo o “recurso da decisão da matéria de facto (…) num segundo julgamento global dessa matéria” (fls. 5270). Esta orientação veio posteriormente a ser reiterada na decisão ora recorrida, entendendo o Supremo Tribunal de Justiça, na esteira, aliás, de jurisprudência reiterada e consolidada sobre a questão, salientando que “o artigo 374.º só indiretamente é aplicável, através do art. 379.º, mas com as devidas adaptações (correspondentemente), sendo que essas adaptações têm de levar em conta que os tribunais da relação, embora tenham competência em matéria de facto não apreciam diretamente a prova produzida e não a apreciam nos mesmos termos da 1.ª instância, pelo que a fundamentação exigida para as suas decisões tem de estar em consonância com a natureza do seu objeto, que é a reapreciação de uma outra decisão, no universo de questões levantadas pelo recurso” (fls. 5642).
A alegada divergência entre as duas decisões referidas situa-se a um outro nível, relacionado com a satisfação das pretensões do recorrente. Enquanto a primeira lhe era favorável, a segunda já não o foi. Mas termina aqui a diferenciação «jurisprudencial» das duas decisões.
Deste modo, não se verifica qualquer circunstancialismo que pudesse tornar inexigível, em concreto, a dispensa da suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
Realce-se, ainda, que o facto de a interpretação normativa especificada pelo recorrente, na sequência de convite, enquanto objeto do recurso de constitucionalidade, corresponder precisamente à transcrição parcial de jurisprudência anterior do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. fls. 5641), reforça a conclusão de que aquele tinha o dever de antecipar um tal problema, pois que o mesmo diz respeito a interpretação possível da norma. Com efeito, a jurisprudência constitucional tem sublinhado que impende sobre o recorrente o ónus de antecipar, na estratégia processual adotada, os vários sentidos possíveis das normas aplicáveis (v., por todos, o Acórdão n.º 479/89, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
6.2. Por outro lado, a ratio decidendi do acórdão recorrido não reside na aplicação da interpretação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP que o recorrente especifica, e sim no entendimento de que o acórdão da Relação havia dado integral cumprimento ao anterior acórdão anulatório do Supremo Tribunal de Justiça, não se verificando qualquer omissão de pronúncia. Como se realça a fls. 5649 “pode manifestar o recorrente a sua discordância com o ponto de vista defendido pela Relação, mas uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara, e com ela não estar em concordância, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia. (O texto escrito – concorde-se ou não com ele – pela forma como o foi, com o sentido e o alcance que lhe foi dado, não consente, nem legitima, tal imputação).”
6.3. E é também quanto a esta matéria – que versa aspetos do ato judicativo em si mesmo considerado e não de qualquer norma ou dimensão normativa aplicada por aquele –, que persiste o dissídio do recorrente, o qual não se conforma com a decisão que deu por não verificada qualquer omissão de pronúncia. E aqui reside um outro impedimento ao conhecimento do recurso. Em fiscalização concreta, o objeto do recurso de constitucionalidade, não obstante o mesmo ser interposto de decisões judiciais, não versa as decisões propriamente ditas, e sim preceitos ou sentidos normativos que as mesmas decisões tenham aplicado em sentido eventualmente desconforme às regras e princípios fundamentais. O Tribunal Constitucional não aprecia nem sindica, de qualquer outro modo, as decisões dos outros tribunais, as quais não integram um objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
Pelo exposto, decido não tomar conhecimento do recurso, condenando o recorrente nas custas em 7 (sete) UC.»
2. Notificado desta Decisão, vem agora o recorrente deduzir reclamação, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), em requerimento com o seguinte teor:
«(…)
1. Parece ao ora Reclamante que a decisão sumária não situa corretamente a diferença das interpretações que do art.374.2 CPP fazem sucessivamente os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça respetivamente de 08.06.2011 e de 12.07.2012. Contrariamente ao que consta da fundamentação da decisão, parece ao Reclamante que é perfeitamente evidente a contradição entre as posições tomadas sucessivamente no processo pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Reportando-nos aos dois trechos postos em confronto na decisão sumária (páginas 5270, decisão de 08.06.2011, e páginas 5642, decisão de 12.07.2012), é evidente o erro de interpretação. No primeiro trecho diz-se que, em sede de recurso, a decisão “não tem que obedecer rigorosamente a(o) modelo do art.374. n.º 2 no CPP”, não se traduzindo o “recurso da decisão da matéria de facto (...) num segundo julgamento global dessa matéria., Esta afirmação aparece contextualizada com a justificação que se segue no texto do acórdão. Diz este logo em seguida: “Desde logo porque o recurso da decisão da matéria de facto não se traduz nunca num segundo julgamento global dessa matéria, mas, apenas, no julgamento parcelar dos concretos pontos factuais impugnados, como, aliás, se escreveu no acórdão anulatório deste Tribunal, fls 2844.” Ou seja, a não obediência ao modelo do art.274.2 CPP justifica-se e, para o que interessa à fundamentação do acórdão, circunscreve-se ao facto de o julgamento em sede de recurso não ser global mas se limitar aos concretos factos impugnados pelo recorrente.
Com efeito, logo nos parágrafos seguintes o acórdão de 08.06.2011 esclarece o âmbito e a função da reapreciação da matéria de facto nas instâncias de recurso, em particular da Relação:
“Mas tem de ser fundamentado, como vimos - o que envolve a expressão das razões que, no caso concreto, levaram o tribunal a decidir num determinado sentido. O mesmo é dizer que, nessa fundamentação, o tribunal da relação deverá justificar especificadamente os motivos por que, no contexto da prova produzida, que lhe compete conhecer, entende que os concretos argumentos do recorrente procedem ou, ao invés, por que se impõe a decisão recorrida, não bastando, em qualquer dos casos, a simples adesão às razões aduzidas na motivação do recurso ou na própria fundamentação da decisão recorrida. (sublinhado nosso)
E, em seguida, manifestando perfeita consciência da inconstitucionalidade da apreciação da matéria de facto controvertida mediante simples adesão à posição da primeira instância, acrescenta:
Por outro lado, o art.32 nº 1, da CRP consagra, agora expressamente, o direito ao recurso como uma das garantias de defesa que deve ser assegurada pelo processo penal. Garantia que só o será se, no caso de recurso da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal ad quem fizer uma apreciação substantiva e não meramente formal dessa decisão. Não lhe cabe, repete-se, realizar novo julgamento. Mas a sindicância da decisão sobre a matéria de facto, para constituir a garantia de defesa constitucionalmente consagrada, para se traduzir em efetiva tutela dos direitos de defesa, exige, repetimos, que o tribunal ad quem aprecie de forma completa, ainda que concisa, os concretos fundamentos do recurso para depois concluir pela procedência ou improcedência da impugnação, isto é, como exige o nº 2 do art.374º do CPP. O tribunal da relação tem de motivar a sua decisão de modo a que também ela possa permitir o seu controlo do exterior. (sublinhado no original)
Esta a fundamentação do acórdão de 08.06.2011 para a anulação do acórdão da Relação: insuficiência para a pronúncia sobre a matéria de facto impugnada da simples adesão às motivações do recurso ou à fundamentação da decisão impugnada e afirmação da inconstitucionalidade do art.374.2 CPP, se interpretado no sentido de que ele dispensa o tribunal da relação de motivar a sua apreciação da matéria de facto impugnada através de um juízo fundamentado próprio e substitutivo do levado a cabo pelo tribunal da primeira instância, de modo a que a motivação da sua decisão possa permitir o seu controlo do exterior.
No acórdão de 12.07.2012, o Supremo Tribunal de Justiça, sobre a mesma disposição legal (art.374.2 CPP) vem dizer que
“... tal aplicabilidade (do art.374.2, por força do art.425.4 do Cód. Proc. Penal) terá os limites decorrentes da própria natureza da intervenção do tribunal de recurso a nível da fundamentação de facto e mais especificamente da motivação onde o exame crítico das provas, que têm lugar na 1.ª instância, com amplas possibilidades de cognição e investigação, atuando em registo de oralidade, imediação e concentração, o que não acontece com a Relação.”
(…) “… Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da primeira instância, é suficiente que do respetivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respetiva, não se descortinaram razões para exercer censura sobre o decidido.”
(...) “... a fundamentação decisória da Relação é exercida sobre uma outra decisão que, por seu turno, já motivou a convicção; nesse sentido, não é uma fundamentação originária, mas uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções.”
Foi em aplicação do art. 374.2 CPP na interpretação de que ao tribunal da relação não compete conhecer plenamente do juízo da matéria de facto impugnada no recurso de apelação, porque “não tem possibilidades de cognição e investigação, atuando em registo de oralidade, imediação e concentração” e que não sendo a fundamentação decisória da Relação uma fundamentação originária, mas uma fundamentação derivada, pelo que lhe é lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções, que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 12.07.2012, não exerceu censura sobre o acórdão recorrido da Relação de Évora no que toca à fixação da matéria de facto e rejeitou o recurso.
No primeiro acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça considerava violadora do art. 32.1 CRP a aplicação do art. 374.2 que não fizesse uma aplicação substantiva e não meramente formal da decisão recorrida quanto à matéria de facto, o que envolvia a justificação especificada dos motivos por que, no contexto da prova produzida a Relação entende que os concretos argumentos do recorrente procedem ou, ao invés, por que se impõe a decisão recorrida, sem que baste, em qualquer dos casos, a simples adesão às razões aduzidas na motivação do recurso ou na própria fundamentação da decisão recorrida e sem que o princípio da imediação possa constituir obstáculo à efetivação do recurso em matéria de facto,
No segundo acórdão, de 12.07.2012, o mesmo Supremo Tribunal de Justiça, no mesmo processo diz que, em nome do princípio da imediação que motivou uma fundamentação originária pelo tribunal de primeira instância, a motivação da Relação é meramente derivada, pelo que lhe é lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para fundamentar as suas próprias soluções. Trata-se de uma evidente petição de princípio, que tem por resultado a negação do direito ao recurso sobre a matéria de facto, violando as normas constitucionais apontadas no acórdão de 08.06.2011.
Há uma clara oposição lógica direta ente as duas posições do Supremo, tomadas dentro deste mesmo processo. Como demonstramos, o Supremo Tribunal de Justiça, neste processo, afirma sucessivamente uma coisa e o seu contrário.
De onde a questão de se, no caso concreto, o Recorrente tinha a obrigação ou o simples ónus de prever a situação, adotando uma estratégia processual de modo a acautelar a possibilidade futura de interposição de um recurso de constitucionalidade.
O ónus de prever suscita a questão da dimensão ou razoabilidade da previsão. Não sendo próprio do género humano a previsão do futuro, há que delinear critérios que tornem razoável a exigência da previsão da aplicação de normas inconstitucionais ou em cuja interpretação possa existir uma dimensão violadora da Constituição. As normas potencialmente aplicáveis na solução de um litígio são em número indefinido, pelo que, para acautelar fundamentadamente a discussão futura da constitucionalidade de cada uma delas, teriam os interessados que formular peças de tal extensão e complexidade que as tornariam impossíveis de gerir. Não sendo exigível o acautelamento da discussão da constitucionalidade da lista exaustiva das normas potencialmente suscetíveis de fundamentar a decisão a partir da introdução do processo em juízo, há que limitar o acautelamento dessa discussão às normas que, em cada momento processual, possam vir a ser a ratio decidendi do pronunciamentos jurisdicionais que se perfilem, segundo o desenrolar passado e previsão do que futuramente será discutido no processo. Porém, as questões de inconstitucionalidade devem ser levantadas no momento e na medida em que forem oportunas e se justifiquem, sob pena de se estarem a discutir questões impertinentes no processo, cuja justificação radica não no acautelamento das questões de constitucionalidade, mas no “armadilhamento” do processo para o poder levar até ao Tribunal Constitucional, num caminho que leva da funcionalidade dos meios processuais à sua perversão.
Por outro lado, suscitar a questão da inconstitucionalidade não implica nem a pretensão formal de que o Tribunal a quem se dirige se pronuncie sobre ela nem o dever de este expressamente se pronunciar sobre a constitucionalidade. Basta que na decisão se inclua uma posição sobre essa matéria, ainda que implícita.
Nos autos, o Recorrente, veio, na motivação do recurso do acórdão da Relação de Évora de 21.12.2010, levantar a questão da inconstitucionalidade da falta de fundamentação racionalmente controlável da matéria de facto das sentenças penais, nos seguintes termos:
“Conforme decidido pelo Tribunal Constitucional (Ac. 680/98), “a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve ser suscetível de revelar os motivos que levaram a dar certos factos como provados, e não outros”. O que, em matéria de valoração da matéria de facto, equivale a demonstrar que a decisão tomada é a única correta e não outra. Repetimos, máxima tão válida no julgamento da matéria de facto em primeira instância como em segunda instância.”
Não se trata de uma suscitação formal da questão da constitucionalidade do art.374.2 CPP na interpretação que serviu de fundamento à decisão mas é a chamada de atenção para o facto de que o Tribunal Constitucional tinha sido chamado a pronunciar-se, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, sobre o âmbito e suficiência da fundamentação das sentenças penais, sem distinção instâncias.
Na sequência da interposição e motivação desse recurso, veio o Supremo Tribunal de Justiça definir sem margem para dúvidas que a fundamentação da pronúncia sobre a matéria de facto, em fase de recurso na Relação, devia constituir um juízo autónomo, específico e substitutivo, abordando cada uma das provas e argumentos indicados, salvo aqueles cuja consideração tiver ficado prejudicada pela resposta dada a outros. E que essa apreciação substantiva e não meramente formal da decisão sobre a matéria de facto era condição de respeito pela garantia constitucional do direito ao recurso consagrado no art.32.1 da CRP.
Esta posição clara tomada pelo Supremo no acórdão de 08.06.2001 criou a expectativa, para não dizer a certeza de que essa era a posição que a Relação de Évora devia seguir na expurgação da nulidade que levou à procedência do recurso e que, a não ser seguida a doutrina que motivara a procedência o Supremo anularia, com os mesmos fundamentos outro acórdão que viesse a ser proferido.
Justificar-se-ia que o Recorrente levantasse de novo o problema da dimensão inconstitucional da norma do art.374.2 CPP, se interpretada no sentido em que o fizera a Relação de Évora?
Em nome da racionalidade do raciocínio jurídico diremos que não, o Supremo Tribunal de Justiça tinha definido no acórdão de 08.06.2011 as condições em que a norma do art.374.2 respeitava a Constituição e só havia que segui-las.
Após a prolação do acórdão de 08.06.2011, o processo baixou à Relação para nova decisão, sem que o ora Reclamante tivesse ocasião de se pronunciar. E quando, não tendo a Relação sanado os vícios que determinaram a anulação do acórdão anterior.
O Arguido interpôs novo recurso de revista, era impertinente suscitar a questão da inconstitucionalidade, uma vez que ela tinha já sido abordada pelo Tribunal ad quem em termos que, para o recorrente eram os termos corretos.
Repetindo-nos, não era razoável admitir que o Supremo Tribunal de Justiça, do mesmo processo invertesse, como o fez, o critério de correção do juízo sobre a matéria de facto feito pelo Tribunal da Relação.
A interpretação do art.374.2 CPP violadora das normas constitucionais, em particular do art 32.1 CRP, foi feita pela Relação de Évora, mas, tendo em conta a posição definida pelo Supremo Tribunal de Justiça e em coerência com ela era expectável que este Alto Tribunal anulasse de novo o acórdão da Relação.
Não o fez e alterou os critérios definidos no acórdão anterior quanto à apreciação e fundamentação da matéria de facto pela Relação, o que provocou que o ora Reclamante só em face do acórdão do Supremo se visse confrontado com a questão da inconstitucionalidade. Trata-se claramente de uma situação em que o Supremo Tribunal de Justiça aplica inesperadamente uma norma num sentido que ele próprio havia considerado inconstitucional.
Justifica-se por isso que o ora Reclamante seja dispensado do cumprimento do requisito da invocação da inconstitucionalidade durante o processo, uma vez que se trata manifestamente de uma situação em que não era razoável prever que a questão de constitucionalidade se colocasse em nenhum outro momento do processo, na esteira dos arestos indicados pelo ora Reclamante no seu requerimento de interposição do recurso para esse Alto Tribunal.
2. Também não é correta a fundamentação da decisão sumária ao afirmar que a ratio decidendi do acórdão recorrido não reside na aplicação da interpretação do artigo 374. n.º 2 do CPP especificada pelo ora Reclamante mas no entendimento de que o acórdão da Relação havia dado integral cumprimento ao anterior acórdão anulatório do Supremo Tribunal de Justiça, não se verificando qualquer omissão de pronúncia.
Como é patente quer do aqui exposto, quer da leitura dos acórdãos em causa, em particular do acórdão do Supremo de 12.07.2012, o juízo feito pelo STJ de que o acórdão da Relação deu cumprimento integral cumprimento ao anterior acórdão anulatório só foi possível porque o critério interpretativo do âmbito e da natureza da fundamentação do juízo sobre a matéria de facto feito pelo tribunal de recurso, se modificou radicalmente do primeiro para o segundo acórdão do Supremo.
Só porque, no acórdão de julho de 2012, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou o art.374.2 CPP como permitindo a fundamentação da matéria de facto por simples adesão ao decidido pela primeira instância, em razão da imediação desta última com os meios de prova produzidos em audiência é que foi possível o entendimento de que a Relação tinha dado integral cumprimento ao anterior acórdão anulatório do Supremo Tribunal de Justiça.
Trata-se pois da aplicação de norma que constituiu a ratio decidendi. O facto de se tratar de uma norma de caráter processual não lhe retira esse caráter, sabendo-se, para mais que a maioria das normas que conduzem à violação das garantias constitucionais da tutela jurisdicional efetiva, das garantias do arguido em processo criminal e, em geral dos direitos liberdades e garantias pessoais são de natureza processual.
3. Esta matéria não respeita ao ato judicativo em si mesmo mas, pelo contrário à aplicação, em violação das normas constitucionais que é feita no acórdão sob recurso dos critérios de apreciação e valoração das provas nas várias instâncias criminais.
O que está em causa neste recurso de constitucionalidade não é a concreta decisão do caso jurídico-criminal e que o ora Reclamante é Arguido, mas a fiscalização de constitucionalidade de uma regra jurídica abstratamente considerada ou seja da conformidade ou desconformidade com a Constituição da interpretação do art.374.2 que permite que em recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal de recurso baseie a sua decisão no juízo sobre essa matéria feito pelo próprio tribunal cuja decisão é objeto de recurso. Esta questão, colocada a propósito da decisão ora sob recurso, tem inegável caráter genérico e afeta o âmbito e o fundamento da norma, independentemente da decisão concretamente considerada.
Tenha-se em conta que a destrinça entre vícios imputáveis a normas jurídicas e vícios reportáveis às próprias decisões não se compadece, pelo menos à partida e num juízo liminar, com distinções especiosas ou excessivamente formalistas, uma vez que neste tipo de situações sempre haverá zonas de sobreposição e de penumbra entre o que constitui estatuição normativa oferecida ao intérprete (e portanto suscetível de apreciação nesta sede de controlo da constitucionalidade), e que comporta uma determinada dinâmica interpretativa aplicativa, em si mesma também fiscalizável, e o que já representa valoração própria do órgão julgador, exclusivamente imputável à latitude da própria conformação interna da decisão judicial, e que, inexistindo uma ação judicial de defesa, entre nós se encontra excluída de um específico controlo de constitucionalidade (Ac. Trib. Const. n.º 233/94, in DR, II, n,º 198, de 27.0.1994, pág. 8838).
Como é evidente, ao ora Reclamante interessa a fiscalização de constitucionalidade requerida e interessa a decisão no sentido positivo. Mas tal não pode por si ser fundamento de rejeição do recurso sob o argumento de que o que se pretende é a apreciação da decisão qual talle e não da constitucionalidade da norma.
Em conclusão:
A. Justifica-se por isso que o ora Reclamante seja dispensado do cumprimento do requisito da invocação da inconstitucionalidade durante o processo, uma vez que se trata manifestamente de uma situação em que não era razoável prever que a questão de constitucionalidade se colocasse em nenhum outro momento do processo;
B. Quer da leitura dos acórdãos em causa, em particular do acórdão do Supremo de 12.07.2012, o juízo feito pelo STJ de que o acórdão da Relação deu cumprimento integral cumprimento ao anterior acórdão anulatório só foi possível porque o critério interpretativo do âmbito e da natureza da fundamentação do juízo sobre a matéria de facto feito pelo tribunal recurso, se modificou radicalmente do primeiro para o segundo acórdão do Supremo, e só porque, no acórdão de julho de 2012, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou o art.374.2 CPP como permitindo a fundamentação da matéria de facto por simples adesão ao decidido pela primeira instância, em razão da imediação desta última com os meios de prova produzidos em audiência é que foi possível o entendimento de que a Relação tinha dado integral cumprimento ao anterior acórdão anulatório do Supremo Tribunal de Justiça.
C. Pelo que a norma cuja declaração de inconstitucionalidade se pede constitui efetivamente o fundamento da decisão.
D. O que está em causa neste recurso de constitucionalidade não é a concreta decisão do caso jurídico-criminal em que o ora Reclamante é Arguido, mas a fiscalização de constitucionalidade de uma regra jurídica abstratamente considerada ou seja da conformidade ou desconformidade com a Constituição da interpretação do art.374.2 que permite que em recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal de recurso baseie a sua decisão no juízo sobre essa matéria feito pelo próprio tribunal cuja decisão é objeto de recurso, esta questão, colocada a propósito da decisão ora sob recurso, tem inegável caráter genérico e afeta o âmbito e o fundamento da norma, independentemente da decisão concretamente considerada.»
O Ministério Público apresentou resposta, no sentido do indeferimento da reclamação (fls. 5126 a 5130).
3. Para um correto enquadramento da presente reclamação, e, bem assim, das razões que determinaram a Decisão Sumária ora reclamada, é conveniente ter presente os fundamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2012 – o acórdão objeto do recurso de constitucionalidade – na parte relevante, ou seja, na parte em que julga improcedente a arguida nulidade, por omissão de pronúncia (cfr. as conclusões das alíneas A. F., H. a K., P. e Q. da motivação do recurso então apresentada pelo ora reclamante, fls. 5577), do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13 de dezembro de 2011 (fls. 5639 a 5650):
“ Ao longo das dezassete conclusões que vão da A. a Q. e, como mais claramente se vê da parte inicial da abrangente conclusão BB., o recorrente manifesta a sua discordância relativamente à forma como foi fixada a matéria de facto, para tanto invocando violação do artigo 127.º do CPP, contradição insanável entre a decisão e a fundamentação e omissão de pronúncia determinativa de nulidade, nos termos do artigo 379º n.º 1, alínea c), por força do artigo 425.º, n.º 4, do CPP. Pretendendo, no fundo, ao longo de todas estas conclusões, a reapreciação de matéria de facto.
A invocada nulidade por omissão de pronúncia é abordada nas conclusões das alíneas A. a F., H. a K., P. e Q., maxime, alíneas K. e P., defendendo o recorrente a nulidade na conclusão BB. nestes termos: “ao não se pronunciar específica e autonomamente sobre as provas produzidas em primeira instância e sobre as concretas razões aduzidas pelo recorrente para impugnar o julgamento de facto em primeira instância”.
O recorrente começa por afirmar na conclusão A. que o acórdão sob recurso não sanou as nulidades apontadas pelo STJ – acórdão de 08-06-2011 no acórdão da Relação de Évora de 21-12-2010.
Vejamos se assim foi.
A intervenção do Coletivo que produziu o acórdão ora recorrido tinha por missão suprir as nulidades apontadas ao anterior acórdão da mesma Relação de 21-12-2010, pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 08-06-2011, tratando-se de questões que se cingiam a matéria de facto.
Na sequência do primeiro acórdão deste STJ, de 17-10-2007, foi o recorrente convidado a apresentar novas conclusões, o que fez em 9-06-2008, juntando as oitenta conclusões de fls. 4870 a 4883, do 17.º volume, que assim passaram a substituir as primitivas trinta e três, de A. a GG., de fls. 4468 a 4473. do 14.º volume, aí cumprindo o disposto nos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, indicando os suportes técnicos onde se encontravam as passagens dos depoimentos invocados, de B., autor do relatório de fls. 3956 a 3961 [conclusões f), k), x), z), aa), ii), ss), jjj)], de C. [conclusões hh), jj), ll). oo), tt), yy), aaa), bbb), ccc), e de D. [conclusão y)], bem como declarações do coarguido E. [conclusões q), v), w), kkk), lll)].
As matérias contidas nestas conclusões passaram a ser o objeto de cognição do acórdão da Relação de Évora de 21-12-2010, encontrando-se insertas no texto deste, de fls. 5004 a 5015.
O arguido interpôs recurso deste acórdão, apresentando motivação com outras conclusões, agora em número de vinte, de fls. 5127 a 5130 e, em original. de fls. 5165 a 5168, do 18.º volume, que passaram naturalmente a demarcar o território de intervenção do acórdão do STJ de 8-06-2011, e onde não há nas conclusões então enunciadas uma única referência às anteriores conclusões.
Nesse recurso a questão central em sede de matéria de facto, como se enunciava no início da motivação a fls. 5136, era a da nulidade do acórdão então recorrido por falta de apreciação especificada das questões de facto impugnadas pelo recorrente na motivação e nas conclusões do recurso da decisão da primeira instância.
Se é certo que por força do n.º 4 do artigo 425.º do CPP é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379.º, ou seja, a arguição ou o conhecimento oficioso de nulidade (no caso por o tribunal ter deixado de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar - alínea c) do n.º 1 daquele artigo 379.º), não menos verdade será que tal aplicabilidade terá os limites decorrentes da própria natureza da intervenção do tribunal de recurso a nível da fundamentação de facto e mais especificamente da motivação e do exame crítico das provas, que têm lugar na 1ª instância, com amplas possibilidades de cognição e investigação, atuando em registo de oralidade, imediação e concentração, o que não acontece na Relação.
Como se pode ler no acórdão deste Supremo Tribunal de 13-11-2002. SASTJ. n.º 65, pág. 60, “ap1icada aos tribunais de recurso, a norma do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não tem aplicação em toda a sua extensão, nomeadamente, não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação”, ou quando referida a acórdão do STJ funcionando como tribunal de revista.
Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da primeira instância, é suficiente que do respetivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respetiva, não se descortinaram razões para exercer censura sobre o decidido”.
No mesmo sentido, cfr. os acórdãos de 13-02-2008, processo n.º 4729/07-3.ª; de 07-05-2008 processos n.ºs 294/08-3.ª e 1132/08-3.ª; de 25-06-2008. processo n.º 2046/07-3.ª, onde se aduz: “a fundamentação decisória da Relação é exercida sobre uma outra decisão que, por seu turno, já motivou a convicção: nesse sentido, não é uma fundamentação originária, mas uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para justificar as suas próprias soluções; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08-3.ª; de 08-10-2008, processo n.º 3068/083.a; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 484/09-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 5/05.5PBOLH-3.ª; de 23-09-2010, processo n.º 65/09.9JACBR.C1.S1-3.ª; de 19-05-2010, processo n.º 459/05.OGAFLG.G1.S1-3.ª.
Como diz o acórdão de 06-01-2011 proferido no processo n.º 355/09.1 JAAVR.C1.S1-5.ª, em matéria de fundamentação da decisão, a posição hierárquica do tribunal recorrido que é um tribunal da Relação (um tribunal de recurso, que tendo embora competência para conhecer de facto e de direito, exerce um poder de controle sobre a decisão recorrida numa ótica de reexame do decidido, com vista a detetar erros in judicando ou in procedendo, mas não a proceder a um segundo julgamento), tem reflexos que se traduzem em o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, no que respeita ao exame crítico dos meios de prova, não poder ser diretamente transposto para a fase de recursos, o que é evidente, por uma razão elementar: o tribunal de recurso não procede a um julgamento com subordinação aos princípios da imediação e da oralidade, não estabelecendo contacto direto com as provas produzidas, nomeadamente, com as provas pessoais, nem com os participantes do processo, salvo casos pontuais de renovação da prova a fundamentação exigida quanto ao exame crítico da prova não pode, pois, ser do mesmo tipo da que se exige para a l.ª instância.
O artigo 374.º só indiretamente é aplicável, através do art. 379.º, mas com as devidas adaptações (correspondentemente), sendo que essas adaptações têm de levar em conta que os tribunais da relação, embora tenham competência em matéria de facto não apreciam diretamente a prova produzida e não a apreciam nos mesmos termos da 1.ª instância, pelo que a fundamentação exigida para as suas decisões tem de estar em consonância com a natureza do seu objeto, que é a reapreciação de uma outra decisão, no universo de questões levantadas pelo recurso.
Fundamentalmente, ao tribunal de recurso cabe verificar se a decisão recorrida fundamentou a sua opção em matéria de decisão de forma consistente, lógica e racional e de acordo com as regras da experiência comum, isto é, se tal opção decisória se mostra convincente do ponto de vista da lógica interna da explicitação da sua motivação, referindo criticamente os meios de prova decisivos para a formação da respetiva convicção, e se mostra consentânea com as máximas, os princípios e os ensinamentos da vida, segundo a experiência normal das coisas.
Como se extrai do acórdão de 13-01-2011, processo n.º 316/07.5GBSTS.G2.S1-5.ª, citando o acórdão de l0-12-2009, proferido no processo n.º 22/07.OGACLJB.S1-3.ª, a omissão de pronúncia, no âmbito da impugnação de decisão proferida sobre matéria de facto, só ocorre quando o tribunal da Relação, em lugar de responder com precisão à interpelação feita pelo recorrente sobre factos considerados provados, em relação à prova produzida, se remete a uma enunciação genérica, sem qualquer correspondência com as questões concretas que lhe são colocadas, não tomando posição sobre os diversos pontos da materialidade considerada provada que são impugnados nem analisando a prova que, quanto a eles, foi produzida.
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O recorrente parece entender, como expressamente decorre da conclusão K., que mesmo os argumentos devem ser todos examinados, sob pena de nulidade, por omissão de pronúncia.
Conforme estabelece o artigo 379.º. n.º 1, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Penal, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo tal disposição correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do n.º 4 do artigo 425.º do mesmo diploma.
A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.
Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (artigo 660.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Como uniformemente tem sido entendido neste Supremo Tribunal, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respetivas posições, na defesa das teses em presença.
A pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP – a nulidade da sentença – deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos: é referida ao concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas.
[…]
Como de forma clara dizia o acórdão do STJ de 11-11-1987, processo n.º 38920, BMJ n.º 371, pág. 374, há que distinguir: uma coisa é uma «questão» sobre a qual o Tribunal tem de se pronunciar, nos termos do artigo 660.º, n.º 2, do CPC, outra é uma «razão», ou um «argumento» para se decidir de outro modo o problema.
A nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC consiste apenas na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o não conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelas partes.
A doutrina e jurisprudência distinguem entre questões e razões ou argumentos; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade: o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.
Na doutrina podem ver-se, a propósito, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, n.º 3, pág. 247; José Alberto dos Reis, CPC Anotado, volume 5.º, págs. 137 e 143; Abílio Neto, CPC Anotado, 5.ª edição, págs. 501 e ss.
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Como se referiu, as exigências de fundamentação serão necessariamente diferentes consoante se esteja perante apreciação das provas de quem beneficiou da oralidade, imediação e concentração, ou num plano diverso, de quem a juzante, cabe a tarefa de reapreciar o material produzido, sem tal benefício, num registo completamente diverso, em função de transcrição de depoimentos (possível à época do julgamento, mas que não foi efetuada no caso, conforme se colhe da informação constante de fls. 4988 e 4991) ou de audição de cassetes, na lonjura do tempo e no isolamento de espaço, circunstâncias a conferir um incontornável modo de perceção e apreensão de uma matéria que é trazida a cognição fora do preciso contexto da sua produção, em que se passa do momento, vivido em direto e ao vivo, a uma reprodução, a sonoro é certo, mas sem a direta vivência da audiência, sem enquadramento de cenário, de vida, de interação, estando-se longe de um segundo julgamento, procedendo-se a avaliação de prova, sem a proximidade e vantagens conferidas pela imediação, oralidade e concentração.
Ora, tendo em vista estas considerações, passar-se-á a analisar o texto do acórdão recorrido em ordem a indagar da existência de omissão de pronúncia sobre alguma das questões colocadas no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de junho de 2011, pois a incumbência do acórdão de Évora era suprir a falta ou insuficiência de fundamentação e omissão de pronúncia ali apontadas, tendo de mover-se na reapreciação da matéria de facto nos moldes traçados pela vinculação temática ali determinada.
Passar-se-ão em revista as abordagens às concretas deficiências apontadas à matéria de facto no acórdão anulatório nos pontos 3.1.1.6.1, 3.1.1.6.2, 3.1.1.6.3, 3.1.1.6.4 e 3.1.1.6.6.
Acerca da prova da existência do “plano” a que alude o §1.º do Capítulo III dos factos provados e da comparticipação do arguido no mesmo.
Este ponto foi posto em crise no acórdão anulatório do STJ de 08-06-2011, no ponto 3.1.1.6.1, de fls. 5274 a 5281.
O acórdão recorrido versa a concreta questão, a fls. 5429, e de fls. 5431 a 5440, e de seguida aspetos da sua concretização, os factos indiciários.
Quanto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto aborda a questão do posicionamento do recorrente em relação aos membros da Direção da F., da sua proeminência no quadro da direção da sociedade e da sua capacidade ou não de determinar o sentido das deliberações desse órgão social, com base na análise dos depoimentos de B. e C. complementados em alguns aspetos pelos depoimentos de H. e de I. e o documento de fls. 3401 a 3421, sendo certo que o exame crítico efetuado pela Relação pode conduzir ao mesmo resultado da primeira instância.
O acórdão recorrido aborda igualmente a questão de o recorrente ter tido conhecimento ou não de que os contratos celebrados em nome dos novos acionistas da G. não haviam sido genuinamente outorgados pelos próprios e que tinham sido forjadas as assinaturas a eles atribuídas, invocando para tanto o depoimento de C. no sentido de os documentos recebidos pela F. para formalização dos contratos terem inscritas assinaturas com sinais evidentes de terem sido decalcadas, o que foi do conhecimento do recorrente.
O acórdão ora em reapreciação aborda a questão do impugnado propósito de angariação de benefício económico ilegítimo (colocada no ponto 3.1.1.6.4, a fls. 5282/3 do acórdão anulatório), o que faz da forma que consta de fls. 5441 a 5444, com alteração da matéria de facto neste ponto particular, sendo igualmente abordada a questão da intensa pressão a que estava sujeita a F., conforme se evidencia de fls. 5444 a 5446, e ainda a questão da alienação das ações da G. de que o recorrente era titular, de fls. 5446 a 5449, com alteração de matéria de facto neste segmento, abordando ainda a questão de o recorrente ter tido ou não contactos com os ditos «novos acionistas» - fls. 5449 a 5450 -, bem como a questão do pedido de empréstimo do coarguido E. de € 25.000,00 e subsequente concessão de fundo de maneio de € 24,500,00 (cfr. fls. 5450/2), considerando integrar o caso o mesmo plano.
No que respeita à questão da “comprovação do dolo”, versada no acórdão anulatório de 8-06-2011, no ponto 3.1.1.6.2, a fls. 5281, foi igualmente tratada no acórdão recorrido, a fls. 5452/3/4, explicando com detalhe as razões porque a factualidade apurada depois da valoração probatória a que procedeu, se apresenta caracterizada em termos de preencher o dolo inerente ao tipo criminal de burla.
No que toca à questão da “motivação deficiente ou mesmo falta de motivação” sobre o facto de o recorrente “viver ou não viver em casa própria”, que o acórdão anulatório de 8-06-2001 tratou no ponto 3.1.1.6.3. a fls. 5281/2, o acórdão ora recorrido abordou o tema com algum desenvolvimento, a fls. 5454/6, como se verá infra, a propósito da alegada “contradição insanável”, sendo este manifestamente um caso em que de todo não se pode falar de omissão de pronúncia, pois não há tal falta quando a emissão de pronúncia não conduz ao resultado pretendido. A questão foi abordada, não se acolhendo as razões ou argumentos avançados pelo recorrente.
Em suma, o acórdão recorrido procedeu com cuidado ao suprimento dos apontados vícios de falta ou insuficiência de fundamentação e de omissão de pronúncia detetados pelo acórdão anulatório de 8-06-2011, no segmento de fundamentação de facto e de motivação de decisão de facto levada a cabo no acórdão do TRE de 21-12-2010, na parte em que este conheceu do recurso interposto da decisão do Coletivo de Olhão em sede de fixação de matéria de facto.
O acórdão recorrido procedeu ao reexame, foi efetivamente interveniente, tendo debatido os pontos em questão e inclusive determinou a alteração da matéria de facto julgada provada e não provada pelo acórdão da primeira instância, sendo as alterações as constantes de fls. 144 e 148 do acórdão, fazendo no processo, respetivamente, fls. 5444 e 5448.
O acórdão recorrido procedeu a modificação a propósito do benefício ilegítimo que o recorrente teria obtido com a sua atuação, alterando a matéria de facto respetiva, constante do capítulo VI, a fls. 5444 (fls. 144 do acórdão) nos termos seguintes:
“O segundo parágrafo da matéria assente passará a ter a seguinte redação:
«Fizeram-no com o intuito de obter um enriquecimento ilegítimo para a «G.l» e para o arguido E., não ignorando ainda que causavam, com tal conduta, um prejuízo patrimonial à mesma ofendida, a qual ficou desde logo desembolsada dos montantes mutuados»;
- A matéria de facto não provada passará a comportar um parágrafo adicional, com a seguinte redação:
«O arguido A. e o administrador J. agiram com o propósito de obter um benefício económico para si próprios»”.
A fls. 148 após se pronunciar sobre a questão da alienação das ações da G. de que era titular o recorrente concluiu o acórdão recorrido poder apenas dar como provado que o ora recorrente alienou as suas ações da G. em data não apurada, e reparando a nulidade de omissão de pronúncia do acórdão de 21-12-2010, detetada no acórdão anulatório, determinou o aditamento à matéria de facto provada de mais um parágrafo com a seguinte redação:
«Em data não apurada, o arguido A. vendeu as ações de que era titular no capital da «G.»
No caso presente é patente que na fundamentação da matéria de facto constante do acórdão recorrido, que acolheu a proveniente da decisão da 1.ª instância, com ligeiras alterações, foram indicadas as provas produzidas e descrito o seu exame crítico, por forma a explicar o porquê de serem ou não atendidas, permitindo compreender o percurso lógico-racional seguido pelo tribunal, «de modo a poder afirmar-se que a condenação procede de uma apreciação correta das provas, apresentando-se como uma peça coerente, fundada, convincente e à margem do arbítrio, não enfermando de contradições ou lacunas de pensamento, não violadora das regras da experiência e do bom senso, capaz de se impor quer aos sujeitos processuais quer à comunidade mais vasta dos cidadãos, seus destinatários.» – cfr. o acórdão do STJ de 28-02-2007, processo n.º 3646/06 – 3.ª.
Contrariamente ao que parece pretender o recorrente, v. g., conclusão da alínea K., não se impunha ao tribunal, no cumprimento do dever de fundamentação, que se pronunciasse sobre todo e qualquer argumento ou dúvida que se tenha colocado ao recorrente, ou que justificasse discriminadamente, facto a facto, as razões da sua convicção.
Sobre todos e cada um dos aspetos focados no acórdão anulatório recaiu a atenção do acórdão recorrido, afrontando, analisando, como se referiu, de forma minuciosa, as questões propostas, emitindo a sua opinião, concluindo que a decisão recorrida no essencial não merecia censura. Em suma, tomou posição de forma expressa, com a qual obviamente o recorrente pode não concordar.
Como é evidente, pode manifestar o recorrente a sua discordância com o ponto de vista defendido pela Relação, mas uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara, e com ela não estar em concordância, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia. (O texto escrito – concorde-se ou não com ele – pela forma como o foi, com o sentido e o alcance que lhe foi dado, não consente, nem legitima, tal imputação).
Não passa a haver omissão de pronúncia só porque o recorrente discorda da posição tomada, assumida, expressa, pelo Tribunal da Relação no sentido da confirmação quase integral do decidido pela primeira instância.
Conclui-se não se verificar qualquer omissão de pronúncia, desatendendo-se, pois, a arguição de nulidade por omissão de pronúncia, condensada nas conclusões K. e P., sendo o recurso de rejeitar por manifestamente improcedente neste segmento de tentativa de reapreciação de matéria fáctica.”
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
4. Na Decisão Sumária sob reclamação foi determinado o não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade com fundamento na falta de verificação de diversos requisitos essenciais. O recorrente, ora reclamante, não se conformando com a mesma, vem pugnar pela não procedência de todos aqueles fundamentos de não conhecimento. Contudo, basta a procedência de qualquer um deles para a reclamação ter de ser indeferida.
5. Quanto à não suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, o reclamante, considerando que a Decisão Sumária interpreta erroneamente os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2011 e de 12 de julho de 2012, vem insistir na alegação de que o segundo dos mencionados acórdãos se traduziu na aplicação de uma dimensão interpretativa do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP) totalmente inesperada, correspondente a uma inversão jurisprudencial, razão esta que dispensaria o mesmo reclamante do ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade. Todavia, a alegação em causa revela-se totalmente desprovida de fundamento.
Desde logo, o modo de equacionar o problema é metodicamente inadequado. Com efeito, a mera contradição entre duas decisões concretas é, por si só, irrelevante, para efeitos da suscitação da questão de constitucionalidade normativa. E, no caso vertente, o essencial das alegações do recorrente respeita à contradição entre os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2011 e de 12 de julho de 2012. Sucede que estes acórdãos não se contradizem ao nível das normas que convocam para a sua decisão; chegam, isso sim, a conclusões diferentes quanto às concretas questões de direito decidendas – a nulidade dos acórdãos da Relação por alegada insuficiência de fundamentação quanto à matéria de facto -, as quais, pelo seu lado, também não são iguais.
Em segundo lugar, o ónus de demonstrar uma alegada «inversão jurisprudencial» incumbe a quem a invoca. No caso, o reclamante insurge-se contra o entendimento perfilhado no acórdão recorrido de que a aplicação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, no que se refere à fundamentação das decisões de recursos que tenham por objeto decisões sobre a matéria de facto, tem “os limites decorrentes da própria natureza da intervenção do tribunal de recurso a nível da fundamentação de facto e mais especificamente da motivação e do exame crítico das provas que têm lugar na 1.ª instância com amplas possibilidades de cognição e investigação, atuando em registo de oralidade, imediação e concentração, o que não acontece com a Relação”. Ora, os excertos do acórdão recorrido que o reclamante transcreve na sua reclamação para justificar tal inversão correspondem, por sua vez, e precisamente, a transcrições de jurisprudência anterior feitas no mesmo acórdão para demonstrar o acerto daquela premissa. Assim, pela ordem por que aparecem indicados na dita reclamação: o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de novembro de 2002, SASTJ, n.º 65, pág. 60; e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de junho de 2008 (Processo n.º 2046/07-3.ª). Em suma, o acórdão recorrido não inverte a sua jurisprudência anterior; pelo contrário, reafirma-a e resolve o caso sub iudicio com base em tal entendimento. Daí as mencionadas transcrições, assim como a referência a outros arestos do Supremo Tribunal de Justiça que sufragam idêntica doutrina.
Em terceiro lugar, a interpretação que o reclamante faz da decisão recorrida, mais do que errónea, é truncada. Com efeito, o tribunal a quo não afirma que «a motivação da Relação é meramente derivada, sendo-lhe lícito recorrer à fundamentação da decisão recorrida para fundamentar as suas próprias soluções». Diferentemente, e usando de alguma pedagogia jurisprudencial, o que o Supremo Tribunal de Justiça reitera, no seguimento da sua jurisprudência uniforme e constante sobre a matéria, é que “ao tribunal de recurso cabe verificar se a decisão recorrida fundamentou a sua opção em matéria de decisão de forma consistente, lógica e racional e de acordo com as regras da experiência comum, isto é, se tal opção decisória se mostra convincente do ponto de vista da lógica interna da explicitação da sua motivação, referindo criticamente os meios de prova decisivos para a formação da respetiva convicção, e se mostra consentânea com as máximas, os princípios e os ensinamentos da vida, segundo a experiência normal das coisas”. De seguida, e tendo em vista estas considerações, ou seja, uma vez fixado o sentido do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, quando aplicado na decisão de recursos sobre decisões em matéria de facto, o Supremo procede ao exame do acórdão da Relação “em ordem a indagar da existência de omissão de pronúncia sobre alguma das questões colocadas no acórdão deste supremo tribunal de 8 de junho de 2011, pois a incumbência do acórdão de Évora era suprir a falta ou insuficiência de fundamentação e omissão de pronúncia ali apontadas, tendo de mover-se na reapreciação da matéria de facto nos moldes traçados pela vinculação temática ali determinada”.
E, na verdade, a única diferença que resulta entre os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2011 e de 12 de julho de 2012 decorre justamente da pronúncia da Relação que, em 13 de dezembro de 2011, veio suprir a nulidade declarada no primeiro daqueles arestos: enquanto esse acórdão do Supremo deu por verificada a falta ou insuficiência de fundamentação e omissão de pronúncia, o segundo acórdão do mesmo Tribunal já não concluiu pela procedência de tais vícios, face ao novo acórdão entretanto prolatado pela Relação. A pretensa «divergência jurisprudencial» situa-se, portanto, ao nível do controlo das decisões então recorridas, designadamente do modo como as mesmas deram cumprimento ao dever de fundamentação concretizado no artigo 374.º, n.º 2, do CPP. Não se verifica qualquer inversão jurisprudencial, sendo certo que, como se salientou na decisão ora impugnada, o sentido interpretativo que veio a ser aplicado pela mesma decisão resultava já do acórdão de 8 de junho de 2011, bem como de outra jurisprudência daquele mesmo Supremo Tribunal, traduzindo orientação reiterada e pública cujo conhecimento, por conseguinte, seria razoavelmente exigível ao recorrente.
Assim, não só a decisão recorrida não procede à aplicação de qualquer dimensão interpretativa nova no seio do processo, face ao enquadramento da questão que vinha sendo feito, como, ainda que tal sucedesse, seria exigível ao recorrente a sua antecipação em momento processual apto a permitir ao Tribunal recorrido que sobre a mesma tomasse a sua própria decisão. Como certeiramente observa o Ministério Público na sua resposta, sendo “o recurso para o tribunal constitucional […] interposto do acórdão do Supremo que apreciou o segundo acórdão da Relação, era na motivação desse recurso que sempre teria de ser suscitada a questão, pois apenas dessa forma o Supremo estaria vinculado a dela conhecer” (cfr. fls. 5129, n.º 15.º).
A dispensa do ónus da suscitação da inconstitucionalidade durante o processo apenas procede perante situação de absoluta inexigibilidade desse cumprimento, o que não ocorre quando, caso o recorrente tivesse adotado, como lhe compete, uma estratégia processual minimamente cautelosa, lhe teria sido possível antecipar a hipótese de aplicação de certa norma num sentido por si considerado inconstitucional. Uma tal cautela impõe, nomeadamente, o ónus de antecipação dos vários sentidos possíveis das normas aplicáveis, como tem reiteradamente afirmado a jurisprudência deste Tribunal Constitucional. E este ónus de antecipação exige que a colocação (prévia) da inconstitucionalidade seja feita nos moldes exigidos de adequação processual, se se quiser que a mesma seja tida em consideração para efeitos da interposição de um eventual e posterior recurso de constitucionalidade. O que significa que a mesma deve obedecer aos termos previstos nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, traduzindo-se na suscitação de uma inconstitucionalidade normativa em moldes processualmente adequados. O que in casu não sucedeu, como o próprio reclamante expressamente reconhece.
6. Por outro lado, sendo certo que a aplicação da interpretação especificada do artigo 374.º, n.º 2, do CPP se revela um «instrumento» da decisão recorrida, é também inegável que o nódulo do dissídio do recorrente se dirige não a essa dimensão normativa, mas ao próprio fundamento concreto de tal decisão, traduzido na concreta valoração do Supremo Tribunal de Justiça de não dar por verificada qualquer omissão de pronúncia.
O Supremo examinou o modo como a Relação havia dado cumprimento à fundamentação da decisão quanto à matéria de facto, concluindo que a mesma não incorria em qualquer omissão de pronúncia devida – e aqui reside, quando a este aspeto, a conclusão central da decisão recorrida, a qual se localiza inteiramente no plano da apreciação do modo como foi efetivamente cumprido o dever de fundamentação. Como se realça a fls. 5649, “pode manifestar o recorrente a sua discordância com o ponto de vista defendido pela Relação, mas uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara, e com ela não estar em concordância, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia. (O texto escrito – concorde-se ou não com ele – pela forma como o foi, com o sentido e o alcance que lhe foi dado, não consente, nem legitima, tal imputação). Não passa a haver omissão de pronúncia só porque o recorrente discorda da posição tomada, assumida, expressa, pelo tribunal da Relação no sentido da confirmação quase integral do decidido pela primeira instância”.
E é contra tal conclusão que o recorrente atua. Por isso, ou seja, somente por discordar da decisão concreta quanto ao reexame efetuado pelo Supremo da decisão sobre a matéria de facto proferida em 2.ª instância pelo Tribunal da Relação, é que o recorrente, ora reclamante, recorreu para este Tribunal Constitucional do segundo acórdão do Supremo, mas já não do primeiro. Donde resulta, como passo lógico seguinte, a constatação do não preenchimento de um outro requisito essencial ao recurso, relacionado com a inidoneidade do respetivo objeto pelo facto de não se tratar de problema normativo, e sim de aspeto integrado exclusivamente na competência jurisdicional das instâncias recorridas relacionado com o modo como, em concreto, deve ser dado cumprimento ao dever de fundamentação da decisão em matéria de facto. A apreciação da suficiência ou insuficiência de tal fundamentação concreta é matéria que escapa, em absoluto, aos poderes de cognição deste Tribunal Constitucional, o qual restringe a sua atividade à fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de janeiro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro