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Processo n.º 463/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. veio reclamar para este Tribunal do despacho do Procurador da
República que, no Departamento de Investigação e Acção Penal, não admitiu o
recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. No âmbito de um processo crime a correr termos em França, em que era
arguido A., foi solicitado às autoridades judiciárias portuguesas, através de
carta rogatória emanada pelas autoridades judiciárias francesas, o cumprimento
de determinadas diligências em Portugal.
A carta rogatória foi autuada e registada como inquérito e
realizaram-se algumas das diligências solicitadas. Tendo-se verificado
posteriormente o lapso de autuação e registo, foi proferido despacho de
arquivamento pela Procuradora Adjunta, nos termos do artigo 277º, n.º 1, do
Código de Processo Penal, por não ser legalmente admissível o prosseguimento
daqueles autos como inquérito.
2.2. Na sequência da notificação do despacho de arquivamento, A. deduziu um
pedido de intervenção hierárquica, em que requereu “o prosseguimento das
investigações”, a fim de se “esclarecer completamente o envolvimento do arguido
[...] nos factos delituosos relatados, ou seja, de molde a determinar a sua
eventual culpabilidade ou inocência”, assim como a indicação das “diligências a
efectuar” (requerimento de fls. 2 e seguintes destes autos).
No requerimento então apresentado concluiu assim:
“[...]
Tudo de acordo com o disposto no art.º 278º do CPP e art.º 26º n.º 1 da Lei e
caso assim se não decida, sob pena de interpretação ou valoração materialmente
inconstitucional dos supracitados artigos («maxime» o artº 278º do CPP), por
violação do art.º 26º n.º 1 da CRP e do art.º 32º da Lei Fundamental.
[...].”.
2.3. O Procurador da República, no Departamento de Investigação e Acção
Penal, indeferiu o pedido de intervenção hierárquica, mantendo o despacho da
Procuradora Adjunta, com os seguintes fundamentos (fls. 22 e seguintes destes
autos):
“[...]
[…] cumpre-nos saber: se o presente pedido de «intervenção hierárquica» é
admissível e se, sendo admissível, deverá ser determinada a realização de
quaisquer diligências «para o prosseguimento das investigações».
A) - Relativamente à primeira questão colocada há que saber se o arguido tem
legitimidade para requerer o prosseguimento das investigações.
Diz o Requerente que pretende, com o prosseguimento das investigações, o
apuramento dos factos e, assim, «demonstrar a sua inocência».
Com efeito, estabelece o art.º 278º do CPP que:
«No prazo de trinta dias, contado da data do despacho de arquivamento ou da
notificação deste ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se
constituir assistente, se a ela houver lugar, o imediato superior hierárquico do
Ministério Público, se não houver sido requerida a abertura da instrução, pode
determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam,
indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu
cumprimento».
Já nos termos do art.º 279º do CPP:
«1 - Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser
reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos
invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
2 - Do despacho do Ministério Público que deferir ou recusar a reabertura do
inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato».
Ou seja, o regime do pedido de intervenção hierárquica e da reclamação
hierárquica divergem, desde logo, no interesse em agir do interveniente
processual (requerente).
No caso do pedido de intervenção hierárquica tem legitimidade para requerer o
titular do interesse que o despacho de arquivamento prejudica; no caso de
reclamação hierárquica tem legitimidade para a requerer quer o titular do
interesse que o deferimento da reabertura prejudica, quer o titular do interesse
oposto, o titular do interesse que a recusa da reabertura do inquérito
prejudica.
O art.º 401° define quem tem legitimidade para recorrer das decisões judiciais,
esclarecendo que:
«1 - Tem legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de qualquer decisões, ainda que no exclusivo interesse
do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;.
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) (…)
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir».
Ora, não havendo norma idêntica que defina expressamente quem tem legitimidade
para requerer o pedido de intervenção hierárquica, tal omissão deverá, em
observância ao disposto no art.º 4º do CPP relativamente à integração de
lacunas, ser suprida por analogia, pelo disposto no art.º 401º do CPP.
Assim, o despacho de arquivamento do inquérito não é uma decisão proferida
contra o arguido, pelo que não tem interesse em agir.
Acresce que o âmbito e a finalidade do inquérito como definida pelo art.º 262º
do CPP,
«1 - O Inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a
existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade dele e
descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação»
pelo que, também nesta parte, o Requerente não pode ter interesse em agir, dada
a qualidade que foi levado a assumir nos autos após a sua autuação como
inquérito.
B) - Relativamente à segunda questão elencada: se deverá ser determinada a
realização de quaisquer diligências «para o prosseguimento das investigações».
Mesmo que não se entenda com o supra exposto, como referido no ponto I- deste
despacho, os autos, embora autuados e registados como inquérito, reportavam-se a
uma Carta Rogatória. Deste modo, tal como decidido no despacho de arquivamento,
não era legalmente admissível o prosseguimento daqueles autos como inquérito.
O Capítulo III do título II do Livro VI, Parte II, do CPP, estabelece as normas
processuais relativas ao «encerramento do inquérito», quando, em que
circunstâncias e como é encerrado o inquérito.
O art.º 277º n.° 1 do CPP estabelece que:
«O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo
que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido
não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o
procedimento».
Não sendo legalmente admissível o prosseguimento do inquérito, não deverão
prosseguir as investigações (por falta de fundamento legal e de objecto).
[...].”.
2.4. A. pretendeu recorrer para o Tribunal Constitucional, através do
requerimento de fls. 37 e seguintes, invocando a alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da “inconstitucionalidade
material” do artigo 278º do Código de Processo Penal, “no segmento
interpretativo que considera como não obrigatória, nem devida, a decisão de
prosseguimento das investigações, num caso concreto como o dos autos em que,
durante anos, o recorrente foi considerado arguido da prática de infracções
penais e como tal considerado pela Justiça Portuguesa. Tendo-o sido, não pode de
súbito deixar de o ser, devido a um alegado «erro» meramente formal, como esse
invocado pela Senhora Procuradora Adjunta de que afinal o processo respeitava a
uma … Carta Rogatória. Ao assim se considerar, viola-se a letra e o espírito da
Constituição e sobretudo o disposto no art.º 26º n.º 1 «in fine» (direito a não
discriminação) e art.º 32º 1 (garantias de defesa do réu), e 5 (existência da
estrutura acusatória do processo penal e princípio do contraditório)”.
2.5. O Procurador da República, no Departamento de Investigação e Acção
Penal, não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 45), nos
seguintes termos:
“[...] a decisão da qual o Requerente recorre é uma decisão de um Procurador da
República proferida no âmbito da fiscalização hierárquica dos actos do
Ministério Público, das quais não cabe recurso para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, define o art.º 70º da LOTC que cabe recurso para o Tribunal
Constitucional «das decisões dos tribunais».
Assim, indefere-se o requerimento (sendo certo que, discordando, sempre poderá o
Requerente usar o mecanismo previsto no art.º 76 n.º 4 da LOTC).
[...].”.
2.6. A. veio, pelo requerimento de fls. 49 e seguintes, em que invocou o
disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, reclamar do
despacho de não admissão do recurso para este Tribunal, tendo concluído:
“[...]
18º - De acordo com o princípio da equidade e da boa administração da justiça,
«todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados, pelas
instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo
razoável» (art. 41º Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia JOCE
2000/C - 364/01) que mais não é que corolário lógico e emanação concreta do
disposto nos números 2 e 3 do art.º 6º da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos
do Homem).
19º - De acordo com o art. 47º da citada Carta – «Toda a pessoa tem direito a
que a sua causa seja julgada de forma equitativa».
20° - Ora, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo
o recurso (art.º 32º da Constituição). E segundo o art.º 20º n.º 1 da
Constituição: «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos».
21º - No caso concreto, seguindo o processo fase de Inquérito, no âmbito deste,
de qualquer decisão proferida por um senhor Juiz de Instrução é admissível o
recurso para a primeira instância superior (Tribunal da Relação) (art.º 399º do
CPP).
Por maioria de razão deve ser possível o recurso para o Tribunal Constitucional
de decisão do Senhor Procurador da República, uma vez que dada a actual redacção
do art.º 399º do CPP «é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos
despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei», não se
enquadrando a decisão ora em causa (despacho do Dr. Procurador da República) em
qualquer uma das categorias contidas no art.º 400º do CPP (Decisões que não
admitem recurso), sendo no mais consagrado constitucionalmente o seu direito a
recurso (art.º 32º n.º1 da Lei Fundamental – e art.º 61º n.º 1 alínea h) do
CPP).
22º - Deste modo, porque está em tempo e tem legitimidade, o arguido pode
recorrer e o seu recurso deverá ser admitido para este Venerando Tribunal
Constitucional, sob pena de valoração ou interpretação inconstitucional dos
art.ºs 61º n.º 1 alínea h), 399º, 400º (a contrario), 401º n.º 1 alínea b) e n.º
2 do CPP.
Mais: tais preceitos legais (e ainda o disposto no art. 70º n.º 1 al. b), art.
71º n.º 1, art. 72º n.º 2 al. b) e n.º 2, art. 75º n.º 1 da Lei 28/82 de 15 de
Novembro), quando interpretados no sentido de, num processo como o dos autos,
não ser possível recurso para o TC de uma decisão do Senhor Procurador da
República, encontram-se feridos de verdadeira inconstitucionalidade material por
violação, clara e directa, do disposto no art. 32º n.º 1 da Constituição
(direito a um efectivo recurso) e do princípio nele consignado.
Termos em que se requer a Vª. Exª. a admissão do recurso e se sigam os
ulteriores termos processuais.
[...].”.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional emitiu parecer (fls. 68 v.º), do seguinte teor:
“O reclamante não tem na devida conta, nem que os recursos de
constitucionalidade apenas podem ser interpostos de «decisões dos tribunais»,
nem que o procedimento de reclamação, previsto nos arts. 76º, n.º 4, e 77º da
Lei n.º 28/82 apenas cabe da decisão do tribunal que tiver proferido a decisão
recorrida e que haja rejeitado o recurso de constitucionalidade interposto.
Não se verificando obviamente tal requisito essencial, não deverá sequer
tomar-se conhecimento da presente reclamação.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O requerente pretendia interpor recurso para este Tribunal, ao abrigo
do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, do despacho do Procurador da República que, no Departamento de
Investigação e Acção Penal, indeferiu o pedido de intervenção hierárquica e
manteve o despacho da Procuradora Adjunta através do qual se determinou o
arquivamento de uns autos de inquérito que, por lapso de autuação e registo, se
tinham iniciado no referido Departamento de Investigação e Acção Penal (supra,
2.4.).
O recurso não foi admitido por a decisão da qual se pretende
recorrer ser uma “decisão de um Procurador da República proferida no âmbito da
fiscalização hierárquica dos actos do Ministério Público, das quais não cabe
recurso para o Tribunal Constitucional” (supra, 2.5.).
No requerimento agora apresentado, o requerente vem sustentar a
recorribilidade do despacho do Procurador da República para o Tribunal
Constitucional (supra, 2.6.).
5. Não pode porém o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do pedido
formulado neste requerimento.
Na verdade, os recursos de “fiscalização concreta de
constitucionalidade” previstos no artigo 280º da Constituição da República
Portuguesa e no artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – e, concretamente,
o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, que o requerente
pretendia interpor – cabem de decisões dos tribunais.
Ora, a decisão de que se pretende recorrer no caso dos autos é uma
decisão de um Procurador da República, proferida no âmbito da fiscalização
hierárquica dos actos do Ministério Público, e, como tal, não está sujeita ao
regime de “fiscalização concreta de constitucionalidade” a que se referem os
artigos 280º da Constituição e 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Por sua vez, o procedimento de reclamação previsto nos artigos 76º,
n.º 4, e 77º da Lei do Tribunal Constitucional apenas cabe da decisão do
tribunal que tiver proferido a decisão recorrida e que indefira o requerimento
de interposição do recurso de constitucionalidade (ou que retenha a sua subida).
No caso destes autos, não foi deduzida reclamação de qualquer
decisão de um tribunal que tenha proferido a decisão recorrida e que tenha
indeferido o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (ou
retido a sua subida).
Tanto basta para concluir que não pode conhecer-se do pedido
formulado neste requerimento.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide não tomar conhecimento da reclamação.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 6 de Julho de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos