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Processo n.º 607/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Em 1 de Julho de 2002, o juiz do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa
proferiu despacho declarando não prescrito o procedimento criminal contra A.,
que tivera início em queixa crime apresentada em 10 de Novembro de 1992 pela
emissão de cheque sem provisão, com data de 18 de Maio de 1992. De tal despacho
apresentou o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas, apesar
da resposta do Ministério Público defender a confirmação, na íntegra, do
despacho recorrido, na 1.ª instância decidiu-se reparar a decisão, por se ter
considerado inconstitucionais “os artigos 335.º e 337.º do CPP/1987, conjugados
com o artigo 120.º, n.º 1, al. d), do CP/1982, na interpretação segundo a qual a
declaração de contumácia pode ser equiparada à causa aí prevista”, e “os artigos
335.º e 337.º do CPP/1987, conjugado com o artigo 119.º, n.º 1, do CP/1982, na
interpretação dada pelo STJ no assento n.º 10/2000”.
Foi a vez de o Ministério Público apresentar recurso, desta vez para o Tribunal
Constitucional, onde foi proferido despacho de aperfeiçoamento, que mereceu
resposta nos seguintes termos:
“O recurso, fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, é
reportado à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade
(violação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição da República
Portuguesa), das normas constantes dos artigos 335.º e 337.º do Código de
Processo Penal de 1987, em conjugação, respectivamente, com as dos artigos
120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982, na interpretação segundo a
qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa de interrupção da
prescrição aí prevista; e 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na
interpretação fixada pelo “assento” n.º 10/2000 (enquanto causa de suspensão da
prescrição do procedimento criminal).”
Nas suas alegações, concluiu assim o Ministério Público:
«1 - Por força do preceituado no n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, tem
precedência sobre o recurso de fiscalização concreta, interposto para o Tribunal
Constitucional, o “recurso ordinário obrigatório, previsto no artigo 446.º, n.º
1, do Código de Processo Penal, a interpor pelo Ministério Público (nos termos
do artigo 80.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82) e a dirimir previamente na ordem dos
tribunais judiciais, no que se refere à recusa de aplicação da interpretação
normativa realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça no “assento” n.º 10/2000.
2 - É inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição
da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 120.º, n.º 1,
alínea d), do Código Penal de 1982 – conjugado com as normas que regulam a
declaração de contumácia e respectivos efeitos – enquanto faz equiparar, em
termos substancialmente inovatórios, para efeitos da interrupção da prescrição
do procedimento criminal, o acto de marcação do dia para julgamento em processo
de ausentes (nos termos do Código de Processo Penal de 1929) à declaração de
contumácia que – nos termos do Código de Processo Penal de 1987 – obsta ao
prosseguimento do processo, à revelia do arguido, para a fase de julgamento.
3 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante
da decisão recorrida.»
O recorrido não apresentou resposta às alegações do Ministério Público, apesar
de nestas se defender, como referido, o não conhecimento parcial do recurso.
Pelo acórdão n.º 412/2003, proferido nos presentes autos, foram julgados
“inconstitucionais, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, as
normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados
com o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (redacção
originária), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser
equiparada, como causa de interrupção do procedimento criminal, à marcação de
dia para julgamento em processo de ausentes, aí prevista, assim confirmando,
nesta parte, a decisão recorrida”, mas não se tomou conhecimento do recurso “na
parte relativa à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade,
das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987,
conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção
originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no
“assento” n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa
de suspensão da prescrição do procedimento criminal”.
2. Transitada em julgado essa decisão, e devolvido o processo à 1.ª instância,
foi, pelo Ministério Público, apresentado o recurso que o Tribunal
Constitucional considerara prejudicial, em parte, para o Tribunal da Relação de
Lisboa. Notificado da motivação do recurso - na qual se defendia a não
inconstitucionalidade da dimensão normativa então em causa –, arguido não
respondeu.
Por acórdão tirado em conferência, de 23 de Março de 2004, foi concedido
provimento a esse recurso e consequentemente, foi revogada a decisão recorrida e
determinado que fosse esta substituída por outra a ordenar o prosseguimento dos
autos. Pode ler-se no referido aresto:
«(...)
A questão a decidir no recurso que agora nos ocupa - interposto após tal decisão
do Tribunal Constitucional -, reduz-se, pois, aos efeitos da declaração de
contumácia, no que se refere à suspensão da prescrição do procedimento criminal,
no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de
1987.
Perante as divergências jurisprudenciais surgidas a propósito do tema, o Supremo
Tribunal de Justiça fixou, no Acórdão do Pleno das Secções Criminais, de 19 de
Outubro de 2000, jurisprudência nos seguintes termos:
No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de
1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal.
O despacho impugnado, como se viu, recusou seguir a orientação da jurisprudência
fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
A questão da constitucionalidade suscitada no despacho recorrido, na parte que
agora interessa, não foi ignorada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de
fixação de jurisprudência, constatando-se que a argumentação expendida no
despacho impugnado é coincidente com as razões que alicerçaram os votos de
vencido de quatro Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça,
apostos no referido “Assento”.
Tais argumentos não deixaram de ser ponderados, não tendo logrado convencer a
larga maioria do Pleno das Secções Criminais,
E foram já contrariados pelo Acórdão do Tribunal Constitucional de 20 de Outubro
de 2002, que decidiu:
(...) não julgar inconstitucional a norma do artigo 119.º, n.º 1, do Código
Penal de 1982, quando interpretada no sentido de abranger, como causa de
suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de
contumácia (...)
A fundamentação das divergências relativas à jurisprudência fixada, a que se
alude o artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, há-de conter
argumentos novos, não anteriormente considerados, com virtualidade para colocar
em causa a jurisprudência firmada e levar à sua modificação.
Dado que tal não sucede no presente caso, tem de acatar-se a doutrina do
referido “Assento”.
Assim, na solução do caso que nos ocupa, há-de ter-se presente o seguinte:
Os factos ocorreram no domínio da vigência do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, 313.º, n.º 1, e 314.º, alínea c), do
Código Penal (versão originária) e do Código de Processo Penal de 1987, sendo,
então, puníveis com prisão de 1 a 10 anos, moldura penal que veio a ser alterada
para 2 a 8 anos de prisão, nos termos do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), com
referência à alínea b) do artigo 202.º do Código Penal (na versão de 1995), e,
posteriormente, por força da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19
de Novembro, que alterou o artigo 11.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, para prisão até 5 anos ou multa até
600 dias.
Em qualquer caso, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 10 anos,
contando-se desde a data da consumação do facto.
A infracção consumou-se em 18 de Maio de 1992, de harmonia com a acusação
deduzida em 26 de Novembro de 1996.
Por efeito da declaração de contumácia, proferida em 28 de Janeiro de 1998, a
prescrição suspendeu-se, nessa data, e só voltou a correr a partir de 1 de
Outubro de 2002, data em que foi declarada cessada a situação de contumácia.
Restavam, então, 4 anos, 3 meses e 20 dias para se completar prazo de
prescrição.
Desde então, decorreram:
- até à data do despacho recorrido - 29 de Outubro de 2002 - 28 dias, faltando,
para se completar a prescrição, 4 anos, 2 meses e 22 dias;
- até este momento, 1 ano, 4 meses e 22 dias, faltando, agora, para se completar
a prescrição, 2 anos, 10 meses e 28 dias,
Impõe-se, assim, acolher os fundamentos e a pretensão do recurso.
III. Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em
consequência, revogar a decisão impugnada e determinar que seja substituída por
outra que ordene o prosseguimento dos autos.»
3. É desta decisão que vem interposto, pelo arguido, o presente recurso de
constitucionalidade, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do
Tribunal Constitucional), nos seguintes termos:
“O recorrente entende que a interpretação dada no douto Acórdão recorrido aos
artigos 335.º e 337.º do Cód. Proc. Penal de 1987, conjugado com o artigo 119.º,
n.º 1, do Cód. Penal de 1982, na interpretação dada pelo Assento n.º 10/2000,
segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da
prescrição do procedimento criminal, é inconstitucional, por violação do
princípio constitucional consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da
República Portuguesa.
Além disso, não é de acolher a jurisprudência do Acórdão n.º 10/2000 do Supremo
Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de
Novembro de 2000, por ter resultado de uma interpretação que imprime ao artigo
336.º do Cód. Proc. Penal de 1987 uma dimensão normativa substantiva que não se
encontra compreendida na Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de
Setembro.
O douto Acórdão recorrido considerou que a declaração de contumácia constitui
causa de suspensão do procedimento criminal com base no disposto no artigo 336.º
do Cód. Proc. Penal (correspondente aos actuais artigos 335.º e 336.º), o qual
sofre de inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, o douto Acórdão recorrido aplicou o artigo 366.º do Cód. Proc. Penal
de 1987 no sentido que lhe foi dado pelo Assento n.º 10/2000 do STJ de 19-10-00,
de que a declaração de contumácia aí referida constitui causa de suspensão da
prescrição do procedimento criminal, interpretação esta que enferma de
inconstitucionalidade orgânica.
A inconstitucionalidade da norma aplicada, designadamente do artigo 336.º do
Cód. Proc. Penal foi já julgada pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no
Acórdão n.º 122/2000, in DR, II Série, de 6/6/2000, págs. 9712 e 9713.
O recurso deve ser ainda admitido uma vez que o recorrente não dispôs de
oportunidade processual para levantar a questão da inconstitucionalidade nos
moldes referidos.
Do douto Acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário.”
O recorrente foi notificado para produzir alegações, tendo vindo dizer:
«- A - O OBJECTO DO RECURSO
Referem-se as presentes alegações ao recurso interposto pelo arguido para este
Venerando Tribunal, por entender que a interpretação dada no douto Acórdão
recorrido ao artigo 336.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugado com o
artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na interpretação dada pelo Assento
n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de
suspensão da prescrição do procedimento criminal, sofre de uma
inconstitucionalidade orgânica e é inconstitucional, por violação dos princípios
constitucionais consagrados nos artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 32.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa.
- B - ENTENDIMENTO DO RECORRENTE
O douto Acórdão recorrido considerou que a declaração de contumácia constitui
causa de suspensão do procedimento criminal com base no disposto no artigo 336.º
do Código de Processo Penal (correspondente aos actuais artigos 335.° e 337.°).
Com efeito, o douto Acórdão recorrido aplicou o artigo 336.º do Código de
Processo Penal de 1987 no seguimento do sentido que lhe foi dado pelo Assento
n.º 10/2000 do STJ, de 19/10, segundo o qual:
“No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de
1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal”.
Ora, esta interpretação dada pelo Assento n.º 10/2000 do STJ, de 19/10, assenta
na consideração de que a declaração de contumácia, ao abrigo do disposto no
Código de Processo Penal de 1987, tem efeitos suspensivos no procedimento
criminal, por se tratar de “um dos casos especialmente previstos na lei” a que
se refere o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982.
Para tanto, argumenta-se no referido Assento n.º 10/2000 do STJ, de 19/10, que
“Dizendo o artigo 336.º do Código de Processo Penal que a declaração de
contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à
apresentação do arguido, só poderá querer ter tido em vista aquela suspensão
relacionada com a prescrição do procedimento criminal. O efeito visado coincide
com o previsto no artigo 119.º, n.° 3: desde o momento de declaração de
contumácia até àquele em que caduca – n.º 3 – a prescrição não corre.
De outra maneira, acabava-se por vir proteger o arguido que, mais lesto, fugiria
à alçada da justiça.
(...)
O facto de ser desconhecido, à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982,
o instituto da contumácia não justifica a afirmação de que o n.º 1 do artigo
119.º não se podia referir ao mesmo. A expressão usada, ‘casos especialmente
previstos na lei’, não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos
conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos
iguais tem de haver soluções idênticas”.
Acontece que, no modesto entendimento do arguido, ora recorrente, tal
interpretação sofre de inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, de harmonia com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º
da Constituição da República Portuguesa, na versão de 1997, tal como ocorria no
artigo 168.° da versão de 1989 e da versão de 1982, sob a epígrafe “Reserva
relativa de competência legislativa”, salvo autorização ao Governo, é da
exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre definição dos
crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como
processo criminal.
Assim, como tem sido, aliás, jurisprudência reiteradamente afirmada neste
Tribunal Constitucional, a normação da matéria que se prende com a prescrição do
procedimento criminal e das penas, incluindo o estabelecimento de causas de
suspensão e de interrupção, insere-se no objecto de reserva relativa à definição
de crimes e penas, reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, podendo, no entanto, haver lugar a autorização ao Governo para
legislar sobre tais matérias.
Neste sentido vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 122/2000, in DR, II
série, de 06/06/2000, pp. 9712 e 9713.
Ora, o artigo 336.º de onde o Assento n.º 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça
extrai o estabelecimento de uma causa de suspensão do procedimento criminal
insere-se no Código de Processo Penal de 1987, aprovado por diploma
governamental – o DL n.º 78/87, de 17 de Fevereiro -, no uso da autorização
legislativa em matéria de processo penal conferida pela Lei n.º 43/86, de 26 de
Setembro.
A referida Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, logo no seu artigo 1.º estabelece
qual o objecto da autorização conferida: “aprovar um novo Código de Processo
Penal e revogar a legislação vigente sobre essa matéria”.
E o n.º 2 do seu artigo 2.º, ao longo de oitenta e uma alíneas, procede à
definição do sentido e extensão da autorização.
As únicas referências, expressas e implícitas, feitas ao instituto da contumácia
na Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, constam das alíneas 59 e 62 do n.º 2 do
artigo 2.º da referida Lei, e nos seguintes termos:
“59) Impossibilidade, em princípio, da realização de julgamento na ausência do
arguido, sem prejuízo da possibilidade de ele ser mandado retirar da sala por
razões graves de indisciplina e previsão das medidas adequadas, pessoais e
patrimoniais, de constrangimento do arguido à presença no julgamento;
(...)
62) Reforço das medidas preventivas aplicáveis em caso de contumácia do réu,
nomeadamente pela anulabilidade dos negócios jurídicos por aquele celebrados e
pela definição de outras restrições à liberdade negocial, como o arresto
preventivo, amplamente desmotivadoras da sua ausência”.
Assim, na lei de autorização legislativa - Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro -
não se faz qualquer referência a autorizar o Governo a instituir a contumácia
como uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Deste modo, na Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, não
existe um suporte mínimo para que seja lícito extrair do artigo 336.º do Código
de Processo Penal de 1987 a instituição de uma causa de suspensão da prescrição
do procedimento criminal.
Ora, nos termos do n.º 2 do artigo 112.º da Constituição da República
Portuguesa, na versão de 1997, tal como ocorria no n.° 2 do artigo 115.° da
versão de 1982, vigente à data da alegada prática dos factos - 1987 - “As leis e
os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às
correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização
legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos”.
Assim, do disposto no referido artigo 112.º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa resulta que os Decretos-Leis publicados no uso de autorizações
legislativas devem subordinar-se às correspondentes Leis.
Sendo que a desconformidade do Decreto-Lei com a correspondente Lei de
autorização legislativa implica directamente uma ofensa à competência da
Assembleia da República.
E nessa medida, porque não respeita a Lei de autorização legislativa, o
Decreto-Lei publicado no uso da autorização legislativa que lhe foi concedida
deixa de ter habilitação constitucional.
Neste sentido vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 213/92, in D.R., II
série, de 18/9/92, p. 8791.
Ora, a interpretação dada no Acórdão n.º 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça,
segundo o qual “No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de
Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão
da prescrição do procedimento criminal”, imprime ao artigo 336.º do Código de
Processo Penal de 1987 uma dimensão normativa substantiva que não se encontra
compreendida na Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro.
Assim, tal interpretação está ferida de uma inconstitucionalidade orgânica.
Pelo que, no modesto entendimento do arguido, ora recorrente, não é de acolher a
Jurisprudência do Acórdão n.º 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado
no Diário da República, I série-A, de 10 de Novembro de 2000.
Acresce que, a interpretação dada no douto Acórdão recorrido ao artigo 336.º do
Código de Processo Penal de 1987, conjugado com o artigo 119.º, n.º 1, do Código
Penal de 1982, na interpretação dada pelo Assento n.º 10/2000, segundo a qual a
declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal, é inconstitucional, por violação do princípio
constitucional da proibição da aplicação retroactiva de leis penais posteriores
de conteúdo menos favorável ao arguido, consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e
4, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, do disposto no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa,
sob a epígrafe “Aplicação da lei criminal”, resulta que quando disposições
penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das
estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente
se mostrar mais favorável ao agente.
Ora, a acolher-se a interpretação dada no douto Acórdão recorrido, no seguimento
da interpretação dada pelo Assento n.º 10/2000, de que a declaração de
contumácia suspende o prazo da prescrição do procedimento criminal, ainda que os
factos imputados ao arguido sejam anteriores a 1 de Outubro de 1995, data a
partir da qual, no nosso ordenamento, a vigência daquele instituto passou,
efectivamente, a suspender tal prazo - cfr. artigo 120.°, n.° 1, al. a), do
Código Penal de 1995 - parece-nos inquestionável que está a ser feita uma
aplicação retroactiva da norma penal de conteúdo menos favorável ao arguido,
pois que à data dos factos inexistia tal obstáculo à extinção do procedimento
criminal por força do decurso do tempo.
Assim, no modesto entendimento do recorrente, resulta, à saciedade, demonstrado
que o Tribunal recorrido, ao interpretar e aplicar o artigo 336.º do Código de
Processo Penal de 1987, conjugado com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de
1982, no seguimento da interpretação dada pelo Assento n.° 10/2000, segundo a
qual “No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo
Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da
prescrição do procedimento criminal”, viola o princípio da proibição da
aplicação retroactiva das leis penais posteriores de conteúdo menos favorável ao
arguido, plasmado no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição da República
Portuguesa e o princípio da garantia de defesa plasmado no n.º 1 do art.º 32.º.
O presente recurso é tempestivo e a inconstitucionalidade suscitada foi também
tempestiva, dado que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para
levantar tal inconstitucionalidade em momento anterior.
Por todo o exposto, entende o recorrente que a interpretação e aplicação do
artigo 336.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugado com o artigo 119.º,
n.º 1, do Código Penal de 1982, feita pelo Tribunal recorrido no douto Acórdão
de que agora se recorre, para além de sofrer de uma inconstitucionalidade
orgânica, viola flagrantemente o disposto no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da
Constituição da República Portuguesa, por estar a fazer uma aplicação
retroactiva de norma penal de conteúdo menos favorável ao arguido.
TERMOS EM QUE
deve ser concedido provimento ao recurso interposto, declarando-se
inconstitucional a interpretação e aplicação do artigo 336.º do Código de
Processo Penal de 1987, conjugado com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de
1982, feita no douto Acórdão recorrido e, em consequência, deve ordenar-se o
arquivamento dos autos por o procedimento criminal instaurado contra o arguido
já se encontrar prescrito.»
Por sua vez, o representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional contra-alegou dizendo:
«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso vem interposto pelo arguido A. do acórdão da Relação de
Lisboa que aplicou a doutrina constante do Assento n.° 10/2000 - após
esgotamento do recurso previsto no artigo 446.°, n.° 1, do Código de Processo
Penal.
Como dá nota, aliás, [n]a decisão recorrida, a questão de constitucionalidade
suscitada já foi, no essencial, apreciada pelo Tribunal Constitucional, que -
aliás, por unanimidade - no Acórdão n.° 449/02, julgou não inconstitucional a
norma constante do artigo 119.°, n.° 1, do Código Penal de 1982, quando
interpretada no sentido de abranger, como causa de suspensão do prazo de
prescrição do procedimento criminal, a declaração de contumácia.
Tal orientação - a que inteiramente se adere - implica, desde logo, a manifesta
inverificação dos pressupostos do recurso tipificado na alínea g) do n.° 1 do
artigo 70.° da Lei n.° 28/82.
Por outro lado, afigura-se, relativamente à argumentação expendida pelo
recorrente:
- que as normas dos artigos 335.° e 337.° do Código de Processo Penal não
padecem obviamente de qualquer inconstitucionalidade material, enquanto
estabelecem o regime do instituto da contumácia: o que verdadeiramente se
controverte é apenas a aplicação de tal regime, surgido com o actual Código de
Processo Penal, a um crime cometido antes da adaptação a tal novo Código das
disposições do Código Penal atinentes à suspensão da prescrição;
- carece manifestamente de fundamento a questão da inconstitucionalidade
“orgânica” do regime da contumácia, enquanto prevê a suspensão da prescrição do
procedimento criminal, estando tal regime naturalmente legitimado pela previsão,
na lei de autorização legislativa, das “medidas adequadas” a constranger o
arguido à presença no julgamento;
- quanto à questão essencial de fundo, a enquadrar no recurso tipificado na
alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, e reportada
ao regime da suspensão da prescrição, é de considerá-la manifestamente
improcedente, pelas razões expendidas pelo Acórdão n.° 449/02, a que
inteiramente se adere, e que não são minimamente abaladas pela argumentação do
recorrente.
2. Conclusão
Neste termos e pelo exposto, conclui-se:
1 - Pelas razões expendidas no Acórdão n.° 449/02, não é inconstitucional a
norma constante do artigo 119.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, na
interpretação - acolhida pelo Assento n.° 10/00 - de que abrange, como causa de
suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de
contumácia.
2 - Termos em que deverá improceder o recurso, fundado na alínea b) do n.° 1 do
artigo 70.° da Lei n.° 28/82.»
4. Em 10 de Maio de 2005, após inscrição do processo em tabela e respectiva
discussão, foi proferido pelo relator no Tribunal Constitucional despacho em que
se disse:
“Nos presentes autos, tendo sido suscitada, durante a discussão do projecto de
acórdão apresentado pelo relator, a questão da eventualidade de se não poder vir
a tomar conhecimento do recurso, por falta de verificação do requisito previsto
no artigo 72.º, n.º 2, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, consistente na suscitação, pelo recorrente, da questão
de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer, determino a notificação do
recorrente para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciar, querendo, sobre essa
questão prévia.”
O recorrente respondeu nos seguintes termos:
“1. O recorrente entende que deve ser tomado conhecimento do recurso interposto.
Com efeito,
2. a questão prévia suscitada pelo Ex.mo Relator de não conhecimento do recurso
funda-se na falta de verificação do requisito previsto no artigo 72.°, n.° 2, da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
consistente na suscitação, pelo recorrente, da questão da constitucionalidade
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer. Acontece que,
3. a interpretação de que, no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do
Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de
suspensão da prescrição do procedimento criminal só foi acolhida no douto
acórdão recorrido.
4. Deste modo, a douta decisão que acolheu tal interpretação é uma decisão
surpresa para o arguido que dela só tomou conhecimento quando foi notificado do
douto Acórdão recorrido.
5. Assim, o arguido não dispôs de oportunidade processual para, em momento
anterior, levantar a questão da inconstitucionalidade da interpretação que foi
dada no douto Acórdão recorrido. De resto,
6. é entendimento deste Alto Tribunal ser de conhecer o recurso nas hipóteses em
que, previamente à decisão, não tenha disposto o interessado de oportunidade
processual para levantar a questão.
7. Pelo que, salvo melhor entendimento, deve ser tomado conhecimento do recurso
interposto pelo arguido.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
5. O presente recurso de constitucionalidade vem interposto ao abrigo das
alíneas b) e g) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e visa a
apreciação da constitucionalidade do artigo 336.º do Código de Processo Penal,
na redacção de 1987 (que era a que estava em vigor à data da declaração de
contumácia, isto é, 28 de Janeiro de 1998), conjugado com o artigo 119.º, n.º 1,
do Código Penal de 1982, no sentido “dado pelo Assento n.º 10/2000 do STJ de
19-10-00, de que a declaração de contumácia aí referida constitui causa de
suspensão da prescrição do procedimento criminal” - pois, apesar de no
requerimento de recurso serem mencionados os artigos 335.º e 337.º do Código de
Processo Penal, é claro, pelo restante teor do requerimento e pelas alegações
apresentadas, que a interpretação normativa em questão se baseava naquele artigo
336.º (na parte em que diz, no seu n.º 1, que a declaração de contumácia
“implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à
detenção do arguido”), também indicado nesse requerimento de recurso, e em
conjugação com a norma do Código Penal citada (tendo, aliás, sido também essa a
norma que constituiu o fundamento do “assento” n.º 10/2000, que, por não ter
sido seguido, determinou a decisão do Tribunal Constitucional, no seu acórdão
n.º 412/2003, no sentido da precedência da interposição do recurso ordinário
obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal).
Começando pelo recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º
da Lei do Tribunal Constitucional – isto é, de decisões “que apliquem norma já
anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal
Constitucional” –, o recorrente, no cumprimento do disposto no artigo 75.º-A,
n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, indica no seu requerimento de recurso,
como “decisão do Tribunal Constitucional ou da Comissão Constitucional que, com
anterioridade, julgou inconstitucional (...) a norma aplicada pela decisão
recorrida”, o acórdão n.º 122/2000 (“A inconstitucionalidade da norma aplicada,
designadamente do artigo 336.º do Cód. Proc. Penal foi já julgada pelo Tribunal
Constitucional, nomeadamente no Acórdão n.º 122/2000 in DR, II Série, de
6/6/2000, págs. 9712 e 9713”). Verifica-se, porém, que este acórdão não se
pronunciou sobre a constitucionalidade do artigo 336.º do Código de Processo
Penal, tendo, antes, julgado inconstitucional “a norma constante da alínea a) do
n.º 1 do art.º 120.º, da versão originária do Código Penal, na interpretação
segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a
notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do
agente, como arguido, na instrução”.
Ora, recorde-se que o recurso interposto, previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea
g), da citada Lei do Tribunal Constitucional, pressupõe a identidade normativa
entre a norma julgada inconstitucional no precedente jurisprudencial invocado e
aquela cuja apreciação é objecto do recurso interposto – sendo essencial,
também, que a dimensão normativa aplicada corresponda à que já foi julgada
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Não é esse o caso – nem se
detecta, aliás, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, qualquer outro
aresto que tenha julgado inconstitucional a norma do artigo 336.º do Código de
Processo Penal, na interpretação impugnada (não é esse o caso, nomeadamente, do
acórdão n.º 449/2002, publicado no Diário da República, II série, n.º 287, de
12-12-2002).
Não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso interposto nos termos da alínea
g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de
verificação dos seus pressupostos.
6. Resta o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 desse artigo 70.º.
Há que averiguar se os respectivos requisitos estão preenchidos, não sofrendo
dúvida que estão esgotados os recursos ordinários e que a norma cuja
constitucionalidade vem impugnada foi aplicada pelo acórdão recorrido. Por outro
lado, é certo que este acórdão se pronunciou sobre a questão da
constitucionalidade (remetendo para o acórdão n.º 449/2002, do Tribunal
Constitucional) dessa norma, para decidir um recurso de outra decisão judicial
que afastara já a mesma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Todavia, verifica-se que, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional, os “recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo
70.º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da
inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante
o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer”. Trata-se, como indica a própria epígrafe deste artigo 72.º, de
uma regra relativa à “legitimidade para recorrer” – e não à recorribilidade da
decisão –, pelo que é necessário que a exigência de suscitação tenha sido
cumprida pela parte que vem a interpor o recurso de constitucionalidade. Não
basta, assim, que, como no caso dos autos, o tribunal a quo estivesse já
obrigado a tratar da questão de constitucionalidade por ter de decidir um
recurso interposto, nos termos do artigo 446.º do Código de Processo Penal, de
uma decisão que, com fundamento em inconstitucionalidade, decidira contra
jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. A
exigência legal, para que se verifique a legitimidade para recorrer para o
Tribunal Constitucional, é, antes, no sentido de que a parte recorrente haja
suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (e em termos de este estar
obrigado a dela conhecer).
No caso vertente, o recorrente, notificado de tal questão prévia, não pôs em
causa o facto de, no recurso interposto pelo Ministério Público, na sequência do
acórdão do Tribunal Constitucional n.º 412/2003, ter sido notificado (cfr.
comprovativos a fls. 260 e 262 dos autos), não tendo, porém, respondido à
motivação desse recurso – e também não tendo, pois, suscitado perante o tribunal
ora recorrido (Tribunal da Relação de Lisboa) qualquer questão de
constitucionalidade.
O recorrente vem, porém, invocar que não lhe era exigível qualquer suscitação da
questão de constitucionalidade perante o tribunal a quo, antes de este proferir
a sua decisão, pois “a interpretação de que no domínio da vigência do Código
Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia
constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal só foi
acolhida no douto acórdão recorrido”, sendo a decisão recorrida “uma decisão
surpresa para o arguido que dela só tomou conhecimento quando foi notificado do
douto Acórdão recorrido” (o arguido não teria disposto “de oportunidade
processual para, em momento anterior, levantar a questão da
inconstitucionalidade da interpretação que foi dada no douto Acórdão
recorrido”). Esta invocação afigura-se, porém, manifestamente improcedente, na
medida em que a interpretação em causa havia já sido, não só perfilhada pelo
“assento” n.º 10/2000 (publicado no Diário da República, I série-A, n.º 260, de
10 de Novembro de 2000), sendo perfeitamente conhecida, como também havia já
sido invocada nestes próprios autos, na 1.ª instância (embora para afastar a sua
constitucionalidade). A interpretação das normas em causa, e a questão da sua
constitucionalidade, eram, pois, perfeitamente cognoscíveis pelo recorrente, não
sendo a decisão no sentido da inexistência de inconstitucionalidade em tal
entendimento – seguida já no citado “Assento” – de modo algum objectivamente
imprevisível, insólita ou inesperada, de tal forma que se possa dizer que o
recorrente não dispôs de plena oportunidade processual para sobre ela se
pronunciar, antes de proferida a decisão pelo tribunal a quo. Dispôs dessa
oportunidade designadamente quando foi notificado para responder à motivação do
recurso interposto pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação, motivação
na qual a tese da não inconstitucionalidade da norma em causa era defendida. Não
o tendo feito – como, aliás, nunca o tinha feito anteriormente –, não pode,
pois, tomar-se também conhecimento do recurso interposto nos termos da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de
verificação do pressuposto exigido pelo artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento dos recursos de constitucionalidade interpostos;
b) Consequentemente, condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de
justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2005
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
1. Votei vencida o presente Acórdão na parte em que decidiu não tomar
conhecimento do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelas seguintes razões:
Considero que o pressuposto processual do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional consistente na suscitação durante o
processo da questão de constitucionalidade normativa tem por objectivo vincular
o tribunal a quo a pronunciar-se sobre a questão.
Tal exigência insere-se no sistema de fiscalização concreta da
constitucionalidade vigente, de acordo com o qual os tribunais apreciam, como
“juízes constitucionais de 1ª instância”, a questão, cabendo a última decisão ao
Tribunal Constitucional (sistema “difuso na base e concentrado no topo”).
Desse modo, a exigência da suscitação da questão de constitucionalidade
justifica-se na medida em que é a via pela qual o tribunal a quo fica obrigado a
apreciar a questão suscitada.
Assim, o sujeito processual que suscitou a questão adquire legitimidade para,
ulteriormente, recorrer para o Tribunal Constitucional, se a decisão proferida
pela instância lhe for desfavorável. Mas essa legitimidade, por este modo
adquirida, não é dissociável da finalidade inerente à exigência da suscitação da
questão durante o processo a que se aludiu.
A suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo não é porém o
único modo de adquirir legitimidade para a interposição do recurso de
constitucionalidade. O Tribunal Constitucional tem dispensado do ónus da
suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade nos casos em que
é proferida uma decisão objectivamente imprevisível e inesperada.
Afigura-se-me claro que também será de dispensar o recorrente de tal ónus quando
o tribunal a quo tem o dever legal de apreciar a questão de constitucionalidade.
Com efeito, se a finalidade da obrigação de suscitar a questão de
constitucionalidade durante o processo (ou seja, obrigar o tribunal a quo a
apreciar essa questão) está assegurada, ainda que por via legal, torna-se
infundado exigir a suscitação da questão durante o processo. Sendo tal exigência
infundada, ela é inútil. Na verdade, a mera referência à legitimidade perde
sentido, uma vez que se estará então a exigir uma conduta processual para que se
produza um efeito que já está produzido.
2. Nesta medida, entendo que o Tribunal Constitucional devia tomar conhecimento
do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional.
Maria Fernanda Palma