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Processo n.º 972/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 78º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu não conhecer do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e negar provimento ao recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
2 – Fundamentando a sua reclamação o reclamante alega, na parte útil ao seu conhecimento, o seguinte:
«[...]
2. Salvo o devido respeito, parece que o que se quis dizer, foi que haveria lugar à reforma da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, se o recurso de constitucionalidade interposto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça não viesse a merecer provimento - como não veio a merecer.
Na verdade, tal decisão da Relação de Coimbra - de não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional - fundou-se precisamente no entendimento de que a decisão recorrida admitia recurso ordinário (o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que a Relação veio a admitir e que havia sido interposto em simultâneo com aquele outro, para o Tribunal Constitucional, que a Relação logo rejeitou) e que, por isso, por não se encontrarem esgotados os recursos ordinários, se não verificava uma das “exigências sustentadoras da admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 70º da LTC”.
3. Logo, vindo a verificar-se ex julgatum - como efectivamente veio a verificar-se (pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e pela alínea b) da douta Decisão Sumária ora sob reclamação) - que tal pressuposto estava errado, que a decisão em causa não admitia recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que relativamente a ela se encontravam esgotados os recursos ordinários, forçoso seria concluir que se deveria ter permitido ao Recorrente recorrer de tal decisão para o Tribunal Constitucional.
Como ele o pretendeu fazer e, cautelarmente, fez.
4. Aliás, esse o sentido (o objectivo) dessa cautelar interposição do Recurso para o Tribunal Constitucional, que foi interposto, precisamente, sob a condição suspensiva de o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não vir a ser admitido.
5. Assim, dirimida (que se mostra agora, definitivamente) a questão da recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação para esse Supremo Tribunal, é que no quadro emergente dos autos se poderá recorrer desta decisão para o Tribunal Constitucional.
6. Ou seja: salvo o devido respeito, é entendimento do ora Reclamante - entendimento, esse, que resulta em sua opinião dos próprios fundamentos da douta decisão reclamada - que, “firmado ex julgatum, portanto, o entendimento de que
(a decisão do Tribunal da Relação não admite recurso ordinário), deve ser reformada aquela outra decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
7. Porém, sempre com salvaguarda de todo o respeito devido, não é isso que - contraditoriamente - parece resultar da parte decisória, propriamente dita, da douta Decisão Sumária ora sob reclamação, que, na parte de que nos ocupamos, se limita ao não tomar conhecimento do recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação, quando, no modo de ver do ora Reclamante deveria ser completada com a decisão de mandar devolver os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para reforma da decisão de não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, no sentido de tal recurso ser admitido.».
3 – O Procurador-Geral Adjunto respondeu à reclamação, dizendo:
«1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Na verdade, constitui pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º, que - no momento em que tal recurso é interposto - se mostrem esgotados os recursos ordinários possíveis.
3 - Condição que - no caso dos autos - se não verificava, já que - como resultado da própria actuação processual do recorrente - a decisão da Relação não podia ter-se por definitiva, uma vez que ele próprio a impugnava perante o Supremo Tribunal de Justiça.
4 - E sendo, a nosso ver, evidente que o dito pressuposto da exaustão dos recursos ordinários possíveis tem naturalmente de ser avaliado face às circunstâncias processuais que ocorriam no momento da respectiva interposição.».
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1. A., identificado nos autos, não se conformando com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2004 (fls. 1268 a 1281) que rejeitou, por inadmissibilidade, o recurso interposto pelo arguido do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(“LTC”), para “ser declarada a inconstitucionalidade da norma da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na parte em que considera inadmissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, por violação do disposto nos artigos 13.º,
20.º, n.º1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
2. Resulta ainda, do mesmo requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, que o recorrente pretende “interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto Acórdão (...) do Tribunal da Relação de Coimbra, para ser declarada a inconstitucionalidade: [§] Das normas dos artigos 363.º e 364.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, na interpretação, que parece resultar do douto despacho pelo qual a Mma. Juíza a quo indefere tal transcrição, segundo a qual tal documentação seria apenas necessária após interposição do recurso, por clara violação do direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; [§] Da norma do artigo 412.º n.º 5 do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a não especificação, pelo recorrente, dos recursos retidos em que mantém interesse equivale e tem como consequência a automática desistência dos mesmos, independentemente de prévio convite ao recorrente para esclarecer se era exactamente esse o significado que pretendia com tal omissão, por violação do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva e o direito ao recurso, consagrados nos artigos 20.º e 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; [§] Do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de
10 de Agosto, (...) do artigo 143.º n.º 4 do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no artigo 104.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de limitar a respectiva aplicação apenas aos casos em que ‘os prazos estão em curso’ e de excluir as situações em que o acto está a ser praticado no último dia do prazo, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e do direito ao recurso, consagrados nos artigos 20.º e 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que consagra uma limitação absolutamente injustificada ao exercício dos direitos de defesa dos arguidos em processo penal; [§] Da norma do artigo 103.º n.º 1 do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de excluir em processo penal a possibilidade da prática pelos arguidos de actos por telecópia no último dia do prazo, ou mesmo no terceiro dia útil subsequente a esse, fora das horas de expediente dos serviços de justiça, igualmente por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e do direito ao recurso, consagrados nos artigos 20.º e 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e igualmente por isso que consagra uma limitação absolutamente injustificada ao exercício dos direitos de defesa dos arguidos em processo penal; [§] Da norma do artigo 414.º n.º 3 do Código de Processo Penal, ainda por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa; [§] Das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo
412 do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de permitir o não conhecimento de recurso ou de parte dele por omissão ou deficiência de formulação de conclusões da respectiva motivação, independentemente de prévio convite ao recorrente para formular tais conclusões ou para as corrigir ou esclarecer, por violação do direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no respectivo artigo 20.º”.
3. Após o Recorrente ter dado cumprimento ao convite do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, ex vi do artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC, para que indicasse a norma ao abrigo da qual o recurso foi interposto, o recurso foi admitido por despacho prolatado a fls. 1290. Tal decisão não vincula, porém, o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 76.º, n.º 3, da LTC. E porque se configura uma hipótese enquadrada no n.º 1 do art.º 78º-A, da LTC, passa a decidir-se imediatamente, conhecendo, pela sua simplicidade, da questão de inconstitucionalidade que constitui o objecto do recurso do acórdão do STJ, e não conhecendo das questões de constitucionalidade respeitantes ao recurso interposto do acórdão da Relação de Coimbra.
4. Como resulta claro do requerimento de interposição supra transcrito, complementado com a resposta do Recorrente ao convite efectuado no tribunal a quo – e onde indicou «que “interpôs ambos os recursos, da Douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça e da, igualmente, Douta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra (...) ao abrigo da alínea b) do n.º do artigo
70.º (...)» –, vêm interpostos, sob o mesmo requerimento de interposição, dois recursos: (a) um recurso respeitante ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2004; (b) e outro concernente ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Fevereiro de 2004.
De resto, perscrutados os autos, resulta que o Recorrente havia interposto recurso do Acórdão do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça e, simultaneamente, para o Tribunal Constitucional, tendo a Juíza Desembargadora Relatora, perante tal circunstancialismo, admitido o primeiro e, no mesmo despacho (fls. 1251), não admitido o segundo.
Perante tal quadro, cumpre começar por apurar se estão preenchidos os requisitos para que o Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento dos recursos interpostos, sendo certo que constituem exigências sustentadoras da admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, que se esteja perante a aplicação, como ratio decidendi, de uma norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada pela recorrente durante o processo e que se encontrem esgotados os recursos ordinários.
5. Ora, quanto ao recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra é manifesto que este último requisito não se verifica. Na verdade, o conhecimento deste recurso está, como se prefigura claro, dependente da resolução do problema de constitucionalidade que vem suscitado no âmbito do recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Só depois de dirimida a questão em torno da recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação para esse Supremo Tribunal – e, em rigor, só depois de transitado em julgado o Acórdão que rejeitou o recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra – é que, no quadro emergente dos autos, se poderá recorrer desta decisão, firmado ex julgatum, portanto, o entendimento de que ela não admite recurso ordinário. Assim, como se compreenderá, não pode deixar de reconhecer-se que a admissibilidade do recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação está em estrita ligação com o resultado que sobrevier quanto ao recurso interposto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça: se este merecer provimento será óbvio que a decisão da Relação de Coimbra não será definitiva no sentido de não admitir recurso, havendo lugar à reforma da decisão de rejeição do recurso interposto; se, pelo contrário, for negado provimento ao recurso interposto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, só com o transito em julgado de tal decisão se estabelecerá a irrecorribilidade do Acórdão do Tribunal da Relação, com as consequências que daí advêm. Pelo que, nesses termos, se decide não tomar conhecimento do recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
6. Quanto ao recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, importa notar que o mesmo tem por objecto, nos termos que foram definidos pelo Recorrente, a “inconstitucionalidade da norma da alínea e), do n.º 1, do artigo
400.º do Código de Processo Penal, na parte em que considera inadmissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, por violação do disposto nos artigos 13.º, 20.º, n.º1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”. A (in)constitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), tem sido, por diversas vezes, sindicada pelo Tribunal Constitucional (cf. Acórdãos n.os 49/03,
377/03, 65/04, 264/04 e 390/04 e, também, com argumentação paralela, quanto à alínea f) da mesma norma, os Acórdãos n.os 189/01, 369/01, 435/01, 490/03,
451/03 e 102/04). Em todos esses arestos o Tribunal concluiu pela não inconstitucionalidade da norma sub judicio, com base na seguinte argumentação (aqui extraída do Acórdão n.º 377/03, onde se cita a jurisprudência do Tribunal):
«[...] 12. Do mérito do recurso de inconstitucionalidade
A norma do CPP cuja inconstitucionalidade o recorrente defende tem a seguinte redacção:
«Artigo 400.º
1. Não é admissível recurso: a)... b)... c)... d)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no art.º 16.º, n.º3;
[...]».
A questão decidenda não é nova. Sobre ela já se pronunciou este Tribunal Constitucional, pelo menos, no seu Acórdão n.º 49/03, embora aqui o Ministério Público não tenha feito aplicação do disposto no art.º 16.º n.º 3 do CPP. Mas a questão já foi abordada, também, a propósito de casos subsumidos às hipóteses previstas nas alíneas c) e f) do mesmo preceito (cf. Acórdãos n.ºs 189/01,
369/01 e 435/01, todos inéditos). Como resulta do relatado, o que o recorrente defende é a possibilidade da existência, em concreto, de um terceiro grau de recurso. Mas não tem razão. A propósito de um caso abrangido pela alínea f) do art.º 400.º do CPP, escreveu-se no Acórdão n.º 189/01:
«6. – A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies. Importa todavia averiguar em que medida a existência de um duplo grau de jurisdição poderá eventualmente decorrer de preceitos constitucionais como os que se reportam às garantias de defesa ao direito de acesso ao direito e à tutela judiciária efectiva. Não pode deixar de se referir que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tratado destas matérias estando sedimentados os seus pontos essenciais. Assim a jurisprudência do Tribunal tem perspectivado a problemática do direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento específico desta matéria no processo penal. A consagração após a Revisão de 1997 no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição do direito ao recurso mostra que o legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa. Porém, mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, não pode decorrer desse fundamento que os sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto ás decisões penais condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (veja-se neste sentido o Acórdão n.º 265/94 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 27.º vol., pág. 751 e ss). Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo 32.º (O processo criminal assegura todas as garantias de defessa incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a considerar como conformes à Constituição determinadas normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (v.g. quer de despachos interlocutórios quer de outras decisões Acórdãos n.os 118/90 259/88 353/91 in Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 15.º, pg. 397; 12.º pg. 735 e 19.º pg.
563, respectivamente, e Acórdão n.º 30/2001 sobre a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação particular quando o Ministério Público acompanhe tal acusação ainda inédito) como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo STJ (veja-se neste sentido o Acórdão n.º 209/90 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 16.º pg. 553) Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta limitação à recorribilidadade das decisões penais condenatórias tem assim um fundamento razoável.
7. [...] O artigo 400.º do CPP foi alterado pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto diploma que veio introduzir modificações no processo penal e deu à alínea f) a redacção que ainda mantém. De acordo com a proposta de revisão do processo penal (Lei n.º
157/VII Diário da Assembleia da República IIª Série-A n.º 27 de 28 de Janeiro de
1998) as modificações introduzidas na legislação processual penal visavam obter melhorias nos objectivos de economia processual de eficácia e de garantia que já informavam a anterior regulamentação. Assim e nos termos da exposição de motivos daquela proposta de lei introduziram-se modificações destinadas a dar mais consistência e eficácia aos meios disponíveis de entre elas se assinalando as de maior relevo para o caso: pretendeu-se restituir ao STJ a função de tribunal que apenas conhece de direito mas com excepções; manteve-se a tramitação unitária dos recursos mas sem haver um único modelo de recurso; faz-se um uso discreto do princípio da «dupla conforme» harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do STJ a casos de maior gravidade; retoma-se a ideia da diferenciação orgânica apenas fundada no princípio de que os casos de pequena e média gravidade não devem por norma chegar ao Supremo Tribunal de Justiça etc.
(cf. Sobre esta matéria Maia Gonçalves Código de Processo Penal Anotado 12.ª Edição pg. 754).
[...] Como já se referiu mesmo em processo penal a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz e mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência no processo penal da exigência constitucional das garantias de defesa tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido. Ora no caso dos autos o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior. Existe assim alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso. No caso o fundamento da limitação – não ver a instância superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um fundamento razoável não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos objectivos da última reforma do processo penal.
[...]
8. – Mas também não viola o princípio do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva constante do artigo 20.º nem o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º , ambos da Constituição. De facto o artigo 20.º estabelece que 'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' e ainda que 'todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo' (n.os 1 e 4). Ora no caso em apreço a questão foi objecto de apreciação por duas instâncias pelo que não se pode afirmar que tenha havido violação do preceito uma vez que dele apenas resulta que o legislador terá de assegurar imperativamente e sem restrições o acesso a um grau de jurisdição. Também quanto ao princípio da igualdade não foi violado uma vez que a limitação estabelecida na norma questionada não se afigura como arbitrária ou desproporcionada sendo admissível desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido que como se referiu não abrangem o direito ao exame de questão já reexaminada em duas instâncias. Por último importa referir que a situação paralela mencionada pelo recorrente – a do critério para fixação da competência dos tribunais para julgamento - não tem que ser invocada para apreciar a limitação a um triplo grau de jurisdição uma vez que não se trata de situações essencialmente iguais que exijam tratamento igual. No caso do artigo 14.º trata-se da distribuição da competência funcional e material entre o tribunal colectivo e o tribunal singular. No caso do artigo 400.º trata-se de uma limitação do direito de recurso cujos parâmetros e finalidades são inteiramente diferentes dos que subjazem á questão da distribuição de competência pelo que não faz sentido invocar aqui o princípio da igualdade».
Por seu lado, num caso em que o preceito aplicado foi o mesmo cuja inconstitucionalidade aqui se cogita, escreveu-se no referido Acórdão n.º 49/03:
«4. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade para salientar por diversas vezes que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal. Este direito assenta em diferentes ordens de fundamentos. Desde logo a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais a hipótese de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito – é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a detecção de tais erros através de um novo olhar sobre o processo. Mais do que isso o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida o que naturalmente tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede. Por último está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa. Neste plano a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo e agora perante um tribunal superior a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa. Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. A ligação entre o direito ao recurso e o duplo grau de jurisdição é pois evidente [...].
5. A norma impugnada pela recorrente – contida na alínea e) do n.º 1 do artigo
400.º do Código de Processo Penal – exclui nos casos nela previstos a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos em recurso pela relação.
Importa ter presente todavia que tais acórdãos resultam justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação) perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Por outras palavras o acórdão da relação proferido em 2.ª instância consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso.
[...] Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória ainda que proferida em recurso deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1.ª instância. O que ninguém aceitará. A verdade é que estando cumprido o duplo grau de jurisdição há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça evitando a sua eventual paralização e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. Esta segunda justificação aliás explica a diferença entre as alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal; com efeito se ao crime em causa for aplicável pena de prisão 'não superior a oito anos' (alínea f)) – não sendo hipótese abrangida pela alínea e) naturalmente – só não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão condenatório proferido pela Relação se este confirmar 'decisão de 1.ª instância'».
Ora, são essencialmente transponíveis para o caso dos autos (sendo que a al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP foi também objecto de alteração efectuada pela referida Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto) os argumentos expendidos nos excertos que se deixaram transcritos destes dois arestos e cuja doutrina se pode sintetizar deste modo: O direito de recurso conta-se entre “todas as garantias de defesa” conferidas pelo art.º 32.º, n.º 1 da CRP. Todavia, no domínio do processo penal, esse direito ao recurso basta-se com a existência de um duplo grau de jurisdição. Do art.º 20.º, n.º 1 da CRP não resulta que os interessados tenham de ter assegurados todos os graus de recurso abstractamente configuráveis ou um direito irrestrito ao recurso. Numa hipótese, como a da alínea e) do n.º 1 do art.º
400.º do CPP, em que se mostra assegurado um duplo grau de jurisdição não poderá dizer-se que não esteja assegurado em termos constitucionalmente justificados o direito de acesso aos tribunais. A limitação dos graus de recurso, na situação a que se reporta a alínea e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP, justifica-se por estarem em causa crimes que são punidos com penas leves ou de média gravidade e pela necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade, por razões de capacidade de resposta do sistema judiciário e de economia processual. Para ajuizar se ocorre a alegada violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP não se poderá convocar como “tertium comparationis” o regime que decorre do art.º 16.º n.º 3 do CPP. Na verdade, tal regime está funcionalizado aos interesses de determinação da competência do tribunal singular, construída a partir da susceptibilidade de aplicação de um máximo da pena passível de ser ditada em concreto. Tais interesses são manifestamente distintos dos que subjazem ao regime legal constante do art.º 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, pois aqui trata-se de estabelecer uma limitação ao direito de recurso das decisões da Relação, para atender aos interesses de celeridade processual e da necessidade de reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça apenas para os casos de maior gravidade. Não se trata, assim, de situações essencialmente iguais que exijam tratamento igual».
E também no Acórdão n.º 490/03 se salientou que:
«[...]
Na verdade, o Tribunal Constitucional, compreendendo os fundamentos materiais da imposição jusfundamental do direito ao recurso em processo penal – direito esse que permite a apreciação por parte de um tribunal superior dos motivos (de facto ou de direito) que sustentam a posição jurídica do arguido e a sua argumentação, reduzindo o risco de um eventual erro de julgamento e oferecendo “uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida na nova sede” (cf. Acórdão n.º
49/03) – tem unanimemente reconhecido que tais fundamentos entroncam directa e imediatamente na garantia do duplo grau de jurisdição penal, não resultando já da nossa Lei Fundamental – em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 2.º do protocolo adicional n.º 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 22/90, de 27 de Setembro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 51/90, da mesma data) – a necessidade de, em todo o caso, haver obrigatoriamente lugar a um “triplo grau de jurisdição”, que conduzisse ao Supremo Tribunal de Justiça todos os processos da jurisdição penal, (cf., quanto ao direito de recurso e à garantia do duplo grau de jurisdição, no período anterior à Revisão de 1997, Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, pp. 42 e ss., esp. 74 e ss.).
(...)
12. Importa, ainda, notar que, no caso sub judicio, o recorrente contesta o juízo do Supremo Tribunal de Justiça que entendeu que «qualquer que seja a pena aplicada ou aplicável em cúmulo jurídico, são as penas – cada uma delas singularmente considerada – aplicáveis aos singulares crimes em concurso que hão-de dizer da recorribilidade ou irrecorribilidade da decisão. Se a moldura abstracta de qualquer destes crimes singulares não ultrapassar os oito anos de prisão, a decisão, verificada a “dupla conforme” é irrecorrível (…)». Tal norma, na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi já alvo de sindicância por parte do Tribunal Constitucional. Com efeito, no Acórdão n.º
189/01, afirmou-se que:
“A norma que vem questionada refere-se claramente à moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8 anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso de infracções que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de acórdãos condenatórios das relações que confirmem a decisão de primeira instância.
Significa isto que o patamar a partir do qual a decisão da relação é irrecorrível é o que fixa em pena não superior a 8 anos a pena aplicável a determinado crime, independentemente de, no caso, terem sido várias as infracções cometidas em concurso. Relevante, para efeitos de (in)admissibilidade de recurso é a pena aplicável ao crime cometido e não a soma das molduras abstractas de cada um dos crimes em concurso. Como já se referiu, mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação, se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.
Ora, no caso dos autos, o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior.
Existe, assim, alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação – não ver a instância superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos objectivos da última reforma do processo penal”.
[...]».
É esta a jurisprudência que, pela bondade dos fundamentos em que assenta, aqui se renova, pelo que, em conformidade, se conclui que a norma da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na parte em que considera inadmissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, não viola o disposto nos artigos 13.º, 20.º, n.º1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
7. Destarte, atento o exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra; b) Negar provimento ao recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Setembro de 2004.
Custas pelo Recorrente, com 8 UC de taxa de justiça.».
B – Fundamentação
5 – Como decorre dos termos da sua reclamação, o reclamante não controverte a decisão reclamada na parte em que esta decidiu negar provimento ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e no qual questionava a constitucionalidade da norma constante da alínea e) do n.º 1 do art.º 400º do Código de Processo Penal.
Em bom rigor, o que o reclamante controverte é que, tornada agora definitiva a decisão relativa à questão da irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) do acórdão condenatório da Relação e estando aberta a possibilidade de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da mesma Relação, a decisão reclamada tenha decidido não tomar conhecimento do recurso em vez de ordenar a devolução dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para este proceder à “reforma da decisão de não admissão do recurso aí antes interposto e não admitido afim se ser agora admitido”.
6 – O reclamante não tem, porém, razão. É certo que, uma vez transitado em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que considerou irrecorrível o acórdão da Relação como consequência do trânsito em julgado da decisão sumária reclamada, na parte em que esta julgou não inconstitucional a norma sindicada e negou provimento ao recurso do acórdão daquele Supremo Tribunal, se abre a hipótese para o recorrente (não interessando saber se também para outros) da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 2 do art.º 75º da LTC. Mas essa possibilidade, a ser exercida, corresponde ao exercício, em tal tempo, do direito do recurso através de um acto a praticar pelo recorrente.
Ora, o recurso relativo ao acórdão da Relação sobre o qual se pronunciou a decisão sumária – no sentido do seu não conhecimento – foi o recurso do acórdão da Relação que o ora reclamante interpôs para o Tribunal Constitucional simultaneamente, e através do mesmo requerimento, com o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
Não se podendo, então ou no momento de interposição, considerar definitiva (art.º 70º, n.º 2, da LTC), por força da actuação processual do recorrente de recorrer do acórdão do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça e depois da decisão deste para o Tribunal Constitucional, a decisão da Relação, não poderia ele recorrer simultaneamente para este Tribunal desse acórdão e do acórdão do STJ.
Por outro lado, a possibilidade de interposição de um novo recurso do acórdão da Relação que se abre ao recorrente nos termos do n.º 2 do art.º 75º da LTC não tem nada a ver com o recurso que antes interpôs no mesmo Tribunal da Relação e cuja admissão foi recusada por despacho do relator, nesse Tribunal. A decisão de não admissão não estava sob apreciação do Tribunal Constitucional, razão pela qual este Tribunal nunca poderia ordenar a sua reforma, como pretende o recorrente, sendo de constatar até que essa não admissão se havia convertido em caso julgado.
Impõe-se, pois, a improcedência da reclamação.
C – Decisão
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação e condenar o reclamante nas custas com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 1 de Fevereiro de 2005
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050052.html ]