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Processo n.º 232/05
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A fls. 544 foi proferida nestes autos a seguinte decisão sumária:
A., advogado, pretende recorrer ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional do acórdão da Relação do Porto que o condenou,
como autor material de um crime de injúrias agravadas pp nos artigos 181º, 182º
e 184º do Código Penal na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 15 euros, e
no pagamento ao ofendido de indemnização cível no montante de 4 mil euros, com
juros de mora.
Invoca, em suma, que tanto a sentença condenatória de 1ª Instância, quer o
acórdão da Relação 'violaram' diversos preceitos e princípios constitucionais.
O recurso não pode ser admitido.
Com efeito, o recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC não
visa apreciar a conformidade constitucional de decisões jurisdicionais, mas de
normas nelas aplicadas, e a verdade é que o recorrente não suscita nos autos –
designadamente no requerimento de interposição – qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa.
Assim, nos termos do n. 1 do artigo 78º-A da referida LTC, decide-se não
conhecer do recurso.
2. Contra esta decisão reclama o recorrente, dizendo:
1. O Ac. RP é contraditório – nos seus próprios pressupostos pois se a fls. 21
considera que '...apenas o protesto fora susceptível de ver reconhecido o
requisito da imediatidade em relação ao aludido reparo profissional – requisito
esse, indispensável para a relevância legal das figuras da provocação e da
retorsão...' já a fls. 26, se conclui que '...os factos deixam perceber que a
circunstância de o arguido se ter sentido chocado quando tomou conhecimento do
acórdão, esteve presente em toda a sua conduta...'.
2. Mas está também ferido de inconstitucionalidade, pois o direito de liberdade
de resposta, de pensamento e de expressão consignado nos nºs 1, 2 e 4 do art.
37° da nossa lei Fundamental e que, na situação sub judicio, vem legalmente
consagrado e materializado nos institutos do protesto e da retorsão, foi
drasticamente violado
3. O recorrente referiu nas alegações na sua 14.ª conclusão e no requerimento de
oposição ao parecer do MP junto da RP, que a conduta do assistente, bem como,
implicitamente, as decisões judiciais que se lhe reportam, violaram os (ali)
citados normativos e o direito constitucional que lhe assistia de formular esse
protesto e de retorquir, como retorquiu, por se sentir justamente indignado.
4. São esses dois institutos, afinal, cuja constitucionalidade vem posta em
causa, pese, embora, terem sido também violados os art. 12°, 13°, 25° e 26° da
C.R.P., bem como os direitos que lhes são conexos, de livre expressão, de
resposta e de indignação, consignados nos nºs 1, 2 e 4 do art. 37° da CRP.
5. E ainda que tal arguição tenha sido feita em termos genéricos, não deverá
obstar à admissão deste recurso, pois como se decidiu no douto Ac. TC 31/88
'...afirmar que determinada interpretação, dada pelo tribunal recorrido, não
poderia ter sido querida pelo legislador, sob pena de inconstitucionalidade,
vale por arguição de inconstitucionalidade da norma em causa. Afirmar que uma
norma, na interpretação que lhe foi dada por qualquer tribunal afronta a lei
fundamental vale como arguição de inconstitucionalidade e é assim fundamento de
recurso'.
6. Sobre tal requisito decidiu-se, ainda, no douto Ac. TC 122/00, que '...para
efeitos de fiscalização concreta de constitucionalidade, uma interpretação
restritiva de norma da qual resulte a sua inaplicabilidade ao caso concreto,
deve ainda considerar-se aplicação dessa norma, sob pena de a mesma nessa
interpelação nunca poder ser sindicada à luz da Constituição.'
7. Daí que o presente recurso, interposto nos termos da al. b) do art.70°-1 da
LTC, haja cumprido, minimamente, a prescrição do art.72°-2 da mesma Lei, tendo
em linha de conta que não era de todo previsível que o acórdão da RP, para
confirmar a sentença proferida na 1ª instância tivesse feito incidir a
respectiva fundamentação no argumento de que 'dependendo o instituto penal da
retorsão da 'imediatidade' da reacção relativamente à provocação ou ofensa que
lhe subjaz, o texto de 14.7.00 vem muito distanciado do 'reparo inicial' pelo
que não poderá o mesmo preencher aquele requisito' e no facto de que
'...enquanto advogado, tinha o arguido o especial dever de não reagir como
reagiu...' (Cf. a fls. 54, o ponto B.3, in Breviário de Direito Processual
Constitucional, 2. ed. do Ex.mo Conselheiro Guilherme da Fonseca e I. Domingos e
Acs 124/00, 155/00, 192/00, 79/02 e 120/02).
8. Mas ainda que se entenda que a questão da inconstitucionalidade não tinha
sido devidamente suscitada, não sofre dúvida de que, pelo menos a partir daqui,
a interpretação dada ao conceito de retorsão, pelo menos do ponto de vista do
art. 186°-2 do CP, é inusitada, pois o legislador previu aí expressamente a
possibilidade de 'o tribunal dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada
por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido', não se fazendo depender
essa possibilidade de qualquer condição temporal neste caso da imediatidade
esgrimida no ac. rec. (Cf.: a esse propósito, op. cit. obs. 44, fls. 44).
9. É, pois, inconstitucional, o referido normativo, na interpretação que lhe foi
dada pela RP, não apenas porque ubi lex non distinguit non nos distinguire
debemus, mas também porque se o mesmo tivesse sido interpretado e aplicado
correctamente – que é o mesmo que dizer, como o quis o nosso legislador penal,
de contrário não teria rescrito logo a seguir no n° 3 do mesmo art. 186° uma
outra hipótese, que ao caso dos autos não se aplica – a decisão a proferir sobre
o recurso teria sido muito outra.
10. Como pode ver-se a fls. 14-v e 15 do ac.. rec., atendeu-se apenas 'à
protecção da honra individual do assistente, enquanto cidadão, e à sua honra
funcional, como decorrência do seu estatuto profissional', acrescentando, ainda,
a fls. 17-v, que '...a insinuação do arguido fora tão mais grave quanto se
dirigira alguém que pelo seu estatuto profissional, por força dele, deve actuar
de harmonia com a lei, com os princípios basilares da Constituição e nunca à
margem dela...'
11. Mas actuou e, por isso, o entendimento aí perfilhado – bem como o de que a
situação subjudice não seria, por pretensa falta da referida imediatidade,
subsumível ao instituto da retorsão p. no art. 186°-2 da CP – fazem presumir uma
leitura e interpretação deficientes da nossa lei penal, sendo também violador da
Constituição, pois, além de contraditório entre si (cf. supra, ponto 1.b), c), é
também insólito e surpreendente, na medida em que teve de passar pelo
reconhecimento implícito de que o assistente, por ser juiz, ainda que à revelia
da prescrição contida no art. 266º-B do CPC, tinha o pleno direito de ser
descortês para com o recorrente, em virtude de este, à son avis, não passar de
um simples causídico.
12. Tal entendimento, a nosso ver, constitui desvio inadmissível,
inconstitucional e discricionário, verdadeiramente revelador do menosprezo pela
honra do recorrente, enquanto cidadão e enquanto advogado, obliterando-se que a
honra funcional deste nada deve à do Juiz, assim o entendemos e defendemos nós,
pela singela razão de que ela não se afere por títulos nobiliárquicos, de
propriedade, académicos ou profissionais, mas antes pela forma digna como cada
um de nós exerce o seu múnus.
13. É ainda, ele mesmo, ilegítimo por violar a lei e a Constituição, pois vem ao
arrepio do disposto no art. 459° do CPC e do dever consignado no art. 266°-B, a
prescrever que os deveres de respeito e de urbanidade são, devem ser,
recíprocos. Se não são, e se se arranjam sempre estratagemas e tergiversações
formais para recusar a aplicabilidade, a todos por igual, da lei processual
civil e da Constituição, então rasguem-se uma e outra e tenha-se a coragem de
vir para a praça pública defender que isto de lei e de direitos constitucionais
é tudo treta e não passa de um sonho de quem lutou e rejubilou um dia por poder
viver, finalmente, num país onde a liberdade passa pela cumprimento rigoroso das
leis, sim, mas pela absoluta igualdade de direitos e de deveres entre todos os
cidadãos.
14. Acresce que o recorrente não foi Juiz porque não quis, mas nem por isso se
sente menos honrado e enobrecido. Abraçou a advocacia por amor e por vocação,
não podendo admitir que o assistente, por na altura ser juiz Desembargador e,
hoje, Conselheiro do STJ, se tenha dado ao desplante de nos querer dar lições de
coerência e de brio profissional. Sempre respeitámos os nossos magistrados,
quase até à veneração, mesmo quando cometem erros de Julgamento. Mas já não
podemos aceitar que, ainda por cima, o assistente se tenha permitido brindar-nos
com expressões deselegantes, tanto do ponto de vista pessoal como do
profissional e punir-nos, indevidamente, apenas por, em face delas, termos
lavrado justo protesto.
Nestes termos e melhores de direito que a douta Conferência não deixará de
suprir, deverá revogar-se a, aliás, douta decisão sumária que antecede e
substituir-se por outra que admita o presente recurso, por se verificarem, ainda
que sem a desejável precisão e clareza, os pressupostos consignados nos art.
70º-1b), 72°-2 e 75°-A, todos da LTC.
3. Em resposta, o representante do Ministério Púbico neste Tribunal entende
que a reclamação é manifestamente improcedente.
4. Pretende, em suma, o recorrente ver sindicada a decisão da Relação do Porto
por força da qual se acha condenado, como autor material de um crime de injúrias
agravadas, pp pelos artigos 181º, 182º e 184º do Código Penal na pena de 100
dias de multa à taxa diária de 15 euros e ainda em indemnização cível a favor do
ofendido.
Acontece que, conforme se afirmou na decisão sumária em reclamação, o recurso
previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC não visa apreciar a
conformidade constitucional de decisões jurisdicionais, mas de normas nelas
aplicadas, e a verdade é que o recorrente não suscita nos autos qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa. Na verdade, a crítica é formulada contra a
determinação jurídica contida na concreta decisão recorrida e não, como seria o
caso se em causa estivesse uma questão de inconstitucionalidade normativa,
contra uma norma geral e abstracta aplicada – porventura numa determinada
interpretação normativa – ao caso concreto. E nem mesmo a referência a uma norma
inconstitucional no ponto 9. da presente reclamação (que sempre se revelaria
tardia) seria suficiente para fazer concluir que em causa está uma questão de
inconstitucionalidade normativa, pois quando o recorrente substancia a acusação
de desconformidade constitucional passa a referir-se, sem dúvida, à decisão
condenatória e não a qualquer norma jurídica nela aplicada.
Assim, e uma vez que do objecto do presente recurso estão excluídas as decisões
jurídicas, como são os arestos dos outros tribunais, pois apenas nele cabem as
normas aplicadas como causa de decidir de decisões jurisdicionais, torna-se
inevitável que este Tribunal não conheça do presente recurso.
5. Nestes termos, indeferindo-se a reclamação, decide-se confirmar a decisão
sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 24 de Maio de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos