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Processo n.º 383/2005
3ª Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 23 de Maio de 2005 o relator proferiu decisão com
o seguinte teor:-
“1. No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 21 de
Novembro de 2001, na sequência do recurso interposto pelo Representante do
Ministério Público junto do Tribunal de comarca da Nazaré da sentença lavrada em
4 de Abril de 2001 e que absolveu o arguido A. do crime, de que se encontrava
pronunciado, de participação económica em negócio, previsto e punível pelo nº 1
do artº 23º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, foi dito, para o que agora releva:-
‘(...)
Face ao exposto entendemos que, contrariamente ao constante da
materialidade considerada não provada, as regras da experiência conjugadas com a
prova indirecta existente implicam a conclusão de que o arguido, na sua
qualidade de Presidente da Câmara, teve uma intervenção essencial na adjudicação
referida no item 26 da matéria de facto considerada provada como resultado de um
tratamento preferencial e com o intuito concretizado de obter vantagem
patrimonial.
Permita-se referir aqui que é exactamente essa aplicação das regras da
experiência que constitui o ‘nó górdio’ e o grande equívoco da decisão
recorrida, a qual afirma expressamente que não é crível que o arguido tivesse a
realizar essa assistência [à] B. sem qualquer compensação e com base apenas na
amizade...Contudo, por força da aplicação do ‘princípio in dubio pro reo’ e das
regras probatórias não poderá ser declarado provado um facto com base apenas nas
regras da experiência’.
Em oposição a tal postulado diremos que o recurso [à] aplicação das
regras da experiência é essencial no direito probatório e constitui uma premissa
do silogismo quando da valoração da prova. É evidente que, se o ponto de partida
é d[a] inadmissibilidade das regras da experiência, o princípio em causa não é
um ponto de chegada depois de um esforça exaustivo de procura da verdade
material, mas sim um cómodo estado permanente de dúvida a resolver de acordo com
a enunciação do ‘in dubio pro reo’.
*
Estamos assim, perante uma patologia definida no artigo 410 do Código
citado como um erro notório na apreciação da prova. Tal notoriedade resulta do
facto de face [à] decisão recorrida se impor, perante as regras da experiência,
uma conclusão diversa da constante da mesma em sede de matéria de facto,
repercutindo-se tal vício na matéria da alínea j) da materialidade considerada
não provada.
Por outro lado igualmente é certo que existe uma contradição insanável
a nível da fundamentação e decisão quando face, aos factos considerados
provados, se conclui pela inexistência de uma lesão patrimonial dos interesses
da Câmara Municipal da Nazaré.
*
Nos termos expostos determina-se o reenvio do processo ao abrigo do
disposto no artigo 426 do Código de Processo Penal para novo julgamento relativo
[à]s questões ora descritas.
(...)’
Após algumas vicissitudes processuais que agora não interessa relatar,
foi realizada no 2º Juízo do Tribunal de comarca de Alcobaça, a audiência de
julgamento, a fim de se cumprir o decidido por aquele acórdão.
Numa das sessões daquela audiência, ocorrida em 4 de Junho de 2004, o
Juiz do indicado 2º Juízo ditou para a acta o seguinte despacho:-
‘Da presente audiência de julgamento, face à prova produzida e
restante prova documental constante do processo, é suscept[í]vel de resultarem
provados os seguintes factos .
1 - Face ao teor das propostas individualmente consideradas das
Empresas B. e C., ao adjudicar-se à empresa B. a elaboração do PDM do concelho
da Nazaré pelo preço de 9.850.000$00, preterindo-se a proposta [ ] da C. para a
elaboração [do] mesmo PDM, pelo preço de 7.350.00$00, resultaram prejuízos
patrimoniais à C. M. da Nazaré no montante de 2.500.000$00.
2 - O arguido admitiu como poss[í]vel que a adjudicação do PDM do
concelho da Nazaré à empresa B., pelo preço de 9.850.000$00 com preterição da
proposta da C. de 7.350.000$00, face aos critérios constantes do edital de
17-07-1990, a anunciar a abertura do concurso, bem como aos critérios para a
apreciação das propostas constantes do artº 11º do programa do concurso,
resultasse um prejuízo para a C. M. da Nazaré, no montante de 2.500.000$00 e,
não obstante, actuando como o fez, conformou-se com tal possibilidade.
*
O arguido está pronunciado pela pr[á]tica de um crime de participação
económica em negócio, p. p. pelo artº 23º nº 1 da Lei nº 34/87 de 16/7.
Dispõe o preceito em refer[ê]ncia que, ‘o titular de cargo político
que, com intenção de obter para si ou para terceiro participação económica
il[í]cita, lesar em negócio jur[í]dico[ ] interesses patrimoniais que, no todo
ou em parte, lhe cumpra, em razão das suas funções administrar, fiscalizar,
defender ou realizar, será punido com pena de prisão até 5 anos e multa de 50 a
100 dias[’]
Como se mostra mais que evidente, na parte em que o preceito se refere
a ‘lesar em negócio jur[í]dico os interesses patrimoniais’, o elemento objectivo
do tipo de il[í]cito em refer[ê]ncia é o de preju[í]zo patrimonial.
A referida factualidade que é susceptível de resultar provada, não
consta da acusação nem da pronúncia.
Como tal, o que é um facto é que da maneira como os factos estão
configurados actualmente na pron[ú]ncia, os mesmos, pelo menos, não constituem o
crime de que o arguido se encontra acusado, nem qualquer outro que se vislumbre,
uma vez que lhe falta o elemento objectivo (preju[í]zo patrimonial) bem como o
subjectivo (dolo de facto - elemento volitivo, em qualquer uma das suas
modalidades, isto é, directo, necessário e eventual).
E não se diga que tal elemento de preju[í]zo patrimonial, em
abstracto, resultará implicitamente da pron[ú]ncia, pelo facto de se ter
adjudicado o PDM a uma empresa que oferecia um preço superior por contraposição
a uma outra que oferecia um preço menor, sendo o preju[í]zo a simples diferença.
É que tal preju[í]zo, para se chegar ao mesmo, tem que ser configurado
por refer[ê]ncia a todos os critérios constantes do edital para publicitação do
concurso, bem como dos critérios constantes do programa do concurso.
Só na globalidade, isto é, desde que as duas empresas satisfaçam todos
os critérios e adjudicando-se à que oferece um preço superior, é que é
poss[í]vel configurar o preju[í]zo.
É que, em abstra[c]to, é susceptível de se configurar que a empresa
que oferece o preço mais baixo não seja a mais vantajosa, uma vez que pode não
satisfazer os restantes critérios.
Concluindo, aqui chegados, o preju[í]zo patrimonial não resulta de uma
simples operação matemática, mas antes de uma análise cr[í]tica de todos os
critérios constantes do programa e do edital.
A materialidade supra enunciada e que é suscept[í]vel de resultar
provada configura uma alteração substancial dos factos constantes da acusação
(artºs 1º nº 1 al. f) e 259º nº 1 do CPP). Se bem que o primeiro preceito se
refira a alteração substancial dos factos como ‘aquela que tiver imputação o
arguido dum crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções
aplicadas’ - não sendo nenhuma destas situações a em apreço - por identidade ou
maioria de razão também será a alteração substancial aquela onde, como se refere
no Ac[ó]rdão da Relação do Porto de 20/2/2001 (In WWW.DGSI.PT, doc. nº RP
200110240110632) ‘existe analogia de situações entre a hip[ó]tese de alteração
dos factos descritos na acusação, ter por efeito a imputação ao arguido de um
crime diverso e a hipótese de a alteração factual, consistir no acrescentamento
aos factos descritos na acusação de um facto (novo), sem o qual o arguido não
poderia ser condenado criminalmente’, situação, esta [ú]ltima, que se verifica,
no caso em apreço).
Considerando esta alteração substancial, o julgamento só poderá prosseguir desde
que o Mº Pº e o arguido estejam de acordo com a continuação do julgamento pelos
novos factos.
Assim sendo, notifique-se o Digno Magistrado do Mº Pº e o arguido para,
querendo, se pronunciarem quanto à oposição ou não oposição’.
Notificados do transcrito despacho, o Representante do Ministério
Público junto do aludido 2º Juízo não se opôs à ‘continuação do julgamento pelos
novos factos apurados’, enquanto que o arguido, por intermédio da sua
mandatária, se opôs ‘à alteração substancial dos factos constantes da
pron[ú]ncia e no pro[ss]eguimento do julgamento pelos novos factos’ (expressões
retiradas da acta).
Veio então o já indicado Juiz proferir despacho com o seguinte teor:-
‘Considerando que o arguido se opõe à continuação do julgamento pelos novos
factos, o tribunal não os poderá ter em consideração neste julgamento.
Porque assim, ao abrigo do disposto no art° 359° nºs 1 e 2 do CPP, decide - se:
Absolver o arguido desta instância crime e comunicar esta eventual alteração ao
MºPº para que ele, querendo, proceda criminalmente pelos novos factos, uma vez
que a alteração ora comunicada vale como denúncia.
Oportunamente, dê-se vista ao Digno Magistrado do Mº Pº.
Notifique’.
Deste despacho interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra o
Representante do Ministério Público, concluindo assim a motivação adrede
produzida:-
‘1 - O douto despacho recorrido violou o artigo 1º, alínea f), do
C.P.P. ao considerar, erradamente, a existência de uma alteração substancial dos
factos descritos na pronúncia.
2 - Considerou o tribunal recorrido que os factos ‘susceptíveis de se
provarem’ não estavam na pronúncia mas eles lá se encontram.
3 - O artº 1º, al. f) do CPP refere-se apenas a factos novos e não a
conclusões ou a operações aritméticas.
4 - Os factos alusivos ao prejuízo patrimonial, bem como o dolo
genérico constam do despacho de pronúncia;
5 - não se verificou qualquer alteração substancial ou não substancial
dos factos;
6 - Pelo que, a absolvição do arguido da instância crime é ilegal.
7 - Ao não fixar os factos, violou a decisão recorrida o disposto no
artº 379º, nº 1, al. c) do CPP.
8 - Ao contradizer-se quanto à existência de prejuízo patrimonial,
padece a decisão recorrida do vício aludido no artº 410º, nº 2, al. b) do CPP.
Termos em que, deve conceder-se provimento ao presente recurso,
devendo a decisão recorrida ser anulada e substituída por outra onde seja
fixada, em termos inequívocos, a matéria dada como provada e consequentemente,
proferida sentença de condenação de acordo com os factos já aceites pelo M.mº
Juiz como susceptíveis de se provarem’.
Após a apresentação da motivação em que foram formuladas as transcritas
«conclusões», o Representante do Ministério Público veio requerer que lhe fosse
entregue certidão de todo o processado, a fim de iniciar procedimento criminal
contra o arguido pelos novos factos e, como essa pretensão veio a ser indeferida
por despacho lavrado em 5 de Julho de 2004, do mesmo recorreu aquele
Representante para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Quanto ao recurso interposto pelo Representante do Ministério Público
do despacho ditado para a acta e que acima se transcreveu, o arguido rematou do
seguinte jeito a sua resposta à motivação desse recurso:-
‘1.ª Os factos que a decisão judicial recorrida toma como probandos, atinentes a
um requisito típico essencial [o dano] do crime que a pronúncia imputa ao
arguido [a participação económica em negócio] não estão vertidos na pronúncia.
2.ª Esses factos não implicam alteração da pronúncia de natureza substancial ou
não substancial nos termos e para os efeitos dos artigos 1º, alínea f) e 358º ou
359º, todos do CPP.
3. Também não pode considerar[-se] ser a situação em causa análoga a uma
situação de alteração substancial, por ser vedada a analogia como método
integrador de lacunas contra o estatuto de defesa do arguido [por aplicação dos
princípios gerais vertidos nos artigos 1º, n.º 3 do Código Penal e no artigo 11º
do CCv. aplicáveis ao domínio processual penal].
4.ª A pronúncia, ao não conter factos essenciais à realização típica do crime
imputado é nula [artigo 308º, n.º 2 e 283º. n.º 3, alínea b) do CPP].
5.ª Tal situação gera a impossibilidade de condenação do arguido por tal crime
[por ausência de factos] e não permite que o arguido seja duas vezes julgado
[agora e em novo julgamento] pelo mesmo crime.
6.ª Os artigos 1º, alínea f), 358º e 359º, todos do CPP, quando prevêem que
possam ser relevados em termos de num processo em que a pronúncia seja omissa
quanto a factos essenciais à realização típica do crime imputado, a consideração
em sede de audiência da existência desses factos gerar, não absolvição do
arguido por sentença de mérito, por impossibilidade de subsunção dos factos ao
tipo incriminador em causa, mas sim à comunicação ao MP para o efeito de
instauração de procedimento criminal, são materialmente inconstitucionais, por
violação do artigo 32º. n.º 1 e 5 e do artigo 29º, n.º 5 da CRP.
7.ª Nos termos do artigo 121º, n.º 1, alínea c) do CPP, o requerimento do MP de
fls. 3037 [ao solicitar certidão dos autos para instaurar o procedimento
criminal que a decisão judicial por ele recorrida determinava fosse por ele
instaurado] implica a sanação do vício que ele invoca no seu recurso’.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, o Representante
do Ministério Público junto desse tribunal de 2ª instância proferiu o seguinte
«parecer»:-
‘1. O Acórdão da Relação de Coimbra que decidiu o reenvio para
esclarecimento e alcance dos factos aí mencionados pressupõe que o Tribunal ‘a
quo’ em função da prova a obter por pertinentemente produzida definisse o
substrato factual que complementado pelo já anteriormente angariado constituísse
integral base de apoio à decisão de direito a proferir.
2. Todavia, a operação descritiva dos factos apurados com o âmbito
global que se deixa assinalado, devia assumir, no plano dito da fundamentação, o
cunho de rigor, unidade e clareza que a enumeração distinta e individualizada
dos factos provados e não provados proporciona por indiscutível exigência legal.
Só então, perante esse quadro de certeza, o Tribunal estaria
fundadamente habilitado a dele retirar as inferências com eventual dimensão ou
repercussão atendível no campo de previsão traçado pelo artigo 359º do C.P.
Penal.
3. Porém, tanto não ocorreu, já que logo que terminada a fase de
produção de prova, de modo irrecusavelmente dubitativo e limitado se invocou uma
‘parcial’ indicação de factos que marcados por atribuída ‘novidade’
jurídico-processual se elegeram como adquirido índice probatório a constituir
pretenso fundamento da ditada alteração.
4. Semelhante posição evid[e]ncia patente e acolhível omissão,
porquanto, não se mencionando em toda a sua extensão os ‘items’ provados e não
provados em termos de inegável pormenor e estabilidade, a conformar uma
terminante fixação, concretiza-se, simultaneamente, a não pron[ú]ncia de toda a
matéria de facto que importava considerar em toda a sua extensão como
pressuposto imprescindível duma ajustada decisão.
5. Daí, uma dupla consequência:
a) Declaração de nulidade do despacho judicial de fls. 3006 a 3008, a legitimar
o provimento do recurso de fls. 3022, em função do inobservado nos artigos 374º,
n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) e c) do C.P.Penal.
b) Declaração de prejudicialidade do conhecimento do recurso de fls. 3064
(segundo recurso), pois, o seu objecto, pressupõe, necessariamente, uma renovada
ponderação decisória do condicionalismo fáctico-processual que por idóneo e
abrangente, sustente a decretada alteração’.
Notificado o transcrito «parecer» ao arguido, o mesmo limitou-se a
dizer que dava como inteiramente reproduzido o que consignou na resposta à
motivação de recurso, ‘sem nada modificar, nisso incluindo a questão de
constitucionalidade suscitada’.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 12 de Janeiro de 2005,
declarou nulo o despacho recorrido e os actos subsequentes que dele dependessem,
ordenando a remessa dos autos à 1ª instância, sendo que, caso o Juiz que
presidiu à audiência se não encontrasse em condições de proferir a sentença, com
respeito pelo decidido no anterior acórdão, se determinava desde logo que fosse
repetido o julgamento, pelo que, ocorrendo essa situação, deveria considerar-se
anulado o julgamento e demais actos processuais que dele dependessem.
Pode ler-se nesse aresto:-
‘(...)
Não obstante o citado acórdão desta Relação ter determinado o reenvio
do processo ao abrigo do disposto no artº 426º do CPP para novo julgamento
relativo às questões descritas, vícios da sentença por erro notório e
contradição insanável, como se deveria proceder a novo julgamento relativamente
às questões concretamente identificadas consideramos que o tribunal a quo
poderia proferir o despacho ora em recurso.
Assim embora processualmente admissível o certo é que o mesmo não se
nos afigura substancialmente correcto.
(...)
Na verdade os factos que o tribunal a quo considerou como constituindo
uma alteração aos descritos na acusação ou na pronúncia não constituem alteração
tal como está definida pelos artigos 1º, al. f) e 358º e 359º do CPP porque os
mesmos já constam destas peças processuais. Apenas constituem uma alteração
digamos que semântica e matemática, ou seja dizer por outras palavras o que já
consta ou fazer contas.
É que como nota o Digno Recorrente o prejuízo referido no despacho
recorrido de 2.500.000$00 para a Câmara Municipal da Nazaré já consta da
pronúncia é tudo uma questão de fazer uma subtracção. Basta atentar na seguinte
factualidade constante da pronúncia:
(...)
Deste modo não descortinamos a mínima razão para que este despacho
fosse proferido e se tal não bastasse o Mº Juiz a quo deveria ter atentado ao
que se consignou no já referido Acórdão desta Relação constante de fls. 2634,
uma vez que se deve obediência [à]s decisões dos tribunais superiores.
Nele se pode ler entre outras as seguintes considerações que
determinaram o reenvio do processo:
(...)
Face ao exposto entendemos que (...) as regras da experiência
conjugadas com a prova indirecta existente implicam a conclusão de que o
arguido, na sua qualidade de presidente da Câmara teve uma intervenção essencial
na adjudicação referida no item 26 da matéria de facto considerada provada como
resultado de um tratamento preferencial e com o intuito de obter vantagem
patrimonial.
E para não haver mais alguma tentação (de se protelar o julgamento) e
porque a questão foi levantada pelo arguido/recorrido consideramos também que a
pronúncia integra a factualidade necessária e suficiente para se apreciar o
dolo.
É que para consubstanciar o dolo não se exige as sacramentais
expressões (‘agiu com intenção’ ‘admitiu como possível’ e não obstante actuando
como o fez conformou-se com tal possibilidade’) basta e é suficiente que o mesmo
resulta da factualidade como acontece no caso em apreço com a interligação das
seguintes situações.
(...)
Desta forma o despacho recorrido terá de ser declarado nulo.
Considerando que o prazo previsto no nº 6 do art. 328º do CPP apenas
se dirige aos casos de oralidade pura, que não de oralidade documentada, deverá
o Mº Juiz que presidiu prosseguir a audiência, caso se revele necessário, e
proferir sentença (com respeito do decidido no acórdão desta Relação) e caso não
se encontre em condições de proferir a sentença desde já se ordena a repetição
do julgamento, caso em que serão anulados o julgamento efectuado e demais actos
processuais subsequentes que dele dependem,
Quanto à inconstitucionalidade levantada pelo arguido (Os artigos 1º,
al. f), 358º e 359º todos do CPP, quando prevêem que possam ser relevados em
termos de num processo em que a pronúncia seja omissa quanto a factos essenciais
à realização típica do crime imputado, a consideração em sede de audiência da
existência desses factos gerar, não absolvição do arguido por sentença de
mérito, por impossibilidade de subsunção dos factos ao tipo incriminador em
causa, mas sim à comunicação ao MP para efeito de instauração de procedimento
criminal, são materialmente inconstitucionais, por violação do artº 32º, nº 1 e
5 e 29º, nº 5 da CRP) uma vez que face ao decidido supra não houve aplicação
concreta das referidas normas não se conhece dela.
No que concerne ao 2º recurso do Mº Pº (indeferimento de requerimento
para passagem de certidão) a procedência do recurso supra apreciado torna inútil
o conhecimento deste.
(...)’
Após ter sido solicitado pelo arguido a aclaração do acórdão de que
parte se encontra transcrita e de o peticionado ter sido desatendido por acórdão
de 9 de Março de 2995, veio aquele interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, o que fez mediante requerimento com o seguinte teor:-
‘(...)
Enquadramento da questão
1. Permitam-nos Vossa Excelências este rememorar da tramitação:
O Tribunal da Relação de Coimbra conheceu um recurso que foi interposto pelo MP
de uma decisão final proferida pelo Tribunal Judicial de Alcobaça [2° Juízo,
Processo n.º 677/95.7JACBR] num processo criminal em que o recorrente é arguido.
O MP através do seu recurso [fls. 3022] pretendia [e é este o objecto em causa]
que a decisão recorrida fosse anulada e «proferida sentença de condenação de
acordo com os factos já aceites pelo Mmo Juiz como susceptíveis de se provarem».
Na sua resposta à motivação do recurso do MP o arguido conclui no sentido de
«ser proferido acórdão a ordenar a absolvição do arguido ou, quando assim se não
entenda, a manutenção da decisão judicial recorrida».
E na sexta das conclusões dessa resposta o arguido consignou uma questão de
constitucionalidade que, como se verá agora perde sentido.
No seu parecer junto da Relação o MP foi no sentido da declaração de nulidade do
despacho judicial, «a legitimar o provimento do recurso de fls.3022».
Conhecendo o recurso em causa, a Relação de Coimbra proferiu decisão que não ia
nem no sentido pretendido pelo recorrente, nem pelo ora arguido, pois que
decidiu que o processo baixasse afinal primeira instância «sendo que, no caso de
o Mº Juiz que presidiu à audiência, não se encontrar em condições de proferir a
necessária sentença (com respeito do decidido no acórdão desta Relação) desde já
se ordena a repetição do julgamento, caso em que serão anulados o julgamento
efectuado e demais actos processuais subsequentes que dele dependem» [o que é o
sentido útil da decisão, dada a transferência do Meritíssimo Juiz em causa].
Ante o aresto em causa o recorrente suscitou a aclaração do mesmo pois que dele
constava uma referência decisória que alargava o objecto em causa para além dos
limites definidos pelo objecto do recurso.
2. Para entender tal questão importa ver de modo comparativo (i) o objecto do
recurso e (ii) o questionado alargamento definido pelo acórdão em apreço.
A questão em apreço no recurso era o saber se ante a pronúncia estavam nela
previstos ou não os factos típicos objectivos essenciais que permitissem uma
decisão final quanto à comissão pelo arguido do crime de participação económica
em negócio, nomeadamente o facto «prejuízo» ou «lesão» que o artigo 377°, n.º 1
do Código Penal [imputado ao arguido] pressupõe para a realização do crime em
apreço.
O MP recorrente entendeu que sim e isso o entendeu o aresto da Relação
considerando que os factos em causa, atinentes ao dano já constavam da acusação
uma alteração.
Só que - e eis o novo problema - a Relação, ao proferir o acórdão em referência
foi mais longe e [como o ora recorrente o referiu no seu pedido de aclaração]
consignou que «para não haver mais tentação (de se protelar o julgamento) e
porque a questão foi levantada pelo arguido/recorrente consideramos também que a
pronúncia integra a factualidade necessária e suficiente para se apreciar o
dolo».
Ou seja (i) estando em causa o saber se da pronúncia constavam não os elementos
de facto objectivos do tipo incriminador (ii) a Relação entendeu decidir [uma
questão nova e não suscitada] a de que da pronúncia constavam «também» os
elementos de facto atinentes ao tipo subjectivo de crime.
3. O arguido foi inteiramente surpreendido por esta nova questão, estranha ao
que estava em causa e ante isso suscitou aclaração, o que foi infrutífero, pois
a Relação entendeu nada haver a aclarar.
Na verdade, como se disse nem a questão havia sido suscitada pelo MP recorrente
nem pelo arguido, nem este teve por isso a menor hipótese de dela se defender.
4. Ante isso o arguido não teve oportunidade de suscitar a questão de
constitucionalidade que agora tem de colocar.
Os problemas em apreço
5. São assim duas as questões de constitucionalidade:
(1) uma, que o arguido suscitara na resposta à motivação do recurso interposto
pelo MP, mas que agora perde sentido ante o teor concreto da decisão da Relação,
pelo que o arguido a não reitera;
Na verdade a Relação entendeu que da pronúncia constavam os factos em causa; a
questão de constitucionalidade só faria sentido manter-se se a Relação tivesse
entendido que os factos não constando embora da pronúncia, podiam ser adquiridos
em audiência e gerar outro efeito que não a absolvição.
(2) outra, que o arguido agora suscita e que lhe não foi possível suscitar, pois
foi surpreendido pela aplicação da norma jurídica em causa, nos termos concertos
em que o foi, no acórdão da Relação, e que tem a ver com o facto de o aresto ter
entendido [sem que esse fosse o objecto do recurso e sem que o arguido disso se
pudesse defender] que os factos atinentes ao tipo subjectivo também constavam da
pronúncia.
Questão de constitucionalidade [normas jurídicas cuja declaração de
inconstitucional se requer]
6. É esta a questão que se submete ao Tribunal Constitucional: são materialmente
inconstitucionais, por violação dos artigos 32°, n.º 1 [garantias de defesa], e
5 [acusatório], 29°, n.º 5 [non bis in idem], 202°, n.º 2 e 204° da CRP, os
artigos 403°,n.º 1 e 3; 410º, n.º 1; 412º; 413º; 309º; 379º, nº 1, b) e c) do
CPP quando prevêem que em sede de recurso penal possa o tribunal «ad quem»
consignar em sede decisória, com força vinculativa de caso julgado, que da
pronúncia constam os elementos subjectivos do tipo de crime, sem que isso
integrasse objecto do recurso, tal como definido pelas conclusões da motivação
do recorrente, ou tivesse sido suscitado pelo arguido, e sem que este disso se
pudesse defender no recurso, pois o «thema decidendum» em recurso era apenas o
saber se da pronúncia constavam factos atinentes aos elementos típicos
objectivos do crime em apreço,
Fundamento legal do recurso
7. O presente recurso tem fundamento no artigo 70°, n.º 1, alínea b) da Lei do
Tribunal Constitucional.
8. Como se disse o recorrente não teve oportunidade de prevenir esta questão
pois foi surpreendido com ela precisamente porque a decisão judicial que aplicou
as normas cuja constitucionalidade está em causa não era suposto decidir esta
matéria, tendo ocorrido excesso de pronúncia.
9. O recorrente tem manifesto interesse em agir, pois que ante o acórdão da
Relação [quando define que da pronúncia constam os factos atinentes ao tipo
subjectivo de crime] o tribunal de primeira instância, quando realizar o novo
julgamento terá de ter essa decisão em conta de modo vinculado.
Regime de subida e efeitos do recurso
10. O recurso em causa sobe nos autos e com efeito suspensivo [n.º 3 do artigo
78° da Lei do Tribunal Constitucional].
(...)’
O recurso foi admitido por despacho lavrado em 27 de Abril de 2005 pelo
Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal
(cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende
que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº
78º-A da mesma Lei, a vertente decisão, por via da qual se não toma conhecimento
da presente impugnação.
Como resulta do mui extenso relatório acima deixado feito, o acórdão
que ora se intenta submeter à censura deste Tribunal tomou a decisão de anular o
despacho recorrido que absolvera o arguido da instância criminal, por entender
que, como alguns dos factos susceptíveis de serem dados como demostrados na
audiência - e que conduziriam à integração do facto típico constante da
pronúncia - não se encontravam descritos nesta, o tribunal não os poderia levar
em conta na proferenda sentença, já que não houve acordo entre a acusação e a
defesa no sentido de eles poderem ser tidos em consideração.
E, para assim decidir, aquele aresto estribou-se numa argumentação de
harmonia com a qual pelo anterior acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Coimbra tinha já sido decidido que da pronúncia constavam elementos factuais de
onde decorresse, quer a existência do elemento objectivo «prejuízo patrimonial»,
quer a existência do elemento subjectivo, um e outro inerentes ao tipo de crime
pelo qual o arguido se encontrava indiciado. E, porque esse acórdão se
encontrava transitado, razão pela qual ao mesmo havia que dar acatamento, não
podia subsistir o despacho impugnado, porque ele, ao entender que aqueles
elementos não se encontravam descritos na pronúncia, estava, em rectas contas, a
desrespeitar o decidido nesse acórdão.
Vale isto por dizer que a verdadeira ratio juris da decisão tomada no
aresto impugnado se ligou aos efeitos do caso julgado que se firmou com o
acórdão de 21 de Novembro de 2001; e, identicamente, significa que não foi o
acórdão ora em crise quem assumiu a postura de definir, com força vinculativa,
que existiam já na pronúncia os aludidos elementos objectivo e subjectivo do
tipo (sendo este último o que agora releva).
Por isso, não se pode, de todo em todo, sustentar que o acórdão em
causa tivesse levado a efeito, para a tomada da decisão nele ínsita, uma
aplicação dos normativos agora pretendidos apreciar por intermédio do vertente
recurso e numa dimensão interpretativa de acordo com a qual seria possível ao
tribunal de recurso consignar, em sede decisória, que da pronúncia constam
factos de onde se extraia a existência do elemento subjectivo do ilícito, sem
que essa questão fosse suscitada pelo recorrente ou pelo recorrido.
2.1. A isto acresce, por outra banda, que, na motivação do recurso
incidente sobre o despacho que veio a ser objecto de anulação pelo acórdão
impugnado, a entidade recorrente não deixou de brandir com o argumento de que na
pronúncia já se surpreendia enunciação fáctica da qual podia decorrer o elemento
subjectivo.
Na verdade, pode ler-se, em dado ponto, naquela motivação:-
‘(...)
IV - ELEMENTO SUBJECTIVO (DOLO)
Mais uma vez o M.mº Juiz a quo carece de completa razão quando afirma,
que ‘... da maneira como os factos estão configurados actualmente na pronúncia,
os mesmos, pelo menos não constituem o crime de que o arguido se encontra
acusado, nem qualquer outro que se vislumbre, uma vez que lhe falta o elemento
objectivo (prejuízo patrimonial) bem como o subjectivo (dolo de facto - elemento
volitivo, em qualquer das sua modalidades, isto é directo, necessário e
eventual).
Efectivamente, o dolo consta dos itens 133 e 134 do despacho de
pronúncia.
Se porém, existir uma deficiente descrição dos factos integradores so
elemento subjectivo do tipo (dolo genérico), ‘é susceptível de ser integrada, em
julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos
humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência
comum.’ Esta é a jurisprudência referida no Ac. Rel. Lisboa, proc. 0075443, de
26-09-2001, in www.dgsi.pt/jrtrl.
Também no Ac. da mesma Relação, no proc. 0001015, de 28-01-97 se
escreve ‘O apuramento da intenção do agente é, normalmente uma conclusão que o
tribunal pode e deve fazer a partir[ ] da avaliação da conduta do arguido, na
medida em que seja uma consequência ou prolongamento dos factos a este
imputáveis.’.
E tais factos, já foram realçados no douto Acórdão do Tribunal da
relação de Coimbra, a fls. 2645.
(...)
VI - O douto despacho recorrido violou o artigo 1º, alínea f), do
C.P.P. ao considerar, erradamente, a existência duma alteração substancial dos
factos descritos na pronúncia.
Considerou o tribunal recorrido que os factos ‘susceptíveis de se
provarem’ não estavam na pronúncia mas eles lá se encontram
(...)’
Por outro lado, tendo em atenção que o despacho que veio a ser
recorrido perante o Tribunal da Relação de Coimbra se referiu a que na pronúncia
não se encontrava descrita factualidade capacitadora de integrar, quer o
elemento objectivo prejuízo patrimonial, quer o elemento subjectivo (dolo, em
qualquer das suas formas), torna-se claro, designadamente se se ponderar o
excerto acima transcrito da motivação de recurso apresentada pelo Representante
do Ministério Público junto do Tribunal de comarca de Alcobaça, que, quando o
mesmo, na «conclusão» 2 dessa motivação, sustentou que, contrariamente ao
entendido no despacho então impugnado, constava da pronúncia tal factualidade,
isso abarcava um e outro daqueles elementos.
E, por isso, ainda que se admitisse que o aresto agora em questão
tinha, ele mesmo, tomado, pela primeira vez, a decisão de que se encontravam
enunciados na pronúncias factos de onde decorria a indiciária existência do
elemento subjectivo (e já se viu, pelo exposto no antecedente ponto 2. que não
foi isso que ocorreu), o que é certo é que, nem mesmo nessa hipótese, o acórdão
de 12 de Janeiro de 2005 consignou e decidiu questão que não fazia parte do
objecto do recurso.
Desta sorte, e porque, na decisão querida submeter ao veredicto deste
Tribunal, não foi aplicado, com o sentido questionado, o complexo normativo
constante do requerimento de interposição de recurso (e sem que agora se entre
na questão de saber se esse complexo, ainda que sem o dito sentido, foi o que
iluminou a decisão constante do acórdão de 12 de Janeiro de 2005), falece, in
casu, um dos pressupostos do recurso, justamente aquele que se reporta à
aplicação, na decisão impugnada, da norma cuja inconstitucionalidade se pretende
ver apreciada por este órgão de administração de justiça.
Neste contexto, não se toma conhecimento do objecto do recurso,
condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça
em seis unidades de conta”.
É da transcrita decisão que, pelo arguido, vem, nos
termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, deduzida
reclamação.
Na peça processual consubstanciadora da impugnação ora
formulada, disse o arguido:-
“(...)
As duas vertentes impugnadas da decisão sumária
1. Impugna-se a decisão sumária tomada, nas duas vertentes que a mesma assumiu.
A primeira vertente.
2. O primeiro fundamento da decisão sumária radica na circunstância de se haver
nela considerado que o acórdão recorrido tem a sua ratio juris nos «efeitos do
caso julgado que se firmou com o acórdão de 21 de Novembro» ou que não foi ele
«quem assumiu a postura a definir, com força vinculativa, que existiam já na
pronúncia os aludidos elementos objectivo e subjectivo do tipo (sendo este
último o que agora releva»).
3. Discordamos dessa decisão, porquanto:
(1) cotejando o citado Acórdão de 21 da Novembro verifica-se que nele não existe
qualquer menção, por insignificante que seja, à existência na pronúncia dos
elementos atinentes ao tipo subjectivo;
(2) conferindo o despacho de 04.06.04, proferido em primeira instância, pelo
Meritíssimo Juiz do Tribunal Judicial de Alcobaça, verifica-se que o objecto da
sua decisão incide sobre a questão dos elementos objectivos do tipo
incriminador, nomeadamente no que se refere à existência de elementos
característicos do requisito típico do prejuízo;
(3) ou seja, se existe efeito de caso julgado a nível do estatuído pelo Acórdão
de 21.11.04, com projecção nas decisões posteriores e mormente no acórdão em
apreço, então isso implica que ele se circunscreve à questão da existência na
pronúncia de elementos típicos dos elementos objectivos do tipo incriminador;
(4) deste modo, tudo quanto posteriormente se passou a nível do conhecimento do
problema da existência ou não na pronúncia dos elementos subjectivos do tipo
incriminador, ultrapassa o tema delineado por via daquele caso julgado.
4. Ou seja, a vez em que ocorreu a definição judicial de que a pronúncia
continha não só os elementos objectivos como também os subjectivos do tipo de
crime isso foi com o segundo Acórdão prolatado pela Relação de Coimbra em
12.01.05.
5. E essa definição - que está em causa - ocorreu claramente em detrimento do
tema que se encontrava delimitado antecedentemente: até então discutia-se o
haver ou não na pronúncia factos caracterizadores da tipo subjectivo de ilícito,
a partir desse morl1ento surgiu a questão dos elementos subjectivos do tipo
estarem consignados nos factos da pronúncia.
A segunda vertente
6. A segunda vertente tem a ver com a circunstância de a decisão sumária haver
considerado relevante que no recurso interposto pelo MP - e que veio a dar azo
ao aresto recorrido - «a entidade recorrente não deixou de brandir com o
argumento de que na pronúncia já se surpreendia enunciação fáctica da qual podia
decorrer o elemento subjectivo».
7. Não se desmente tal: asserção.
8. Do que se discorda é de duas coisas.
(1) primeiro, que o recurso do MP abranja [a nível do tipo subjectivo]
exactamente o mesmo âmbito de matéria que foi definido pelo Acórdão em causa, de
12.01.05: é que, enquanto que o recurso do MP consigna que da pronúncia consta
«o dolo genérico», o aresto recorrido reporta-se ao dolo na sua generalidade,
sendo certo que no crime em apreço se exige o dolo específico;
Assim o que o acórdão vejo decidir é não só uma questão nova [face ao
determinado pelo aresto de 21.11.04] com uma questão diversa daquela que o MP
havia configurado nas conclusões do seu recurso.
(2) segundo, que se possa afirmar, como o faz a decisão sumária, que quando o MP
no seu recurso brande o argumento da verificação na pronúncia dos factos
caracterizadores do tipo subjectivo do crime, o faz porque isso já estava
definido, com força de caso julgado, pejo Acórdão de 21.11.04.
Como dissemos o aresto de 2004 reporta-se à questão dos elementos objectivos do
tipo de crime e não aos elementos de cunho subjectivo; por isso não pode
dizer-se que o MP recorra invocando tema já antecedente considerado.
9. Em suma, o reclamante considera que o complexo normativo cujo exame suscitou
em sede de constitucionalidade, foi aplicado pela decisão recorrida, em termos
que não haviam ocorrido em decisão anterior
(...)”
O Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal, pronunciando-se sobre a reclamação, veio sustentar que a mesma era
claramente improcedente, aditando “às razões invocadas na decisão reclamada para
o não conhecimento do recurso, a circunstância de, em rigor, o reclamante não
controverter qualquer critério normativo, pretendendo antes sindicar a
específica e concreta decisão proferida pela Relação”, sendo que não competia ao
Tribunal “sindicar qual era o objecto de um recurso ordinário, interposto
perante a Relação, de modo a determinar se do elenco de questões colocadas pelos
sujeitos processuais à apreciação da 2ª instância constava a valoração da
existência do ‘elemento subjectivo do tipo’, e que se não vislumbrava, “na
decisão recorrida, qualquer aplicação de um critério normativo segundo o qual a
Relação considerasse que, ao julgar um recurso, podia e devia extravazar o seu
objecto, ultrapassando o elenco de questões incluídas no ‘thema decidendum”.
Cumpre decidir.
2. Como deflui da reclamação apresentada, o impugnante,
essencialmente, esgrime, no que tange às duas denominadas «vertentes» da decisão
em crise, com a circunstância de no acórdão tirado em 21 de Novembro de 2001
pelo Tribunal da Relação de Coimbra não se ter considerado que se encontravam no
despacho de pronúncia elementos de facto de onde se extraísse o elemento
subjectivo do tipo e na modalidade de dolo específico.
Simplesmente, o que releva é saber se entendimento
contrário (ou seja, que esses elementos ali foram considerados) foi o perfilhado
no acórdão que se pretendeu submeter à censura do Tribunal Constitucional.
E, da leitura que dele faz o Tribunal, retira-se que,
efectivamente, isso assim foi perspectivado. Sequentemente, haveria que
concluir-se, como se concluiu na decisão sub specie, que os normativos
constantes do requerimento de interposição do presente recurso (que seriam, na
óptica do recorrente, alcançados por via interpretativa dos preceitos também
nele indicados) não constituíram a razão jurídica do decidido, pois que foi por
via de se ter entendido que a matéria tinha já ficado definida no anterior
aresto, ao qual se havia de conceder obediência, que a decisão foi tomada. E
isto, claro está, sem que se deva, sequer, entrar na questão de saber se
porventura se poderia considerar que uma decisão tomada em recurso por um
tribunal de 2ª instância, ao entender que da pronúncia constavam os elementos
fácticos do tipo, tinha subjacente qualquer critério normativo de carácter
adjectivo (e é a este que, perante o objecto do vertente recurso, tal como foi
delineado pelo impugnante, se deve atender, pois que não foi questionado
qualquer critério normativo substantivo definidor do tipo de ilícito) que
constituísse a base de tal decisão e que fosse passível de sindicância por parte
deste Tribunal.
No particular da reclamação que agora se analisa -
quando o impugnante se reporta a que o Representante do Ministério Público junto
o tribunal da 1ª instância teria argumentado que da pronúncia já constavam
elementos de onde se extrairia o dolo genérico, mas que o acórdão intentado
recorrer “reporta-se ao dolo na sua generalidade, sendo certo que no crime em
apreço se exige o dolo específico”, o que teria constituído pronúncia sobre uma
questão nova - torna-se a todos os títulos evidente a sem razão de uma tal
argumentação.
De passo algum do acórdão desejado recorrer se extrai
que o mesmo considerou, ex novo, que existiam elementos de onde decorresse o
«dolo específico» que, na visão do reclamante, é o único a que se poderá atender
quanto ao tipo em causa.
Basta rememorar o que em tal aresto foi dito e que acima
ficou transcrito:-
“(...)
E para não haver mais alguma tentação (de se protelar o julgamento)
e porque a questão foi levantada pelo arguido/recorrido consideramos também que
a pronúncia integra a factualidade necessária e suficiente para se apreciar o
dolo.
É que para consubstanciar o dolo não se exige as sacramentais
expressões (‘agiu com intenção’ ‘admitiu como possível’ e não obstante actuando
como o fez conformou-se com tal possibilidade’) basta e é suficiente que o mesmo
resulta da factualidade como acontece no caso em apreço com a interligação das
seguintes situações.
(...)”.
Neste contexto, indefere-se a reclamação, condenando-se
o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 16 de Junho de 2005
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício