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Processo n.º 96/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam em conferência na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclamou, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, da seguinte decisão sumária:
“1. Por sentença de 15 de Dezembro de 2000, proferida nos autos de processo
comum singular n.º 04/99, a correr termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial da
Comarca de Portalegre, foi a arguida A., melhor identificada nos autos,
condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e
punido pelos artigos 6.º, 24.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15
de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, na pena de
20 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de três anos com a
condição de pagar ao Estado, na qualidade de administradora da B., a quantia de
Esc: 51.851.578$00 e legais acréscimos, no prazo de dois anos.
Por despacho de 28 de Abril de 2004, foi indeferida a pretensão da arguida em
ver declarada não escrita a condição da suspensão da execução da pena que lhe
foi imposta na sentença.
Inconformada, a arguida interpôs recurso deste despacho para o Tribunal da
Relação de Évora, tendo concluído do seguinte modo a motivação do recurso:
«1. Tendo em conta que as verbas retidas e não entregues ao Estado foram
exclusivamente canalizadas para a B., bem como que a Recorrente, na qualidade de
Administradora, vinha envidando esforços para chegar a um acordo de pagamento
com o Estado, o Tribunal decidiu condenar a ora Recorrente na pena de 20 meses
de prisão, suspendendo-se a sua execução com a condição de a arguida, na
Qualidade de Administradora da B. pagar à fazenda Nacional, no prazo de 2 anos,
o montante dos impostos retidos e não pagos no decurso dos anos de 1997 e 1998.
2. Pretendeu, assim, o Tribunal, de forma clara e expressa, que tal pagamento
fosse efectuado a expensas da B., que era (e é) a devedora das quantias em causa
e que foi a. exclusiva beneficiária dos montantes em causa, motivo pelo qual os
mesmos deveriam ser entregues pela arguida na qualidade Administradora dessa
sociedade.
3.A obrigação tributária (neste caso, a obrigação de entregar ao Estado as
importâncias retidas a título de Imposto sobre o Rendimento) tinha como sujeito
passivo a sociedade B. e não arguida e ora Recorrente.
4.Por isso é que a condição imposta à arguida foi que esta entregasse ao Estado
o que era do Estado, na qualidade de administradora daquela sociedade e não como
se ela própria fosse, pessoalmente, devedora das quantias indevidamente retidas
e não entregues.
5.A parte dispositiva da sentença representa, assim, a consequência lógica dos
factos dados como provados e das asserções jurídicas que daí emergem e que
antecedem a parte decisória da sentença.
6.É assim que, regra geral, as decisões judiciais de qualquer natureza, devem
ser interpretadas.
7.No caso concreto, o que está correcto é exactamente o que consta da sentença
condenatória, porque é isso que é consentâneo com os factos dados como provados
e com as considerações jurídicas que foram fundamento da sentença em causa.
8.Além de estar correcto, o que foi decidido mantém-se na ordem jurídica, pois
não foi alterado pelo despacho recorrido (nem o podia ter sido quer por força do
caso julgado material que se formou, quer por força da falta de poderes de
cognição do tribunal a quo para voltar a dizer o direito de uma causa já
decidida).
9.A sentença condenatória em causa mantém pois, intocado o seu teor que é o de a
suspensão da execução da pena de prisão ter ficado condicionado ao pagamento de
Esc. 51.851.578$00 pela arguida A., na qualidade de Administradora da B. e tal
condição tomou-se impossível devido à falência desta sociedade.
10.A ideia que preside à fundamentação do despacho recorrido de que não seria
assim porque a condenação foi evidentemente pessoal está com o devido respeito
errada, no único sentido em que podia ser consequente, e está certa num sentido
inconsequente.
11. Está certa num sentido inconsequente porque não é mais do que uma afirmação
inócua e quase tautológica dizer-se que uma sentença condenatória penal de uma
pessoa singular é uma condenação pessoal.
12.O único possível sentido consequente da afirmação de que uma sentença
condenação é pessoal é o que resulta da contraposição ente o conceito de uma
condenação pessoal, e uma condenação orgânica ou institucional.
13.O que decorre das palavras usadas na sentença condenatória é exactamente - O
contrário daquilo que a decisão recorrida diz que dela decorre, pois ao
estabelecer-se a obrigação de a arguida pagar determinado quantitativo ao
Estado, na qualidade de Administradora da B., está-se clarissimamente a dizer de
que património vai sair o dinheiro.
14. A obrigação de entregar certa quantia ao Estado, em que a arguida foi
condenada, na qualidade de Administradora da B. foi portanto uma condenação no
cumprimento de uma obrigação “orgânica ou institucional” e não uma condenação no
cumprimento de uma obrigação “pessoal” .
15. A obrigação que foi imposta à arguida, como condição da suspensão da pena de
prisão não só é claramente institucional, porque é isso que resulta do sentido
útil do uso da expressão “na qualidade de Administradora da B.” - que é o
sentido já referido da referência ao património do qual deve sair a quantia que
deve ser entregue ao Estado -, como resulta da conjugação entre a parte
decisória da sentença e os seus fundamentos factuais e jurídicos, de onde
decorre que o que é imposto por ditames de Justiça comutativa é - que o dinheiro
saia do património onde entrou e indevidamente ficou.
16. Se não se entendesse assim e se interpretasse a sentença condenatória como o
despacho recorrido a interpreta, então concluir-se-ia pela profunda injustiça da
obrigação imposta como condição de suspensão da pena de prisão, pois
estar-se-ia, assim, a obrigar certa pessoa singular a, para evitar ser presa, se
submeter a um injusto empobrecimento do seu próprio património, à custa da
manutenção de um injusto enriquecimento da B., a quem a Justiça portuguesa
estaria a transmitir que podia manter nos seus cofres o dinheiro do Estado, aí
indevidamente retido, porque quantia equivalente sairia do património de outra
pessoa.
17. Se fosse certa a interpretação que o despacho recorrido fez da sentença que
condenou a ora Recorrente, então através de tal sentença ter-se-ia injustamente
transferido a dívida de Esc. 51.851.578$00 da sociedade B. para a arguida e ora
Recorrente.
18.Contrariamente à interpretação do Tribunal recorrido, o dever imposto não
foi, pois, um dever pessoal, uma vez que sempre se admitiu que o mesmo fosse
cumprido pela B.
19. O despacho recorrido, ao interpretar correctivamente a douta sentença de
15.12.2000, deu-lhe todo um outro sentido que a mesma nem literalmente nem
racionalmente comporta.
20. Ora, nem mesmo nos casos de aclaração de sentença, pode o Tribunal
reformular correctivamente a sua decisão.
21. Estando em causa uma sentença penal condenatória, há ainda que referir que o
tribunal recorrido interpretou mal tal sentença, na medida em que ela não pode
ser interpretada correctivamente, pois, ainda que estivesse errada, os
princípios do Direito Penal em matéria de restrição de direitos fundamentais
impõem a rejeição de quaisquer interpretações correctivas (em prejuízo do
arguido) que extravasem a interpretação declarativa.
22.O despacho recorrido, sem contudo dispor no sentido de alterar a sentença
penal condenatória, ao interpretá-la como interpretou, desrespeitou os limites
objectivos do caso julgado, na medida em que as sentenças penais condenatórias
têm que ser interpretadas nos seus precisos termos, ou seja, em termos literais
(não comportando interpretações correctivas ou extensivas ou restritivas – de
sentido desfavorável aos direitos fundamentais do condenado).
23.Os limites objectivos do caso julgado penal obedecem a essa mesma ideia. Ou
seja, vale o que foi decidido, dentro e fora do processo, uma vez que o que se
trata é de caso julgado material e para todas as pessoas.
24.O cumprimento da condição de suspensão da execução da pena de prisão - a
entrega ao Estado, na qualidade de Administradora da B. do montante de
€258.634,58 tomou-se impossível desde 17.12.2003, data da declaração de falência
da B.
25.A declaração de falência da B. privou imediatamente a pessoa colectiva,
através dos órgãos que a representavam, da administração dos seus bens, os quais
passaram ipso jure a integrar a respectiva massa falida, sujeita à administração
e poder de disposição do liquidatário judicial, o qual foi nomeado na sentença
que decretou a falência
26.A arguida em nada contribuiu para a apresentação da B. à falência e muito
menos para a própria falência.
27.Existindo superveniência não culposa, de impossibilidade legal de
incumprimento da condição resolutiva da suspensão da execução da pena de prisão,
deve a mesma ter-se por não escrita, em situação análoga à do art. 271º, n.º 2
do Código Civil.
28. O Tribunal a quo, no douto despacho recorrido violou as normas contidas no
art. 29°, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, art. 1º, n.º 3 do
Código Penal e os princípios ínsitos no art. 153° do Código de Processo Penal
de) 1929, ao qual, nos termos do art. 4°, parte final, do Código de Processo
Penal, se deve recorrer para integrar a lacuna que a omissão de regras sobre
caso julgado no Código de Processo Penal representa.
Pelo exposto, deve esse Alto Tribunal revogar o douto despacho recorrido,
substituindo-o por decisão que considere não escrita a condição resolutiva da
suspensão da execução da pena de prisão em que a Recorrente foi condenada.»
2. Por acórdão de 9 de Novembro de 2004, o Tribunal da Relação de Évora negou
provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida com a seguinte
fundamentação:
«1. Como se reconhecerá, no despacho recorrido não se faz qualquer interpretação
correctiva da parte dispositiva da sentença.
O despacho limita-se a reafirmar o que estava decidido: nada altera à decisão.
Não se pode assim falar em qualquer interpretação ou correcção da sentença em
sentido desfavorável à arguida, ora recorrente.
2. Como nos parece isento de discussão, a arguida foi condenada em pena de
prisão suspensa na sua execução sob condição de pagar uma determinada quantia em
dinheiro. Quer dizer, como é evidente, cremos, o tribunal não impôs, como não
podia, o cumprimento da obrigação a outrem como condição de suspensão da
execução da pena de prisão da arguida. A condição de suspensão da execução da
pena de prisão é sempre imposta ao arguido a quem foi aplicada a pena. Nem de
outro modo podia ser, sob pena do arguido - a quem foi aplicada a pena de
prisão, note-se não ter o domínio sobre o cumprimento da referida condição. De
facto, se o cumprimento da condição fosse da responsabilidade de outrem, ficava
nas mãos deste a execução da prisão do arguido, o que manifestamente não pode
ser: o cumprimento da pena de prisão é pessoal.
3.Como nos parece indesmentível, quando no dispositivo da sentença se fala na
qualidade de administradora está-se a dizer o que estava dito em toda a
fundamentação da sentença, de facto e de direito: a ora recorrente actuou sempre
na qualidade de administradora da sociedade e foi por factos praticados nessa
circunstância que nos termos do artigo 6° do DL n° 20-A/90 de 15/01 foi
responsabilizada criminalmente. Assim porque o cumprimento da condição da
suspensão da execução da pena de prisão foi imposta (necessariamente) à arguida,
o facto da sociedade B. ter sido declarada falida não toma impossível o
cumprimento daquela condição.
Como se reconhecerá, não é pelo facto de uma determinada pessoa deixar de ter
uma determinada qualidade, v. g. administradora de uma empresa, que deixa de ser
exigível o cumprimento de uma obrigação que lhe foi imposta como condição de
suspensão da execução da pena de prisão aplicada por factos anteriormente
praticados no exercício daquela actividade.
Finalmente a discussão da condição imposta à arguida já não é possível, uma vez
que há muito, como a recorrente afirma e bem, a sentença transitou em julgado.
(Poder-se-á vir a equacionar a situação à luz do disposto no artigo 55° do CP,
aplicável por força do preceituado no artigo 11°, n.º 7 do DL 20-A/90. Como é
evidente, não é essa questão que está agora em apreciação).
Assim porque nenhuma disposição legal foi violada pelo tribunal a quo,
designadamente o disposto no artigo 29°, nº 3 da CRP, artigo 1°, nº 3 do CP e
artigo 153° do CPP de 1929, será julgado improcedente o presente recurso.»
A recorrente arguiu, então, a nulidade deste aresto, pedindo a sua reforma, por
omissão de pronúncia quanto a duas questões que diz ter suscitado, nos seguintes
termos:
«(...)
A Recorrente, na sua motivação de recurso, colocou à apreciação do Venerando
Tribunal da Relação de Évora, para além de outras, duas questões, sobre as quais
o Tribunal da Relação de Évora, no seu douto Acórdão de 3 de Novembro de 2004,
não se pronunciou:
Com efeito, a Recorrente suscitou:
a) a adopção pelo Tribunal recorrido de um errado critério normativo de
interpretação de sentenças penais (in casu da sentença penal condenatória);
b) a adopção pelo Tribunal recorrido de um errado critério normativo quanto aos
limites objectivos do caso julgado.
De facto, no que respeita à violação dos critérios normativos de interpretação
das sentenças penais, a Recorrente alegou que, estando em causa uma sentença
penal condenatória, esta não pode ser interpretada correctivamente, porque os
princípios do Direito Penal, que respeitam a matéria de restrição de direitos
fundamentais, impõem a rejeição de quaisquer interpretações correctivas (em
prejuízo do arguido) que extravasem a interpretação declarativa.
Sustentou a Recorrente que o critério normativo imposto pelo art. 29°, n.º 3 da
Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual foi criado e deve ser
interpretado o art. 1°, n.º 3 do Código Penal, conduz a que as sentenças penais
emanadas pelos Tribunais, maxime as sentenças penais condenatórias, não possam
ser interpretadas em sentido desfavorável quanto aos direitos fundamentais
(pelas mesmas razões pelas quais é proibida a integração de lacunas de normas
penais incriminatórias com recurso à interpretação extensiva e à analogia e é
proibida a redução teleológica e a interpretação restritiva de normas relativas
às circunstâncias eximentes da responsabilidade criminal).
Sustentou portanto a Recorrente que, no que tange à interpretação das sentenças
penais, vigora um critério normativo de literal idade, que é uma emanação do
princípio da legalidade ( que tradicionalmente se exprime pelo brocardo nullum
crimen nulla poena sine lege stricta ).
Ora, quanto a esta primeira questão o Venerando Tribunal ad quem não se
pronunciou.
Igualmente não se pronunciou o Acórdão proferido sobre a violação dos limites do
caso julgado, alegada pela Recorrente.
A Recorrente submeteu à apreciação desse Alto Tribunal a questão de o despacho
recorrido, ao interpretar, como interpretou, a sentença penal condenatória, ter
desrespeitado a norma que impõe que se respeitem os limites objectivos do caso
julgado, na medida em que as sentenças penais condenatórias têm que ser
interpretadas nos precisos termos em que foram proferidas, sem possibilidade de
correcções posteriores.
Referiu-se a esse propósito que, sendo o Código de Processo Penal omisso quanto
ao instituto do caso julgado, tal lacuna devia ser preenchida com recurso aos
princípios de direito penal, uma vez que os princípios que regem o caso julgado
penal não se articulam adequadamente com as regras do caso julgado cível, como,
aliás, já doutamente foi julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
O douto Acórdão da Relação de Évora de 3.11.2004 é, assim, nulo (parcialmente)
por omissão de pronúncia sobre duas das questões submetidas à sua apreciação
pela Recorrente.
(...).»
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 4 de Janeiro de 2005, indeferiu a
pretensão da recorrente, baseando-se na seguinte argumentação:
«(...)
De facto, este tribunal conheceu das questões, note-se, das questões, que devia
conhecer e não há qualquer omissão de pronúncia.
A recorrente parte do pressuposto que a decisão recorrida constitui uma
correcção da decisão condenatória em sentido desfavorável à arguida. Ora o que
claramente se apreciou e decidiu neste tribunal é que a decisão recorrida não
alterou, não corrigiu, a decisão condenatória.
Não se pode assim falar em violação do caso julgado, em qualquer interpretação
da sentença penal em sentido desfavorável ao arguido.
Designadamente, escreveu-se no acórdão, ora sob censura:
«...Como se reconhecerá, no despacho recorrido não se faz qualquer interpretação
correctiva da parte da dispositiva da sentença.
O despacho limita-se a reafirmar o que estava decidido: nada altera à decisão.
Não se pode assim falar em qualquer interpretação ou correcção da sentença em
sentido desfavorável à arguida, ora recorrente» (sublinhado nosso).
E escreveu-se ainda:
«Assim porque nenhuma disposição legal foi violada elo tribunal a quo
designadamente o disposto no artigo 29°, nº 3 da CRP artigo 1°, nº 3 do CP e
artigo 153° do CPP de 1929 será julgado improcedente o recurso.
Ora se tão claramente se decidiu, é obvio que este tribunal concluiu de acordo
com a fundamentação que deixou expressa que a decisão recorrida não fez qualquer
errada interpretação da sentença penal e não violou os limites do caso julgado.
É assim evidente, e salvo o devido respeito, que este tribunal se pronunciou
sobre as todas as questões que lhe foram colocadas. Diferente é a recorrente
concordar com o decidido.
(...)»
3. Inconformada, veio a recorrente interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos:
«(...) notificada do douto Acórdão proferido em 4.01.2005, através do qual se
indeferiu a arguição de nulidade (de non liquet no douto Acórdão que julgou
improcedente o recurso, proferido em 3.11.2004 ), decidindo-se que o Tribunal
recorrido não fez qualquer errada interpretação da sentença penal proferida e
que não violou os limites do caso julgado, mas não se podendo conformar com o
mesmo, vem, nos termos dos arts. 69° e segs. da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, dele interpor recurso para
o Tribunal Constitucional.
O presente recurso é interposto nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 70° do
supra citado diploma, devendo o Tribunal Constitucional apreciar a
inconstitucionalidade do critério normativo segundo o qual as sentenças penais,
maxime as sentenças penais condenatórias, são ainda correctamente interpretadas
quando se as interpreta retirando todo o sentido a uma expressão favorável ao
condenado, por violação do art. 29°, n.º 3 da Constituição da República
Portuguesa (à luz do qual foi criado e deve ser interpretado o art. 1°, n.º 3 do
Código Penal), que impõe que toda a norma penal (mesmo a norma dita pelo
Tribunal para um caso concreto, através de sentença judicial) não pode ser
interpretada restritivamente (e muito menos abrogantemente ou com redução
teleológica), tratando-se de uma norma favorável ao agente do crime, tal como
não pode ser interpretada extensivamente (e muito menos analogicamente),
tratando-se de norma desfavorável ao agente do crime. (destaque nosso)
A Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade do aludido critério
normativo de interpretação de sentenças penais condenatórias na sua motivação
de recurso para o Tribunal da Relação de Évora e no seu requerimento de arguição
de nulidade do douto Acórdão de 3.11.2004, proferido por esse Alto Tribunal.»
4. Não obstante o recurso ter sido admitido, o que não vincula este Tribunal
(cfr. artigo 76.º, n.º 3, da LTC), entende-se não poder conhecer-se do objecto
do recurso, sendo de proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º1 do artigo
78.º-A, por não se verificarem os respectivos pressupostos de admissibilidade
5. Com efeito, a admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como é o caso, implica, para que
possa ser admitido e conhecer-se do seu objecto, a congregação de vários
pressupostos, entre os quais a aplicação pelo Tribunal recorrido, como sua ratio
decidendi, de norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou
segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida.
No exercício deste controlo normativo escapa à competência cognoscitiva do
Tribunal Constitucional – de acordo com o nosso ordenamento jurídico – qualquer
forma de fiscalização sempre que a questão de constitucionalidade seja dirigida
à decisão judicial, em si mesma considerada.
Na verdade, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não cuida
do acerto lógico-jurídico da subsunção do caso em apreço à norma: ao Tribunal
Constitucional não compete julgar o acto decisório recorrido, em si mesmo
considerado, envolvendo a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto,
ou tão pouco o mesmo, visto como resultado da conjugação da matéria de facto ao
critério normativo utilizado, mas sim a constitucionalidade desse critério
normativo.
6. Ora, no caso dos autos, independentemente de se apurar se a questão colocada
no requerimento de interposição de recurso é uma questão de constitucionalidade
normativa, é manifesto que a recorrente não suscitou durante o processo qualquer
questão desse género, pois não invocou a inconstitucionalidade de qualquer norma
ou interpretação normativa do direito ordinário que julgasse desconforme com a
Constituição.
Nas alegações de recurso para a Relação a recorrente manifesta o seu
inconformismo com o despacho recorrido porque entende que a condição da
suspensão da execução da pena imposta na sentença condenatória foi uma
condenação no cumprimento de uma obrigação “institucional” e não de uma
obrigação “pessoal”, contrariamente ao que foi decidido naquele despacho,
considerando que o despacho fez uma interpretação da sentença para além dos seus
termos literais, desrespeitando os limites do caso julgado, e concluindo que “O
Tribunal a quo, no douto despacho recorrido violou as normas contidas no art.
29°, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, art. 1º, n.º 3 do Código
Penal e os princípios ínsitos no art. 153° do Código de Processo Penal de) 1929,
ao qual, nos termos do art. 4°, parte final, do Código de Processo Penal, se
deve recorrer para integrar a lacuna que a omissão de regras sobre caso julgado
no Código de Processo Penal representa”(conclusão 28ª).
Deste modo, não tendo a recorrente suscitado durante o processo qualquer questão
de constitucionalidade normativa, não pode tomar-se conhecimento do recurso.
7. Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º
28/82, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas a caro da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 unidades de
conta.”
2. Alega a reclamante, em síntese, o seguinte:
Contrariamente ao que foi entendido na decisão sumária, a recorrente
invocou durante o processo, na proposição do recurso apresentada em 19 de Maio
de 2004 e principalmente na arguição de nulidade deduzida em 29 de Novembro de
2005, a questão da inconstitucionalidade que pretende submeter a apreciação do
tribunal Constitucional: a da inadmissibilidade de certo critério normativo de
interpretação de sentenças penais, em face do disposto no n.º 3 do artigo 29.º
da Constituição.
Com efeito, no recurso interposto para o Tribunal da Relação a recorrente
invocou expressamente que, estando em causa uma sentença penal condenatória, tal
sentença não pode ser interpretada correctivamente, retirando todo o sentido a
uma expressão favorável ao condenado, pois os princípios de direito penal impõem
a rejeição de quaisquer interpretações correctivas desfavoráveis ao arguido que
extravasem a interpretação declarativa, por serem violadoras do disposto no n.º
3 do artigo 29.º da Constituição.
Depois, a recorrente arguiu a nulidade do acórdão de 5/11/2004, “(…)referindo,
expressamente, que havia colocado à apreciação daquele Tribunal, sem que este se
houvesse pronunciado sobre a mesma, a questão da adopção, pelo Tribunal a quo,
de um errado critério normativo de interpretação de sentenças penais, segundo o
qual as sentenças penais, maxime as sentenças penais condenatórias, são ainda
correctamente interpretadas quando se as interpreta retirando todo o sentido a
uma expressão favorável ao condenado, por violação do art.º 29.º, n.º 3 da
Constituição da República Portuguesa (à luz do qual foi criado e deve ser
interpretado o art.º, n.º 3 do Código Penal), que impõe que toda a norma penal
(mesmo a norma dita pelo Tribunal para um caso concreto, através de sentença
judicial) não podem interpretada restritivamente (e muito menos abrogantemente
ou com redução teleológica), tratando-se de uma norma favorável ao agente do
crime, tal como não pode ser interpretada intensivamente (e muito menos
analogicamente), tratando-se de norma desfavorável ao agente do crime.
Pelo seu acórdão de 4-01-2005, o Tribunal da Relação de Évora, indeferiu a
nulidade arguida pela Recorrente, por considerar ter-se pronunciado sobre todas
as questões submetidas à sua apreciação, inclusivamente sobre a questão da
admissibilidade face à Constituição do critério normativo de interpretação de
sentença penal adoptada pelo Tribunal de 1ª Instância.
Com efeito, o Tribunal da Relação de Évora, no seu douto aresto de 4-01-2005,
refere: “ora se tão claramente se decidiu, é obvio que este tribunal concluiu de
acordo com a fundamentação que deixou expressa que a decisão recorrida não fez
qualquer errada interpretação da sentença penal e não violou os limites do caso
julgado.
É assim evidente, e salvo o devido respeito, que este tribunal se pronunciou
sobre todas s questões que lhe foram colocadas.”
Ou seja, o Tribunal da Relação de Évora considerou que não é desconforme à
Constituição o critério normativo adoptado pelo Tribunal de 1ª Instância para
interpretar a sentença condenatória em causa (…)”.
3. O Ministério Público responde que a reclamação deve improceder
porque a reclamante “ não suscitou, durante o processo – isto é, antes da
prolação da decisão recorrida – em termos processualmente adequados, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, e idónea para suportar o recurso
interposto para este Tribunal”.
4. A reclamante aceita os dois pressupostos sobre que é construída a
decisão em apreciação: o de que o recurso de fiscalização concreta previsto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC só pode ter por objecto a verificação
da (in)constitucionalidade de normas – não é do tipo recurso de amparo, i.e.,
não pode ter por objecto a verificação (ou o remédio) da violação de direitos
constitucionais específicos pela própria decisão judicial recorrida – e o de que
só tem acesso a tal meio o interessado que tiver suscitado a questão de
constitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida. O que questiona é a aplicação concreta de tal
entendimento pela decisão sumária, argumentando que, em substância, suscitou
perante o tribunal recorrido uma questão de constitucionalidade de tal natureza,
como ressalta da conclusão 21.ª da alegação de recurso e da posterior arguição
de nulidade.
Sem razão, porém.
Na esteira da Comissão Constitucional, o Tribunal Constitucional se,
por um lado, desde sempre adoptou uma noção de norma funcionalmente adequada ao
sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade instituído pela
Constituição, por outro, também sempre entendeu que o que se tem em vista com o
sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade é o controle dos actos
do poder normativo público, ou seja, daqueles actos que contêm uma regra de
conduta ou um critério de decisão para os particulares, para a Administração e
para os tribunais. Não são, por conseguinte todos os actos do poder público os
abrangidos pelo sistema de fiscalização de constitucionalidade previsto na
Constituição. A ele escapam, entre outros actos do poder público que não vem ao
caso escalpelizar, as decisões judiciais, na medida em que não constituem actos
normativos, mas actos de aplicação, execução ou simples utilização de normas.
Consciente disso, na identificação do objecto do recurso, a
reclamante procurou submeter à apreciação de constitucionalidade o que afirma
ser o “critério normativo” segundo o qual as sentenças penais condenatórias
podem ser interpretadas retirando todo o sentido a uma expressão favorável ao
condenado, que acusa de desconforme ao n.º 3 do artigo 29.º da Constituição. Mas
não logrou indicar uma fonte normativa da qual esse suposto critério normativo
terá sido extraído. O que claramente evidencia que aquilo que está em causa no
presente recurso, ainda que por suposta desconformidade com uma norma ou
princípio constitucional, não é senão o processo de determinação do conteúdo da
parte dispositiva da sentença condenatória, na singularidade do caso concreto e
não qualquer regra de decisão, com vocação generalizante, de que se tenha feito
aplicação (Isto sem necessidade de resposta, porque não é assim apresentado o
objecto do recurso, à questão de saber se e em que condições poderia ser objecto
de recurso de constitucionalidade uma norma, de “autoria” judicial, de
integração de eventual lacuna na matéria).
Mesmo que assim não fosse, como se disse na decisão sumária, nunca
o recurso poderia prosseguir porque tal suposta questão de constitucionalidade
normativa não foi, como tal, colocada perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida (n.º 2 do artigo 72.º da LTC). A simples referência a normas ou
princípios constitucionais não é um modo adequado de suscitar uma questão desta
natureza. É necessário que haja uma alegação com um mínimo de substanciação e
uma enunciação suficientemente clara para que o tribunal deva saber que tem uma
questão dessa natureza para decidir, isto é, que se pretende dele que, fazendo
uso dos poderes conferidos pelo artigo 204.º da Constituição, recuse aplicação a
uma determinada norma. Ora, a violação de preceitos constitucionais que, no
recurso para a Relação, a recorrente censurou ao despacho proferido pelo
tribunal de 1ª instância, surge directamente referida à decisão em si mesma (cf.
conc. 29.ª) e não a qualquer norma de que tenha feito aplicação e cuja
desaplicação se pretenda. E não é exacto que a decisão sumária tenha
privilegiado mais as palavras do que as ideias ou negligenciado outras passagens
da alegação de recurso, designadamente o que consta da conclusão 21.ª das
alegações de recurso. O que dessa conclusão consta continua a ser reportado à
decisão, não se propondo à apreciação do Tribunal da Relação a desaplicação de
qualquer norma, ainda que de produção judicial. Aliás, essa conclusão resume o
ponto III.1 da mesma peça processual, onde também não se descortina a colocação
de uma questão desta natureza.
Finalmente, porque a recorrente chama à colação o que aí disse,
acrescentar-se-á que a reclamação de nulidade nunca seria, no caso, o momento
processualmente adequado para suscitar a questão de constitucionalidade
normativa, suposto que nessa intervenção processual se tivesse enunciado uma
questão dessa natureza. Com efeito, essa questão não seria referida a uma norma
cuja aplicação tivesse surgido ex novo na decisão da Relação e com a qual a
recorrente não devesse razoavelmente contar no momento em que produziu as
alegações de recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a
reclamante nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 14 de Outubro de 2005
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício