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Processo n.º 795/04
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa,
impugnação de um acto tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Singulares (IRS) relativo ao ano de 2001, tendo, entre o mais,
sustentado a inconstitucionalidade do artigo 53º, n.º 5, do Código do Imposto
sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS). Na perspectiva do impugnante,
tal norma, ao criar uma limitação ou exclusão do direito à dedução específica
para os rendimentos dos pensionistas que auferissem um rendimento anual superior
ao ordenado base do Primeiro-Ministro, violaria os princípios da igualdade,
progressividade, justiça, generalidade, capacidade contributiva e tributação
pelo rendimento líquido.
Tanto a Fazenda Pública como o Ministério Público pugnaram pela
improcedência da impugnação (fls. 29 e 31 v.º a 32 v.º).
Por sentença de 30 de Outubro de 2003 (fls. 40 e seguintes), o juiz
do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa julgou improcedente a
impugnação.
2. Inconformado, A. recorreu desta sentença para o Supremo Tribunal
Administrativo (fls. 50), tendo nas alegações respectivas (fls. 53 e seguintes)
concluído do seguinte modo:
“Com a entrada em vigor do Código do IRS, o Legislador criou uma discriminação
qualitativa entre alguns tipos de rendimentos, entre eles os rendimentos da
Categoria A e da Categoria H;
Pretendendo o Legislador, à data, tributar de uma forma mais favorável os
rendimentos derivados de pensões;
Contudo, apesar [de essa] ser a intenção do legislador, a verdade é que, pela
introdução do n.º 5 do artigo 53º do Código do IRS, alguns rendimentos de
pensões, os abrangidos por esta norma, passaram a ser tributad[o]s de uma forma
mais gravosa do que aquela que teria sido pretendid[a] pelo legislador;
Desta forma, viola-se alguns dos mais elementares princípios constitucionais do
direito fiscal;
Assim, é violado o princípio da progressividade do Código do IRS, uma vez que a
progressividade deve ser atingida através de taxas progressivas e não pela
eliminação da dedução específica;
É violado o princípio da capacidade contributiva, já que com a
eliminação/redução da dedução específica deixa de se ter em conta o mínimo de
encargos necessários à obtenção dos rendimentos do sujeito passivo. [Por que] é
que não se passa o mesmo na Categoria A?
É, ainda, violado o princípio da igualdade, uma vez que um sujeito passivo com
igual capacidade contributiva no activo e na reforma, têm uma tributação
completamente diferente, sendo tributado mais gravosamente na reforma que no
activo, quando era precisamente o contrário que o legislador pretendia;
Mais, viola-se o princípio da tributação pelo rendimento líquido, uma vez que
nos casos em que existe uma eliminação da dedução específica, a taxa incide
directamente sobre o rendimento bruto, tal não foi a intenção do legislador;
O único caso em que essa foi a intenção do legislador foi os rendimentos de
capitais, o que se compreende dada a natureza dos mesmos, mas por esse facto,
para a maioria desses rendimentos o legislador criou taxas de tributação
liberatórias, que nunca, por nunca ser, atingem os 40%;
Contudo, um pensionista que pare de ter direito à dedução específica, por
aplicação do n.º 5 do artigo 53º do Código do IRS, vê os seus rendimentos serem
sujeitos a uma taxa de tributação de 40%. Onde é que está a discriminação
qualitativa que o legislador quis criar para esta categoria de rendimentos?;
Mas mais, esta norma cria uma incoerência no sistema fiscal português, uma vez
que o artigo 1º do Código do IRS dispõe que os rendimentos sejam sujeitos à taxa
depois de se proceder à dedução específica e o n.º 5 do artigo 53º do Código do
IRS dispõe que se aplique a taxa sem que primeiro se proceda à realização da
dedução específica, sem que qualquer razão objectiva esteja subjacente a este
normativo;
Para finalizar, o n.º 5 do artigo 53º do Código do IRS viola o princípio da
segurança jurídica na modalidade do princípio da confiança;
Ora, foi criada a convicção ao Recorrente, e aos pensionistas em geral, que
aquando da reforma ficariam sujeitos a um regime de tributação mais favorável do
que aquele a que se encontravam sujeitos, enquanto sujeitos passivos enquadrados
na Categoria A;
Diga-se, expectativa essa, criada pelo próprio legislador, pelo que
consubstancia um direito adquirido ou a aquisição de um verdadeiro direito
subjectivo público, oponível ao próprio legislador, que se encontra assim
assente no Estado de direito democrático;
Face ao exposto, conclui-se que a norma em apreço viola os mais elementares
princípios de direito fiscal constitucional, sendo por isso materialmente
inconstitucional.”
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da confirmação da
sentença impugnada (fls. 85 e seguinte).
3. Por acórdão de 16 de Junho de 2004 (fls. 96 e seguintes), o Supremo
Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, pelos seguintes
fundamentos:
“[...]
3.2. Sobre a questão a que se referem os presentes autos pronunciou-se já este
STA, em acórdão de 31-03-04, Rec. 2059/03, que, pela sua bondade, passaremos a,
de perto, acompanhar particularmente atendendo a que as conclusões de ambos os
recursos têm igual conteúdo.
Os princípios que o recorrente identifica como violados devem encontrar-se nos
art°s 104° 1 da CRP [...] e 103° 1 do mesmo diploma [...].
É nestas normas que encontram assento os invocados princípios constitucionais da
igualdade, da progressividade, da justiça, da generalidade, da capacidade
contributiva, e da tributação pelo rendimento líquido.
E o preceito violador dos mencionados preceitos constitucionais seria o art. 53°
do CIRS [...].
Após diversas alterações passou o n.º 5 do citado art. 53º a estabelecer que
«para rendimentos anuais, por titular, de valor anual superior ao vencimento
base anualizado do cargo de primeiro-ministro, a dedução é igual ao valor
referido nos n.ºs 1 ou 3, consoante os casos, abatido, até à sua concorrência,
da parte que excede aquele vencimento».
Por força deste preceito legal a dedução específica do recorrente foi de €
278,33.
Sustenta o mesmo que esta diminuta dedução aos rendimentos provenientes de
pensões que, em certos casos, até pode ser excluída contradiz o n.º 1 do artigo
53° (que manda deduzir a totalidade dos rendimentos com esta origem, até certo
montante das pensões), provoca uma desigualdade fiscal horizontal, tornando
incoerente o sistema e violando os princípios já apontados, além dos da
segurança jurídica, na modalidade do princípio da confiança.
[...]
3.3. O legislador do CIRS procurou dar um tratamento mais benévolo aos
rendimentos de pensões uma vez que estes apenas eram, antes do CIRS, tributados
em imposto complementar.
E conseguiu este desiderato estabelecendo uma dedução específica para os
rendimentos oriundos de pensões e daí que, na versão original do CIRS, os
rendimentos do trabalho dependente, por exemplo, gozassem de uma dedução
específica de 65% do seu valor, com o limite de 250.000$00, ou com o limite das
contribuições obrigatórias para a protecção social, se superior enquanto que aos
rendimentos oriundos de pensões, se não superiores a 400.000$00, deduzia-se a
totalidade, e aos superiores a esse montante eram deduzidos os mesmos
400.000$00, mas acrescidos de metade do excedente, com o limite de 1.000.000$00.
Contudo este tratamento mais favorável dado aos rendimentos provenientes de
pensões não correspondia a qualquer imperativo constitucional tratando-se de uma
opção do legislador ordinário resultante da introdução da tributação sob[r]e
rendimentos resultantes de pensões de reforma.
Daí que [...] não sendo este regime imposto pela Constituição igualmente não
impedia esta que aquele regime fosse alterado podendo, por isso, o legislador
ordinário alterar a mencionada dedução específica.
É que as deduções específicas, como a própria designação aponta, são consagradas
pelo legislador tendo em atenção a sua afinidade com o rendimento a que
correspondem pretendendo-se com elas excluir da tributação as despesas que o
titular do rendimento se viu obrigado a fazer para [...] obter o respectivo
rendimento.
Por esta via se concretiza o princípio do rendimento líquido segundo
tributando-se não todo o rendimento mas só aquele que resta depois de
satisfeitos os encargos indispensáveis para o conseguir [assim, no original].
Nesta perspectiva e para respeitar o princípio do rendimento líquido, não há que
estabelecer deduções específicas iguais para todos os rendimentos,
independentemente da sua origem, uma vez que não são necessariamente
equivalentes as despesas a fazer para os obter. [...].
Nesta óptica parece razoável que tal dedução seja ainda mais baixa no caso de
rendimentos provenientes de pensões pois que não se vislumbra a que despesas dê,
necessariamente, lugar a sua obtenção e, a existirem, sempre serão de valor
pouco significativo comparativamente àquelas que há que fazer para obter os
rendimentos da maioria das categorias sobre que incide o IRS.
Daí que se possa adiantar que a consagração de uma dedução específica atinente
aos rendimentos com origem em pensões até implica um tratamento favorável,
relativamente aos rendimentos de categorias que importem custos como seja o caso
da dedução relativa aos rendimentos do trabalho por conta de outrem, a qual,
sendo fixa, é, essa sim, susceptível de gerar situações de desigualdade.
Podemos, por isso, adiantar que inexiste impedimento constitucional a que se
tribute o rendimento bruto, quando este coincide com o líquido, isto é, nos
casos em que a sua obtenção não implique a realização de qualquer despesa e daí
que não seja o princípio do rendimento líquido a impedir que o legislador
ordinário estabeleça, relativamente aos rendimentos derivados de pensões um
regime de dedução específica diferente, até menos favorável, do que o adoptado
para rendimentos de outras fontes e nomeadamente para os rendimentos
provenientes de trabalho dependente.
3.4. Igualmente não é violado o princípio da igualdade por uma opção legislativa
que atenda a deduções específicas diferentes, consoante a origem dos rendimentos
pois que este princípio impõe que se sujeitem a igual imposto todos aqueles que
tenham igual capacidade contributiva impondo simultaneamente que se dê
tratamento desigual àquilo que não é igual.
Ou seja a desigualdade de tratamento deve ter um fundamento material devendo ser
tratados de igual modo todos aqueles que se encontrem na mesma situação.
É que o princípio da igualdade concretiza-se na generalidade do imposto, ou
seja, no seu carácter universal, e na uniformidade do critério legal e daí que o
critério para aferir da igualdade seja o da capacidade contributiva, medida pelo
rendimento auferido, depois de subtraída a despesa necessária para o conseguir,
com o que se chega ao rendimento líquido.
[...]
Assim não ofende o princípio da igualdade, ou o da justiça, a circunstância de
rendimentos de igual montante, se resultantes do trabalho, beneficiarem de
dedução específica superior pois que não há igualdade entre os gastos suportados
por um trabalhador no activo para obter os seus ganhos e os de um pensionista
para auferir a sua pensão.
E a norma em apreciação aplica-se a todos aqueles que cabem no seu campo de
previsão não perdendo a generalidade e abstracção que a devem caracterizar pelo
facto de apenas ser aplicável à universalidade dos pensionistas com rendimentos
mais elevados do que certo montante.
3.5. O princípio da progressividade é uma concretização do princípio da
igualdade, que se extrai, desde logo, do artigo 106º n.º 1 da Constituição e
visa uma repartição justa do rendimento. No âmbito dos rendimentos pessoais a
progressividade só pode aferir-se em vista da carga fiscal que, no conjunto,
incide sobre todo o rendimento do agregado familiar.
Na situação dos autos apenas se questiona o rendimento proveniente de pensões
pelo que não é o modo como o rendimento desta origem é isoladamente tratado que
pode, só por si, afectar o princípio da proporcionalidade.
Contudo o princípio da proporcionalidade realiza-se tributando mais pesadamente
os rendimentos relativamente elevados, e mais levemente os relativamente baixos
pelo que é de reconhecer que o n.º 5 do artigo 53° do CIRS em lugar de
contrariar a progressividade pretende atingi-la.
3.6. Entende-se que não ocorre a contradição que o recorrente sustenta entre as
disposições dos artigos 1º e 53° n.° 5 do CIRS.
Para o recorrente enquanto que o artigo 1° estabelece que a tributação incide
sobre o rendimento líquido, e não sobre o bruto, o n.º 5 do artigo 53° reduz
progressivamente a dedução específica, podendo, mesmo, bani-la de todo, pelo que
ocorreria violação do princípio da coerência do sistema fiscal.
Os objectivos definidos pelo legislador atingem-se, algumas vezes, através da
consagração de dispositivos de sinal aparentemente contrário, ou porque um deles
limita o outro, ou porque cada um visa situações e resultados diferentes, ou
porque um excepciona o outro contudo a coerência deverá aferir-se pelo conjunto.
Daí que se possa adiantar que o recorrente não imputa uma incoerência ao
sistema, mas, apenas, que certa norma segue caminho diverso do percorrido por
outra contudo não existe, entre aqueles artigos 1° e 53° n.º 5 qualquer
contradição pois que o artigo 1° se limita a estabelecer que o IRS incide sobre
o valor dos rendimentos das várias categorias que indica, «depois de efectuadas
as correspondentes deduções e abatimentos».
Naquele segundo dos preceitos normativos mencionados o legislador ao fixar as
deduções e abatimentos para cada uma daquelas categorias, não está a contradizer
o que do primeiro preceito consta antes está a concretizá-lo.
3. 7. E igualmente não ocorre violação do princípio da segurança jurídica, na
vertente do princípio da confiança, que o recorrente afirma resultar da
introdução no texto da lei do n.º 5 do artigo 53° do CIRS pois que só merece
tutela a confiança «legítima, fundada e solidificada» dos contribuintes.
Com efeito as intenções do legislador, manifestadas na parte preambular de um
diploma, não assumem força igual à da normatividade nele contida do que resulta
que não é o preâmbulo do CIRS suporte suficiente para fundamentar a alegada
confiança «legítima, fundada e solidificada» em que, no futuro, não haverá
alteração do normativo que regula uma dada situação.
Para que exista violação do princípio da confiança torna-se necessário que o
legislador tenha regulado as coisas de tal modo que os particulares tenham
disposto de certo modo as suas vidas, alterando depois, sem razão justificativa,
a disciplina que anteriormente havia estabelecido, desta forma traindo a
confiança dos cidadãos (por si criada), que razoavelmente contavam com uma certa
longevidade do regime consagrado, e assim viram destruídas as suas expectativas.
E tal não ocorre com as normas que inicialmente integravam o CIRS uma vez que
nada fazia crer que o regime da dedução específica iria manter-se ao longo de
todo o tempo.
A novidade do CIRS levaria um contribuinte avisado a pensar que as mesmas
poderiam ser alteradas pelo decurso do tempo e pela [...] alteração das
circunstâncias que razoavelmente conduzem a diferentes opções do legislador.
Daí que não se vislumbre que o legislador da versão inicial do CIRS haja criado
expectativa que tenha traído com a introdução do n.° 5 do artigo 53° do CIRS,
uma vez que não basta, para que haja violação do princípio da confiança, a mera
crença na imutabilidade das leis que vigoram num dado momento histórico pois que
o que aconteceu foi, apenas, que «o legislador ordinário usou, de forma que não
se pode considerar intolerável, a sua liberdade de conformação» legislativa.
Improcedem, por isso, todas as conclusões das alegações de recurso.
[...].”.
4. De novo inconformado, A. interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, pretendendo a apreciação da norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS,
por violação dos artigos 103º e 104º da Constituição e dos princípios
constitucionais da igualdade, progressividade, justiça, generalidade, capacidade
contributiva, tributação pelo rendimento líquido e segurança jurídica (fls. 104
e seguinte).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 106.
5. Notificado para produzir alegações, A. assim o fez (fls. 112 e
seguintes), tendo formulado conclusões que no essencial retomam as que foram
apresentadas perante o Supremo Tribunal Administrativo (fls. 53 e seguintes,
transcritas supra, 2.).
A Fazenda Pública, ora recorrida, não alegou (fls. 148).
Cumpre apreciar e decidir.
II
6. O artigo 53º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Singulares (CIRS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro,
determina o seguinte, após a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3
de Julho (a versão em vigor no ano a que se reportam os rendimentos cuja
tributação foi impugnada nos presentes autos):
“Artigo 53º
Pensões
1 – Aos rendimentos brutos da categoria H de valor anual igual ou inferior a
1523000$00 (€ 7596,69) deduz-se, até a sua concorrência, a totalidade do seu
quantitativo por cada titular que os tenha auferido.
2 – Se o rendimento anual, por titular, for superior ao valor referido no número
anterior, a dedução é igual ao montante nele fixado.
3 – O limite previsto no n.º 1 é elevado em 30% quando se trate de titular cujo
grau de invalidez permanente, devidamente comprovado pela entidade competente,
seja igual ou superior a 60%.
4 – Aos rendimentos brutos da categoria H são deduzidas as quotizações
sindicais, na parte em que não constituam contrapartida de benefícios relativos
à saúde, educação, apoio à terceira idade, habitação, seguros ou segurança
social e desde que não excedam, em relação a cada sujeito passivo, 1% do
rendimento bruto desta categoria, sendo acrescidas de 50%.
5 – Para rendimentos anuais, por titular, de valor anual superior ao vencimento
base anualizado do cargo de primeiro-ministro, a dedução é igual ao valor
referido nos n.ºs 1 ou 3, consoante os casos, abatido, até à sua concorrência,
da parte que excede aquele vencimento.
6 – Para efeitos do disposto no número anterior, o vencimento base anualizado
integra os subsídios de férias e de Natal.
7 – Excluem-se do disposto no n.º 1 as rendas temporárias e vitalícias que não
se destinem ao pagamento de pensões enquadráveis nas alíneas a), b) ou c) do n.º
1 do artigo 11º.” [itálico acrescentado].
Apenas a norma do n.º 5 do artigo 53º do CIRS constitui objecto do
presente recurso; no entanto, transcreveu-se este preceito na sua totalidade,
para melhor compreensão do problema sub judice.
6.1. A norma do artigo 53º do CIRS insere-se sistematicamente nas
disposições do Código relativas à determinação do rendimento colectável e que
constam dos artigos 22º e seguintes. O n.º 5 foi aditado como n.º 4 ao então
artigo 51º do CIRS, através da Lei n.º 75/93, de 20 de Dezembro.
A propósito da determinação do rendimento colectável, o CIRS contém
regras gerais e regras especiais aplicáveis às várias categorias de rendimentos:
rendimentos do trabalho, rendimentos empresariais e profissionais, rendimentos
de capitais, rendimentos prediais, incrementos patrimoniais e pensões.
A norma que nos ocupa é uma dessas normas especiais aplicáveis às
pensões.
Contém ainda o Código, quando regula a determinação do rendimento
colectável, regras (aplicáveis à generalidade das categorias de rendimentos)
sobre a dedução de perdas e sobre os abatimentos ao rendimento líquido total e,
finalmente, sobre o processo de determinação do rendimento colectável.
6.2. A dedução a que alude a norma que constitui o objecto do presente
recurso releva, como aliás decorre da respectiva inserção sistemática, para a
determinação do rendimento colectável de quem aufira uma pensão.
Se forem diversas as categorias dos rendimentos, as deduções a
considerar para tal efeito são também diversas: assim, por exemplo, se se tratar
de rendimentos do trabalho dependente, os montantes a deduzir são, em geral, os
previstos no artigo 25º do CIRS; se se tratar de rendimentos prediais, são os
previstos no artigo 41º.
As deduções que relevam para efeitos de determinação do rendimento
colectável não se confundem com as deduções à colecta (materializadas
nomeadamente nas despesas de saúde e de educação e formação), que relevam apenas
para a liquidação do imposto: por isso, o CIRS regula estas deduções quando
trata da matéria da liquidação (artigos 75º e seguintes).
6.3. A norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS pode importar a redução ou mesmo
a exclusão de uma dedução própria das pensões, em atenção a uma circunstância
que, em traços largos, assenta na consideração de o valor anual da pensão ser
superior ao vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro.
Na medida em que tal circunstância não releva – pelo menos a ela não
alude a letra da lei – para o cálculo das deduções próprias de outras categorias
de rendimentos, violar-se-á alguma norma ou princípio constitucional?
Esta é, em síntese, a questão colocada pelo recorrente.
7. Nas conclusões das alegações, começa o recorrente por censurar à
norma sub judice a violação do princípio da progressividade – a que alude o n.º
1 do artigo 104º da Constituição –, pois que, na sua perspectiva, “a
progressividade deve ser atingida através de taxas progressivas e não pela
eliminação da dedução específica”.
Trata-se de argumento improcedente.
Em primeiro lugar, e como é óbvio, o princípio da progressividade do imposto
sobre o rendimento pessoal não impõe que, na determinação do rendimento
colectável, se considere uma concreta dedução específica. Dito de outro modo: da
progressividade do imposto consagrada no n.º 1 do artigo 104º da Constituição (e
que, em síntese, exige a tributação com taxas progressivas, embora o texto
constitucional seja pouco claro quanto ao nível de progressividade a ter em
conta: cfr. J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, Lex, 1998,
p. 145-147) nada se retira acerca dos montantes que deverão ser deduzidos ao
rendimento bruto para efeitos da determinação do rendimento colectável.
Na medida em que a exclusão ou redução da dedução a que porventura conduza a
aplicação do artigo 53º, n.º 5, do CIRS não convoca a aplicação do princípio da
progressividade, não pode naturalmente de tal norma resultar qualquer violação
desse princípio.
Em segundo lugar, esta norma não regula as taxas do imposto. Assim sendo, é
evidente que não faz sentido defender, como faz o recorrente, que ela viola o
princípio da progressividade, pois que “a progressividade deve ser atingida
através de taxas progressivas”.
8. Considera ainda o recorrente que a norma do artigo 53º, n.º 5, do
CIRS viola o princípio da capacidade contributiva.
De harmonia com o princípio da capacidade contributiva, “um sistema fiscal é
justo se a repartição dos impostos pelos cidadãos for feita de acordo com a sua
capacidade económica, independentemente do grau de satisfação que cada um possa
retirar da fruição dos bens e serviços públicos” (cfr. J. Albano Santos, Teoria
Fiscal, Universidade Técnica de Lisboa – Instituto Superior de Ciências Sociais
e Políticas, 2003, p. 405).
No entender do recorrente, tal princípio seria violado “já que com a
eliminação/redução da dedução específica deixa de se ter em conta o mínimo de
encargos necessários à obtenção dos rendimentos do sujeito passivo”.
Também não procede este argumento do recorrente.
Em primeiro lugar, porque o artigo 53º do CIRS não regula a possibilidade ou
impossibilidade de dedução de tais encargos, mas apenas a possibilidade ou
impossibilidade de dedução de um certo quantitativo (que é, em regra, o de €
7596,69), não relacionado com as despesas que o titular do rendimento se viu
obrigado a fazer para obter o respectivo rendimento: é que, como se salienta no
acórdão recorrido (supra, 3.), no caso de rendimentos provenientes de pensões
não se vislumbra a que despesas dê necessariamente lugar a sua obtenção.
Ora, não regulando o artigo 53º do CIRS a possibilidade ou impossibilidade de
dedução de encargos necessários à obtenção dos rendimentos do sujeito passivo,
nenhuma limitação pode introduzir nesse domínio a norma do seu n.º 5.
Em segundo lugar, a eventual eliminação ou redução da dedução a que se refere o
artigo 53º do CIRS não exclui a possibilidade de outras deduções serem feitas
pelo sujeito passivo do imposto: como já atrás se salientou, o CIRS prevê
múltiplas deduções a outras categorias de rendimentos e múltiplas deduções à
colecta, que podem contemplar os encargos necessários à obtenção dos rendimentos
do sujeito passivo, se eles tiverem existido. Observa J. L. Saldanha Sanches,
ob. cit., p. 205, nota 283, que o CIRS “usa o termo «deduções» para as despesas
conexas com a obtenção do rendimento (arts. 25º e 26º) reservando o termo
«abatimentos» para as despesas essencialmente pessoais como as realizadas com os
dependentes, a habitação ou a saúde. As deduções são formas de tornar líquidos
certos rendimentos, os abatimentos o modo de levar em conta, mediante
diferenciações horizontais, aspectos determinantes da capacidade contributiva
dos diversos agregados familiares”.
Nenhum impedimento levantando o artigo 53º, n.º 5, do CIRS à
dedução, nos termos gerais, dos encargos necessários à obtenção dos rendimentos
do sujeito passivo, nenhuma razão tem portanto o recorrente quando, com base
nesse argumento, conclui no sentido da violação do mencionado princípio da
capacidade contributiva.
9. Invoca ainda o recorrente a violação do princípio da igualdade de
tributação.
Este princípio, que assenta no da capacidade contributiva, “diz-nos que as
pessoas são tributadas em conformidade com a respectiva capacidade contributiva,
o que significa, de um lado, que ficarão excluídos do campo da incidência dos
impostos aquelas pessoas que não disponham dessa capacidade e, de outro lado,
que face a detentores de capacidade contributiva, os contribuintes com a mesma
capacidade pagarão o(s) mesmo(s) imposto(s) (igualdade horizontal) e os
contribuintes com diferente capacidade pagarão diferentes impostos, seja em
termos qualitativos, seja em termos quantitativos (igualdade vertical)” (cfr.
José Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, Coimbra, Almedina,
1998, p. 443).
Na perspectiva do recorrente, o regime instituído no artigo 53º, n.º 5, do CIRS
levaria a que o sujeito passivo com igual capacidade contributiva no activo e na
reforma fosse tributado mais gravosamente na reforma do que no activo.
Não demonstra porém o recorrente em que medida a circunstância de o
rendimento anual do sujeito passivo do imposto ser superior ao vencimento base
anualizado do cargo de primeiro-ministro – que é a circunstância a que atende a
norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS, para efeitos da redução ou exclusão da
dedução – se reflecte numa tributação mais gravosa dos rendimentos provenientes
de pensões.
A invocação da violação do princípio da igualdade só poderia considerar-se
pertinente se tal circunstância não se reflectisse na tributação dos rendimentos
de outras categorias ou se reflectisse menos gravosamente nessa tributação.
Ora, o recorrente não demonstra que as deduções previstas, por exemplo, no
artigo 25º do CIRS (relativas aos rendimentos do trabalho dependente), não
tenham em devida conta essa circunstância, ainda que (como efectivamente ocorre)
a ela não aludam expressamente. Por outras palavras, da argumentação do
recorrente não resulta, por exemplo, que o titular de rendimentos do trabalho
dependente que aufira um rendimento anual superior ao vencimento base anualizado
do cargo de primeiro-ministro acabe, em regra, por ser tributado mais suavemente
do que o titular de rendimentos provenientes de pensões.
E a verdade é que são diversas as situações de quem aufere os rendimentos
previstos no n.º 1 do artigo 53º do CIRS (isto é, rendimentos de valor anual
igual ou inferior a € 7596,69), as de quem aufere rendimentos simplesmente
superiores aos previstos no n.º 1 do artigo 53º – a quem é aplicável o n.º 2 do
mesmo artigo 53º – e as de quem aufere rendimentos de valor anual superior ao
vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro (hipótese do n.º 5 do
artigo 53º). As situações referidas são diferentes, quer quanto ao montante dos
rendimentos auferidos, quer quanto ao montante da dedução que é efectuada, o que
basta, só por si, para se excluir a existência de violação do princípio da
igualdade.
Não existe, por outro lado, identidade de situações entre os rendimentos de
pensões e os rendimentos provenientes, por exemplo, do trabalho dependente
quanto aos custos necessários para obtenção de rendimentos de cada uma dessas
categorias, pelo que, também sob este aspecto, a previsão de uma dedução não
viola o princípio da igualdade. É que – independentemente de outras
considerações – não pode comparar-se a dedução específica prevista no artigo 53º
do CIRS com a dedução dos custos que o contribuinte tem de suportar para a
obtenção de rendimentos de outras categorias. Improcede assim igualmente a
acusação de “discriminação qualitativa” deduzida pelo recorrente.
Conclui-se portanto que não existe qualquer base sólida para censurar à norma
sub judice a violação do princípio da igualdade.
10. De acordo com o recorrente, a norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS
violaria ainda o princípio da tributação pelo rendimento líquido, “uma vez que
nos casos em que existe uma eliminação, ou mesmo nos que existe apenas uma
redução, da dedução específica, a taxa incide directamente sobre o rendimento
bruto”.
Esta argumentação do recorrente prende-se com uma outra a que já se
fez referência (supra, 8.): a de que a norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS
impediria a dedução das despesas específicas para a obtenção do rendimento total
auferido e, como tal, ocasionaria a tributação pelo rendimento bruto (cfr. fls.
132 a 139).
Mas, como já se salientou, nem a norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS
regula a possibilidade ou impossibilidade de dedução de despesas, nem essa norma
exclui a aplicação, se for caso disso, das outras regras do Código relativas a
deduções ao rendimento colectável e a deduções à colecta.
Como tal, nunca poderia essa norma violar o referido princípio da
tributação pelo rendimento líquido.
11. A norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS ofenderia ainda, segundo o
recorrente, o princípio da segurança jurídica, na modalidade do princípio da
confiança, pois que “foi criada [pelo próprio legislador, quer no preâmbulo do
decreto-lei que aprovou o Código do IRS, quer no próprio artigo 51º do Código do
IRS, na sua versão de 1989 até 1994] a convicção ao Recorrente, e aos
pensionistas em geral, que aquando da reforma ficariam sujeitos a um regime de
tributação mais favorável do que aquele a que se encontravam sujeitos, enquanto
sujeitos passivos enquadrados na Categoria A”.
Trata-se novamente de argumento improcedente. Na verdade, ele
pressupõe, desde logo, que ao recorrente havia sido criada a expectativa de que
a circunstância de auferir um rendimento anual superior ao vencimento base
anualizado do cargo de primeiro-ministro não seria considerada para efeitos de
cálculo de uma dedução ao rendimento colectável.
Ora mesmo que o mencionado preâmbulo do diploma que aprovou o Código do IRS e o
citado anterior artigo 51º tivessem criado ao recorrente a expectativa de que as
pensões seriam objecto de um tratamento mais favorável do que os rendimentos do
trabalho dependente ou de capitais, parece evidente que nunca lhe podiam ter
criado a expectativa legítima de que a circunstância de auferir um rendimento
anual superior ao vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro não
seria considerada para efeitos de cálculo de uma dedução ao rendimento
colectável. Dito de outro modo, não é minimamente razoável sustentar que ao
recorrente havia sido criada a convicção de que o regime do artigo 53º, n.º 5,
do CIRS nunca viria a existir; quando muito, teria sido criada uma expectativa
acerca das tendências do sistema de tributação das pensões.
Esta expectativa é certamente demasiado vaga para imputar à norma em apreço uma
qualquer violação do princípio da confiança, ainda que se considerasse – questão
que nem sequer interessa apreciar, porque se encontra prejudicada pelas
considerações anteriores – que o preâmbulo de um diploma legal ou a redacção, em
certo momento, de um preceito, podem fundar expectativas legítimas.
Ao introduzir no Código do IRS a norma que agora consta do n.º 5 do artigo 53º,
o legislador ordinário fez uso, de modo que não pode considerar-se intolerável,
da sua liberdade de conformação. Com essa actuação, traduzida na fixação de um
limite à dedução prevista quanto a rendimentos da categoria H, para rendimentos
anuais superiores ao vencimento anualizado do cargo de primeiro-ministro, não se
frustrou qualquer confiança legitimamente formada sobre a manutenção do direito
anterior. Dir-se-á até que é natural que o quadro legislativo dos impostos
evolua e que determinados pontos do regime, como o dos limites a deduções,
sobretudo para rendimentos relativamente elevados, não possam considerar-se como
tipicamente merecedores de uma estabilidade tal que os torne imunes a alterações
ou susceptíveis de fundar uma confiança legítima, digna de protecção quanto à
sua manutenção.
12. Por fim, aponta ainda o recorrente a violação dos princípios da
generalidade e da justiça – para além da violação do “princípio da coerência do
sistema fiscal”, mas este, não revestindo autónoma relevância constitucional,
como é, aliás, reconhecido pelo recorrente (cfr. fls. 131-132 e 141-142), não
será aqui considerado.
Em relação aos princípios da generalidade e da justiça, não concretiza
minimamente o recorrente as razões da respectiva violação, intuindo-se apenas
que elas coincidiriam com as razões que alicerçam a alegada violação do
princípio da igualdade. Mas esta questão já foi apreciada e, como se explicou,
não pode imputar-se à norma do artigo 53º, n.º 5, do CIRS a violação de tal
princípio constitucional.
Improcede portanto, também nesta parte, o presente recurso de
constitucionalidade.
III
13. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 53º do Código
do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção do Decreto-Lei n.º
198/2001, de 3 de Julho;
b) Consequentemente, negar provimento ao presente recurso, confirmando a
decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 5 de Abril de 2005
Maria Helena Brito
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido. Em meu entender a norma viola sem fundamento bastante o princípio da
progressividade do imposto. Em primeiro lugar, a lei fiscal não pode estabelecer
'salários máximos' no capítulo da segurança social; em segundo lugar, a
eliminação da dedução específica apresenta neste caso uma justificação
arbitrária, pois se sabe que o valor da equiparação não tem qualquer semelhança
com qualquer 'vencimento', no sentido de corresponder, com rigor, ao valor
salarial auferido por um agente do Estado.
Carlos Pamplona de Oliveira