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Processo n.º 1009/04
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
I – A Causa
1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra
interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 280º, nº
1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 70º., nº.
1, alínea a), da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do Acórdão daquela
Relação de 19/10/2004 (fls. 178/181 vº), do qual consta o seguinte
pronunciamento decisório:
“[...] acorda-se em julgar inconstitucional, por violação do princípio do
contraditório (em que se integra a proibição de indefesa, ínsita nos artigos 2º
e 20º da Constituição), a norma contida na primeira parte do nº 2 do artigo 772º
do CPC, assim se julgando procedente a presente apelação, revogando-se a
decisão recorrida e em consequência do que se ordena o prosseguimento dos autos,
nos termos do artigo 775º do CPC [...]”
1.1. Esta decisão teve lugar no âmbito de um recurso de revisão interposto na
Comarca de Águeda, em 27/05/2002, por A., contra o seu ex-marido B., onde aquela
pediu a anulação de uma partilha efectuada num processo de inventário para
separação de meações, cuja sentença homologatória transitara em julgado em
11/6/1987. Fundou a requerente tal revisão (através do Acórdão de fls. 87/90
fora entretanto decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que essa era a
forma adequada à acção proposta e não a de anulação de partilha) na invocação de
ter corrido o inventário em causa à revelia dela, sendo nula a citação edital
então efectuada [fundamento previsto no artigo 771º, alínea f) do Código de
Processo Civil (CPC)].
Tal pretensão não foi acolhida na 1ª instância, onde se decidiu (sentença de
fls. 124/125 vº) que a possibilidade de revisão da sentença desse inventário,
caducara pelo decurso do prazo de cinco anos previsto no artigo 772º, nº 2 do
CPC.
Foi em sede de recurso interposto desta decisão que se proferiu o Acórdão aqui
recorrido, contendo a recusa de aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade, da norma constante do mencionado nº 2 do artigo 772º do
CPC. Motivando tal recusa, consignou o Tribunal da Relação de Coimbra o
seguinte:
“[...]
Para o caso há que ter presente o disposto no artº 772º, nº 2, al. b), do CPC,
mais concretamente o disposto na primeira parte de tal norma, onde se preceitua
que “o recurso (extraordinário de revisão) não pode ser interposto se tiverem
decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão...”.
Aplicando essa referida norma, a decisão recorrida interpretou-a “à letra”, isto
é, com o sentido de que esse prazo não se conta desde a data em que a parte teve
conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, mas sim desde o trânsito em
julgado da decisão a rever. Que no caso de ter decorrido este prazo de cinco
anos desde o trânsito em julgado da sentença a rever, o direito a interpor
recurso extraordinário de revisão está irremediavelmente perdido.
Face ao que considerou que em Maio de 2002 já há muito tinha decorrido esse dito
prazo, face ao que julgou verificada a caducidade do direito de revisão invocado
pela aqui Apelante.
Acontece, no entanto, que apesar das doutas considerações constantes dessa
decisão, já depois da sua publicação o Tribunal Constitucional, em Ac. Publicado
no DR, II série, de 12/05/2004 (Ac. Nº 209/2004 – T. Const. – Proc. nº
798/2003), considerou que “... o valor da segurança jurídica não foi erigido com
valor absoluto, embora deva constituir a regra, pelo que a norma contida no nº 2
do artº 772º do CPC não se trata de um prazo absolutamente peremptório de cinco
anos para a interposição do recurso de revisão, contados desde o trânsito em
julgado da sentença a rever...”.
Isto porque, no entender desse Tribunal, tal interpretação viola o princípio
constitucional do contraditório no âmbito do processo civil, princípio [...] que
esse Tribunal considera derivar do princípio do Estado de Direito e da garantia
de acesso à justiça e aos tribunais, consagrados, respectivamente, nos artºs 2º
e 20º da Constituição.
Aí se citam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando defendem que no
âmbito normativo do artº 20º da Constituição deve integrar-se ainda a proibição
da indefesa, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do
particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que
lhe dizem respeito.
Para nesse aresto se conclui[r] que “a solução normativa consagrada no artigo
772º, nº 2, 1ª parte, do CPC, quando aplicável aos casos em que, tendo corrido à
revelia a acção em que foi proferida a decisão cuja revisão é requerida, seja
alegado como fundamento da revisão, precisamente, a falta ou nulidade da citação
para aquela acção, é efectivamente inconstitucional, por ofensa daquele
princípio”.
É que, como também aí se escreve, “semelhante interpretação normativa retira por
completo ao interessado a possibilidade de invocar sequer perante o tribunal a
invalidade do acto (citação edital) que, segundo ele, o impediu de apresentar
qualquer tipo de defesa, conduzindo a que seja inapelavelmente confrontado com
uma decisão judicial cujos fundamentos de facto e de direito não teve e nem tem,
por razão que alega não lhe ser imputável e fica impossibilitado de provar,
qualquer oportunidade de contraditar”.
Donde se ter julgado inconstitucional a citada norma do artº 772º, nº 2, 1ª
parte, do CPC, embora restringida ao tipo de acção em causa nesse aresto.
O que é certo é que não vemos diferença entre a acção em análise nesse aresto
(acção oficiosa de investigação de paternidade, que ocorreu à revelia) e a acção
em causa nestes autos (que também correu à revelia), com vista a poder-se fazer
outro possível juízo de inconstitucionalidade sobre a norma em causa.
Bem pelo contrário, e remetendo-nos para os termos desse Acórdão, afigura-se que
o referido princípio constitucional da proibição de indefesa também colhe
inteira razão de ser e de aplicação no presente caso, face ao que e pelas mesmas
razões importará também julgar inconstitucional a citada norma neste processo,
em consequência do que importa revogar a decisão recorrida, face ao que importa
que seja proferida nova decisão que ordene o prosseguimento dos autos, nos
termos do artº 775º do CPC:
Com o que resulta a procedência da apelação deduzida.
[...]”
1.2. Admitido o presente recurso do Ministério Público (fls. 191), foram os
autos remetidos a este Tribunal, tendo o Exmº. Procurador-Geral Adjunto
apresentado alegações, rematando-as com as seguintes conclusões:
“[...]
1- O estabelecimento de um prazo máximo peremptório, que condiciona a
admissibilidade do recurso extraordinário de revisão, contado do trânsito em
julgado da sentença a rever, representa o balanceamento possível entre dois
valores constitucionalmente tutelados: o de não deixar subsistir sentenças
intoleravelmente “injustas”, nomeadamente por violação do contraditório, e a
autoridade e intangibilidade do caso julgado material, impeditivo de que a
sentença definitiva possa ser revista (e eventualmente revogada) a todo o tempo,
indefinidamente ao longo dos anos, impedindo a estabilização das relações
jurídicas judicialmente apreciadas e afectando, em termos desproporcionados, a
certeza e segurança do direito – não afrontando, deste modo, tal regime-regra os
princípios da igualdade e do acesso ao direito.
2 -Tal regime adjectivo, enquanto aplicável a acções, consumando um juízo
divisório, em que a relação material controvertida tem natureza patrimonial,
culminando, nomeadamente, na atribuição da propriedade e posse de um imóvel a
determinado interessado, não é de considerar, por maioria de razão,
inconstitucional, já que a desmedida dilação na interposição do recurso de
revisão pelo interessado preterido pressupõe e implica, pela natureza das
coisas, uma situação de abandono ou desinteresse objectivo na administração e
acompanhamento do seu património, insusceptível de merecer tutela, em termos de
afrontamento do valor do caso julgado material.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.[...]”
Nenhum outro sujeito processual alegou. Cumpre, assim, decidir.
II – Fundamentação
2. Para integral compreensão da presente situação mostra-se útil rememorar as
circunstâncias essenciais que originaram este recurso de constitucionalidade.
O processo iniciou-se com uma acção especial de divórcio litigioso, proposta por
B. em Abril de 1984 (proc. nº 2561 da 1ª Secção do 2º Juízo da Comarca de
Águeda, que se encontra apenso a este recurso), na qual indicava a ré, então sua
mulher, A., como residente em parte incerta da Venezuela. Tal acção, para a qual
esta foi citada editalmente, culminou com o decretamento do divórcio,
transitando em julgado a decisão em Maio de 1985.
Então, dissolvido o casamento por divórcio, veio A. requerer, em 18 de Outubro
de 1985, processo de inventário para separação de meações, relativamente à sua
ex-cônjuge, indicando-a, de novo, como residente em parte incerta da Venezuela,
facto que conduziu, também neste último processo, à respectiva citação edital e
à nomeação de um curador ad litem para a representar.
Partilhou-se neste inventário um imóvel (único bem relacionado e descrito),
sendo ele adjudicado ao requerente, que o licitou em conferência, sendo o
quinhão da referida A. preenchido por tornas.
A decisão que homologou esta partilha transitou em julgado oito dias após a sua
publicação, ou seja, em 11 de Junho de 1987 nos termos da aplicação conjugada
dos artigos 677º e 685º, nº 1 ambos do CPC (este último na redacção então em
vigor, que era a anterior ao Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Junho). A este
propósito convém sublinhar, aliás, ser indiscutível, desde há muito, o valor de
caso julgado da sentença homologatória da partilha, estando a tal respeito
perfeitamente ultrapassadas posições em sentido diverso que, em tempos existiram
sobre esta matéria [representando tais posições, v. Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça de 7/10/1941, publicado na «Revista de Legislação e de
Jurisprudência», Ano 74º., nº. 2707, págs. 267/269, e seguido de um comentário
discordante de José Alberto dos Reis (págs. 269/272); cfr., sobre o entendimento
actual quanto à formação de caso julgado pela sentença homologatória da
partilha, João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, 3ª ed.,
Coimbra, 1980, págs. 506/508].
Praticamente quinze anos após o trânsito em julgado da decisão proferida no
inventário, em 27 de Maio de 2002, veio A. pretender anular a partilha,
invocando o uso indevido da citação edital, circunstância que foi reconduzida,
no decurso do processo onde se insere o presente recurso de
constitucionalidade, ao fundamento de revisão previsto no artigo 771º, alínea f)
do CPC (“A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos
seguintes casos: [...] f) quando, tendo corrido a acção e a execução à revelia,
por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que faltou a sua citação ou
é nula a citação já feita”).
A recondução, operada pelo Acórdão interlocutório de fls. 87/90, da acção
interposta pela interessada A. (acção de anulação de partilha nos termos do
artigo 1388º do CPC) ao recurso extraordinário de revisão, conduziu à
necessidade de verificação dos pressupostos deste, entre os quais se inclui, nos
termos do artigo 772º, nº 2 do CPC, a impossibilidade de revisão, “se tiverem
decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da sentença
homologatória da partilha” (João António Lopes Cardoso, ob. cit., pág. 548).
Foi este o sentido da decisão do tribunal de 1ª instância (nesta se disse:
“[...] é manifesto que à data em que a agora Recorrente interpôs o presente
recurso de revisão, então como acção de anulação de partilha [...], há muito
que tinha decorrido aquele prazo máximo de cinco anos, pelo que se mostra
irremediavelmente perdido o direito de recorrer extraordinariamente daquela
sentença, para obter a sua revisão, tendo operado a caducidade invocada pelo
Recorrente [...]”, transcrição de fls. 125 e vº). A decisão de sentido contrário
proferida em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual ordenou
o prosseguimento da revisão, nos termos do artigo 775º do CPC, só decorreu – já
que se pressupôs como aplicável o mencionado prazo de cinco anos respeitante a
esse recurso extraordinário – da circunstância de ter sido recusada a aplicação
do disposto no artigo 772º, nº 2 do CPC, com fundamento na inconstitucionalidade
material desta norma.
2.1. Aqui chegados, importa proceder à caracterização do recurso, delimitando
com precisão o respectivo objecto.
A decisão recorrida fundamenta a recusa de aplicação da norma remetendo para a
argumentação constante do Acórdão nº 209/04 deste Tribunal (Diário da República
– II Série de 12/05/2004, págs. 7322/7325; este e os outros Acórdãos adiante
citados estão disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Tal
aresto, com efeito, contém um pronunciamento de inconstitucionalidade
relativamente ao prazo peremptório de cinco anos constante desse artigo 772º, nº
2 do CPC. Porém, como resulta da parte decisória desse Acórdão, tal juízo
refere-se especificamente ao tipo de acção que nele estava em causa, a saber:
“[...] uma acção oficiosa de investigação de paternidade, que corre[ra] à
revelia e [na qual fora] alegado, para fundamentar o pedido de revisão, a falta
ou a nulidade da citação para aquela acção” (transcrição parcial da alínea A) da
decisão constante do Acórdão nº 209/04). Assim, embora entre o presente recurso
e aquele que originou esse Acórdão nº 209/04 exista a similitude de estar em
causa a mesma norma e concretamente o mesmo prazo de cinco anos (isto além da
semelhança traduzida na revelia e na alegação de nulidade da citação na acção
revidenda), a circunstância de terem as duas acções natureza diferente
(inventário facultativo, investigação de paternidade) não pode deixar de se
repercutir na caracterização do objecto do presente recurso.
Esta constatação, decorrente da especificidade da fiscalização concreta de
constitucionalidade, particularmente do carácter incindível que esta apresenta
relativamente à relação material controvertida da qual emerge, conduz-nos à
necessidade de incluir no próprio objecto do recurso, ao proceder à sua
caracterização, o tipo de acção em causa; neste caso, a acção relativamente à
qual se formou o caso julgado a rever. Este colocará seguramente questões
distintas, implicando, como implica, valores diferentes, consoante essa acção
seja uma partilha judicial (como aqui sucede) ou uma investigação de paternidade
(o caso do Acórdão nº 209/04).
Procedendo desta forma, ou seja, incluindo o tipo de acção na definição do
objecto do recurso, caracterizaremos a questão de inconstitucionalidade
normativa aqui suscitada como respeitando à norma contida no artigo 772º, nº 2
do CPC, na parte em que refere não poder ser interposto recurso de revisão se
tiverem decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão,
quando esteja em causa o caso julgado formado por uma sentença homologatória de
partilha, num inventário para separação de meações, que tenha corrido à revelia
do requerente da revisão e este alegue a falta ou nulidade da citação para esse
inventário, nos termos do artigo 771º, nº1, alínea f), do CPC.
Trata-se, assim, de determinar se a norma (o artigo 772º, nº 2 do CPC), na parte
e com as particularidades mencionadas, viola alguma disposição da lei
constitucional, concretamente, conforme consta da decisão recorrida, o princípio
do contraditório “em que se integra a proibição de indefesa ínsita nos artigos
2º e 20º” da CRP.
2. 2. É o seguinte o teor da norma, no segmento objecto de recusa de aplicação
pela decisão recorrida:
Artigo 772º
Prazo para interposição
1 -
.....................................................................................................
2 - O recurso não pode ser interposto se tiverem decorrido mais de cinco anos
sobre o trânsito em julgado da decisão e o prazo para a interposição é de 60
dias, contados:
a) No caso da alínea a) do artigo 771º, desde o trânsito em julgado da sentença
em que se funda a revisão;
b) Nos outros casos, desde que a parte obteve o documento ou teve conhecimento
do facto que serve de base à revisão.
3 -
...............................................................................................
4 -
...............................................................................................
Este nº. 2 resulta da redacção introduzida no CPC, sucessivamente, pelos
Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro e Decreto-Lei nº 38/03, de 8 de
Março, mas estas alterações referem-se a aspectos que nada têm que ver com o
trecho da norma que nos interessa, e que foi destacado na transcrição (v.,
quanto ao sentido destas alterações, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro
Mendes, Código de Processo Civil anotado, vol. 3º., Coimbra, 2003, págs.
200/201, e Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de
Processo Civil, vol. I, 2ª ed., Coimbra, 2004, págs. 647/648).
O prazo de cinco anos, que é o aqui em causa, decorre da versão inicial de 1961
do CPC (Decreto-Lei nº. 44.129, de 28 de Dezembro de 1961) e, aliás, já provinha
da versão de 1939 do Código (Decreto-Lei nº. 29.637, de 28 de Maio de 1939),
cujo artigo 772º., respeitante ao prazo de interposição do recurso de revisão,
remetia para a norma relativa ao prazo do recurso de oposição de terceiro, onde
(artigo 779º., § único) se estabelecia não poder o recurso “ser interposto se
tive[ssem] decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito da sentença em
julgado”.
Tinha então este prazo – em 1939 – carácter inovador, inspirando-se seguramente
nos sistemas processuais que contemporaneamente previam esse limite temporal
absoluto ao exercício da revisão: o sistema germânico da ZPO de 1879 (v. Adolfo
Schönke, Derecho Processual Civil, 1ª ed. espanhola, tradução da 5ª ed. alemã de
1948, por Luis Prieto Castro, Barcelona, 1950, pág. 331); o sistema espanhol da
Ley de Enjuiciamiento Civil de 1881, cujo artigo 1800º dispunha que “[em] nenhum
caso poderá interpor-se o recurso de revisão depois de transcorridos cinco anos
desde a data da publicação da sentença [...]” (este texto mantém-se em vigor); e
o sistema brasileiro que sujeitava a «acção rescisória de sentença» ao prazo de
prescrição de cinco anos, nos termos do artigo 178º, § 10º, VIII do Código Civil
Brasileiro de 1916 (v. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo
Civil, vol. IV, Rio de Janeiro, 1949, págs. 494/604; cfr. A. do Valle Siqueira,
Código Civil Brasileiro Anotado, São Paulo, 1922, págs. 74/82; o prazo geral da
acção rescisória no direito brasileiro actual é de dois anos, nos termos do
artigo 495º do Código de Processo Civil de 1973).
A adopção do prazo no processo civil português decorreu do projecto de Código
apresentado em 1936 por José Alberto dos Reis que relata a posterior discussão
desse aspecto específico, no seio da Comissão Revisora, nos seguintes termos:
“[...]
Sá Carneiro achava curto o limite de cinco anos; propôs que se alargasse para
15, que é o prazo de prescrição do procedimento criminal quando ao caso seja
aplicável pena maior (Cód. Penal, art. 125º, § 2º). À falsidade de documentos e
à peita, suborno e concussão é aplicável pena maior. Por outro lado não faria
sentido que pudesse haver procedimento criminal e não pudesse requerer-se a
revisão; por outro lado, não se compreenderia que o limite de tempo, passado o
qual a sentença se torna inatacável, divergisse consoante os casos.
A estas observações respondi: Parece-me demasiado longo o período de 15 anos.
Convém que a situação criada pela sentença transitada em julgado se consolide e
torne definitivamente estável dentro de prazo relativamente curto. Uma coisa é o
aspecto criminal do facto, outra o aspecto civil. Se, por motivos de ordem
social, convém que o prazo para a prescrição do procedimento criminal seja de 15
anos, não se segue daí, necessariamente, que durante o mesmo período de tempo
deva ficar num estado de contingência e precariedade a situação civil criada
pela sentença passada em julgado.
Na discussão oral perante a Comissão Revisora Sá Carneiro insistiu no seu ponto
de vista.
O Ministro da Justiça e Botelho de Sousa consideraram demasiadamente longo o
prazo de 15 anos proposto por Sá Carneiro; acham que não deve o direito fixado
pela sentença ficar em estado de incerteza durante tantos anos.
O Ministro vai mais longe. Entende que o prazo de cinco anos ainda é excessivo;
devia reduzir-se a um ano, como se estabelece no Cod. italiano.
Perante esta atitude Sá Carneiro toma a seguinte posição; se não se adoptar a
sua proposta, ao menos mantenha-se a doutrina do Projecto, para não haver
divergência, quanto a prazo, entre a revisão e a oposição de terceiro.
A Comissão deliberou que não se alterasse a disposição do Projecto. [...]”
[Código de Processo Civil anotado, Vol. VI, reimpressão, Coimbra, 1981, pág.
380]
2.3. A fixação deste ou daquele limite máximo de caducidade do recurso de
revisão (quanto à qualificação do prazo do artigo 772º, nº 2 do CPC como de
caducidade, v. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed.,
Lisboa, 1994, pág. 306) deve ser situada na problemática geral do caso julgado
e, por isso, discutida por referência às questões de fundo que este suscita.
Interessa-nos aqui o caso julgado material, a res judicata, aquele que se
projecta para além do processo concreto em que se forma e que, nas palavras de
João de Castro Mendes, “tem como ideia central a da indiscutibilidade judicial”
do pronunciamento decisório do tribunal (v. Limites Objectivos do Caso Julgado
em Processo Civil, Lisboa, 1968, pág.18).
Expressa tal indiscutibilidade determinados valores, dos quais destacaríamos,
por ser particularmente marcante, aquele que Manuel de Andrade identifica como
“razão de certeza ou segurança jurídica” e justifica nos seguintes termos:
“Sem o caso julgado material estaríamos caídos numa situação de instabilidade
jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa –
fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas. Seria
intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma
sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta
base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que
defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais
com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela
respectiva sentença. Não se trata propriamente de a lei ter como verdadeiro o
juízo – a operação intelectual – que a sentença pressupõe. O caso julgado
material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade, por força da
qual, como diziam os antigos, a sentença faça do branco preto e do quadrado
redondo («facit de albo nigrum,... aequat quadrata rotundis ...») ou transforme
o falso em verdadeiro (falsumque mutat in vero). Trata-se antes de que, por uma
fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante infrangível
ao acto de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica,
e portanto os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para
sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei
(Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se
incontestável.
Vê-se, portanto, que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a
realização do direito objectivo ou a actuação dos direitos subjectivos privados
correspondentes. É também a segurança – a paz social (Schönke).”
[Noções Elementares de Processo Civil, nova edição revista e actualizada pelo
Dr. Herculano Esteves, Coimbra, 1976, págs. 305/306]
2.3.1. Discute-se se – e em que medida – existe uma tutela constitucional do
caso julgado, em termos de os valores por este expressos poderem ser
confrontados (como valores constitucionalmente relevantes) com outros valores
tutelados pela Lei Fundamental.
Constitui esta uma questão com a qual a jurisprudência constitucional tem sido
confrontada, já desde os tempos da Comissão Constitucional. Então, o
entendimento preponderante apontava no sentido do não acolhimento pela
Constituição de um valor específico (autónomo) decorrente do caso julgado. Com
efeito, no Acórdão nº 87, de 16 de Fevereiro de 1978, afirmava-se, depois de
elencar os princípios constitucionais aos quais o caso julgado seria reportável:
“[...]
Mais próximos da realidade são os argumentos respeitantes à segurança e à
igualdade. Não deixa de impressionar a segurança inerente à garantia dada pelo
Estado aos cidadãos de que, uma vez dito o direito pelos tribunais, outros
órgãos não irão diminuir a força obrigatória das decisões. Não obstante, a
segurança não deve ser hipostasiada a ponto de obnubilar exigências de igualdade
e de justiça que lhe fluem da própria vida e que requerem uma acção constante
desse mesmo Estado. O caso julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de
se estear em interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o sentido
dominante na ordem jurídica.”
[publicado no Apêndice ao Diário da República de 3/05/1978, págs. 24/31].
Numa fase subsequente, após a criação do Tribunal Constitucional, assistiu-se a
uma evolução que, paulatinamente, foi encarando o instituto do caso julgado
enquanto valor constitucionalmente tutelado e que, como tal, gozaria de alguma
espécie de intangibilidade. Marcante deste entendimento jurisprudencial,
posteriormente consolidado por outras decisões, foi o Acórdão nº 352/86, no
qual, depois de se sublinhar que “terá sempre a lei de apor a uma decisão
[jurisdicional] o cunho da definitividade”, se disse:
“[...]
Daí que a força do caso julgado, inerente às decisões judiciais insusceptíveis
de recurso ordinário, que lhes concede força executiva ou declara
definitivamente o direito, se deva arvorar em princípio constitucional
implícito, como decorre ainda do artigo 282º, nº 3 da Constituição [...].”
[sublinhado acrescentado; está publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 8º vol., págs. 559/569].
Não obstante, os pronunciamentos do Tribunal Constitucional a este propósito têm
sido substancialmente menos categóricos que as posições doutrinais às quais
faremos posterior referência. A aceitação da relevância constitucional do caso
julgado, não significa uma total intangibilidade deste: o caso julgado sempre
poderá ser colocado em confronto com outros princípios constitucionais e, nessa
operação de ponderação de interesses, ceder, ou não, consoante a natureza dos
valores em presença. Como se disse no Acórdão nº 644/98 (publicado nos Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 41º vol., págs. 367/404):
“[...] a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado.
Porém é ela própria, [no] nº 3 do artigo 282º, que vem estabelecer situações de
excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado: e daí o dever-se concluir que um
tal valor se não perfila como algo de imutável ou inultrapassável.”
Daí que, caracterizando o sentido da jurisprudência deste Tribunal em matéria de
tutela constitucional do caso julgado, se afirme:
“Uma [...] conclusão que se pode extrair da jurisprudência do Tribunal
Constitucional é a de que a definitividade da decisão proferida a final num
processo é encarada como algo de natural, porque imanente à função
jurisdicional. A livre modificabilidade ou revogabilidade dessa decisão
parece-nos ser permitida apenas em casos excepcionais, embora não se possa
identificar, com segurança, quais sejam esses exactos casos.
Mas, apesar dessa «exigência de caso julgado», ou dessa garantia de que, num
processo, alguma decisão deverá ser definitiva, da jurisprudência do Tribunal
Constitucional depreende-se também uma vasta margem de liberdade do legislador
na escolha das decisões que, dentro do processo, são aptas a constituírem caso
julgado e, bem assim, no estabelecimento dos requisitos do trânsito em julgado
de uma decisão.
[...]
extrai-se, ainda, que o caso julgado deve poder ser impugnado em certos casos.
Embora nunca o tenham afirmado explicitamente, o Tribunal Constitucional por
várias vezes configurou a revisão de sentenças, mesmo fora do campo criminal,
como uma decorrência do direito de acção [...]. Não obstante a liberdade
reconhecida ao legislador na selecção dos fundamentos do recurso de revisão,
parece-nos que em significativo número de arestos o Tribunal Constitucional deu
a entender que o legislador não pode abolir, pura e simplesmente os recursos
extraordinários em processo civil.”
[Isabel Alexandre, O Caso Julgado na Jurisprudência Constitucional Portuguesa,
in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra,
2003, págs. 61/62].
Assenta esta caracterização na análise de diversas decisões deste Tribunal,
importando referir em especial algumas delas, pelo seu particular interesse para
a situação em causa no presente recurso.
Desde logo o Acórdão nº 971/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol.,
págs. 461/468) no qual foi entendido que a tutela constitucional do caso julgado
não ia ao ponto de exigir em todos os casos – estava aí em causa um processo de
jurisdição voluntária – a existência de um recurso para o STJ fundado em
violação do caso julgado, recurso este excluído, nesse tipo de processos, pelo
artigo 1411º, nº 2 do CPC.
No Acórdão nº 184/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 39º vol., págs.
261/266) defrontou-se o Tribunal com uma arguição de inconstitucionalidade
relativamente ao artigo 144º, nº 4 do CPC (na redacção decorrente do Decreto-Lei
nº 381-A/85, de 28 de Setembro), quando interpretado no sentido de conferir
natureza substantiva ao prazo de trinta dias, então previsto no nº 2 do artigo
762º do CPC, para interposição de um recurso de revisão (a natureza substantiva
ou processual do prazo tinha nesse regime óbvios reflexos no modo de contagem do
prazo; v. os nºs. 1, 2 e 3 do artigo 144º nessa redacção; cfr. o regime actual
deste artigo 144º e respectiva caracterização em Carlos Francisco de Oliveira
Lopes do Rego, ob. e vol. cit., págs. 149/152). Do percurso argumentativo
seguido pelo Tribunal Constitucional para concluir (nesse Acórdão nº 184/98)
pela não violação do direito à tutela judicial efectiva, pode intuir-se, como
bem sublinha Isabel Alexandre (ob. cit., pág. 52), que uma das dimensões dessa
tutela (que o Tribunal entendeu não violada pela qualificação do prazo de
recurso de revisão, decorrente do nº 4 do artigo 144º do CPC, como substantivo)
consistiria na possibilidade de dispor de um mecanismo processual de revisão da
decisão judicial relativamente à qual se tivesse formado caso julgado (disse-se
nesse Acórdão nº 184/98: “[...] não se vê que a interpretação impugnada tenha,
de alguma forma, posto em causa, em termos constitucionalmente censuráveis, o
direito de recorrer por via de revisão [...]”).
Posteriormente, no Acórdão nº 702/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41º
Vol., págs. 625/631), reafirmou este Tribunal, implicitamente, o entendimento,
subjacente ao já citado Acórdão nº 184/98, segundo o qual a existência de um
recurso (de uma figura processual) com as características do de revisão (ou
seja, de um meio visando a ultrapassagem do caso julgado) constituiria uma
dimensão constitucionalmente tutelada do direito de acção. Note-se que estava em
causa um bloco normativo integrado pelo artigo 1037º, nº 2 do CPC (norma mais
tarde eliminada pela reforma do processo civil de 1995) e pelo artigo 60º, nº 2
do Regime do Arrendamento Urbano, do qual decorria, em determinada
interpretação, a exclusão da qualidade de terceiro relativamente à parte que na
acção de despejo fora citada editalmente e invocava, posteriormente, a
irregularidade dessa citação. Ora, entendeu o Tribunal Constitucional neste
Acórdão nº 702/98 que, dispondo o interessado do recurso de revisão, ao abrigo
do artigo 771º, alínea f) do CPC, a respectiva posição processual estaria
suficientemente acautelada, no que respeita aos valores subjacentes ao artigo
20º da CRP, sem necessidade de lhe outorgar a qualidade de terceiro para o
efeito de poder deduzir embargos: a defesa contra o caso julgado já estaria
garantida pela possibilidade de uso do recurso de revisão.
2.3.2. Na doutrina, por sua vez, encontramos afirmações inequívocas no sentido
da consagração constitucional do caso julgado (da respectiva intangibilidade). É
o caso de Paulo Otero, que funda essa relevância nos seguintes quatro
argumentos colhidos no texto constitucional:
“a) Em primeiro lugar, se a Constituição ressalva os casos julgados que se
fundam em norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral
[refere-se o autor ao regime do artigo 282º, nº 3 da CRP], fazendo com que,
apesar de tal inconstitucionalidade, os mesmos permaneçam na ordem jurídica, por
maioria de razão, daí se deve extrair que não pode ser destruído ou retirada
obrigatoriedade a um caso julgado que se funda numa lei válida;
b) Em segundo lugar, a intangibilidade do caso julgado resulta ainda do
princípio constitucional do Estado de direito democrático (artigo 2º), enquanto
pressuposto de garantia dos valores da segurança e da certeza da ordem jurídica.
Admitir a modificabilidade do caso julgado, fosse por via judicial ou
legislativa, significaria sempre colocar em causa as ideias de estabilidade, de
segurança e mesmo de tutela da confiança dos cidadãos;
c) Em terceiro lugar, o princípio da separação de poderes e a inerente reserva
da função jurisdicional a cargo dos tribunais constituem fundamentos impeditivos
de quaisquer acções dos demais poderes do Estado (político, legislativo e
administrativo) tendentes a colocar em causa a decisão judicial transitada em
julgado;
d) Em quarto e último lugar, observe-se que a obrigatoriedade das decisões
judiciais para todas as entidades públicas e privadas e a sua prevalência sobre
as de quaisquer outras entidades (CRP artigo 208º, nº 2) [actual artigo 205º, nº
2] constituem também fundamento para a intangibilidade do caso julgado.[...]”
[Ensaio sobre o Caso Julgado Inconstitucional, Lisboa, 1993, pág. 50; também no
sentido da relevância constitucional do caso julgado: Rui Medeiros, A Decisão de
Inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, págs. 548/550; Miguel Teixeira de Sousa,
Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1996, págs. 568/569; João
de Castro Mendes, Caso Julgado, Poder Judicial e Constituição, in «Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa», vol. XXVI, 1985, págs. 47/49].
2.4. Extraem-se dos elementos acabados de expor argumentos de natureza geral que
nos possibilitam uma adequada abordagem da questão dos limites temporais à
revisão do caso julgado, decorrentes da norma recusada, concretamente numa acção
com as características daquela onde se enxerta o presente recurso.
Temos, pois, que o caso julgado, configurando-se como um valor
constitucionalmente relevante, deverá dispor de algum grau de protecção (de
intangibilidade), em termos da sua ultrapassagem só ser aceitável dentro de uma
lógica de balanceamento ou ponderação com outros interesses dotados, também
eles, de tutela constitucional. E, seguindo este entendimento, se é certo que a
existência de um meio processual de ultrapassagem do caso julgado, v.g. com as
características que o nosso ordenamento adjectivo confere ao recurso de revisão
(e ao recurso de oposição de terceiro), cumpre igualmente um objectivo dotado de
relevância constitucional (que decorre do artigo 20º da CRP), não é menos certo
que, descontada a supressão pura e simples da existência desse (de um qualquer)
meio de ultrapassagem do caso julgado – supressão esta constitucionalmente
ilegítima – ao legislador ordinário sempre assistirá um apreciável grau de
liberdade na configuração concreta desse meio processual.
Ora, um dos modos que pode revestir essa configuração traduz-se precisamente no
estabelecimento de um limite temporal à possibilidade de desencadear o meio de
impugnação do caso julgado. É este o sentido do prazo de cinco anos previsto no
artigo 772º, nº 2 do CPC. Face a tal limite, a respectiva indagação de
conformidade constitucional implicará, também ela, que o valor de caso julgado
seja posicionado face ao outro valor expresso pela situação relativamente à qual
a ultrapassagem daquele é requerida.
2.4.1. Como se referiu anteriormente, a propósito da caracterização do objecto
do recurso, existem diferenças particularmente relevantes entre a acção em que
se originou o presente recurso e aquela que conduziu ao pronunciamento constante
do Acórdão nº 209/04. Tais diferenças intuem-se facilmente constatando o
conteúdo exclusivamente patrimonial dos interesses subjacentes à hipótese sub
judice (trata-se nesta da divisão de um património outrora integrado na comunhão
matrimonial), comparativamente à situação particular de tutela de direitos de
natureza estritamente pessoal ou de personalidade, expressos na relação de
paternidade ou de filiação, que constituem emanação do direito à identidade
pessoal previsto no artigo 26º., nº. 1, da CRP (o “direito à historicidade
pessoal”, enquanto “direito ao conhecimento da identidade dos progenitores”,
como o qualificam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 179). A este respeito,
sublinhando a especificidade destes, escreveu-se no Acórdão nº. 486/04: “[d]eve
[…] dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do
direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26º., nº. 1, de um direito
fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade”
[esta decisão, posteriormente confirmada em sede de recurso para o Plenário nos
termos do artigo 79º.-D, da LTC, pelo Acórdão nº. 11/05, julgou inconstitucional
a extinção do direito de investigar a paternidade, dois anos após a maioridade
do investigante, extinção esta decorrente da aplicação conjugada dos artigos
1817º., nº. 1 e 1873º., do Código Civil (CC); o Acórdão nº 486/04 está
publicado no Diário da República – II Série, de 18-02-05, págs. 2456/2464].
Confirmando a relevância da distinção que se vem referindo entre os interesses
envolvidos no tipo de acção em causa no Acórdão nº 209/04 e naquele que originou
a situação sub judice, poderemos invocar, ainda, outros argumentos.
Um primeiro, decorrente da nossa lei civil, colhido na articulação entre o
procedimento referente a impedimentos matrimoniais e uma acção de investigação
de maternidade ou paternidade que lhe seja posterior. A este respeito, Miguel
Teixeira de Sousa, depois de sublinhar que “só em situações excepcionais, uma
decisão sobre o mérito não é susceptível de ser abrangida pela eficácia do caso
julgado material”, apresenta como exemplo de tal excepcionalidade, “por razões
atinentes à importância dos interesses envolvidos”, o caso do “reconhecimento do
parentesco na acção de declaração de nulidade ou de anulação do casamento não
[constituir] caso julgado numa posterior acção de investigação da maternidade ou
paternidade”, conforme decorre do disposto no artigo 1603º., nº. 1, do CC (ob.
cit., pág. 570).
Outro argumento, desta feita de direito comparado, também ele apontando no
sentido da especificidade das acções em que se investiga a maternidade ou
paternidade, no confronto com outro tipo de acções, pode extrair-se da análise
da legislação adjectiva alemã. Nesta, com efeito, o recurso de revisão,
denominado «acção de restituição» (Restitutionsklage: restituição tem aqui o
sentido de retorno à situação anterior), regulada nos §§ 580º e seguintes do
Código de Processo Civil Alemão [a Zivilprozebordnung (ZPO), cujo texto pode ser
encontrado em http://dejure.org/gesetze/ZPO], está igualmente sujeita a um prazo
de cinco anos (§ 586º: [...] 2. [...]. Decorridos cinco anos, contados do
trânsito da sentença, as acções são improcedentes [...]”).
Existe, porém, um regime especial, traduzido na não aplicação deste prazo,
relativamente ao caso julgado que decidiu uma questão de paternidade [§ 641º I:
1. A acção de restituição contra uma sentença transitada na qual se decidiu
sobre a paternidade, procede, além das situações previstas no § 580º, se a parte
apresenta um novo relatório pericial sobre a paternidade que, por si ou em
conjunto com as provas produzidas no processo anterior, teria conduzido a uma
decisão diferente. [...] 4. O § 586º não se aplica.” (do § 580º. constam os
fundamentos da revisão, equivalendo este , no essencial, ao nosso artigo 771º).
Tal opção do legislador germânico teve lugar em 1969 (com o acrescento do § 641º
I da ZPO) e ocorreu no quadro do debate relativo à repercussão de novos meios
científicos de prova da paternidade no caso julgado preexistente (v. Guilherme
de Oliveira, A Lei e o Laboratório, in «Temas de Direito da Família», 2ª ed.,
Coimbra, 2001, págs. 92/93; v., defendendo que no confronto entre os valores
constitucionais respeitantes ao caso julgado e à veracidade no estabelecimento
da filiação, aqueles devem ceder face a estes, Vladimir Brega Filho, A
Relativização da Coisa Julgada nas Acções de Investigação de Paternidade;
disponível em: http://orbita.starmedia.com/jurifran/ajreinpat.html).
Estes exemplos de diversidade de soluções legislativas, designadamente neste
último caso em matéria de prazos de propositura da revisão, consoante a acção
tenha que ver com a determinação da paternidade ou com uma questão de outra
natureza, demonstram que os valores em presença numa investigação de paternidade
e numa acção referente a direitos exclusivamente patrimoniais, conduzem, por
vezes, a resultados não coincidentes e, em função disso, justificam uma
ponderação autónoma no que diz respeito à questão da relevância do caso julgado.
2.5. Em função disto, entende o Tribunal que, face aos valores em causa numa
sentença homologatória de partilha num inventário para separação de meações,
contrariamente ao que sucedia com a situação que originou o Acórdão nº 209/04
(uma acção de investigação de paternidade), face a esses valores, dizíamos, o
prazo de cinco anos, como limite da possibilidade de revisão, não se prefigura
como uma intolerável restrição dos direitos decorrentes do artigo 20º da CRP,
designadamente do princípio do contraditório.
Já verificámos, que outros sistemas processuais fixam igualmente prazos
idênticos e diversos do aqui em causa como limite temporal à possibilidade de
destruição do caso julgado [um ano em Itália (artigo 327º do CPC italiano); dois
anos no Brasil (artigo 495º do CPC brasileiro); cinco anos na Alemanha (§ 586º,
nº 2 da ZPO) e em Espanha (artigo 1800º da Ley de Enjuiciamento Civil)]. O
sentido do estabelecimento de um prazo limite à possibilidade de revogação ou
ultrapassagem do caso julgado é evidente: impedir que a latência de um
hipotético recurso de revisão projecte, para além de determinado período, algum
tipo de incerteza quanto ao conteúdo do direito declarado pela decisão judicial
transitada. Trata-se, enfim, de reafirmar a essência teleológica do instituto do
caso julgado.
No caso deste recurso, atendendo aos interesses em jogo, expressos
designadamente pelo tipo de acção, cinco anos contados do trânsito em julgado
(do último acto do iter processual que originou a decisão), não deixam de
expressar uma solução de equilíbrio entre interesses contraditórios, todos eles
relevantes de um ponto de vista constitucional.
2.5.1. Aqui chegados, resta-nos, à laia de síntese conclusiva, expressar o
seguinte entendimento: a decisão aqui impugnada procede a uma leitura
generalizadora do Acórdão nº 209/04; contrariamente, o Tribunal entende que a
questão do prazo de caducidade da revisão não pode prescindir de encarar a
situação concreta que originou o caso julgado; e, neste caso, considera-se que
não é constitucionalmente exigida, face à concreta constelação dos valores em
presença, que é diversa da que ocorria no caso sob que incidiu o Acórdão nº
209/04, a eliminação do limite temporal absoluto previsto no artigo 772º, nº 2
do CPC.
O recurso não pode, assim, deixar de proceder.
III - Decisão
3. Pelo exposto, decide-se:
A) Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 772º, nº 2 do CPC, na
parte em que refere não poder ser interposto recurso de revisão se tiverem
decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão, quando
esteja em causa o caso julgado formado por uma sentença homologatória de
partilha, num inventário para separação de meações, que tenha corrido à revelia
do requerente da revisão e este alegue a falta ou nulidade da citação para esse
inventário, nos termos do artigo 771º, nº1, alínea f), do CPC;
B) E, consequentemente, determinar a reformulação da decisão recorrida de acordo
com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Artur Maurício