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Processo n.º
598/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro
Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A representante do Ministério Público junto do Tribunal
Central Administrativo interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo dos artigos 280.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Constituição da República
Portuguesa (CRP), e 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro (LTC), contra o acórdão da Secção de Contencioso Administrativo
daquele Tribunal, de 1 de Abril de 2004, que recusou a aplicação das normas
constantes dos artigos 111.º, n.º 1, alínea a), e 118.º, n.º 2, do Estatuto dos
Funcionários de Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto,
na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de Abril, por
entender que as mesmas padecem de inconstitucionalidade, por violação do artigo
218.º, n.º 3, da CRP.
O acórdão recorrido foi emitido em recurso contencioso,
interposto por A., técnica de justiça principal em exercício de funções nos
serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Família e Menores
de Lisboa, contra a deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, de
19 de Fevereiro de 2003, que, em “recurso hierárquico impróprio” para ele
interposto pela recorrente contra a deliberação do Conselho dos Oficiais de
Justiça, de 3 de Outubro de 2002, que lhe atribuíra a classificação de Bom, pelo
serviço prestado nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal do
Trabalho de Lisboa, negou provimento a esse recurso, mantendo esta
classificação.
O acórdão recorrido, apoiando-se no decidido nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 145/2000, 159/2001, 244/2001 e
73/2002, concluiu:
“Temos, assim, que no domínio do Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de
Abril – aprovado em Conselho de Ministros de 28 de Fevereiro de 2002, oito dias
após a erradicação dos artigos 95.º, 107.º, alínea a), 98.º e 111.º, alínea a),
do Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro [sic; os mencionados artigos 98.º e
111.º, alínea a), respeitam ao Estatuto dos Funcionários de Justiça (EFJ),
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto], que invadiram a
competência exclusiva do CSM, atribuindo-a ao ali criado COJ – os artigos 98.º,
111.º, n.º 1, alínea a), e 118.º, n.ºs 1 e 2, [do EFJ] padecem de
desconformidade com o preceituado no artigo 218.º, n.º 3, da Constituição,
sendo irrelevante a criação do meio gracioso do «recurso das deliberações do
COJ para o CSM» para salvar a reiterada manutenção no COJ da competência em
matéria de mérito de carreira e disciplinar dos funcionários judiciais, por
afrontar o domínio normativo do artigo 218.º, n.º 3, da CRP que, neste quadro,
configura o núcleo de poderes do CSM subtraído ao legislador ordinário em tudo
quanto seja contrário ao constitucionalmente garantido.
Consequentemente, no edifício legal do caso concreto, entendemos que
não são de aplicar os citados artigos 111.º, n.º 1, alínea a), e 118.º, n.º 2,
do Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de Abril [recte: do EFJ, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 343/99, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 96/2002], como
suporte dos actos praticados, maxime da deliberação do Conselho Superior do
Ministério Público.”
Na sequência do que viria a declarar a nulidade da
deliberação impugnada por padecer do vício de usurpação de poder.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes
conclusões:
“1.º – A norma constante do artigo 218.°, n.° 3, da Constituição
apenas implica que deva estar reservada ao Conselho Superior da Magistratura a
«última palavra» sobre a avaliação profissional e disciplinar dos funcionários
de justiça que directamente coadjuvam os juízes dos tribunais judiciais, deles
dependendo em termos funcionais ou processuais, já que a respectiva actuação
poderá influenciar, em termos relevantes, a qualidade e eficácia da
administração da justiça feita por tais tribunais e, em última análise, a
respectiva independência decisória.
2.° – Face ao figurino constitucional – que institui vários órgãos
constitucionais independentes para avaliação profissional e disciplina de
várias magistraturas, constituídas como paralelas e autónomas – não há qualquer
razão materialmente justificada para «cindir» a avaliação profissional dos
magistrados da avaliação e disciplina dos funcionários que processualmente os
coadjuvam, influenciando relevantemente o exercício das tarefas que lhes estão
constitucionalmente reservadas.
3.° – Colidiria com a qualificação da Procuradoria-Geral da
República como «órgão superior do Ministério Público» e com o princípio da
autonomia do Ministério Público a «amputação» da competência do respectivo
Conselho Superior para proceder à avaliação profissional dos funcionários que
coadjuvam directamente os magistrados do Ministério Público e deles dependem
processualmente, para a atribuir ao Conselho Superior da Magistratura.
4.° – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em
conformidade com o juízo de constitucionalidade das normas desaplicadas e que
integram o objecto do presente recurso.”
A recorrida, por seu turno, contra-alegou, concluindo:
“1. As normas dos artigos declarados feridos de usurpação de poder
pela decisão recorrida devem ser declaradas materialmente inconstitucionais por
ofensa do artigo 218.°, n.° 3, da CRP.
2 . A competência para avaliar e exercer o poder disciplinar sobre
os oficiais de justiça está constitucionalmente cometida ao CSM, nos termos em
que o normativo legal atrás indicado expressamente prevê.
3. Os argumentos expressos nas alegações do recorrente Ministério
Público não rebatem as que obtiveram vencimento no Acórdão n.° 145/2000,
proferido em 21 de Março de 2000, e apenas se limitam a seguir quase que à
risca a que ali está expressa no voto de vencido.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Apesar de as questões relacionadas com a extensão
da intervenção do Conselho Superior da Magistratura (CSM) na apreciação do
mérito profissional e no exercício da acção disciplinar sobre os funcionários de
justiça terem constituído objecto de diversas decisões do Tribunal
Constitucional, esta é a primeira vez que o Tribunal é chamado a pronunciar-se
sobre a conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 111.º, n.º
1, alínea a), e 118.º, n.º 2, do Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de Abril, enquanto atribuem competência ao
Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) para apreciar, por via de
recurso para ele interposto contra deliberações do Conselho dos Oficiais de
Justiça (COJ), o mérito profissional de funcionários dos serviços do Ministério
Público.
Na aludida jurisprudência deste Tribunal, há que
distinguir, consoante os diplomas legais em causa, duas fases, sendo a primeira
divisível em duas subfases: na primeira subfase da primeira fase (Acórdãos n.ºs
145/2000, 159/2001 e 266/2001) estava em causa o Decreto-Lei n.º 376/87, de 11
de Dezembro (Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e Estatuto dos Funcionários
de Justiça); na segunda subfase da primeira fase (Acórdãos n.ºs 178/2001,
244/2201, 285/2001 e 398/2001) estava em causa o Estatuto dos Funcionários de
Justiça (EFJ), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto; culminando
essa primeira fase com o Acórdão n.º 73/2002, que procedeu à generalização dos
anteriores juízos de inconstitucionalidade, abarcando os dois diplomas
citados; na segunda fase (Acórdãos n.ºs 378/2002, 131/2004 e 721/2004) tem
estado em causa a redacção dada ao EFJ de 1999 pelo Decreto-Lei n.º 96/2002, de
12 de Abril.
O parâmetro constitucional que esteve sempre em causa
foi o da norma do actual n.º 3 do artigo 218.º da CRP (introduzido pela revisão
de 1982 como n.º 3 do artigo 223.º, tendo transitado – sem qualquer alteração de
redacção – para n.º 3 do artigo 220.º com a revisão de 1989 e para n.º 3 do
artigo 218.º com a revisão de 1997), do seguinte teor:
“A lei poderá prever que do Conselho Superior da Magistratura façam
parte funcionários de justiça, eleitos pelos seus pares, com intervenção
restrita à discussão e votação das matérias relativas à apreciação do mérito
profissional e ao exercício da função disciplinar sobre os funcionários de
justiça.”
Esta norma não foi objecto de leitura uniforme pelos
juízes do Tribunal Constitucional.
Para os subscritores dos votos de vencido apostos aos
Acórdãos n.º 145/2000, 159/2001, 244/2001, 285/2001 e 73/2002, a definição
constitucionalmente impostergável da competência do CSM consta do actual n.º 1
do artigo 217.º da CRP (correspondente ao n.º 2 do artigo 223.º da versão
originária, ao n.º 1 do artigo 222.º da versão de 1982, ao n.º 1 do artigo 219.º
da versão de 1989, tendo adquirido a actual numeração na versão de 1997) e
abarca “a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos
tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar” sobre esses mesmos
juízes. Objecto do subsequente artigo 218.º é exclusivamente a definição da
composição do CSM e estatuto dos seus membros, e não o alargamento
constitucionalmente imposto da sua competência, e teria visado dar relevância
constitucional a solução já constante da legislação ordinária. Na verdade, quer
o Decreto-Lei n.º 926/76, de 31 de Dezembro (Lei Orgânica do CSM – LOCSM), quer
a Lei n.º 85/77, de 13 de Dezembro (Estatuto dos Magistrados Judiciais – EMJ de
1977), quer, depois, a Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados
Judiciais – EMJ de 1985) estenderam a competência do CSM à apreciação do mérito
profissional e ao exercício da acção disciplinar sobre os funcionários de
justiça (artigos 1.º, n.º 2, e 9.º, n.º 1, alínea b), da LOCSM, 139.º, n.º 2, e
152.º, n.º 1, alínea b), do EMJ de 1977 e 136.º, n.º 2, e 149.º, alínea b), do
EMJ de 1985) e previram a intervenção no CSM de funcionários de justiça quando
estivessem em causa aquelas matérias (artigos 2.º, n.º 3, alínea c), e 9.º, n.º
2, da LOCSM, 140.º, n.º 3, alínea d), e 152.º, n.º 2, do EMJ de 1977 e 137.º,
n.º 2, e 150.º, n.º 4, do EMJ de 1985). Neste contexto, uma vez que a
composição do CSM constava da Constituição, o seu artigo 218.º, n.º 3, visou
tão-só legitimar a integração de funcionários de justiça naquele órgão (e, do
mesmo passo, impor que ela se fizesse através de eleição entre os seus pares),
se e quando a lei ordinária alargasse a competência do CSM à apreciação do
mérito profissional e ao exercício do poder disciplinar sobre os funcionários de
justiça – alargamento de competência (para além da constitucionalmente definida
no artigo 217.º, n.º 1) que a Constituição não impedia que fosse feita por via
legal, mas que ela directamente não impunha. A norma constitucional em causa
veria a sua utilidade naturalmente suspensa se e quando o legislador ordinário
decidisse extinguir esse alargamento de competência – como o fez com o
Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro, que criou o COJ, com competência para
apreciar o mérito profissional e exercer o poder disciplinar relativamente aos
oficiais de justiça, como lhe era constitucionalmente permitido, pois –
repete-se – com isso não violaria a única definição constitucionalmente
impostergável da competência do CSM, que é a que consta do artigo 217.º, n.º 1,
da CRP.
Não foi este, como se sabe, o entendimento
maioritariamente sufragado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 145/2000
(Diário da República, II Série, n.º 231, de 6 de Outubro de 2000, pág. 16 237,
rectificado no Diário da República, II Série, n.º 241, de 18 de Outubro de 2000,
pág. 16 790, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., pág. 533), e
retomado nos Acórdãos n.ºs 159/2001 e 266/2001, que julgaram inconstitucionais,
por violação do artigo 218.º, n.º 3, da CRP, as normas dos artigos 95.º e 107.º,
alínea a), do Decreto-Lei n.º 376/87, que atribuíam ao COJ competência para
apreciar o mérito e exercer o poder disciplinar relativamente aos oficiais de
justiça. Entendeu-se nesses acórdãos que foi para realizar os valores
constitucionalmente relevantes da independência dos tribunais e dos respectivos
juízes “que a Constituição criou um órgão próprio de governo da magistratura
judicial – o Conselho Superior da Magistratura –, que passou a ter como função
essencial a gestão e a disciplina dos juízes dos tribunais judiciais,
colocando-os a coberto de ingerências do Governo e da Administração, uma vez
que fica proibida toda a intervenção externa directa na nomeação, colocação,
transferência e promoção dos juízes, bem como na respectiva disciplina” e que
“é ainda esta necessidade e finalidade de garantir a independência dos
tribunais da forma mais completa possível que vem justificar que ao Conselho
Superior da Magistratura seja também atribuída a competência para decidir as
matérias relativas à apreciação do mérito profissional e ao exercício da função
disciplinar sobre os funcionários de justiça”, pois “não pode deixar de se
considerar que os funcionários de justiça também fazem parte da estrutura dos
tribunais; e, por isso, são elementos fundamentais para a realização prática da
garantia constitucional da respectiva independência”. Assim, o sentido da norma
do artigo 218.º, n.º 3, da CRP é o de autorizar a lei a prever que do CSM façam
parte funcionários, sem impor tal intervenção. O que a CRP não consente é “que
a lei ordinária exclua de todo a competência do Conselho Superior da
Magistratura para se pronunciar sobre tais matérias”, pelo que “são
materialmente inconstitucionais as normas agora em análise, que atribuem ao
Conselho dos Oficiais de Justiça a competência para apreciar o mérito
profissional e para exercer a função disciplinar relativamente aos funcionários
de justiça, excluindo, por completo, neste domínio, qualquer competência do
CSM” (sublinhados acrescentados).
Este juízo de inconstitucionalidade foi, com a mesma
fundamentação, estendido às normas dos artigos 98.º e 111.º, alínea a), do EFJ
aprovado pelo Decreto–Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, que atribuíam ao COJ
competência para apreciar o mérito profissional e exercer o poder disciplinar
“sobre os oficiais de justiça de nomeação definitiva”, “sem prejuízo da
competência disciplinar atribuída a magistrados e do disposto no n.º 2 do artigo
68.º” (que confere ao presidente do respectivo tribunal a competência para
classificar os secretários de tribunal superior), pelos Acórdãos n.ºs 178/2001
(Diário da República, II Série, n.º 133, de 8 de Junho de 2001, pág. 9726, e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49.º vol., pág. 657), 244/2001 (Diário da
República, II Série, n.º 155, de 6 de Julho de 2001, pág. 11 252), 285/2001 e
398/2001.
Em generalização desses juízos de inconstitucionalidade,
o Acórdão n.º 73/2002 (Diário da República, I Série-A, n.º 64, de 16 de Março de
2002, pág. 2503, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52.º vol., pág. 125)
declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do
artigo 218.º, n.º 3, da CRP, quer das normas constantes dos artigos 95.º e
107.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 376/87, quer das normas constantes dos
artigos 98.º e 111.º. alínea a), do EFJ, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99,
essencialmente pelas razões desenvolvidas na fundamentação do Acórdão n.º
145/2000, que reproduziu.
Na sequência desta declaração de inconstitucionalidade
com força obrigatória geral, o Governo editou o Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12
de Abril, cujo objectivo foi, como se assinala no respectivo preâmbulo, retirar
às competências exercidas pelo COJ quanto à apreciação do mérito profissional e
ao exercício do poder disciplinar sobre os oficiais de justiça “a actual
natureza de competências exclusivas”, admitindo-se, “em qualquer caso, uma
decisão final do conselho superior competente de acordo com o quadro de pessoal
que integram”. Assim, continuando a competir ao COJ “apreciar o mérito
profissional e exercer o poder disciplinar sobre os oficiais de justiça, sem
prejuízo da competência disciplinar atribuída a magistrados e do disposto no
n.º 2 do artigo 68.º” (alínea a) do n.º 1 do artigo 111.º do EFJ) e “apreciar os
pedidos de revisão de processos disciplinares e de reabilitação” (alínea b) do
n.º 1 do mesmo artigo 111.º), passou a estar previsto que: (i) “O Conselho
Superior da Magistratura, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais e o Conselho Superior do Ministério Público, consoante os casos, têm o
poder de avocar bem como o poder de revogar as deliberações do Conselho dos
Oficiais de Justiça proferidas no âmbito do disposto na alínea a) do número
anterior” (artigo 111.º, n.º 2); e (ii) “Das deliberações do Conselho dos
Oficiais de Justiça proferidas no âmbito do disposto nas alíneas a) e b) do n.º
1 do artigo 111.º, bem como das decisões dos presidentes dos tribunais
proferidas ao abrigo ao n.º 2 do artigo 68.º, cabe recurso, consoante os casos,
para o Conselho Superior da Magistratura, para o Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais ou para o Conselho Superior do Ministério
Público, a interpor no prazo de 20 dias úteis” (n.º 2 do artigo 118.º).
Nos recursos que, posteriormente à entrada em vigor do
Decreto-Lei n.º 96/2002, têm sido apreciados por este Tribunal – estando em
todos eles em causa funcionários adstritos ao serviços dos tribunais judiciais
(que não funcionários dos serviços do Ministério Público ou dos tribunais
administrativos e fiscais) –, tem sido uniforme e pacificamente entendido que a
concessão dos referidos poderes de avocação e de revogação “permite concluir que
a última palavra em matéria disciplinar, no que respeita aos funcionários de
justiça, cabe ao Conselho Superior da Magistratura”, pelo que deixou de ser
possível “continuar a entender que as normas que atribuem competência em matéria
disciplinar ao Conselho dos Oficiais de Justiça, neste contexto, infringem o
disposto no n.º 3 do artigo 118.º da Constituição”, já que “não se encontra
nesse preceito, nem a proibição de conferir tal competência em especial ao
Conselho dos Oficiais de Justiça, nem a reserva exclusiva ao Conselho Superior
da Magistratura do exercício do poder disciplinar sobre os oficiais de
justiça”, como se escreveu no Acórdão n.º 378/2002, da 3.ª Secção (Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 54.º vol., pág. 307), cuja doutrina foi reiterada no
Acórdão n.º 131/2004, da 1.ª Secção (Diário da República, II Série, n.º 129, de
2 de Junho de 2004, pág. 8542), e no Acórdão n.º 721/2004, da 2.ª Secção
(disponível, tal como todos os anteriormente citados, em
www.tribunalconstitucional.pt) e nas Decisões Sumárias n.ºs 42/2004 e 158/2005.
2.2. Recordada a anterior jurisprudência do Tribunal
Constitucional sobre a problemática da atribuição de competência ao COJ para
apreciar o mérito profissional e exercer a acção disciplinar relativamente aos
funcionários de justiça, cumpre analisar o caso objecto do presente recurso que
tem a especificidade de, pela primeira vez, versar sobre a constitucionalidade
da atribuição ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) de competência
para conhecer dos recursos das deliberações do COJ naquelas matérias quando
estejam em causa funcionários dos serviços do Ministério Público.
Não se pode ignorar que, no citado Acórdão n.º 73/2002,
face à argumentação desenvolvida na resposta do Primeiro-Ministro e assim
sintetizada:
“- a apreciação do mérito profissional e o exercício da acção disciplinar sobre
os oficiais de justiça não tem qualquer relação com a necessidade de garantir a
independência dos tribunais: na verdade, se exercem a sua actividade nestes
últimos, não se pode dizer que exerçam a «função judicial», já que, se assim
fosse, haveriam de valer quanto a eles as garantias de independência e as
incompatibilidades aplicáveis aos magistrados. Trata-se, sim, de funcionários
públicos, sobre os quais compete [recte, competiria] ao Governo, se a legislação
ordinária assim o determinar, exercer os poderes inerentes à hierarquia
administrativa. Aliás, a entender-se que «as garantias de independência e
imparcialidade dos juízes» postulam a competência do CSM para aquela matéria,
então a Constituição teria esquecido a situação dos oficiais de justiça
adstritos aos magistrados do Ministério Público e aos magistrados judiciais dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo que a declaração de
inconstitucionalidade das normas em apreço suscita a questão de saber qual o
órgão que aprecia o mérito profissional e exerce a acção disciplinar sobre eles
(e, nomeadamente se tal competência deve considerar-se atribuída,
respectivamente, ao Conselho Superior do Ministério Público e ao Conselho
Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais).”,
o Tribunal retorquiu do seguinte jeito:
“E não se vê que a argumentação aduzida na resposta do
Primeiro-Ministro (supra, 2.) seja de molde a impor a mudança da orientação do
Tribunal Constitucional, quer porque a interpretação do artigo 218.º, n.º 3, da
Constituição, que nessa resposta se propugna, foi, e é agora uma vez mais,
afastada por este Tribunal, quer porque no julgamento de inconstitucionalidade
que este Tribunal fez, e agora reitera, sobre as normas em causa não se
fundamentou a competência do Conselho Superior da Magistratura para a
apreciação do mérito e para o exercício do poder disciplinar sobre os oficiais
de justiça no princípio da independência dos tribunais, apenas se explicou tal
solução por recurso a esse princípio. Não procedem assim também as observações
que complementam o segundo argumento da resposta do Primeiro-Ministro,
relativas à apreciação do mérito e ao exercício da disciplina sobre os
funcionários adstritos ao Ministério Público e aos tribunais administrativos,
sendo certo, aliás, que tais funcionários não integram quaisquer quadros
próprios, mas justamente o quadro comum dos «funcionários de justiça».”
Este entendimento, como logo de seguida se refere no
citado Acórdão, dizia respeito aos preceitos do Decreto-Lei de 1987, embora
depois se tenha entendido que os mesmos eram transponíveis para os preceitos do
Estatuto de 1999.
Há, no entanto, que reconhecer que um dos objectivos do
Decreto-Lei n.º 376/87, como expressamente se refere no respectivo preâmbulo,
foi o de “criar um quadro próprio de funcionários do Ministério Público visando
dar resposta às novas tarefas que lhe são cometidas pelo novo Código de Processo
Penal”. O artigo 2.º, n.º 1, desse diploma previa a existência de quadros
separados de pessoal dos serviços judiciais e de pessoal dos serviços do
Ministério Público, separação retomada no artigo 28.º. No grupo de pessoal
oficial de justiça previam-se duas carreiras distintas, integradas por diversas
categorias: a carreira judicial, integrada pelas categorias de secretário
judicial, escrivão de direito, escrivão-adjunto e escriturário judicial; e a
carreira do Ministério Público, integrada pelas categorias de secretário
técnico, técnico de justiça principal, técnico de justiça-adjunto e técnico de
justiça auxiliar (artigo 31.º). E se, nalguns casos, o acesso a certas
categorias de uma carreira era aberto a pessoal da outra carreira, noutros casos
tal não era possível: às categorias de escrivão de direito e de técnico de
justiça só podiam aceder, por promoção, respectivamente, escrivães-adjuntos e
técnicos de justiça-adjuntos (artigos 51.º, n.º 1, e 53.º, n.º 1). Estas
diferenciações foram substancialmente mantidas no Estatuto de 1999, que
continuou a prever quadros separados de “pessoal de secretarias de tribunais” e
de “pessoal dos serviços do Ministério Público” (artigo 1.º), e, dentro do
grupo de pessoal oficial de justiça, carreiras distintas – carreira judicial e
carreira dos serviços do Ministério Público –, integradas por categorias
específicas de cada uma delas (artigo 3.º).
Do ponto de vista constitucional, há ainda que atentar
em que o Ministério Público, que “goza de estatuto próprio e de autonomia” (n.º
2 do artigo 219.º), tem como órgão superior a Procuradoria-Geral da República
(n.º 1 do artigo 220.º), que compreende o Conselho Superior do Ministério
Público (n.º 2 do artigo 220.º), e à qual compete a nomeação, colocação,
transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o exercício da
acção disciplinar (n.º 5 do artigo 219.º). Similarmente, no que concerne aos
tribunais administrativos e fiscais, cuja existência como jurisdição
obrigatória (e não meramente facultativa) e separada da jurisdição dos tribunais
judiciais foi consagrada pela revisão constitucional de 1989 (artigo 214.º, hoje
artigo 213.º), o artigo 217.º, n.º 2, comete ao respectivo conselho superior (o
Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais) a nomeação,
colocação, transferência e promoção dos juízes dos tribunais administrativos e
fiscais e o exercício da acção disciplinar.
Não prevê, assim, a Constituição um órgão unitário para
o exercício das tarefas de nomeação, colocação, transferência, promoção,
avaliação do mérito disciplinar e exercício do poder disciplinar relativamente
às diversas categorias de magistrados: tais tarefas são exercidas pelo CSM
quando aos “juízes dos tribunais judiciais” (artigo 217.º, n.º 1, da CRP), pelo
CSTAF quando aos “juízes dos tribunais administrativos e fiscais” (artigo 217.º,
n.º 2, da CRP), e pela Procuradoria-Geral da República (que compreende o CSMP)
quanto aos “agentes do Ministério Público” (artigo 219.º, n.º 5, da CRP).
Em face destes elementos constitucionalmente relevantes,
há que tomar posição quanto ao caso dos autos.
Para quem (como é, designadamente, o caso do ora
relator) adira à posição expressa nos aludidos votos de vencido apostos aos
Acórdãos n.º 145/2000, 159/2001, 244/2001, 285/2001 e 73/2002, entendendo que a
definição constitucionalmente impostergável da competência do CSM é apenas a
que consta do n.º 1 do artigo 217.º da CRP (“a nomeação, a colocação, a
transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da
acção disciplinar” sobre esses mesmos juízes) e que o artigo 218.º, n.º 3, visou
tão-só legitimar a integração de funcionários de justiça naquele órgão se e
quando a lei ordinária alargasse a competência do CSM à apreciação do mérito
profissional e ao exercício do poder disciplinar sobre os funcionários de
justiça, é óbvio que nenhuma inconstitucionalidade por violação deste última
norma existe com a atribuição ao CSMP de competência para conhecer dos recursos
interpostos de deliberações do COJ que apreciem o mérito profissional e exerçam
a acção disciplinar relativamente aos oficiais de justiça pertencentes aos
quadros de pessoal dos serviços do Ministério Público.
Mas mesmo quem adira à corrente jurisprudencial
maioritária do Tribunal Constitucional, que culminou no Acórdão n.º 73/2002,
chegará à mesma conclusão, atendendo a que esses juízos de
inconstitucionalidade tiveram por justificação a necessidade de assegurar a
independência dos tribunais – naturalmente, dos tribunais judiciais, únicos sob
a égide do CSM. Recuperando formulações do Acórdão n.º 145/2000, foi para
colocar “os juízes dos tribunais judiciais [sublinhado acrescentado] (...) a
coberto de ingerências do Governo e da Administração” que “a Constituição criou
um órgão próprio de governo da magistratura judicial [sublinhado acrescentado]
– o Conselho Superior da Magistratura –, que passou a ter como função essencial
a gestão e a disciplina” daqueles magistrados, ficando “proibida toda a
intervenção externa directa na nomeação, colocação, transferência e promoção
dos juízes, bem como na respectiva disciplina” e que “é ainda esta necessidade
e finalidade de garantir a independência dos tribunais da forma mais
completa possível que vem justificar que ao Conselho Superior da Magistratura
seja também atribuída a competência para decidir as matérias relativas à
apreciação do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar sobre
os funcionários de justiça”, pois “não pode deixar de se considerar que os
funcionários de justiça também fazem parte da estrutura dos tribunais; e, por
isso, são elementos fundamentais para a realização prática da garantia
constitucional da respectiva independência”. Esta justificação vale de pleno
para os funcionários de justiça que coadjuvam os magistrados judiciais, mas já
não para os funcionários que coadjuvam os magistrados do Ministério Público,
actualmente integrados em quadro distinto do daqueles.
Importa recordar que a Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro
(Lei Orgânica do Ministério Público) – à semelhança do que então ocorria com o
CSM relativamente aos funcionários dos tribunais judiciais –, previa que o
CSMP exercesse jurisdição sobre os funcionários de justiça do Ministério
Público (artigo 14.º, n.º 2), conferindo-lhe competência para apreciar o mérito
profissional e exercer a acção disciplinar relativamente aos funcionários de
justiça do Ministério Público (artigo 24.º, alínea b)), integrando o CSMP, com
intervenção restrita a estas matérias, dois funcionários de justiça eleitos
pelos seus pares (artigo 14.º, n.º 4).
Essa competência do CSMP foi extinta com a criação do
COJ e a atribuição a este órgão de competência exclusiva para apreciar o mérito
profissional e exercer a acção disciplinar sobre os funcionários de justiça,
quer estivessem integrados nas secretarias dos tribunais judiciais, quer nos
serviços do Ministério Público. Com a declaração de inconstitucionalidade das
normas que procediam a essa atribuição, feita pelo Acórdão n.º 73/2002, e com a
subsequente publicação do Decreto-Lei n.º 96/2002, foi assegurada a intervenção
do órgão superior do Ministério Público sempre que estejam em causa funcionários
afectos aos serviços do Ministério Público (tal como foi assegurada a
intervenção do CSTAF quando estiverem em causa funcionários dos tribunais
administrativos e fiscais).
Trata-se de solução que, não sendo constitucionalmente
imposta, também não é constitucionalmente proibida.
A este último respeito, importa recordar que no
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 926/76, de 31 de Dezembro (Lei Orgânica do Conselho
Superior da Magistratura), que pela primeira vez atribuiu ao órgão de gestão da
magistratura judicial competência para apreciar o mérito profissional e exercer
a acção disciplinar sobre os funcionários de justiça, se manifestaram dúvidas
sobre a constitucionalidade desta solução, por eventual invasão da competência
do Governo, ao afirmar-se: “... em obediência ao facto de o Governo ser o órgão
superior da Administração Pública (artigo 185.º da Constituição) e de, nessa
qualidade, lhe competir a prática de todos os actos exigidos pela lei
respeitantes aos funcionários e agentes do Estado (alínea e) do artigo 202.º),
manteve-se na órbita do Executivo a gestão dos funcionários de justiça. Abriu-se
tão-só uma excepção para a respectiva acção disciplinar [e apreciação do mérito
profissional] por óbvias razões de eficiência e por se ter entendido que não
contraria frontalmente a letra do n.º 2 do artigo 223.º da Constituição. Não
deixa a excepção, no entanto, de justificar algumas dúvidas”.
Entende-se, no entanto, que dos actuais artigos 182.º e
199.º, alínea e), da CRP não resulta a impossibilidade de, relativamente a
certas categorias de funcionários (como os funcionários que coadjuvam os
magistrados do Ministério Público), alguns actos administrativos a eles
respeitantes serem retirados da competência directa do Governo, quer por razões
de eficiência, quer por se entender que assim melhor se tutelam valores
constitucionalmente relevantes, como a autonomia do Ministério Público. E
igualmente os artigos 219.º, n.ºs 2 e 5, e 220.º, n.ºs 1 e 2, da CRP não impõem,
mas também não proíbem o legislador ordinário de prever alguma intervenção do
CSMP em actos relativos a funcionários que coadjuvam os respectivos
magistrados. E, por último, também o artigo 218.º, n.º 3, da CRP, atenta a
justificação subjacente à jurisprudência que culminou no Acórdão n.º 73/2002,
não impõe a intervenção do CSM na apreciação do mérito profissional e no
exercício da acção disciplinar relativamente aos funcionários dos serviços do
Ministério Público. Em suma: cabendo ao CSM a função de assegurar a
independência de funcionamento dos tribunais judiciais, mas já não a dos
tribunais administrativos e fiscais, nem a autonomia do Ministério Público,
compreende-se que se sustente, como o fez a apontada jurisprudência maioritária
do Tribunal Constitucional, que não seja irrelevante a exclusão total da
intervenção do CSM na avaliação profissional e disciplinar dos funcionários de
justiça que coadjuvam os juízes dos tribunais judiciais no exercício das
respectivas funções jurisdicionais, funcionários que se encontram na dependência
funcional desses juízes. Mas resultando do quadro constitucional vigente que a
independência dos tribunais judiciais não exige a colocação dos magistrados do
Ministério Público sob a égide do CSM, solução afastada pelo artigo 219.º, n.º
5, da CRP, não pode considerar-se constitucionalmente imposta, em nome do
asseguramento da independência dos tribunais, a intervenção do CSM na avaliação
profissional e disciplinar de funcionários de justiça colocados na dependência
funcional de magistrados (os magistrados do Ministério Público) absolutamente
imunes à intervenção daquele Conselho.
Trata-se, pois, de campo em que, quanto aos funcionários
dos serviços do Ministério Público, ao legislador ordinário era consentida a
opção entre várias soluções, constitucionalmente admissíveis, uma das quais foi
a consagrada nas normas ora questionadas.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos
artigos 111.º, n.º 1, alínea a), e 118.º, n.º 2, do Estatuto dos Funcionários de
Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, na redacção
introduzida pelo Decreto-Lei n.º 96/2002, de 12 de Abril, enquanto conferem
competência ao Conselho Superior do Ministério Público para conhecer dos
recursos interpostos de deliberações do Conselho dos Oficiais de Justiça que
apreciaram o mérito profissional de oficiais de justiça pertencentes aos
quadros de pessoal dos serviços do Ministério Público; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Junho de 2005
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos