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Processo n.º 320/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Idanha-A-Nova foi o
recorrente, A., condenado, enquanto autor material de um crime de homicídio, na
pena de 10 anos de prisão. Foi ainda condenado a pagar, a título de
indemnização, determinadas quantias, acrescidas dos respectivos juros de mora.
2. Inconformado com esta decisão, o arguido recorreu dela para o Tribunal da
Relação de Coimbra tendo, a concluir a sua alegação e para o que agora importa,
formulado as seguintes conclusões:
“1 - É manifesta a inconstitucionalidade por omissão do art. 363° do C. Proc.
Penal ao não cominar como nulidade insanável a não documentação das declarações
orais prestadas em Audiência de Julgamento, por violação do disposto no art. 32°
n.º 1 da Constituição da República Portuguesa pois, ao estabelecer tal regime
impede o Arguido de recorrer da decisão da primeira Instância quanto à matéria
de facto, não se podendo olvidar que o regime da irregularidade não salvaguarda
as garantias de defesa do Arguido pois, só no decurso do prazo de recurso a
defesa é confrontada com a existência de tal documentação;
[...]
6 - Pois, é manifesta a contradição entre a decisão de indeferir os
requerimentos de prova, como exame médico para aferir do grau de imputabilidade
e capacidade de autodeterminação do Arguido, exame ao local ou reconstituição
dos factos no local, não se realizando as diligências que permitiriam demonstrar
os factos em causa e decidir - se quanto a esses mesmos factos que não foi
produzida qualquer prova, com o que se violou o disposto no art. 32° n.º 2 da
Constituição da República Portuguesa e no art. 340° do C. Proc. Penal, sendo que
esta norma é inconstitucional, precisamente por violação do art. 32° n.º 2 ao
deixar ao critério do Tribunal a produção de meios de prova requeridos pelo
Arguido sem necessidade de qualquer outra fundamentação a não [ser] o critério
subjectivo da avaliação do que ao Tribunal se afigura importante para a
descoberta da verdade”.[...]
3. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 8 de Maio de 2002, julgou o
recurso totalmente improcedente. Em relação à alegada inconstitucionalidade do
artigo 363º do Código de Processo Penal, considerou que a violação dessa norma –
isto é, a falta de documentação das declarações prestadas em audiência –
constituía uma mera irregularidade, prevista no artigo 123º do Código de
Processo Penal, a qual, no caso concreto, já estava sanada por força do disposto
no n.º 1 desse mesmo artigo. E, afirmou, ainda, que “nem vemos como tal regime –
irregularidade – contenda com o disposto no art.º 32º, n.º 1, da C.R.P.” Já no
que se refere ao disposto no artigo 340º daquele Código, o Tribunal, após
fundamentar as razões pelas quais as diligências requeridas não deviam ser
deferidas, concluiu pela sua não inconstitucionalidade.
4. Novamente inconformado o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça,
tendo, a concluir a respectiva motivação e para o que agora importa, repetido,
nos exactos termos, as questões de constitucionalidade com que já tinha
confrontado o Tribunal da Relação de Coimbra.
5. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 2 de Julho de 2003, negou
provimento ao recurso, confirmando na íntegra, inclusive quanto aos juízos de
não inconstitucionalidade que nela se formulou, a decisão recorrida, que manteve
inalterada.
6. Desta decisão foi interposto recurso para este Tribunal, através de um
requerimento que tem o seguinte teor:
“[...] Recorrente, Vem, nos termos dos arts. 75.º- A, 70° n.º l al. a), 72.º n.º
1 al. b) e n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional e não se conformando com o
douto Acórdão proferido nestes Autos que não julgou procedentes as
inconstitucionalidades suscitadas pelo Arguido,
Interpor Recurso para o Tribunal Constitucional.
Em cumprimento do estipulado no art. 75.º - A, refere - se que O presente
Recurso é interposto nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional, face à circunstância de o Tribunal Recorrido, Supremo
Tribunal de Justiça, ter aplicado as normas constantes dos 363.º e 340º ambos do
C. Proc. Penal, tendo a inconstitucionalidade de ambas sido suscitada, por
violação do disposto no art. 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa,
pelo Arguido - Recorrente em sede de Motivação dos Recursos para o Tribunal da
Relação de Coimbra e para o Supremo Tribunal de Justiça, como se pode constatar
quer pela análise de tais articulados, respectivamente conclusões 1 e 1 e 9,
quer pelos Acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal e pelo Tribunal da
Relação de Coimbra”.
7 Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo
do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na
redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte agora relevante, o seu teor:
“6. Assume-se, não obstante as imprecisões constantes dos textos produzidos pelo
recorrente, que o presente recurso, não visando manifestamente a verificação de
existência de inconstitucionalidade por omissão, prevista no artigo 283º da
Constituição, e não tendo havido, na decisão recorrida, recusa de aplicação de
nenhuma norma com fundamento em inconstitucionalidade, é o de fiscalização
concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, alínea a que, aliás, o recorrente também faz
referência no seu requerimento de interposição.
7. Pretende o recorrente, nos termos daquele requerimento, ver apreciada, antes
de mais, a constitucionalidade do artigo 363º do Código de Processo Penal, ao
não cominar como nulidade insanável a não documentação das declarações orais
prestadas em audiência perante o tribunal colectivo, por alegada violação do
disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
A questão que, nesta parte, vem colocada pelo recorrente não é nova na
jurisprudência do Tribunal Constitucional. De facto, no acórdão n.º 208/03
(disponível na página Internet do Tribunal em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), tirado igualmente nesta
Secção, em que era colocada a questão de saber se “é materialmente
inconstitucional, designadamente por violação do princípio das garantias de
defesa, consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a interpretação
normativa dos artigos 123º e 363º do Código de Processo Penal, que se traduz em
considerar que a omissão de documentação das declarações orais prestadas em
audiência perante o tribunal colectivo constitui mera irregularidade, que deve
ser arguida até ao final da audiência?”, o Tribunal teve oportunidade de
responder negativamente. Fundamentou, assim, a sua decisão:
“[...] O artigo 32º, nº1, da Constituição, dispõe, actualmente, que “O processo
criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Ponderando sobre o sentido e alcance do n.º 1 do artigo 32º da Constituição
escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 2ª ed., I vol., pp. 214-215, anotação II):
“A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas
restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de
defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral
englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números
seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos
direitos de defesa do arguido em processo criminal. «Todas as garantias de
defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e
adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. [...]”.
(sublinhado nosso).
Também o Tribunal Constitucional se tem pronunciado, por várias vezes, sobre o
âmbito deste preceito. Logo no Acórdão n.º 61/88 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11º vol., pp. 611 e ss.), e com interesse para os presentes
autos, ponderou o Tribunal:
“[...] A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em
suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do
princípio da defesa, para além das consignadas nos n.ºs 2 e seguintes do artigo
32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process
of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais
normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um
encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das
possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr. Acórdão n.º
337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de
1986)”. (Sublinhado nosso).
Do que antecede decorre que a resposta à questão de constitucionalidade que
agora vem colocada depende da questão de saber se a imposição ao arguido de que
suscitasse, durante a audiência perante o tribunal colectivo, o vício
procedimental nela verificado e traduzido na omissão de documentação das
declarações orais nela prestadas, traduz ou não uma “diminuição inadmissível, um
prejuízo insuportável e injustificável” (para usar as palavras do citado Acórdão
n.º 61/88), das suas garantias de defesa.
Julgamos, efectivamente, que não.
Desde logo haverá que referir que a solução se justifica, manifestamente, por
evidentes razões de celeridade e economia processuais. Na realidade, não se
perceberia que, agindo o arguido ou o seu defensor com a devida diligência e boa
fé e tendo detectado o vício procedimental, ou tendo obrigação de o detectar,
nessa fase processual, pudessem deixar que a audiência continuasse a decorrer
como se nada de irregular se passasse, para só mais tarde, já em fase de
recurso, o virem então invocar.
Acresce - como, bem, evidencia o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação
- que a imposição ao arguido, necessariamente assistido no processo por um
defensor, do ónus de invocar no decurso da audiência - que, no caso dos
presentes autos, até se prolongou por vários meses - um vício procedimental que
nela está precisamente a acontecer - e, que, portanto, não deveria passar
despercebido a um acompanhamento diligente dessa fase processual -
manifestamente não implica um cerceamento inadmissível ou insuportável das suas
possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou
intolerável, em termos de consubstanciar solução constitucionalmente censurável,
na perspectiva do artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
Não poderá, por isso, sequer afirmar-se que aqueles objectivos de celeridade e
economia processuais sejam, neste caso, alcançados à custa de uma intolerável
diminuição das garantias de defesa do arguido.”
Ora, se é certo que as razões constantes da jurisprudência citada mantêm inteira
validade e, como tal, são susceptíveis de ser reiteradas, o facto é que, no
presente recurso, tal não é possível, por dele se não poder sequer conhecer.
Com efeito, o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional pressupõe, designadamente, que a decisão recorrida tenha
aplicado a norma ou interpretação normativa arguida de inconstitucional, como
ratio decidendi, no julgamento do caso. Ora, se analisarmos a decisão recorrida,
ressalta, manifestamente, que a consideração da violação do disposto no artigo
363º do Código de Processo Penal como mera irregularidade sanável - e não como
nulidade insanável - resulta sempre da ponderação do disposto no artigo 123º do
mesmo Código. Ou seja, é a esta norma que se vai buscar o regime aplicável ao
não cumprimento da obrigação de documentação de declarações orais. Ora, não
tendo o recorrente suscitado, no requerimento de interposição de recurso,
delimitador do seu objecto, a questão de inconstitucionalidade do referido
artigo 123º do Código de Processo Penal, ao menos quando conjugado com o
disposto no artigo 363º do mesmo Código, e não podendo extrair-se da decisão
recorrida a conclusão de que resulta do citado artigo 363º o regime de mera
irregularidade, cuja constitucionalidade o recorrente questiona, não está
presente, pelo menos, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, a
saber: ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi a norma cuja
inconstitucionalidade se pretende ver apreciada.
Assim sendo, não estando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que
admitiu o recurso (cfr. art. 76º, n.º 3, da LTC), há que concluir que não pode
conhecer-se, nesta parte, do recurso que o recorrente pretendeu interpor,
ficando igualmente precludida a hipótese de reiterar a jurisprudência pacífica
deste Tribunal no sentido da não inconstitucionalidade do complexo normativo
citado.
8.. Pretende ainda o recorrente que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade
do artigo 340º do Código de Processo Penal. Também em relação a este ponto há
que verificar, antes de mais, se pode conhecer-se do objecto do recurso.
O recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal
Constitucional pressupõe, designadamente, porque de recurso se trata, que o
recorrente tenha suscitado, de modo processualmente adequado, perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, a inconstitucionalidade da norma - ou
interpretação normativa - que pretende ver apreciada e pressupõe ainda, como já
se afirmou supra, que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado - a
norma ou interpretação normativa arguida de inconstitucional -, como ratio
decidendi, no julgamento do caso.
Vejamos se tal aconteceu.
8.1. Na conclusão 9 da alegação de recurso que apresentou perante o Supremo
Tribunal de Justiça - única em que se refere à alegada inconstitucionalidade do
artigo 340º do Código do Código de Processo Penal - pondera o recorrente,
reproduzindo, nos seus exactos termos, uma conclusão já apresentada na motivação
do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra: “9. Pois, é manifesta a
contradição entre a decisão de indeferir os requerimentos de prova, como exame
médico para aferir do grau de imputabilidade e capacidade de autodeterminação do
Arguido, exame ao local ou reconstituição dos factos no local, não se realizando
as diligências que permitiriam demonstrar os factos em causa e decidir-se,
quanto a esses mesmos factos, que não foi produzida qualquer prova, com o que se
violou o disposto no art. 32° n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e no
art. 340° do C. Proc. Penal, sendo que esta norma é inconstitucional,
precisamente por violação do art. 32° n.º 2 ao deixar ao critério do Tribunal a
produção de meios de prova requeridos pelo Arguido sem necessidade de qualquer
outra fundamentação a não o critério subjectivo da avaliação do que ao Tribunal
se afigura importante para a descoberta da verdade”.
Como se verifica pela transcrição que se acaba de fazer, o recorrente começa por
imputar à decisão recorrida a violação do disposto no artigo 340º do Código de
Processo Penal e no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, por, ao mesmo tempo,
considerar que não foi produzida qualquer prova relativa a certos factos e
simultaneamente indeferir os requerimentos destinados à prova desses mesmos
factos solicitados pelo arguido. Ora, como se afirmou, nomeadamente, nos
Acórdãos n.ºs 489/2004 e 710/2004 e, mais recentemente, no Acórdão n.º 128/2005
(todos disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), “se se utiliza uma
argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal
ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais,
tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão
judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento
jurídico infra-constitucional que se tem por violado com essa decisão, pois que
se posta como contraditório sustentar-se que há violação desse ordenamento e
[que] este é desconforme com o Diploma Básico. Efectivamente, se um preceito da
lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais acatá-lo, pelo que
esgrimir com a violação desse preceito, representa uma óptica de acordo com a
qual ele se mostra consonante com a Constituição. Isto é, se se sustenta que
determinada postura é, simultaneamente, violadora de preceitos do ordenamento
jurídico infra-constitucional e de normas constitucionais só se pode concluir
que se está a questionar a própria decisão judicial e não a constitucionalidade
dos preceitos ordinários.”
Mas, nesse caso, é jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, não
estando em causa uma dimensão normativa do preceito legal aplicado na decisão,
mas sim a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta
do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, e
assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na
verdade, ainda que se entenda que, suscitada uma concreta questão de
inconstitucionalidade da decisão judicial recorrida, não poderão as instâncias
deixar de se pronunciar sobre tal matéria, o facto é que uma tal suscitação, por
não se tratar da suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa,
não abre via de recurso para o Tribunal Constitucional.
A não suscitação, em termos adequados, de uma verdadeira questão de
constitucionalidade normativa impede, só por si, a possibilidade de conhecer do
objecto do recurso que, nesta parte, vem interposto pelo recorrente.
8.2. Mas ainda que, desconsiderando tudo o resto que pelo recorrente foi dito,
apenas se tivesse em linha de conta a parte final da conclusão 9 - onde este
refere que “esta norma [o artigo 340º do CPP] é inconstitucional, precisamente
por violação do artigo 32º n.º 2 ao deixar ao critério do Tribunal a produção de
meios de prova requeridos pelo arguido sem necessidade de qualquer outra
fundamentação a não o critério subjectivo da avaliação do que ao Tribunal se
afigura importante para a descoberta da verdade” - e se admitisse, numa
interpretação extremamente favorável, em exclusivo benefício do recorrente, que
aí estava colocada uma questão de constitucionalidade normativa, a verdade é
que, ainda assim, uma outra razão sempre obstaria à possibilidade de conhecer do
objecto do recurso. É que, como se verá já de seguida, o artigo 340º do Código
de Processo Penal não foi aplicado pela decisão recorrida nessa exacta
interpretação normativa. Para o demonstrar basta recordar aqui a parte do
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, para cuja fundamentação remete o
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido, na parte em que enfrentou
directamente esta questão:
“[...]A discordância do recorrente é diversa daquela que invoca e que nada tem a
ver com o vício da contradição insanável.
Rebela-se, isso sim, contra o indeferimento por parte do Tribunal “a quo” de
certas diligências de prova por si requeridas. A saber, exame médico para aferir
do grau de imputabilidade e capacidade de autodeterminação do arguido, exame ao
local ou reconstituição dos factos no local.
No respeitante à reconstituição dos factos ou à inspecção do local o Tribunal
recorrido veio a pronunciar-se, por despacho de fls. 382 dos autos, no sentido
de considerar desnecessária a sua realização.
Aí se escreveu, a respeito, “dada a forma circunstancial e pormenorizada da
descrição quer dos factos quer do local onde ocorreram os factos, não se
vislumbra que a reconstituição dos factos acrescente ou sequer contribua para
uma boa decisão da causa”.
“Relativamente à inspecção ao local, de igual modo, não se olvidando, já foi
feita uma inspecção ao local em fase de instrução conforme fls. 184, que o
Tribunal naturalmente levará em consideração no momento oportuno da decisão.
Atendendo à materialidade que visa provar, nomeadamente a idade do arguido e da
mulher, a pobreza da respectiva habitação, a madrugada ou escuridão, o carácter
violento, a idade da vítima, a profunda humilhação do arguido e ansiedade, em
nada a deslocação do Tribunal ao local poderia contribuir para o melhor
esclarecimento daqueles factos (...)”
Com fundamento, ainda, no disposto no art.º 340º, n.º 4, als. a) e b) do C.P.P.
veio-se a indeferir a realização de tais diligências de prova.
Como é sabido, o art.º 340º do Cód. Proc. Penal consagra, para a audiência, o
princípio da investigação, também designado, princípio da verdade material.
O que quer significar que o Tribunal tem o poder/dever de investigar o facto
submetido a julgamento, independentemente das contribuições dos intervenientes
processuais, tendo em vista a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Embora tal, impõe a lei limites ao mencionado princípio.
Seja o princípio da necessidade – só são admissíveis os meios de prova cujo
conhecimento se mostre necessário para a descoberta da verdade; seja o princípio
da legalidade – os meios de prova permitidos são aqueles que forem admitidos por
Lei; seja o princípio da adequação – os meios de prova a produzir – digo da
prova; seja ainda o princípio da obtenibilidade – os meios de prova hão-de ser
de obtenção possível. (Cfr. M. Gonçalves, in “Código de Processo Penal, Anotado
e Comentado”, págs. 650).
Tendo em conta o desiderato pretendido pelo recorrente com a inspecção ao local,
e que o despacho em causa bem traduz, nada mais resta [do que] concluir pela
irrelevância de tal diligência para o apuramento da verdade. Até por uma
anterior inspecção já levada a cabo.
No que respeita ao pretendido com a reconstituição dos factos e tendo em conta o
disposto no art.º 150º do C.P.P., nenhuma outra conclusão se impõe que não seja
aquela que o Tribunal “a quo” alcançou.
Tal meio de prova é inadequado ao fim pretendido pelo requerente/recorrente.
É que como se escreveu no AC-R- Évora, de 23-4-96, na C.J. ano XXI, Tomo 2,
págs. 293, somos a entender que “o C.P.P. restringe a reconstituição do facto
prevista no n.º 1 do art.º 150º a situações em que o simples exame ou inspecção
dos vestígios deixados pelo crime e demais indícios sejam insuficientes ou não
tenham sido tempestivamente recolhidos”.
O que não é o caso em análise, bastando, para o efeito, atentar no teor do
requerimento feito nesse sentido pela defesa e que o despacho bem põe em relevo.
Razões bastantes para não se censurar o despacho posto em crise- cfr. acta de
fls. 362.
É que não contribuindo tais diligências para a descoberta da verdade material e
para a boa decisão da causa, nem a sua realização se apresentar necessária e
indispensável para aquele efeito, bem andou o Tribunal “a quo” em as indeferir.
O mesmo se diga quanto ao exame para avaliar do grau de imputabilidade e
capacidade de auto-determinação do arguido, face ao teor do despacho de fls. 280
dos autos e do recurso que foi interposto do mesmo e respectiva decisão deste
Tribunal da Relação (cfr. autos de recurso Penal apenso).
Sendo ainda certo que o recorrente em sede de audiência de julgamento não veio
renovar o pedido de realização do falado exame médico (como sugestão deixada
pelo aresto desta relação, a fls. 66 dos autos de recurso Penal apenso).
[...]
Por fim, a inconstitucionalidade do art.º 340º do Cód. Proc. Pen., por violar o
disposto no art.º 32º, n.º 2 da C.R.P.
Fundamenta o recorrente tal entendimento no facto daquele normativo deixar ao
critério do Tribunal a produção de meios de prova requeridos pelo arguido sem
necessidade de qualquer outra fundamentação a não ser o critério subjectivo da
avaliação do que ao Tribunal se afigura importante para a descoberta da verdade.
O art.º 340.º do C.P.P. – como já mencionado – traduz-se na consagração do
princípio da investigação, também designado, princípio da verdade material.
O que confere ao Tribunal um poder/dever e não um poder discricionário.
Mais se exige que o Tribunal tem o dever de fundamentar a decisão que ordena ou
rejeita a produção de um meio de prova.
Tal fundamentação não pode revestir a natureza de algo obscuro, intimista ou
subjectivo do julgador, antes se devendo pautar por critérios de clareza e
objectividade.
O que permitirá sempre o controle por parte dos intervenientes processuais.
Apontando a Lei, claramente, dentro de que parâmetros o julgador se tem de mover
para que possa ou não admitir a produção de meios de prova e como já referido
daí a existência dos mencionados princípios da necessidade, legalidade,
adequação e obtenibilidade.
Existindo tal controle legal, não se vê como se possa obstaculizar quaisquer
garantias de defesa do arguido.
Sendo certo, ainda, que a este é sempre assegurado o direito de reagir contra
tal decisão por via de recurso.
Sem necessidade de outros considerandos – e até por não se descortinar, uma vez
mais, onde possa ser posta em crise a presunção de inocência do arguido, já que
este a não refere, se conclui pela não inconstitucionalidade do preceituado no
art.º 340 do C.P.P. [...]” (negrito aditado).
Da transcrição que antecede resulta evidente que o Tribunal não interpretou o
artigo 340º do CPP no sentido de considerar, para rejeitar os requerimentos de
produção de prova solicitados pelo arguido, desnecessária “qualquer outra
fundamentação a não [ser] o critério subjectivo da avaliação do que ao Tribunal
se afigura importante para a descoberta da verdade”. Não só o Tribunal tem o
cuidado de expressamente afirmar que “tal fundamentação não pode revestir a
natureza de algo obscuro, intimista ou subjectivo do julgador, antes se devendo
pautar por critérios de clareza e objectividade”, como cuidou igualmente de, a
propósito de cada um dos meios de prova requeridos pelo arguido, explicitar as
razões pelas quais os mesmos eram, no caso concreto, ou inadmissíveis ou
desnecessários
8.3. Por tudo o exposto, apenas resta ao Tribunal concluir que, também nesta
parte, não é possível conhecer do objecto do recurso, por evidente falta dos
seus pressupostos de admissibilidade, ficando assim igualmente precludida a
possibilidade de apreciação de um eventual carácter manifestamente infundado do
mesmo.
[...]”
8. É desta decisão que vem interposta, nos termos do n.º 3 do art. 78 - A da Lei
do Tribunal Constitucional a presente reclamação para a Conferência, que o
reclamante fundamenta da seguinte forma:
“[...] 1 ° A douta Decisão relativamente à qual se suscitou a
inconstitucionalidade que está na génese deste recurso foi proferida pelo
Venerando Tribunal da Relação de Coimbra ao decidir o recurso interposto para
aquele Tribunal da douta Sentença da 1ª Instância;
2° Confrontado com a mesma, de imediato a impugnou, arguindo a nulidade do douto
Acórdão, suscitando a inconstitucionalidade que agora pretende que seja
apreciada por este Tribunal;
3° Pois, o Arguido e Recorrente, veio, nos termos dos arts. 75°- A, 70°, n.º 1
al. a), 72° n.º 1, al. b) e n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional e não se
conformando com o douto Acórdão proferido nos referidos Autos que não julgou
procedentes as inconstitucionalidades suscitadas pelo Arguido, interpor Recurso
para o Tribunal Constitucional.
4° Sendo que em cumprimento do estipulado no art. 75° - A, sucede que o presente
Recurso foi interposto nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 70° da Lei do
Tribunal Constitucional, face à circunstância de o Tribunal Recorrido, Supremo
Tribunal de Justiça, ter aplicado as normas constantes dos artigos 363.º e 340.º
ambos do C. Proc. Penal, tendo a inconstitucionalidade de ambas sido suscitada,
por violação do disposto no art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República
Portuguesa, pelo Arguido - Recorrente em sede de Motivação dos Recursos para o
Tribunal da Relação de Coimbra e para o Supremo Tribunal de Justiça, como se
pode constatar quer pela análise de tais articulados, respectivamente conclusões
1 e 1 e 9, quer pelos Acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal e pelo
Tribunal da Relação de Coimbra. [...]”
9. Notificado para responder, querendo, à reclamação do recorrente, o Ministério
Público recorrido sustentou que “a presente reclamação é manifestamente
improcedente”, pois, “na verdade, o reclamante nada aduz que seja susceptível de
pôr em causa o teor da decisão reclamada, no que toca à inverificação dos
pressupostos de admissibilidade do recurso interposto.” A outra recorrida
sustentou a manutenção da decisão sumária.
10. Entretanto, o mandatário do reclamante, veio aos autos (fls. 672 e 673)
informar que tinha sido instruído, por familiares deste, para instaurar Acção de
Interdição do ora reclamante e requerer “a suspensão da contagem de quaisquer
prazos em curso, com todas as legais consequências, até ser decidida a Acção de
Interdição contra o Recorrente”. Ouvido o Ministério Público, sustentou este que
“o requerimento de fls. 672 carece obviamente de base legal – importando notar
que o presente recurso irá findar com a prolação da decisão da conferência que
dirimirá definitivamente a questão da admissibilidade do recurso interposto.”
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
III – Fundamentação
11. Na decisão sumária ora reclamada decidiu-se não ser possível conhecer do
objecto do recurso, por evidente falta dos seus pressupostos de admissibilidade,
fundamentando tal decisão da forma que acima se transcreveu.
O recorrente vem reclamar daquela decisão, limitando-se, contudo, no essencial,
a reproduzir afirmações já contidas no requerimento de interposição de recurso.
Não aduz qualquer argumento susceptível de infirmar a fundamentação da referida
decisão, nem produz nenhuma afirmação que não tenha já sido refutada na decisão
reclamada.
Ora, como é jurisprudência pacífica deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o
acórdão n.º 293/2001, disponível na página Internet do Tribunal Constitucional,
no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), a reclamação
prevista no artigo 78º-A n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional carece de ser
fundamentada, sendo necessário que a reclamante exponha as razões pelas quais
discorda da decisão sumária reclamada.
Sendo, todavia, manifesto que a presente reclamação não contém quaisquer razões
de discordância relativamente à decisão reclamada e não se vislumbrando qualquer
razão para a pôr em causa, nada mais resta a este Tribunal do que confirmar
aquela decisão, assim se julgando, definitivamente, a questão da não
admissibilidade do recurso.
12. Relativamente ao requerimento de “suspensão da contagem de quaisquer prazos
em curso”, sendo manifesto que tal suspensão não tem qualquer fundamento legal,
que, aliás, não é sequer invocado, vai o mesmo indeferido.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) desatender a presente reclamação, confirmando-se a decisão reclamada de não
conhecimento do recurso;
b) indeferir o requerimento de fls. 672 e 673.
Custas pelo reclamante e requerente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e
cinco) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício