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Processo n.º 411/07
Plenário
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O pedido.
O Representante da República para a Região Autónoma dos
Açores requer, ao abrigo do n.º 2 do artigo 278.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP) e dos artigos 57.º e seguintes da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), que o Tribunal Constitucional, em processo de
fiscalização preventiva da constitucionalidade, se pronuncie pela
inconstitucionalidade das normas contidas nos preceitos a seguir indicados do
Decreto n.º 8/2007, sobre Regime das Precedências Protocolares e do Luto
Regional, aprovado na sessão de 7 de Março de 2007 da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma dos Açores, que lhe foi enviado para assinatura como decreto
legislativo regional:
– artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.ºs 1, 10, 12 a
18, 21 a 24, 26, 27, 1.ª parte, 28 a 31, 32, 1.ª parte, e 38, este na parte
referente à “administração local”, 9.º, n.º 1, 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º a 18.º e
20.º, por violação dos três parâmetros da competência legislativa regional
contidos no n.º 4 do artigo 115.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da
CRP;
– artigo 10.º, n.º 1, por inconstitucionalidade material
decorrente da violação do estatuto constitucional do Primeiro‑Ministro,
constante dos artigos 182.º, 187.º, n.º 1, e 201.º, n.º 1, conjugados com o
princípio da unidade do Estado, consagrado nos artigos 6.º e 225.º, n.º 3, da
CRP;
– artigo 10.º, n.º 2, por inconstitucionalidade material
decorrente da violação do estatuto constitucional do Representante da República
e da Assembleia Legislativa da Região Autónoma, contido nos artigos 230.º, n.º
1, e 231.º, n.ºs 3 a 5, da CRP.
O pedido, entrado na secretaria do Tribunal Constitucional
em 26 de Março de 2007 (2.ª‑feira) e tendo por objecto diploma recebido no
Gabinete do Representante da República para a Região Autónoma dos Açores em 16
de Março de 2007, é tempestivo (artigos 278.º, n.º 3, da CRP e 56.º, n.º 2, e
57.º, n.º 1, da LTC).
O requerente detém legitimidade para o pedido, atentos o
seu objecto (normas constantes de decreto legislativo regional) e fundamento
(inconstitucionalidade) – artigo 278.º, n.º 2, da CRP.
2. O objecto do pedido.
O Decreto n.º 8/2007 da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma dos Açores – Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional
na Região Autónoma dos Açores (doravante designado por Regime das Precedências
Protocolares) –, aprovado em 7 de Março de 2007 e enviado ao Representante da
República para a Região Autónoma dos Açores para assinatura como decreto
legislativo regional, foi emitido “nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo
227.º, conjugada com o n.º 4 do artigo 112.º da Constituição da República
Portuguesa e das alíneas hh) do artigo 8.º e c) do n.º 1 do artigo 31.º do
Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma dos Açores”, que dispõem:
Constituição da República Portuguesa (redacção da Lei Constitucional n.º
1/2004, de 24 de Julho):
Artigo 227.º (Poderes das regiões autónomas)
1. As regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os
seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:
a) Legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo
estatuto político‑administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de
soberania;
(…)
Artigo 112.º (Actos normativos)
(…)
4. Os decretos legislativos têm âmbito regional e versam sobre matérias
enunciadas no estatuto político‑administrativo da respectiva região autónoma
que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas
alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º.
(…)
Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei n.º 39/80,
de 5 de Agosto, alterada pelas Leis n.ºs 9/87, de 26 de Março, e 61/98, de 27 de
Agosto):
Artigo 8.º (Matérias de interesse específico)
Para efeitos de definição dos poderes legislativos ou de iniciativa
legislativa da Região, bem como das matérias de consulta obrigatória pelos
órgãos de soberania, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição,
constituem matérias de interesse específico:
(…)
hh) Outras matérias que respeitem exclusivamente à Região ou que nela
assumam particular configuração.
Artigo 31.º (Competência legislativa)
1 – Compete ainda à Assembleia Legislativa Regional dos Açores
(…)
c) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da
República, em matérias de interesse específico para a Região que não estejam
reservadas à competência própria dos órgãos de soberania;
(…)
Consta do preâmbulo do Decreto n.º 8/2007 (que reproduz a
exposição de motivos do Projecto de Decreto Legislativo Regional n.º 1/2007,
apresentado pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista, que esteve na génese
daquele diploma):
“A particular configuração que as regras das precedências protocolares
assumem no quadro da autonomia política fundamenta o estabelecimento de um
regime específico na Região Autónoma dos Açores, devendo o cerimonial regional
reflectir a estrutura constitucional da Autonomia e traduzir a percepção que a
sociedade tem dos titulares dos diversos órgãos e poderes, relevando a
importância protocolar dos titulares dos órgãos de governo próprio.
Afirmando o pluralismo e a dimensão democrática da Autonomia, dignifica‑se o
estatuto da oposição, atribuindo relevância protocolar aos líderes regionais dos
partidos da oposição, destacando o papel do líder do maior partido da oposição,
o qual é objecto de tratamento diferenciado.
Tipifica‑se, ainda, a declaração de luto regional pelo falecimento do
Presidente da Assembleia Legislativa, dos membros do Governo Regional, dos
antigos Presidentes da Assembleia Legislativa e do Governo Regional, assim como
pelo falecimento de personalidade ou ocorrência de evento de excepcional
relevância.”
Os preceitos que contêm as normas cuja apreciação de
constitucionalidade vem solicitada são do seguinte teor integral, assinalando‑se
a negro os segmentos questionados:
CAPÍTULO I – Princípios gerais
Artigo 1.º (Objecto)
1. O presente diploma estabelece o regime protocolar aplicável nas cerimónias
regionais, considerando-se como tal as promovidas pelas entidades públicas
sedeadas na Região Autónoma dos Açores.
2. O presente diploma dispõe, igualmente, sobre a declaração de luto regional.
(…)
CAPÍTULO II – Precedências
Secção I – Hierarquia
Artigo 7.º (Lista de precedências)
Para efeitos protocolares, as entidades públicas hierarquizam‑se, na
Região, pela ordem seguinte:
1. Representante da República para a Região Autónoma dos Açores;
2. Presidente da Assembleia Legislativa;
3. Presidente do Governo Regional;
4. Vice‑Presidentes do Governo Regional;
5. Secretários e Subsecretários Regionais;
6. Antigos Presidentes da Assembleia Legislativa e antigos Presidentes do
Governo Regional;
7. Líder regional do maior partido da Oposição;
8. Vice‑Presidentes da Assembleia Legislativa e Presidentes dos Grupos e
Representações Parlamentares na Assembleia Legislativa;
9. Presidentes das comissões parlamentares permanentes da Assembleia
Legislativa;
10. Deputados à Assembleia da República eleitos pelo círculo eleitoral dos
Açores;
11. Deputados à Assembleia Legislativa;
12. Deputados ao Parlamento Europeu indicados pelas estruturas regionais
dos partidos políticos;
13. Juiz Conselheiro da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas;
14. Procurador‑Geral Adjunto da Secção Regional dos Açores do Tribunal de
Contas;
15. Comandante Operacional dos Açores;
16. Juiz Presidente e Procurador da República do Círculo Judicial onde se
realiza a cerimónia;
17. Juiz e Procurador da República da Comarca onde se realiza a cerimónia;
18. Comandantes das Zonas Militar, Marítima e Aérea dos Açores;
19. Presidentes dos Conselhos de Ilha;
20. Presidente da Associação de Municípios da Região Autónoma dos Açores;
21. Reitor da Universidade dos Açores;
22. Presidentes das câmaras municipais;
23. Presidentes das assembleias municipais;
24. Vereadores das câmaras municipais;
25. Líderes regionais dos partidos políticos com representação na
Assembleia Legislativa;
26. Presidentes das estruturas regionais das Ordens Profissionais;
27. Chefes de Gabinete do Representante da República, do Presidente da
Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo Regional;
28. Comandantes regionais da Polícia de Segurança Pública e da Guarda
Nacional Republicana;
29. Presidentes das juntas de freguesia;
30. Membros das assembleias municipais;
31. Presidentes das assembleias de freguesia e membros das juntas e das
assembleias de freguesia;
32. Assessores e adjuntos do Representante da República, do Presidente da
Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo Regional;
33. Chefes dos gabinetes dos membros do Governo Regional;
34. Directores regionais e presidentes dos institutos públicos, ou
sociedades anónimas de capitais públicos, pela ordem dos respectivos
departamentos e dentro destes da respectiva lei orgânica;
35. Secretários‑gerais da Assembleia Legislativa e da Presidência do
Governo Regional;
36. Assessores e adjuntos dos membros do Governo Regional;
37. Líderes regionais dos partidos políticos sem representação na
Assembleia Legislativa;
38. Cargos dirigentes, ou equiparados, da administração regional autónoma e
da administração local, pela ordem dos respectivos departamentos, ou autarquias,
e dentro destes da respectiva orgânica.
(…)
Secção II – Órgãos de governo próprio
Artigo. 9.º (Presidente da Assembleia Legislativa)
1. O Presidente da Assembleia Legislativa preside sempre às sessões
respectivas, bem como aos actos por ela organizados, excepto se estiverem
presentes o Presidente da República ou o Presidente da Assembleia da República.
2. O Presidente da Assembleia Legislativa é substituído e pode fazer‑se
representar, nos termos regimentais, por um dos vice-presidentes, o qual goza,
nessas circunstâncias, do estatuto protocolar do Presidente.
Artigo 10.º (Presidente do Governo Regional)
1. O Presidente do Governo Regional preside às cerimónias oficiais em que
não estejam presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da
República, o Representante da República e o Presidente da Assembleia
Legislativa.
2. No caso da cerimónia ser organizada pelo Governo Regional, o Presidente do
Governo Regional precede o Representante da República e o Presidente da
Assembleia Legislativa.
3. O Presidente do Governo Regional é substituído e pode fazer‑se representar
por um membro do Governo da sua escolha, o qual goza, nessas circunstâncias, do
estatuto protocolar do Presidente.
(…)
Artigo 15.º (Deputados)
Os Deputados à Assembleia da República, à Assembleia Legislativa e ao Parlamento
Europeu ordenam‑se segundo a representatividade parlamentar decorrida da eleição
respectiva.
Secção III – Poder Local
Artigo 16.º (Presidentes de Câmara)
1. Os Presidentes de Câmara dos municípios dos Açores gozam, no respectivo
concelho, do estatuto de membro do Governo Regional, seguindo‑se‑lhes
imediatamente em termos de hierarquia protocolar.
2. Os Presidentes de Câmara presidem às cerimónias realizadas nos paços do
concelho ou organizadas pela respectiva câmara, excepto se estiverem presentes
o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o
Primeiro‑Ministro, o Representante da República, o Presidente da Assembleia
Legislativa ou o Presidente do Governo Regional.
3. Nas cerimónias regionais realizadas no respectivo concelho, o Presidente da
Câmara segue imediatamente os membros do Governo Regional.
Artigo 17.º (Presidentes de Assembleia Municipal)
1. Os Presidentes das Assembleias Municipais, no respectivo concelho, seguem
imediatamente o Presidente da Câmara.
2. Os Presidentes das Assembleias Municipais presidem sempre às respectivas
sessões, excepto se estiverem presentes o Presidente da República, o Presidente
da Assembleia da República, o Primeiro‑Ministro, o Representante da Repúb1ica, o
Presidente da Assembleia Legislativa ou o Presidente do Governo Regional.
Artigo 18.º (Presidentes de Junta e de Assembleia de Freguesia)
Aos Presidentes das Juntas e das Assembleias de Freguesia é aplicado o disposto
nos artigos anteriores, com as necessárias adaptações, somando‑se os Presidentes
de Câmara e de Assembleias Municipais às entidades a quem devem ceder
prevalência.
Secção IV – Outras entidades
(…)
Artigo 20.º (Autoridades universitárias)
1. O Reitor da Universidade dos Açores preside aos actos realizados na
respectiva instituição, excepto quando estiver presente o Presidente da
República, o Presidente da Assembleia da República, o Representante da
República, o Presidente da Assembleia Legislativa ou o Presidente do Governo
Regional.
2. As deputações do claustro académico que participem em cerimónias oficiais
seguem imediatamente o Reitor.
3. Os fundamentos do pedido.
O pedido desdobra‑se num pedido de pronúncia no sentido da
“inconstitucionalidade orgânica” das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 1,
segunda parte, 7.º, n.ºs 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, 1.ª parte, 28 a 31,
32, 1.ª parte, e 38, este na parte referente à “administração local”, 9.º, n.º
1, 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º, e num pedido de pronúncia no sentido
da inconstitucionalidade material das normas constantes do artigo 10.º, n.ºs 1 e
2, do Regime das Precedências Protocolares.
3.1. Relativamente à questão da “inconstitucionalidade
orgânica”, sustenta o requerente que as normas impugnadas “extravasam os poderes
legislativos das Regiões Autónomas”, por não respeitarem “nenhum dos três
parâmetros fundamentais pelos quais a Constituição delimita hoje as matérias
sobre que pode incidir o exercício das competências legislativas regionais” (e
isto “com independência em relação às soluções concretas adoptadas pelo
legislador autonómico quanto às posições protocolares destinadas às diferentes
entidades oficiais envolvidas e, ademais, sem necessidade de atender à
coincidência ou não dessas soluções legais com as prescritas na Lei das
Precedências do Protocolo do Estado Português (Lei n.º 40/2006, de 25 de Agosto)
– lei esta que, não assumindo valor reforçado, não constitui parâmetro de
validade do diploma regional em apreço”).
O desrespeito desses “três parâmetros fundamentais”
resulta:
– em primeiro lugar, de as normas em causa não se cingirem
verdadeiramente ao “âmbito regional”, como é imposto pelo primeiro segmento da
alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP;
– em segundo lugar, de a normação emanada não se enquadrar
em nenhuma das alíneas do artigo 8.º do Estatuto Político‑Administrativo da
Região Autónoma dos Açores, (Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, alterada pelas Leis
n.ºs 9/87, de 26 de Março, e 61/98, de 27 de Agosto – doravante designado por
EPARAA), nem mesmo na alínea hh), sobre “outras matérias que respeitem
exclusivamente à Região ou que nela assumam particular configuração”, como
deveria suceder por força da interpretação conjugada do segundo segmento da
alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, do n.º 1 do artigo 228.º, ambos da CRP, e do
artigo 46.º da Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de Junho; e
– em terceiro e último lugar, de as disposições em crise
invadirem, em contravenção com o terceiro segmento da alínea a) do n.º 1 do
artigo 227.º, a reserva de competência legislativa da Assembleia da República
e, mais precisamente, a alínea m) do artigo 164.º, referente ao “estatuto dos
órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos
constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal”, e, ainda, a alínea
p) do n.º 1 do artigo 165.º, todos da CRP, sobre o “Ministério Público e
estatuto dos respectivos magistrados”.
3.1.1. Quanto ao primeiro fundamento – ultrapassagem do
“âmbito regional” –, o pedido desenvolve a seguinte argumentação:
“III – 1. As normas acima referenciadas, relativamente às quais é pedida ao
Tribunal Constitucional a pronúncia pela inconstitucionalidade, têm em comum o
facto de respeitarem a órgãos ou a titulares de órgãos que não integram a pessoa
colectiva pública «Região Autónoma dos Açores», mas sim outras pessoas
colectivas, nomeadamente o Estado, os Municípios e as Freguesias dos Açores, a
Universidade dos Açores e as Ordens Profissionais.
Significa isto que o Decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos
Açores n.º 8/2007, no que agora nos interessa, não se limita a estabelecer
regras disciplinadoras das precedências protocolares aplicáveis nas relações
entre os titulares dos órgãos da própria pessoa colectiva Região Autónoma dos
Açores – ou seja, dentro dessa entidade pública –, mas pretende valer também nas
relações entre esta Região Autónoma e outras pessoas colectivas públicas dela
distintas. Em consequência, o dito Decreto n.º 8/2007 determina a posição
protocolar dos titulares dos órgãos destas últimas pessoas colectivas «supra e
infra regionais», na sua relação com os titulares dos órgãos da própria Região
Autónoma.
Neste sentido, não se pode dizer que as normas estabelecidas correspondam a um
regime protocolar regional, por exclusiva referência à pessoa colectiva Região
Autónoma dos Açores, antes se traduzindo num regime de precedências protocolares
a ser aplicado nos Açores ou, se se preferir, no território daquela Região. Isto
mesmo resulta, com relativa clareza, da segunda parte do artigo 1.º do Regime
das Precedências Protocolares e do Luto Regional, onde se define o que deve
entender‑se por «cerimónias regionais»: isto é, todas «as promovidas pelas
entidades públicas sedeadas na Região Autónoma dos Açores», o que naturalmente
abarca o Representante da República enquanto órgão residente do Estado, todos os
Municípios e Freguesias dos Açores, a Universidade dos Açores e, mesmo – se a
palavra «entidades» não estiver, como tudo indica, empregue em sentido jurídico
rigoroso –, a Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas, o Comando
Operacional dos Açores e os Comandos Regionais dos Açores da Polícia de
Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana.
Ora, sendo assim, afigura‑se que a Assembleia Legislativa exerceu as suas
faculdades normativas fora daquilo a que a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º
designa hoje, após a revisão constitucional de 2004, como o «âmbito regional».
De facto, sem prejuízo de esta expressão ter antes de mais um sentido
geográfico, traçando os limites espaciais de vigência dos decretos legislativos
regionais, ela tem também forçosamente um sentido institucional, que impede os
Parlamentos insulares de emanar legislação destinada a produzir efeitos
relativamente a outras pessoas colectivas públicas que se encontram fora do
âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas – como sucede, sem sombra de
dúvida, com o próprio Estado e, bem ainda, com outras pessoas que integram
constitucionalmente a Administração Autónoma territorial e institucional
(autarquias locais, associações públicas e universidades). Diga‑se,
inclusivamente, que se a referência ao «âmbito regional» tivesse uma conotação
exclusivamente geográfica não passaria de uma pura tautologia, em face da
territorialidade que caracteriza de raiz tudo o que respeita à autonomia das
Regiões insulares.
A conclusão alcançada sai reforçada se a limitação da competência legislativa
das Regiões insulares ao respectivo «âmbito regional» for interpretada como uma
manifestação do princípio constitucional da unidade do Estado, consagrado no n.º
1 do artigo 6.º e nos n.ºs 2 e 3 do artigo 225.º. Com efeito, é inerente à
natureza de um Estado unitário que uma pessoa colectiva pública não soberana não
pode ditar, unilateralmente, regras jurídicas vinculativas da pessoa colectiva
que detém o monopólio do exercício de poderes soberanos, seja para acrescentar
ou diminuir competências dos seus órgãos, seja para interferir com o estatuto
jurídico dos titulares dos respectivos órgãos, incluindo aqui naturalmente a
posição protocolar. Por conseguinte, num Estado unitário como o português,
sempre que emergir a necessidade de regular legislativamente as relações entre o
Estado e as Regiões Autónomas, quer se trate de articular competências
administrativas, de disciplinar as relações financeiras recíprocas ou de
estabelecer precedências protocolares entre titulares de órgãos de ambas as
pessoas colectivas, a competência legislativa para o efeito nunca pode, por
definição, ser deferida ao ente regional, mas sempre e necessariamente ao ente
estadual – ainda que se reconheça àquele um poder de participação na decisão
legislativa a este último reservada (alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º e n.º 2
do artigo 229.º da Constituição).
Em suma, a Assembleia Legislativa, quando procura regular as relações
protocolares entre titulares de órgãos do Estado e titulares de órgãos da
própria Região Autónoma, legisla ultra vires, porque não legisla «no âmbito
regional». Não se trata, obviamente, de impedir em absoluto a Região Autónoma de
intervir na definição de um conjunto de regras específicas em matéria de
precedências protocolares, mas apenas de impedir que, a pretexto de uma
definição intra muros, se estabeleçam em simultâneo regras sobre precedências
que, contas feitas, atingem directamente titulares dos órgãos da pessoa
colectiva Estado e de outras pessoas colectivas dotadas constitucionalmente de
um significativo grau de autonomia.”
3.1.2. A imputação da violação do segundo parâmetro de
delimitação da autonomia legislativa regional – versar o diploma sobre matéria
não enunciada no respectivo Estatuto Político‑Administrativo – assenta na
seguinte fundamentação:
“2. O Decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º
8/2007 invoca como norma habilitante da competência exercida a alínea hh) do
artigo 8.º do Estatuto Político‑Administrativo – certamente por força da
disposição transitória constante do artigo 46.º da Lei Constitucional n.º
1/2004 –, alínea na qual se estabelece que «constituem matérias de interesse
específico» aquelas «outras matérias» não constantes das alíneas anteriores e
«que respeitem exclusivamente à Região ou que nela assumam particular
configuração». Além disso, no próprio preâmbulo do diploma agora enviado para
assinatura do Representante da República invoca‑se que «a particular
configuração que as regras das precedências protocolares assumem no quadro da
autonomia fundamenta o estabelecimento de um regime específico na Região
Autónoma dos Açores». Numa palavra, a Assembleia Legislativa procura arrimo para
a normação emanada no conceito de interesse específico regional, enquanto limite
positivo da respectiva competência.
No entanto, após a revisão constitucional de 2004 e com as mutações por esta
provocadas nos parâmetros definidores da competência legislativa regional, não
pode ter‑se por pacífico – mesmo considerando que o regime hoje vigente,
resultante da remissão efectuada pelo artigo 46.º da Lei Constitucional n.º
1/2004, tem natureza transitória – que constitua habilitação bastante para o
exercício do poder legislativo regional a circunstância de certa matéria se
revestir de interesse específico – o que, aliás, sempre seria necessário
demonstrar em concreto.
Na realidade, não é fácil interpretar o completo desaparecimento do conceito de
interesse específico das disposições da Lei Fundamental respeitantes à
configuração da competência legislativa regional – o n.º 4 do artigo 112.º, as
alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º e o n.º 1 do artigo 228.º –, sendo
aí substituído pela expressão «matérias enunciadas no (…) estatuto
político‑administrativo». Assim sucede porquanto, mais do que um verdadeiro
limite à legislação regional, o interesse específico sempre se apresentou como o
fundamento, por excelência, de todas as competências legislativas regionais e,
bem assim, de várias outras competências dos órgãos de governo próprio dos
Açores e da Madeira. Daí a utilização da expressão limite positivo para
designar o dito conceito de interesse específico – expressão de há muito
utilizada na doutrina e na própria Jurisprudência Constitucional –, que outra
coisa não significava senão o fundamento para uma legislação própria,
diferenciada da legislação nacional e, por isso, melhor adaptada à realidade
insular e às concretas necessidades de desenvolvimento económico e social das
Regiões Autónomas. Numa palavra, mais do que um simples limite ao poder
legislativo regional, o interesse específico surgia, na arquitectura
constitucional, como a pedra angular do edifício da autonomia
político‑administrativa dos Açores e da Madeira, nas suas diferentes vertentes.
Em consequência da revisão constitucional de 2004, pelo menos duas grandes
alternativas hermenêuticas parecem hoje perfilar‑se quanto ao destino do
conceito de interesse específico.
De acordo com uma primeira alternativa, o legislador de revisão constitucional
terá eliminado definitivamente o conceito de interesse específico como parâmetro
fundante da competência legislativa regional, fazendo tábua rasa de toda a
elaboração dogmática e jurisprudencial que, em torno de tal conceito, se tinha
vindo a desenvolver desde 1976. O legislador estatutário deverá, em
consequência, adoptar na próxima revisão dos Estatutos Político‑Administrativos
um catálogo taxativo de matérias sobre as quais as Assembleias Legislativas
regionais poderão exercer a sua competência sempre e em quaisquer
circunstâncias. Quanto muito, o legislador estatutário poderá, porventura,
adoptar um catálogo de matérias não inteiramente fechado, mas em que a
respectiva abertura não pode ficar dependente do conceito de interesse
específico (ou de outro com características semelhantes).
Já de acordo com a segunda alternativa, o legislador de revisão constitucional
ter‑se-á limitado a desconstitucionalizar o parâmetro positivo definidor da
competência legislativa regional, gozando agora o legislador estatutário – numa
veste especialmente qualificada, porque deliberando por maioria de 2/3 dos
Deputados presentes na Assembleia da República, e após iniciativa legislativa
reservada das Assembleias Legislativas dos Açores e da Madeira (alínea f) do n.º
6 do artigo 168.º e n.º 1 do artigo 226.º) – de uma significativa margem de
liberdade conformativa, para, considerando os dados jurídicos e fácticos já
conhecidos, optar entre diversas técnicas normativas de delimitação das
competências legislativas regionais (v. g., manutenção do conceito de interesse
específico como critério delimitador decisivo da competência legislativa
regional, fazendo‑o acompanhar de uma listagem exemplificativa de matérias;
manutenção do conceito de interesse específico, embora apenas como critério
complementar de alargamento de um elenco de matérias fixado estatutariamente;
adopção de um critério material novo e mais amplo; ou mesmo fixação de um elenco
taxativo de matérias).
Para decidir a questão que nos ocupa de momento, não é absolutamente necessário
tomar partido por uma destas duas orientações fundamentais. Indispensável é
antes dilucidar o regime transitório constante do artigo 46.º da Lei de Revisão
Constitucional n.º 1/2004, uma vez que é este que se encontra presentemente em
vigor. Aí se pode ler que «até à eventual alteração das disposições dos
estatutos político‑administrativos das regiões autónomas, prevista na alínea f)
do n.º 6 do artigo 168.º, o âmbito material da competência legislativa das
respectivas regiões é o constante do artigo 8.º do Estatuto
Político‑Administrativo da Região Autónoma dos Açores e do artigo 40.º do
Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma da Madeira».
Ora, também a interpretação do artigo transcrito coloca um verdadeiro dilema
hermenêutico.
Numa primeira interpretação, a remissão que o artigo 46.º faz para os artigos
8.º e 40.º, respectivamente, dos Estatutos dos Açores e da Madeira é uma
remissão plena, devendo estes continuar a ser interpretados da mesma forma que o
eram antes da revisão constitucional. Por conseguinte, durante o período
transitório, a competência legislativa regional continua a ser delimitada como
anteriormente pelo conceito de interesse específico, tal como delineado nos
artigos estatutários, e tendo em conta as enumerações exemplificativas de
matérias que aí se podem encontrar. Nesta consonância, permanece válido todo o
acervo de decisões do Tribunal Constitucional relativo àqueles preceitos.
Continuará, assim, a valer a máxima jurisprudencial segundo a qual o facto de
certa matéria estar contida numa das muitas alíneas dos elencos estatutários
constitui simples presunção, abstracta, de que essa mesma matéria se reveste de
uma especificidade regional, podendo essa presunção ser ilidida, caso a caso,
pelo confronto entre a legislação produzida e o sentido substantivo que se
extrai do conceito de interesse específico (cfr., por todos, o Acórdão n.º
246/2005). E continuará também a valer aquela outra máxima jurisprudencial
segundo a qual a legislação regional não poderá ser uma legislação de
substituição da legislação nacional, pelo que os preceitos dos diplomas
regionais que se limitem a reproduzir legislação nacional sem qualquer
especialidade relevante são inconstitucionais, por falta de interesse específico
(cfr., por todos, o Acórdão n.º 235/94).
Numa segunda interpretação, a remissão que o artigo 46.º faz para os artigos 8.º
e 40.º dos Estatutos açoriano e madeirense, respectivamente, é uma remissão
parcial, sujeita às adaptações tidas por necessárias, à luz dos novos
parâmetros da competência legislativa regional introduzidos em 2004.
Efectivamente, pretendendo a revisão constitucional eliminar o conceito de
interesse específico como parâmetro aferidor da competência legislativa
regional, a remissão para os mencionados artigos 8.º e 40.º não visa recuperar,
ainda que transitoriamente, esse conceito, mas apenas servir‑se a título
instrumental das listas de matérias neles contidas. Em consequência, tais listas
de matérias deverão agora ser consideradas como taxativas (ou fechadas), sendo
necessário amputá‑las das últimas das suas alíneas, uma vez que estas reproduzem
a definição doutrinal e jurisprudencial de interesse específico (alínea hh), no
caso dos Açores, e alínea vv), no caso da Madeira). Por outras palavras, o
preceito introduzido pelo legislador de revisão constitucional tem por
objectivo, tanto quanto possível, antecipar o novo regime constitucional (e
estatutário) de delimitação da competência legislativa regional, carecendo para
tanto de utilizar listagens de matérias que foram na sua génese, mas não são
mais, tidas por matérias de interesse específico.
Nesta situação dilemática – entre a ultra‑actividade do regime estatutário (e
constitucional) anterior e a aplicação antecipada de um regime constitucional (e
estatutário) ainda inacabado –, é no mínimo muito duvidoso que se possa aceitar
sem mais o deslizamento da vigência do critério do interesse específico para o
período transitório, tanto mais que este tende claramente a prolongar‑se no
tempo. Se é verdade que a letra do artigo 46.º parece favorecer a primeira
interpretação, ao prever, simplesmente, que «o âmbito material da competência
legislativa das (…) regiões é o constante do artigo 8.º do Estatuto», não é
possível ignorar que a leitura dos trabalhos preparatórios da sexta revisão
constitucional revela uma grande «animosidade» contra o conceito de interesse
específico, tido por fonte de constrangimentos e interpretações restritivas
jurisprudenciais referentes aos poderes legislativos regionais. Efectivamente,
não obstante algumas vozes que se ergueram nos debates havidos em defesa do
conceito de interesse específico, a tese que fez vencimento foi não apenas a que
defendeu a completa eliminação deste como parâmetro da competência legislativa
regional, mas a que associou essa solução à adopção estatutária (e por maioria
reforçada) de um definição precisa de matérias, por forma a permitir aos
legisladores regionais maior segurança e a reduzir, tanto quanto possível, a
margem de apreciação do Tribunal Constitucional na verificação dos limites do
poder legiferante regional.
Isto posto, não pode deixar de se considerar inusitado que, após semelhante
revisão constitucional, se continue a invocar e a aplicar transitoriamente um
conceito que foi considerado «defunto» (cfr. DAR, II‑RC, de 14 de Janeiro de
2004, pág. 26) e cuja eliminação foi largamente aplaudida na Assembleia da
República, tanto mais que existe uma interpretação alternativa que permite
aproximar o regime transitório do regime definitivo pretendido pelo legislador
de revisão constitucional. Aliás, não é pelo facto de o artigo 46.º da Lei
Constitucional n.º 1/2004 não ter sido integrado no texto constitucional, entre
as disposições finais e transitórias, que o mesmo deixa de sofrer o influxo
sistemático‑teleológico do novo sistema delimitador da competência legislativa
insular, constante do n.º 4 do artigo 112.º, da alínea a) do n.º 1 do artigo
227.º e do n.º 1 do artigo 228.º, onde é notória a ausência de qualquer
referência ao antigo conceito de interesse específico.
3. Ainda que se entendesse que, até à alteração do Estatuto
Político‑Administrativo da Região Autónoma dos Açores, prevista na alínea f) do
n.º 6 do artigo 168.º, o conceito de interesse específico sobrevive no artigo
8.º daquele diploma fundamental da autonomia ou, pelo menos, na sua alínea hh),
a verdade é que as normas colocadas sub judice não versam matéria de interesse
específico.
O simples facto de o Decreto n.º 8/2007 se destinar a regular as precedências
protocolares em cerimónias realizadas no território da Região, bem como a
circunstância de nos Açores existir um nível de governação e administração que
não tem paralelo no Continente, não garantem a todas as disposições normativas
do Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional a qualificação como
matérias de interesse específico.
Bem pelo contrário, as normas em apreço são aqui questionadas quanto à sua
constitucionalidade por não respeitarem especificamente à pessoa colectiva
pública Região Autónoma dos Açores – à posição protocolar relativa dos titulares
dos seus diferentes órgãos –, envolvendo antes os titulares dos órgãos de outras
entidades públicas, como o Estado, as Autarquias Locais açorianas, a
Universidade dos Açores e as Ordens Profissionais. É que, mesmo deixando de lado
as normas do Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional que
reproduzem com grande proximidade disposições da Lei n.º 40/2006, de 25 de
Agosto, apropriando‑se do conteúdo da legislação nacional e substituindo‑a por
legislação regional – numa atitude já várias vezes censurada pelo Tribunal
Constitucional –, nunca poderia ser considerado como de interesse específico
regional um regime legal de precedências protocolares destinado a vigorar, por
exemplo, em cerimónias organizadas na residência oficial do Representante da
República, na sede da Secção Regional do Tribunal de Contas ou no Comando
Operacional dos Açores. E, de igual forma, também nunca poderia considerar‑se
de interesse específico regional um regime legislativo que pretende determinar a
posição protocolar de titulares de órgãos do Estado – alguns deles titulares de
órgãos de soberania, como sucede com os Deputados à Assembleia da República, com
o Juiz Conselheiro da Secção Regional do Tribunal de Contas e com os demais
magistrados judiciais – e de outras pessoas colectivas públicas
constitucionalmente dotadas de autonomia, mesmo tratando‑se de cerimónias
organizadas por entidades regionais.”
3.1.3. O terceiro fundamento da imputação de
“inconstitucionalidade orgânica” às normas questionadas – versarem sobre
matéria da reserva de competência legislativa da Assembleia da República – é
desenvolvido do seguinte modo:
“4. Acresce aos fundamentos já apontados que a alínea m) do artigo 164.º
reserva em absoluto à competência legislativa da Assembleia da República a
matéria do «estatuto dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos
restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal» –
o que, naturalmente, exclui a competência da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma dos Açores no tocante ao estatuto do Representante da República, dos
Deputados à Assembleia da República, dos Deputados ao Parlamento Europeu, do
Juiz Conselheiro da Secção Regional do Tribunal de Contas e dos demais
magistrados judiciais, bem como em relação ao estatuto dos titulares dos órgãos
das Autarquias Locais. Por sua vez, a alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º reserva
também à competência legislativa da Assembleia da República – reserva relativa
não passível de autorização legislativa às Assembleias Regionais – o estatuto
dos magistrados do Ministério Público.
A Constituição não estabelece o que deva entender‑se por «estatuto» de um
órgão de soberania ou de um órgão constitucional, mas, quando as regras sobre
precedências protocolares aplicáveis aos respectivos titulares não tenham
natureza consuetudinária, vindo a assumir forma legislativa – como sucedeu com
a recente Lei n.º 40/2006, de 25 de Agosto –, não há razão para que as mesmas
sejam desligadas, quanto ao regime constitucional aplicável, das demais normas
relativas ao estatuto dos órgãos em causa, designadamente as normas definidoras
das competências, das incompatibilidades e impedimentos, dos deveres, dos
direitos e das regalias (remunerações e abonos, ajudas de custo, porventura
residência e viatura oficiais, passaporte e cartão de identificação especiais,
segurança pessoal, etc.).
Na verdade, «a inclusão de qualquer matéria na reserva de competência da
Assembleia da República, absoluta ou relativa, é in totum. Tudo quanto lhe
pertença tem de ser objecto de lei da Assembleia da República (…). Só não se
depara este postulado quando a própria Constituição estabelece diferenciações
por falar em ‘bases’, em ‘bases gerais’, ou em ‘regime geral’ das matérias»
(Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, II, Coimbra,
2006, págs. 516‑517).
Ora, no domínio em análise, considerando que tanto a alínea m) do artigo
164.º, como a alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º, consagram matérias em que o
alcance da reserva de competência da Assembleia da República não é expressamente
encurtado por qualquer referência a «bases», «bases gerais» ou «regime geral»,
não se vê qualquer outra razão para excluir do estatuto legal dos órgãos de
soberania ou dos órgãos constitucionais abrangidos tudo aquilo que diz respeito
ao respectivo estatuto protocolar.
Mais ainda, «a reserva de competência é tanto para a feitura de normas
legislativas como para a sua entrada em vigor, interpretação, modificação,
suspensão ou revogação (…). E é tanto para a feitura de novas normas quanto para
a decretação, em novas leis, de normas preexistentes» (Idem, pág. 518). Por
isso, não serve de argumento contra a invasão das matérias «reservadas aos
órgãos de soberania» (parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º)
dizer‑se que as soluções contidas nas normas em apreciação do Regime das
Precedências Protocolares e do Luto Regional são em parte semelhantes às
adoptadas pela Lei das Precedências do Protocolo do Estado Português. Não só
isso nem sempre acontece – uma vez que aquele Regime promove alterações muito
significativas de posições protocolares em clara derrogação a esta Lei,
sobretudo no que toca aos membros do Governo Regional (que sobem da posição 32
para as posições 4 e 5) e aos Deputados à Assembleia Legislativa (que sobem da
posição 33 para a posição 11) –, como, em princípio, a questão da competência
para legislar num certo domínio é, nas relações entre o Estado e as Regiões
Autónomas e após o desaparecimento da subordinação às leis gerais da República,
independente das opções legislativas tomadas: ou se tem competência legislativa
numa dada matéria e se beneficia aí de liberdade de conformação quanto às
soluções a adoptar; ou não se possui tal competência, por esta estar reservada
ao Parlamento nacional, sendo então indiferente saber que soluções eram
pretendidas pelo legislador regional. Além disso, sublinhe‑se de novo, a
Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores nunca poderia estar
autorizada constitucionalmente a voltar a decretar, sob forma de lei regional,
um regime nacional preexistente e incluído na reserva de competência da
Assembleia da República.
5. Nem se diga que a argumentação expendida, sobretudo considerando o que
acima se disse quando à impossibilidade de continuar a invocar a alínea hh) do
artigo 8.º do Estatuto Político‑Administrativo, tem por efeito o total
afastamento da Assembleia Legislativa da definição do regime jurídico das
precedências protocolares nas Regiões Autónomas ou, na melhor das hipóteses, a
redução do protocolo regional a algo sem especial interesse prático, uma vez que
da disciplina a gizar teriam que ser excluídos todos os órgãos não pertencentes
à própria pessoa colectiva pública Região Autónoma.
A objecção improcede em absoluto, e não apenas por apenas valer para o período
que decorre até à alteração dos Estatutos Político‑Administrativos prevista na
alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º. Ela improcede porque a participação activa
das Assembleias Legislativas na definição do regime das precedências
protocolares aplicável nas Regiões Autónomas não tem necessariamente de se
fazer mediante a aprovação de um decreto legislativo regional, podendo antes
efectuar‑se por via do poder de iniciativa legislativa e do poder de
participação nas decisões dos órgãos de soberania que digam respeito às
Regiões.
Assim, no que toca ao poder de iniciativa legislativa, há que destacar desde
logo a reserva de iniciativa das Assembleias Legislativas na alteração dos
respectivos Estatutos Político‑Administrativos (n.ºs 1 e 4 do artigo 226.º e
alínea e) do n.º 1 do artigo 227.º). Aliás, considerando que, de acordo com o
n.º 7 do artigo 231.º, «o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio
das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos
político‑administrativos», afigura‑se ser esta a sede mais adequada para o
tratamento da matéria das precedências protocolares – pelo menos nos seus traços
fundamentais –, com a inegável vantagem de, sendo os Estatutos leis
parlamentares, não estarem obrigados a cingir o protocolo regional aos titulares
dos órgãos da própria Região, podendo fazer o entrosamento entre estes e os
titulares de órgãos de outras entidades públicas, desde logo o Estado e as
Autarquias Locais.
Ainda no que refere ao poder de iniciativa legislativa, note‑se que nada impede
também que as Assembleias Legislativas apresentem à Assembleia da República,
nos termos do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º, uma
proposta de lei destinada a alterar ou a complementar o disposto na Lei n.º
40/2006, de 25 de Agosto, que versa sobre as precedências do protocolo do Estado
português, mas que dedica em exclusivo às Regiões Autónomas os seus artigos 17.º
e 25.º a 30.º.
Por sua vez, o direito das Regiões Autónomas a pronunciarem‑se, «por sua
iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da
competência destes que lhes digam respeito», previsto na alínea v) do n.º 1 do
artigo 227.º e no n.º 2 do artigo 229.º – direito que, presume‑se, terá sido
exercido durante o processo de elaboração da Lei n.º 40/2006, de 25 de Agosto –
impede também que as mesmas sejam em absoluto afastadas da definição legislativa
do regime de precedências protocolares aplicável nas cerimónias regionais.
Efectivamente, apesar de os pareceres das Regiões Autónomas – cuja emissão cabe
precisamente às Assembleias Legislativas (artigo 79.º do Estatuto dos Açores e
artigo 90.º do Estatuto da Madeira) – não assumirem, para a Assembleia da
República, natureza vinculativa, a correcta compreensão deste instituto
constitucional vincula esta última a um dever de adequada ponderação da opinião
e dos fundamentos expressos por aqueles órgãos de governo próprio.
6. A conclusão alcançada quando à incompetência da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma dos Açores para emanar um regime de precedências protocolares
que afecte titulares de outros órgãos que não os da própria Região – maxime,
órgãos do Estado – nada tem de original no Direito Comparado.
Basta para tanto verificar, na impossibilidade de alargar a investigação, o que
sucede no Estado Autonómico espanhol, em que «para todos os efeitos, a ordenação
de autoridades em actos convocados pelas comunidades autónomas deve respeitar o
Real Decreto 2099/1983, sobre Ordenação Geral de Precedências no Estado» e em
que «as comunidades autónomas têm competências para elaborar as suas próprias
normas internas sobre as precedências oficiais, sempre e quando não se regule ou
modifique o disposto para as autoridades que não correspondem à comunidade»
(Carlos Fuente Lafuente, Protocolo oficial – Las instituciones españolas del
Estado y su ceremonial, 3.ª ed., Madrid, 2006, págs. 435‑436).
Este entendimento tem, aliás, origem jurisprudencial, uma vez que terá sido a
Sentença do Tribunal Constitucional n.º 38/1982 (cfr. BOE, n.º 169), depois
confirmada pela Sentença do Tribunal Constitucional n.º 12/1985 (cfr. BOE, n.º
55), que fixou a competência do Estado para estabelecer as regras de precedência
protocolar entres as entidades oficiais do Estado e as entidades oficiais das
comunidades autónomas.
De facto, num processo constitucional destinada a resolver um conflito positivo
de competências entre o Estado e a Comunidade Autónoma da Catalunha, em que esta
havia emanado um decreto fixando a posição protocolar relativa do Presidente do
Tribunal Superior de Justiça nos actos oficiais organizados pela referida
Comunidade, os juízes constitucionais concluíram o seguinte: as disposições em
causa do Estatuto da Catalunha não permitem aceitar a assumpção por esta de
qualquer competência neste domínio, «pois o objecto do conflito não é determinar
se a Generalidade pode fixar a precedência entre os seus órgãos e autoridades,
mas se pode estabelecer a precedência relativa entre estes e os do Estado. A
conclusão inicial, portanto, há‑de ser a de que esta competência, com carácter
geral, corresponde ao Estado. Solução que é lógica, pois concebe também o Estado
na Constituição como uma instituição complexa, na qual tomam parte as
Comunidades Autónomas, resultando necessário convir que a regulação da
precedência das autoridades e órgãos de distinta ordem nos actos oficiais há‑de
corresponder aos órgãos gerais e centrais do Estado». Em consequência, o
Tribunal Constitucional espanhol declarou a nulidade da «inclusão do Tribunal
Superior de Justiça e do seu Presidente» nos artigos do decreto em causa e
sublinhou, relativamente a outros preceitos do mesmo decreto que se limitavam a
«reflectir a ordenação do Estado actualmente vigente», que «constitui uma
técnica legislativa incorrecta a de incluir em disposições a transcrição de
preceitos da Constituição e das Leis, quando a competência para os ditar não
corresponde ao autor da disposição». Na realidade, esta técnica «introduz um
factor de insegurança no ordenamento e de possível confusão acerca do que está
vigente em cada momento, ficando tais disposições afectadas em caso de
alteração da lei, e ao poder‑se introduzir modificações inadvertidas quando a
transcrição não é absolutamente literal ou se retira o transcrito do seu
contexto».
Por sua vez, a Sentença do Tribunal Constitucional n.º 12/1985, tirada também em
processo de conflito positivo de competências, em que duas Comunidades
Autónomas questionam a competência estadual para emanar o já referido Real
Decreto 2099/1983, sobre Ordenação Geral de Precedências no Estado, vem
confirmar a jurisprudência anterior, sublinhando a titularidade estatal da
competência controvertida para estabelecer as precedências protocolares em
cerimónias em que concorram simultaneamente autoridades regionais e estaduais,
sem prejuízo da competência autonómica para «ordenar as suas próprias
autoridades e órgãos em actos por elas organizados».
3.2. Relativamente à questão da inconstitucionalidade
material das normas do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do diploma em causa – “porquanto
quebram o princípio constitucional da congruência entre a posição protocolar
dos titulares de certos órgãos com assento na Constituição e a posição que estes
ocupam dentro da estrutura institucional ou do sistema de governo em que se
inserem”, atendendo a que “a definição legislativa das precedências
protocolares não é, sobretudo quando se trata de órgãos que são objecto de
regulação directa pela Lei Fundamental, um domínio em que o legislador possa
actuar com absoluta liberdade de conformação, estando antes sujeito a algumas
vinculações constitucionais – vinculações essas que, segundo se entende, não
foram tidas na devida conta em algumas das soluções gizadas pelo Decreto n.º
8/2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores” –, expende o
requerente:
“IV – 1. Como acima se anunciou, além da inconstitucionalidade orgânica das
disposições normativas sob apreciação, há ainda a considerar a questão da
inconstitucionalidade material dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do Decreto n.º
8/2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores: o primeiro
número, por omitir entre o Presidente da Assembleia da República e o
Representante da República a menção do Primeiro‑Ministro, conferindo assim ao
Presidente do Governo Regional – senão mesmo também ao Representante da
República e ao Presidente da Assembleia Legislativa – precedência protocolar
nas cerimónias oficiais realizadas na Região relativamente à terceira figura do
Estado português; o segundo número, por conceder ao Presidente do Governo
Regional, nas cerimónias organizadas pelo Governo Regional, precedência
relativamente ao Representante da República e ao Presidente da Assembleia
Legislativa.
Efectivamente, definindo a Constituição o estatuto de todos os órgãos
acabados de referir e situando‑os com clareza na estrutura institucional do
Estado, por um lado, e no sistema de governo regional, por outro, não parece que
a definição legislativa das respectivas posições protocolares possa resultar de
uma decisão inteiramente livre do legislador ordinário. Na verdade, parece ser
possível encontrar na Lei Fundamental um conjunto de parâmetros que permitem
falar de um princípio de congruência entre a posição protocolar dos órgãos e o
respectivo estatuto constitucional – estatuto este que, antes de mais, tem na
ordem de tratamento destes órgãos ao longo do articulado constitucional o seu
reflexo mais imediato e evidente.
2. Deste modo, independentemente do alcance e dos limites do mencionado
princípio de congruência, não se afigura constitucionalmente aceitável que o
Primeiro‑Ministro – a quem compete dirigir «o órgão de condução geral do país e
o órgão superior da Administração Pública» e que é «nomeado pelo Presidente da
República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo
em conta os resultados eleitorais» (artigo 182.º, n.º 1 do artigo 187.º e n.º 1
do artigo 201.º) – possa, em qualquer parte do território nacional, perder a
posição protocolar que lhe é devida, enquanto membro de um órgão de soberania e
terceira figura do Estado.
A simples circunstância de o Primeiro‑Ministro se encontrar num evento oficial
realizado nos Açores não pode, considerando a natureza unitária do Estado
(artigo 6.º e n.ºs 2 e 3 do artigo 225.º), colocá‑lo numa posição inferior à do
Presidente do Governo Regional – assim como, embora a interpretação do referido
n.º 1 do artigo 10.º não seja absolutamente líquida, numa posição inferior à do
Representante da República e do Presidente da Assembleia Legislativa da Região.
Numa palavra, viola pois o princípio constitucional da congruência acima
configurado que o Primeiro‑Ministro seja a terceira figura da hierarquia do
Estado e que, na Região Autónoma dos Açores, venha a ocupar a quarta posição na
lista de precedências do protocolo regional, atrás do Representante da
República, do Presidente da Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo
Regional – ou ocupe mesmo a sexta posição, se estiverem presentes o Presidente
da República e o Presidente da Assembleia da República.
3. Por sua vez, no que respeita ao n.º 2 do artigo 10.º do Regime das
Precedências Protocolares e do Luto Regional, cumpre referir que a regra
segundo a qual «as cerimónias oficiais são presididas pela entidade que as
organiza» – regra constante tanto do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 40/2006, de
25 de Agosto, como do artigo 6.º do Decreto n.º 8/2007 em apreciação – só pode
valer na medida em que não decorra claramente da Constituição uma ordenação
hierárquica diferente aplicável aos órgãos em questão.
Assim, o Primeiro‑Ministro não assume a primeira precedência, relativamente ao
Presidente da República e ao Presidente da Assembleia da República, pelo facto
de a cerimónia ser organizada pelo Governo da República (n.º 1 do artigo 12.º da
Lei n.º 40/2006, de 25 de Agosto). A Constituição é clara: o Primeiro‑Ministro é
nomeado pelo Presidente da República (n.º 1 do artigo 187.º) e é politicamente
responsável perante este e perante a Assembleia da República (artigo 190.º).
Conceder‑lhe a presidência de uma cerimónia oficial, estando presentes o
Presidente da República e ou o Presidente da Assembleia da República, seria
subverter a ordem constitucionalmente estabelecida entre estes três órgãos,
sendo indiferente saber se é ou não o Governo o organizador da cerimónia.
Pela mesma ordem de razões, também o Presidente do Governo Regional não pode
assumir a presidência de cerimónias oficiais realizadas nos Açores, organizadas
ou não pelo Governo Regional, sempre que estiverem presentes o Representante da
República e ou o Presidente da Assembleia Legislativa da Região. De facto,
também aqui a Constituição é clara: além da precedência conferida ao
Representante da República relativamente aos órgãos de governo próprio da
Região – resultante da nomeação daquele por acto do Presidente da República e
traduzida na ordem dos preceitos constitucionais que versam sobre os órgãos em
apreço (artigos 230.º e 231.º) –, o Presidente do Governo Regional é nomeado e
exonerado pelo Representante da República, tomando posse, juntamente com os
restantes membros do Governo Regional, perante a Assembleia Legislativa (n.ºs 3
e 5 do artigo 231.º); além disso, sendo o Presidente do Governo Regional nomeado
em função dos resultados eleitorais para a Assembleia Legislativa, uma vez em
funções, é perante ela politicamente responsável em conjunto com os restantes
membros do seu Executivo – podendo, aliás, a sua demissão ser provocada pela
Assembleia Legislativa, através dos mecanismos estatutários da apreciação do
programa do governo, do voto de confiança e da moção de censura (artigos 50.º,
51.º e 52.º do Estatuto Político‑Administrativo).
Nesta consonância, a regra segundo a qual as cerimónias oficiais são presididas
pela entidade que as organiza, assumindo natureza supletiva e residual, não
permite que em todas as cerimónias organizadas pelo Governo Regional o
respectivo Presidente tenha a primeira precedência, suplantando o Representante
da República e o Presidente da Assembleia Legislativa e postergando com isso a
posição que estes dois órgãos ocupam no sistema de governo regional gizado pela
Constituição.”
4. Resposta do autor da norma.
Notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da
LTC, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
apresentou resposta na qual comunica que esta Assembleia “subscreve
integralmente para todos os efeitos” a motivação e as conclusões de parecer
jurídico anexo, cujo conteúdo foi sintetizado nas seguintes conclusões:
“1.ª – A determinação constitucional de que a competência legislativa da
Assembleia Legislativa da RA é circunscrita ao «âmbito regional» [artigo 227.º,
n.º 1, alínea a)] tem como conteúdo útil consagrar a eficácia estritamente
territorial – por oposição a pessoal – do direito regional, pelo que a negação
da interpretação do Representante da República não o torna um truísmo.
2.ª – A leitura de semelhante requisito como corporizando um novo limite
positivo à competência legislativa autonómica não é compatível com o sentido da
revisão constitucional de 2004, devendo por isso significar produzir direito com
validade e eficácia circunscritas às regiões – o que o decreto em apreciação
respeita inteiramente.
3.ª – Por outro lado, quando restrita a cerimónias regionais a terem lugar na
própria região (como no caso vertente), a interferência da legislação regional
com os órgãos de soberania não é, a se, problemática, mas apenas o conteúdo e a
intensidade dessa mesma regulamentação, pelo que não se trata de um problema
competencial ou de (in)constitucionalidade orgânica, mas sim de substância (o
que transforma a questão num problema de constitucionalidade material).
4.ª – A isto acresce que a ideia de que a noção de «âmbito regional» não tem
apenas um sentido geográfico, mas também institucional, tem consequências
absolutamente inaceitáveis, pois impede a RAA de exercer competências
constitucionais relativamente à Administração autónoma territorial e
institucional aí sedeada [artigo 227.º, n.º 1, alíneas l), m) e o), da
Constituição].
5.ª – O Decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º
8/2007 encontra‑se validamente fundado na alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto
Po1ítico‑Administrativo dos Açores, preceito apto a constituir norma habilitante
para o exercício do poder legislativo regional.
6.ª – Ao definir o âmbito material da competência legislativa regional durante o
período transitório até à revisão do Estatuto Político‑Administrativo dos
Açores, o artigo 46.º da Lei Constitucional n.º 1/2004 não pode ser aplicado
como contendo uma remissão meramente parcial para o artigo 8.º desse Estatuto,
que afaste a vigência da sua alínea hh).
7.ª – Tal interpretação, não só [não] tem qualquer correspondência no texto da
disposição transitória, como significaria antecipar uma decisão quanto à
eliminação do critério de interesse específico como parâmetro aferidor da
competência legislativa regional, que só pode ser tomada pelos intérpretes
constitucionais com intervenção nos procedimentos de revisão das leis
estatutárias.
8.ª – A matéria da hierarquia e do relacionamento protocolar entre as altas
entidades públicas nas cerimónias oficiais realizadas na Região Autónoma dos
Açores, sobre a qual incide o Decreto Legislativo Regional n.º 8/2007,
reveste-se de interesse específico, pois a existência de órgãos de governo
próprio, com um âmbito de intervenção limitado ao seu espaço territorial,
constitui uma particularidade da Região Autónoma, de carácter
orgânico‑funcional, que o regime protocolar dos actos oficiais aí realizados tem
de traduzir, possibilitando a representação externa da singular estrutura
governativa existente.
9.ª – A existência de uma especificidade regional justificativa de um
tratamento diferenciado das questões protocolares nas cerimónias realizadas nas
regiões é evidenciada, de forma clara, pelo facto de a Lei n.º 40/2006, de 25 de
Agosto, que estabelece as precedências do Protocolo do Estado Português, conter
uma secção especial respeitante exclusivamente às Regiões Autónomas, a qual
define uma diferente hierarquização das altas entidades públicas para os actos
protocolares a realizar nas Regiões, relativamente àqueles que se celebram no
Continente.
10.ª – A tensão internormativa existente entre o Decreto Legislativo Regional
n.º 8/2007, que regula uma área do interesse especifico da região, e esta Lei
n.º 40/2006, que, em espaço virtualmente concorrente, dispõe sobre o mesmo
assunto, tem de ser resolvida ao abrigo do princípio da supletividade do direito
estadual, consagrado no n.º 2 do artigo 228.º da Constituição, do qual resulta
a desaplicação da normação estadual emitida em domínio de competência
legislativa regional e a sua substituição pelo regime constante do diploma
autonómico, no espaço territorial regional.
11.ª – O Decreto Legislativo Regional n.º 8/2007 também não padece de
inconstitucionalidade orgânica por invadir o domínio de competência legislativa
absoluta da Assembleia da República, conferido pelo artigo 164.º, alínea m), da
Constituição («estatuto dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos
restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal»).
12.ª – Desde logo, porque a posição protocolar que um determinado titular de
órgão de soberania ocupa numa cerimónia oficial não se enquadra em nenhuma das
situações jurídicas activas em que se subjectiva o estatuto inerente a esse
cargo, não constituindo um direito, regalia ou imunidade daquele titular.
13.ª – Acresce que o entendimento sufragado pelo Representante da República –
segundo o qual o estatuto de um órgão de soberania integra necessariamente a
posição protocolar –, conduziria a um alargamento excessivo do domínio
legislativo de reserva absoluta da Assembleia da República previsto na alínea m)
do artigo 164.º da Constituição, e, simultaneamente, a uma expansão excessiva do
conteúdo da reserva de estatuto, em face do n.º 7 do artigo 231.º (implicando,
desde logo, a inconstitucionalidade orgânica da Lei n.º 40/2006).
14.ª – Na verdade, à luz do critério da essencialidade como instrumento de
delimitação da reserva material de lei, verifica‑se que a matéria do
relacionamento protocolar entre entidades públicas não apresenta uma relevância
jusfundamental, que, pela sua essencialidade para o interesse comunitário,
possa justificar a obrigatoriedade da intervenção do legislador parlamentar.
15.ª – O regime protocolar contém meras regras práticas ou de correcção
constitucional, a observar entre os órgãos políticos ou entre os elementos que
compõem esses órgãos, os quais não convocam a necessidade de uma legitimação
democrática, participação, debate pluralista e transparência que só o processo
legislativo parlamentar pode propiciar.
16.ª – Quanto à alegada inconstitucionalidade material do artigo 10.º, n.º 2, do
Decreto em análise pela atribuição, ao Presidente do Governo Regional, de
precedência relativamente ao Representante da República e ao Presidente da
Assembleia Legislativa, a mesma é desprovida de fundamento.
17.ª – Na verdade, o artigo 10.º, n.º 1, da Lei do Protocolo do Estado
Português determina que, «na Assembleia da República, o respectivo Presidente
preside sempre, mesmo que esteja presente o Presidente da República», o que
legitima uma analogia em relação à situação sub judice.
18.ª – A referida analogia não é infirmada pelo facto de o Representante da
República representar o Estado e, por isso, dever ter uma precedência absoluta
e impostergável sobre os órgãos de governo próprio, visto que uma análise atenta
do respectivo estatuto constitucional evidencia claramente que a esse papel se
deverá acrescentar uma função de tutela da autonomia regional que, mitigando o
referido postulado, autoriza uma precedência ad actum, a ter lugar apenas quando
o mesmo se realize por organização do Governo Regional.
19.ª – Por fim, a inconstitucionalidade material do artigo 10, n.º 2, do
presente Decreto, derivada da omissão do Primeiro-Ministro entre o Presidente da
Assembleia da República e o Representante da República, conferindo assim
precedência protocolar ao Presidente do Governo Regional relativamente ao
primeiro, não se configura como a questão central que é colocada ao Tribunal
Constitucional.
20.º – Aliás, a omissão do Primeiro‑Ministro (de facto, de muita duvidosa
constitucionalidade) parece resultar de um lapso da Assembleia Legislativa,
consubstanciando uma lacuna que pode e deve ser suprida por via de uma
interpretação conforme à Constituição.
21.ª – Para tanto, por força do principio da supletividade do direito estadual,
deverá recorrer‑se ao artigo 12.º, n.º 1, da Lei do Protocolo do Estado
Português, passando a norma cuja constitucionalidade foi questionada a ter o
seguinte conteúdo: «O Presidente do Governo Regional preside às cerimónias
oficiais em que não estejam presentes o Presidente da República, o Presidente da
Assembleia da República, [o Primeiro‑Ministro], o Representante da República e
o Presidente da Assembleia Legislativa».”
5. Concluída a discussão do memorando elaborado nos termos
do artigo 58.º, n.º 2, da LTC e apurado o vencimento formado relativamente às
questões suscitadas, cumpre formular a decisão.
II – Fundamentação
6. As precedências protocolares, designadamente de altas
entidades públicas, em cerimónias oficiais, eram regidas por um conjunto de
normas consuetudinárias até que, na sequência de procedimento legislativo
desencadeado pela apresentação dos Projectos de Lei n.ºs 260/X (PS), 261/X (PSD)
e 279/X (CDS‑PP) (Diário da Assembleia da República (DAR), X Legislatura, 1.ª
Sessão Legislativa, II Série‑A, n.º 114, de 25 de Maio de 2006, pp. 24‑29 e
29‑37, e n.º 122, de 24 de Junho de 2006, pp. 44‑53, respectivamente), a Lei
n.º 40/2006, de 25 de Agosto (Lei das precedências do Protocolo do Estado
Português), procedeu à codificação legal da matéria.
Na origem dessas iniciativas esteve, por um lado, o
reconhecimento da conveniência da substituição de um modelo baseado em “opções
consuetudinárias ou casuísticas, de acesso restrito e que não garant[iam], por
isso, as necessárias transparência e segurança”, por um modelo integrado por um
conjunto globalmente articulado de regras públicas, oficiais, objectivas e
claras, que, por outro lado, dessem expressão aos valores políticos fundamentais
que norteiam o regime democrático. A relevância da matéria, justificadora da
intervenção do legislador parlamentar, radicava no reconhecimento de que as
regras de precedência protocolar representam “a projecção da representação
pública do Estado”, consagrando “a arquitectura constitucional vigente”
(Exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 260/X), pelo que “devem exprimir a
própria natureza do Estado democrático” e “têm de decorrer da própria estrutura
constitucional do Estado” (Exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 261/X).
Essa relevância mostra‑se actualmente acrescida “dada a exposição mediática que
difunde a organização simbólica dos actos cerimoniais do Estado para a
sociedade portuguesa” (Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais,
Direitos, Liberdades e Garantias, DAR cit., II Série‑A, n.º 123, de 29 de Junho
de 2006, pp. 13‑17).
No decurso deste processo legislativo foram ouvidos os
órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, que efectivamente nele
participaram, através da emissão de pareceres do Governo Regional da Madeira, da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e do Governo Regional dos
Açores (DAR citado, II Série‑A, n.º 122, de 24 de Junho de 2006, pp. 19 e 19‑23,
e n.º 128, de 15 de Julho de 2006, pp. 26‑27, respectivamente).
A Lei n.º 40/2006 explicitamente visa aplicar‑se “em todo
o território nacional” (artigo 2.º), surgindo os titulares de órgãos regionais
hierarquizados na lista de precedências do artigo 7.º (cf. n.ºs 14, 15, 32 e
33), e sendo reguladas especificamente as precedências em cerimónias a realizar
nas Regiões Autónomas (artigos 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, n.º 2, 29.º e 30.º) ou
nos municípios nas Regiões Autónomas (artigos 31.º, n.ºs 2, segunda parte, e 4,
e 32.º, n.º 2, segunda parte) e respectivas freguesias (artigo 33.º) e o lugar
protocolar dos embaixadores estrangeiros acreditados em Lisboa quando em visita
oficial às Regiões Autónomas (artigo 36.º, n.º 2).
Foi, assim, num quadro de preexistência de legislação
nacional sobre a matéria em causa – legislação essa que, como se viu,
explicitamente se destinava a vigorar em todo o território nacional e que
conferiu tratamento particular às cerimónias a realizar nas Regiões Autónomas –,
que surgiu a iniciativa legislativa regional que originou a formulação do
presente pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, iniciativa
essa que, como já se referiu (supra, n.º 2), invoca, como justificação para o
estabelecimento de um regime específico na Região Autónoma dos Açores, “a
particular configuração que as regras de precedências protocolares assumem no
quadro da autonomia política”.
No entanto, como o próprio requerente sublinha, não está
em causa, no presente processo de fiscalização da constitucionalidade, a
apreciação da bondade ou correcção intrínseca das soluções concretas adoptadas
pelo legislador regional açoriano nem a questão da harmonia ou contraste entre
essas soluções e as prescritas na Lei n.º 40/2006.
Do que se trata, antes de mais, é de apurar se a
projectada intervenção legislativa respeita os limites da autonomia legislativa
regional constitucionalmente estabelecidos e só se se responder afirmativamente
a tal questão (isto é, só se se vier a entender que a Assembleia Legislativa da
Região Autónoma dos Açores pode legislar sobre a matéria em causa com a extensão
com que o fez) é que se justificará enfrentar a questão da inconstitucionalidade
material das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do Decreto n.º 8/2007.
7. A competência legislativa primária das Regiões
Autónomas antes da revisão constitucional de 2004 [não nos ocupando, por
irrelevante para o presente processo, das competências legislativas derivada ou
autorizada (mediante autorização da Assembleia da República) e complementar (de
leis de bases), consagradas na revisão constitucional de 1989 – artigo 229.º,
n.º 1, alíneas b) e c))] era delimitada, para além da óbvia sujeição ao
respeito pela Constituição, por um requisito positivo – (i) versar sobre
matérias de interesse específico para as regiões –; e por dois requisitos
negativos – (ii) não versar sobre matérias reservadas à competência própria dos
órgãos de soberania; e (iii) não desrespeitar as leis gerais da República ou, a
partir da revisão constitucional de 1997, os princípios fundamentais das leis
gerais da República.
Não seguiu, assim, o legislador constituinte português a
“técnica da enumeração material tipificadora, que tende a repartir
horizontalmente os poderes próprios do Estado e das regiões através da
enumeração de listas de matérias atribuídas à competência estadual ou regional”,
à semelhança da Itália ou da Espanha, mas antes “o método da cláusula geral
valorativa”, submetendo a competência legislativa regional à observância
cumulativa de dois limites de competência e de um limite de substância ou de
matéria: o primeiro limite de competência, de ordem positiva, exprimia‑se
através de uma cláusula geral (matérias de interesse específico das regiões); o
segundo limite de competência, de ordem negativa, exprimia‑se através de um
conceito indeterminado (matérias que não estejam reservadas à competência
própria dos órgãos de soberania); o último limite, não já de competência, mas de
substância, circunscrevia o espaço de liberdade de actuação conformadora dos
órgãos legislativos regionais ao respeito das leis gerais da República (cf.
Maria Lúcia Amaral, “Questões regionais e jurisprudência constitucional: para o
estudo de uma actividade conformadora do Tribunal Constitucional”, Estudos em
Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, 1995, pp. 509‑547, em
especial pp. 523‑543; republicado em Jorge Miranda e Jorge Pereira da Silva
(org.), Estudos de Direito Regional, Lisboa, 1997, pp. 261‑296, em especial pp.
272‑275).
A indeterminabilidade e generalidade dos conceitos
utilizados explica que, na vigência deste quadro constitucional, tenha assumido
especial relevância a actividade densificadora e concretizadora dos mesmos
levada a cabo pelo Tribunal Constitucional, que foi diversas chamado a
pronunciar‑se sobre o sentido e extensão dos referidos três requisitos, emitindo
jurisprudência cujos traços essenciais interessará sinteticamente recordar.
7.1. Quanto ao requisito do interesse específico – tido
como “o cerne da autonomia legislativa” regional, já que é “porque há matérias
de interesse específico de cada uma das Regiões Autónomas, as quais, na
perspectiva democrática e descentralizadora da Constituição (…), devem ser
objecto de normas dimanadas dos seus órgãos, que essa autonomia adquire
sentido” (Jorge Miranda, “A autonomia legislativa regional e o interesse
específico das Regiões Autónomas”, em Estudos sobre a Constituição, vol. I,
Lisboa, 1977, pp. 307‑316, republicado em Estudos de Direito Regional, cit., pp.
11‑18) –, a jurisprudência do Tribunal Constitucional sempre adoptou, como
critério de orientação interpretativa, o de que se deviam considerar de
interesse específico para as regiões “aquelas matérias que lhes respeitem
exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento por aí assumirem
particular configuração” (Acórdão n.º 42/85, formulação retomada, entre outros,
nos Acórdãos n.ºs 57/85, 130/85, 164/86, 333/86, 152/87, 337/87, 91/88, 257/88,
403/89, 139/90, 141/90 e 215/90).
A Constituição não enunciava originariamente as matérias
de interesse específico, tendo as primeiras enumerações dessas matérias surgido
nos Estatutos Político‑Administrativos definitivos das Regiões Autónomas. No
que respeita ao EPARAA, a sua primeira versão, constante da Lei n.º 39/80, de 5
de Agosto, inseria no artigo 27.º uma enumeração das matérias consideradas de
interesse específico para a Região, enumeração meramente exemplificativa (como
resultava do uso do advérbio “designadamente”), mas sem qualquer “cláusula
geral”, situação que se manteve na primeira revisão (Lei n.º 9/87, de 26 de
Março). Idêntico método (enumeração exemplificativa, sem “cláusula geral”) foi
seguido no Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma da Madeira
(EPARAM), aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho (artigo 30.º).
Na revisão constitucional de 1997, com o aditamento do
artigo 228.º, a Constituição passou a inserir, ela própria, uma lista de
“matérias de interesse específico das regiões autónomas”, designadamente para
efeitos do n.º 4 do artigo 112.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, lista
essa que, além de não taxativa, terminava com uma “cláusula geral”: “outras
matérias que respeitem exclusivamente à respectiva região ou que nela assumam
particular configuração” (alínea o)). Esta técnica legislativa de acoplar uma
cláusula geral a uma enumeração exemplificativa foi criticada por Jorge Miranda
(Manual de Direito Constitucional, tomo V, 2.ª edição, Coimbra, 2000, p. 400,
nota 2); na verdade, após se enumerarem diversas matérias ao longo de 13
alíneas e de inserir uma “cláusula geral” com a abrangência da consagrada na
alínea o), não se vislumbra que outras matérias de interesse específico ainda
poderiam surgir, que justificassem a atribuição de natureza meramente
exemplificativa àquele elenco. Por outro lado, a inclusão deste conceito
material de interesse específico suscitou a “perplexidade” (Maria Benedita
Urbano, Poder legislativo regional: os difíceis contornos da autonomía política
das rexións. O caso portugués, Separata de Dereito – Revista Xurídica da
Universidade de Santiago de Compostela, vol. 15, n.º 1, 2006, pp. 69‑99, em
especial p. 95) derivada do facto de “estes critérios que, antes da Revisão de
1997, serviram de instrumentos hermenêuticos freadores da expansividade do
interesse específico regional, transmuta[re]m‑se em critérios ampliadores da
reserva constitucional de interesse específico” (J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, pp.
809‑810).
Na sequência desta revisão constitucional, a segunda
alteração ao EPARAA, operada pela Lei n.º 61/98, de 27 de Agosto, veio dedicar
o artigo 8.º à enumeração das “matérias de interesse específico”, nomeadamente
“para efeitos de definição dos poderes legislativos (…) da Região”, através de
lista taxativa (atenta a não reprodução do advérbio “designadamente”, constante
das duas versões anteriores), mas inserindo, na última alínea (alínea hh)), uma
“cláusula geral”, de formulação decalcada na alínea o) do artigo 228.º da CRP
(versão de 1997): “outras matérias que respeitem exclusivamente à Região ou que
nela assumam particular configuração”. Idêntica “cláusula geral” consta do
artigo 40.º do EPARAM aprovado pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, mas
inserida em enumeração que continua a apresentar‑se como não taxativa.
No entanto, o Tribunal Constitucional sempre entendeu que
a mera inserção de determinada matéria nessas listas não bastava para, por si
só, dar por verificado o apontado requisito, sendo sempre necessário o
apuramento concreto, no caso, da ocorrência dessa especificidade da situação, a
exigir regulação legal diferenciada.
Como se referiu no Acórdão n.º 220/92:
“O que deva entender‑se por interesse específico regional merece‑nos
particular atenção mas não é de resposta fácil nem pacífica (…).
A Constituição furtou‑se à sua conceituação ou a tipificar situações,
optando por uma formulação vazia, a densificar a partir da ratio do regime
político‑administrativo por ela própria criado para as Regiões Autónomas e
consubstanciada de certo modo no artigo 227.º.
Assim, respeitando o valor intangível da integridade de soberania do
Estado, a natureza unitária deste (cf. o artigo 6.º da CRP) e o quadro
constitucional global, o interesse específico habilitador da produção
legislativa regional passa não só pela singularidade da matéria em causa,
indiciadora de uma exclusividade específica da Região, como o instituto da
colonia da Madeira, mas também pela existência nessa Região, com especial
intensidade, de uma especificidade que justifique o seu tratamento em termos
distintos dos aplicáveis ao restante território nacional (…).
Recorre‑se, por conseguinte, a um critério valorativo que não se basta com
uma enumeração das situações, por extensa que seja, contida no respectivo
Estatuto Político‑Administrativo, nem significa que a sua concretização no
elenco seja, casuisticamente, determinante.
Na verdade, constitui jurisprudência deste Tribunal não poder uma dada
medida legislativa regional considerar‑se constitucionalmente credenciada tão‑só
pelo facto de versar sobre matéria que o respectivo Estatuto considere como
sendo de interesse específico para a Região, pois é, ainda, necessário que essa
matéria lhe respeite exclusivamente ou que nela exija tratamento especial por aí
assumir particular configuração (cf., por todos, os já citados Acórdãos n.ºs
164/86 e 326/86).”
Nesse Acórdão n.º 220/92, o Tribunal Constitucional
pronunciou‑se pela inconstitucionalidade, por violação da alínea a) do n.º 1 do
então artigo 229.º (correspondente ao actual artigo 227.º) da CRP, de normas
constantes de decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira,
subordinado ao título “Competências no Âmbito do Ensino Superior», por, apesar
de a alínea o) do artigo 30.º do EPARAM incluir entre as matérias de interesse
específico para a Região as relativas ao “ensino superior”, não se poder
pretender que verse sobre interesse específico “matéria que, pelo seu interesse
nacional, os órgãos de soberania da República com competência legislativa
reservam para si ou para uma decisão conjunta com os órgãos regionais”, como no
caso concreto ocorria.
O entendimento de que “uma medida legislativa não pode
haver‑se como detentora de credencial constitucional bastante tão‑só pelo facto
de versar matéria que o respectivo Estatuto considera como sendo de interesse
específico para a Região”, sendo “necessário ainda – e sempre – que esta
matéria respeite exclusivamente a essa Região ou que nela exija um tratamento
especial, por aí assumir especial configuração” foi reafirmado, entre outros,
nos Acórdãos n.ºs 235/94 e 583/96.
O Acórdão n.º 408/98, após reproduzir as passagens do
Acórdão n.º 220/92, aditou:
“Assim, de acordo com esta jurisprudência, a iniciativa legislativa
regional tomada ao abrigo da alínea a) do artigo 229.º, ou agora ao abrigo da
mesma alínea do n.º 1 do artigo 227.º, porque não há que diferenciar neste
contexto, maxime em termos de parâmetros de apreciação da constitucionalidade,
deve versar matéria de interesse específico para a Região, sendo certo que este
interesse tem de ser sempre apreciado em concreto. Mesmo o facto de a matéria
estar indicada no respectivo Estatuto da Região como matéria de interesse
específico não implica que, desde logo, se tenha de concluir que se está perante
matéria de interesse específico da Região. Tal inclusão deve entender‑se como
simples presunção abstracta ilidível, caso a caso, pela demonstração da
inexistência de um interesse específico (cf. Acórdão n.º 235/94, in Diário da
República, I Série‑A, de 2 de Maio de 1994).”
Nesta orientação se insere, por último, o Acórdão n.º
246/2005, que, considerada a relativa irrelevância de o EPARAM incluir, no seu
artigo 40.º, a saúde e a segurança social entre as matérias de interesse
específico regional, reputando antes como decisiva a verificação, em concreto,
de situação que respeitasse exclusivamente à Região ou exigisse tratamento
especial por aí assumir peculiar configuração, acabou por declarar a
inconstitucionalidade das normas regionais de responsabilização de familiares
por despesas de internamento em meio hospitalar, por se ter constatado que o
problema em causa não assumia na Região Autónoma da Madeira especial
configuração.
7.2. Quanto ao segundo requisito, ligado à reserva de
competência própria dos órgãos de soberania, desde cedo constituiu orientação do
Tribunal Constitucional a rejeição de uma interpretação restritiva ou literal,
que a confinasse ao elenco taxativo das competências constitucionalmente
reservadas, de forma explícita, à Assembleia da República e ao Governo, e a
adopção do entendimento de que “reservadas à competência própria dos órgãos de
soberania são não apenas as matérias que constituem a reserva de competência
legislativa da Assembleia da República (artigos 167.º e 168.º da Constituição) e
do Governo (artigo 202.º, n.º 1), mas também (…) todas aquelas que reclamem a
intervenção do legislador nacional, o que sucede quando se está perante assuntos
que interessam imediatamente à generalidade dos cidadãos” (Acórdão n.º 376/89).
Este entendimento foi afirmado, entre outros, nos Acórdãos
n.ºs 57/85, 130/85 (ambos relativos a normas regionais que permitiam a concessão
de licenças de trabalho a bordo independentemente do completamento da
escolaridade obrigatória, por se entender que o incentivo da escolaridade
obrigatória assumia dimensão nacional, apesar de se tratar de matéria não
inserida na reserva legislativa parlamentar), 164/86 (por entender que a matéria
do comércio externo, a que respeitava a norma regional questionada, que proibia
a exportação de peles de bovinos não curtidas, apesar de não fazer parte da
reserva de lei, assumia relevância nacional), 326/86, 267/87, 268/88, 212/92,
256/92, 348/93 (que considerou ser matéria “com relevo imediato para a
generalidade dos cidadãos” e, portanto, da competência dos órgãos de soberania,
a definição das condições de acesso aos cuidados de saúde), 235/94, 711/97 e
491/2004, escrevendo‑se no Acórdão n.º 711/97:
“6. A Constituição, ao indicar os limites dos poderes legislativos das regiões
autónomas, não fornece uma definição das matérias «reservadas à competência
própria dos órgãos de soberania» [artigo 227.º, n.º 1, alínea a)] ou das
matérias «reservadas à Assembleia da República ou ao Governo» (artigo 112.º,
n.º 4). Uma tal definição encontra‑se, no entanto, na jurisprudência do
Tribunal Constitucional, a qual continua válida em face do texto da
Constituição emergente da Revisão Constitucional de 1997.
Segundo a jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal, matérias
reservadas à competência própria dos órgãos de soberania e, como tais, vedadas
ao poder legislativo regional, são, desde logo, as que integram a competência
legislativa própria da Assembleia da República, enumeradas nos artigos 161.º,
164.º (reserva absoluta) e 165.º (reserva relativa) da Constituição, bem como a
que é da exclusiva competência legislativa do Governo, ou seja, a matéria
respeitante à sua própria organização e funcionamento (artigo 198.º, n.º 2).
Mas, como tem sublinhado o Tribunal Constitucional, embora com vozes
discordantes, as matérias reservadas à competência própria dos órgãos de
soberania não se circunscrevem às que constituem a reserva de competência
legislativa da Assembleia da República e do Governo. A tal competência acham‑se
também «reservadas todas as matérias que reclamem a intervenção do legislador
nacional». Com efeito, «o carácter unitário do Estado e os laços de
solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a legislação sobre
matéria com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida
pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), devendo ser
estes a introduzir as especialidades ou derrogações que se mostrem
necessárias, designadamente por, no caso, concorrerem interesses insularmente
localizados». Os referidos princípios da unidade do Estado e da solidariedade
entre todos os portugueses reclamam, assim, a intervenção do legislador nacional
nas matérias que se apresentam com relevo imediato para a generalidade dos
cidadãos ou que respeitam ou se repercutem nas diferentes parcelas do território
nacional [cf. os já citados Acórdãos n.ºs 91/84, 164/86, 326/86 e 212/92. Cf.,
ainda, Mário de Brito, Competência Legislativa das Regiões Autónomas, Separata
da Scientia Ivridica, n.ºs 247/249 (1994), pp. 20‑21, e Rui Medeiros/J. Pereira
da Silva, ob. cit., pp 114‑115].”
Tratava‑se, no fundo, de posição igualmente partilhada por
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, 3.ª
edição, Coimbra, 1993, p. 853), que defendem que esta “reserva da República” não
pode limitar‑se às matérias recortadas nos preceitos constitucionais que definem
a competência legislativa reservada da Assembleia da República e do Governo,
“devendo abranger por inerência outras matérias que, embora pertencendo à
competência concorrente da AR e do Governo, não podem, pela sus natureza
eminentemente nacional, ser reguladas senão por órgãos legislativos do Estado”,
indicando, entre outros exemplos, o estatuto e regime de utilização dos símbolos
nacionais.
Não se ignora que este entendimento, sempre seguido pelo
Tribunal Constitucional, mereceu algumas críticas da doutrina, as quais, porém,
mais do que questionar a razoabilidade do entendimento de que matérias que, pela
sua natureza, reclamavam a intervenção do legislador nacional não podiam ser
objecto de legislação regional, censuravam o “sincretismo de critérios” derivado
do cruzamento, na apontada fórmula jurisprudencial, de definições de “dois
limites distintos do poder legislativo regional: o limite de competência, que
decorre da necessária preservação da esfera de reserva de lei estadual, e o
limite de matéria ou substância, que decorre da necessária observância do
conteúdo das leis gerais da República” (cf. Maria Lúcia Amaral, “Questões
regionais e jurisprudência constitucional …”, cit., pp. 534‑543, e Estudos de
Direito Regional, cit., pp. 282‑292). Idêntica é a crítica de Pedro Machete
(“Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e
das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente”, Revista de Direito e
de Estudos Sociais, ano XXXIII, n.ºs 1‑2, Janeiro‑Junho 1991, pp. 169‑238, em
especial pp. 191‑201, republicado em Estudos de Direito Regional, cit., pp.
87‑163, em especial pp. 108‑115), que, considerando que “não pode deixar de
reconhecer‑se a existência de regulamentações necessariamente nacionais, não
previstas nas normas constitucionais atributivas de competências reservadas à
Assembleia da República e ao Governo”, o que censura é a propensão da aludida
orientação jurisprudencial “a fazer coincidir o critério das matérias reservadas
com o das leis gerais da República”. É similar o reparo feito, a este propósito,
por Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva (Estatuto Político‑Administrativo da
Região Autónoma dos Açores Anotado, Lisboa, 1997, pp. 111‑114, anotação XVI ao
artigo 32.º).
7.3. A versão originária da Constituição era omissa quanto
à noção de lei geral da República. Na primeira revisão constitucional (1982), o
artigo 115.º, n.º 4 (mantido na versão de 1989) definiu as leis gerais da
República como “as leis e os decretos‑leis cuja razão de ser envolva a sua
aplicação sem reservas a todo o território nacional”, tendo a revisão de 1997
(artigo 112.º, n.º 5) eliminado o inciso “sem reservas” e aditado, no final, a
expressão “e assim o decretem”, e, como se assinalou, restringido a limitação da
autonomia legislativa regional ao respeito pelos princípios fundamentais de tais
leis.
Foi no Acórdão n.º 631/99 que o Tribunal Constitucional
foi confrontado pela primeira vez com a nova formulação deste requisito negativo
da competência legislativa regional. Nesse aresto [que declarou, com força
obrigatória geral, a ilegalidade da norma do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto
Legislativo Regional n.º 19‑A/98/A, de 31 de Dezembro, que autorizava o Governo
Regional dos Açores a assumir dívidas de autarquias locais, por entender que
violava o princípio fundamental contido no artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 42/98,
de 6 de Agosto (Lei das Finanças Locais), que proibia a concessão de quaisquer
formas de subsídios ou comparticipações financeiras aos municípios e freguesias
por parte do Estado, das Regiões Autónomas, dos institutos públicos e dos fundos
públicos], começou o Tribunal por recordar:
“4 – Vários foram os arestos do Tribunal Constitucional que caracterizaram
as «leis gerais da República», tendo em conta o conceito constitucionalmente
definido a partir da revisão de 1982.
Com ressalva das incidências que o aditamento do aludido elemento formal
[refere‑se ao inciso «que assim o decretem», aditado em 1997] necessariamente
tem nessa caracterização, pode, no entanto, afirmar‑se que, no essencial, mantém
plena validade o que naqueles arestos se disse reportado ao elemento substancial
do conceito – envolver a razão de ser das leis e dos decretos‑leis a sua
aplicação a todo o território nacional.
Versar matéria de «inegável dimensão nacional», «com relevo imediato para a
generalidade dos cidadãos» que «por exigências decorrentes do princípio da
unidade do Estado e dos laços de solidariedade que devem unir os portugueses»
«são da competência dos órgãos de soberania» (cf. Acórdão n.º 133/90, in ATC,
15.º vol., p. 455, e outros aí citados) são critérios que o Tribunal tem
adoptado para a individualização das leis gerais da República, sem prejuízo da
análise caso a caso, pois, como se escreve no citado Acórdão n.º 133/90, «só
através da identificação nas leis e nos decretos‑leis das normas e princípios
portadores de eficácia normativa para os cidadãos do todo nacional é que se
torna possível saber se, em concreto, uma determinada lei ou um decreto‑lei
específico revestem a natureza de lei geral da República».”
E depois de reconhecer a Lei n.º 42/98 como uma lei geral
da República, prossegue o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão n.º
631/99:
“6 – O limite do poder legislativo regional no confronto com as leis gerais
da República, que se reportava a todo o conteúdo dispositivo dessas leis,
cinge‑se, a partir da revisão constitucional de 1997 – disse‑se já – ao respeito
pelos «princípios fundamentais» daquelas leis, muito embora o artigo 281.º n.º
1, alínea c), diversamente do que ocorre com o artigo 227.º, n.º 1, alínea a),
não tenha sido consequentemente alterado e deva ser sujeito a interpretação
correctiva (cf. Carlos Blanco de Morais, in cit. revista Legislação ..., n.º
19/20, p. 18).
Impor-se-ia, assim, que o julgador elucidasse, primeiro, este conceito,
para depois abordar a questão de saber se o artigo 7.º é a expressão de um dos
princípios fundamentais da Lei n.º 42/98, ou seja, do regime das finanças locais
definido por este diploma.
À tarefa, árdua e complexa, de integrar este conceito indeterminado – o dos
«princípios fundamentais» – não teve ainda oportunidade o Tribunal
Constitucional de se dedicar; na doutrina, começa a ensaiar‑se a dilucidação do
conceito, procurando sintetizá‑lo numa fórmula que, qualquer que seja a sua
valia, terá sempre um limite: sendo os princípios fundamentais das leis gerais
da República «princípios referentes às matérias concretamente disciplinadas por
estas leis», eles são «insusceptíveis de uma captação apriorística» (Gomes
Canotilho, in cit. Legislação ..., n.º 19/20, p. 42; cf. ainda Carlos Blanco de
Morais, «As competências legislativas das regiões autónomas no conceito da
revisão constitucional de 1997», Separata da Revista da Ordem dos Advogados, ano
57, Dezembro de 1997, pp. 32 e segs.).
Não obstante a norma em causa da Lei n.º 42/98 não surgir catalogada de
princípio fundamental do regime instituído pela lei (qualificação insindicável
pelo julgador ou mera presunção ilidível?), ela revela, no contexto próprio do
diploma, uma opção legislativa fundamental que, seja qual for o nível de
densificação do conceito, não deixa margem para dúvidas no sentido da sua
qualificação como «princípio fundamental» do regime das finanças locais.”
Este entendimento do conceito de princípios fundamentais
das leis gerais da República, definido no Acórdão n.º 631/99, foi posteriormente
seguido pelo Tribunal Constitucional, em diversas decisões (cf. Acórdãos n.ºs
458/2002, 69/2004 e 295/2004), até ao recente Acórdão n.º 217/2007 (que não
julgou inconstitucional a norma do artigo 1.º do Decreto Legislativo Regional
n.º 18/2002/M, de 8 de Novembro, que consagrou o dia 26 de Dezembro como feriado
na Região Autónoma da Madeira, por, além do mais, entender que não resultava do
Decreto‑Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, diploma qualificado como lei geral da
República, um princípio fundamental que impusesse a existência de um único
feriado regional em cada Região Autónoma), considerando tais princípios como os
“critérios gerais de decisão legislativa que, pelo seu relevo necessário para
todos os cidadãos, fundamentam o preenchimento homogéneo de fins e o cumprimento
uniforme de obrigações de resultado, por parte de uma disciplina legal
determinada” (Carlos Blanco de Morais, As Leis Reforçadas – As leis reforçadas
pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre
actos legislativo, Coimbra, 1998, p. 29).
8. Recordado o modelo de definição da competência
legislativa regional instituído pela Constituição de 1976 e cujas linhas
mestras se mantiveram até à 6.ª revisão constitucional, é tempo de analisar as
radicais alterações introduzidas em 2004, que, como já se referiu, consistiram
no abandono dos requisitos relacionados com o interesse específico e os
princípios fundamentais das leis gerais da República, na introdução do conceito
de âmbito regional, na remissão para os estatutos político‑administrativos da
enunciação das matérias passíveis de legislação regional e na manutenção da
exclusão das matérias reservadas aos órgãos de soberania.
O processo de revisão constitucional de 2004 teve como um
dos seus objectivos essenciais – senão mesmo o principal – a redefinição do
estatuto constitucional das autonomias regionais, em especial no que concerne à
competência legislativa regional, matéria sobre a qual praticamente todos os
projectos de revisão apresentados inseriram propostas de alterações
substanciais.
O Projecto de revisão constitucional n.º 1/IX, apresentado
pelo Partido Socialista [Diário da Assembleia da República (DAR), IX
Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, II Série‑A, Suplemento ao n.º 8, de 18 de
Outubro de 2003, pp. 338‑(2) a 338‑(7)], propunha para o n.º 4 do artigo 112.º
(para que remetia o artigo 227.º, n.º 1, alínea a)), uma redacção segundo a qual
“os decretos legislativos regionais versam sobre as matérias expressamente
enunciadas no estatuto político‑administrativo da respectiva Região Autónoma
como integrantes da sua autonomia legislativa, com excepção das previstas nos
artigos 161.º, 164.º, 165.º e 198.º, n.º 2, e das que cabem ao Governo no
exercício das funções de soberania”. Como se assinalava na respectiva “Exposição
de motivos”:
“3 – O ordenamento jurídico‑constitucional deixa de comportar o conceito de
lei geral da República e em sua substituição definem‑se as matérias de reserva
do Estado e as da competência própria das Regiões Autónomas.
As reservas de competência política e legislativa exclusiva da Assembleia
da República e do Governo, em função do exercício da soberania, constituem o
limite ao exercício da competência legislativa regional. E esta exerce‑se no
quadro da competência legislativa própria firmada no estatuto
político‑administrativo, em função da especial configuração que as matérias
assumem na respectiva região, por razões de intensidade, diversidade ou
exclusividade.
Procura‑se, assim, definir com precisão o âmbito das matérias de reserva
dos órgãos de soberania, as competências legislativas próprias das Regiões e um
espaço fixado pelas autorizações legislativas da Assembleia da República, pelo
desenvolvimento de leis de bases e de regimes gerais, bem como o respeitante à
transposição de directivas comunitárias.”
Na formulação proposta pelo Projecto de revisão
constitucional n.º 2/IX, apresentado pelo Bloco de Esquerda (DAR citado,
Suplemento ao n.º 14, de 21 de Novembro de 2003, pp. 564‑(2) a 564‑(9)), para o
artigo 112.º, n.º 4, previa‑se que “as leis regionais versam sobre as matérias
que dizem respeito às Regiões Autónomas e que não estejam reservadas à
Assembleia da República ou ao Governo, sem prejuízo do disposto no artigo
227.º”, e a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º passaria a dispor que competia às
assembleias legislativas regionais “legislar sobre as matérias expressas no
respectivo estatuto político‑administrativo e outras de interesse para as
Regiões Autónomas que não estejam reservadas à competência absoluta da
Assembleia da República”.
O Projecto de revisão constitucional n.º 3/IX, apresentado
pelo PSD e pelo CDS‑PP (DAR citado, pp. 564‑(9) a 564‑(24)), com o propósito
declarado, na respectiva nota justificativa, de ultrapassar as insuficiências
detectadas na aplicação dos avanços prosseguidos pela revisão de 1997, face ao
que se qualificou como a “jurisprudência tradicionalmente restritiva [do
Tribunal Constitucional] em matéria de autonomia”, propunha que o artigo 112.º,
n.º 4, passasse a prever que “as leis regionais versam sobre as matérias que
digam respeito às Regiões Autónomas e não reservadas à Assembleia da República
ou ao Governo, sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º”
(que permitia a concessão de autorização da Assembleia da República para as
assembleias legislativas regionais legislarem em matéria da sua reserva
relativa), e que a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º atribuísse às Regiões
Autónomas poder para “legislar em matérias que digam respeito às Regiões
Autónomas expressas no respectivo Estatuto ou do seu interesse que não estejam
reservadas à competência própria dos órgãos de soberania”.
O Projecto de revisão constitucional n.º 4/IX, apresentado
pelo PCP (DAR citado, pp. 564‑(24) a 564‑(35)), era menos inovador nesta
matéria, propondo para o artigo 112.º, n.º 4, uma redacção segundo a qual “os
decretos legislativos regionais versam sobre matérias de interesse específico
para as respectivas regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao
Governo, não podendo dispor contra leis de valor reforçado”, e para o artigo
227.º, n.º 1, alínea a), a seguinte formulação: “Legislar, com respeito pelas
leis de valor reforçado, em matérias de interesse específico para as Regiões que
não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania”.
Esta última formulação era também a proposta para o artigo
227.º, n.º 1, alínea a), pelo Projecto de revisão constitucional n.º 6/IX,
apresentado pelo Partido Ecologista Os Verdes (DAR citado, pp. 564‑(40) a
564‑(45)), que não propunha qualquer alteração para o artigo 112.º, n.º 4.
Como se constata, em nenhum desses projectos se utilizava
a expressão “âmbito regional”, que viria a constar da versão final quer do n.º 4
do artigo 112.º, quer da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP. Tal
expressão surgiu, no âmbito dos trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão
Constitucional, integrando as Propostas de emenda n.ºs 18 e 34 (cf. Relatório da
Comissão, DAR, II Série‑C, Suplemento ao n.º 33, de 3 de Julho de 2004, pp.
578‑(9) e 578‑(12)), mas nem do debate travado em sede de Comissão (DAR, II
Série‑RC, n.º 10, de 22 de Abril de 2004, pp. 320 e 332‑334), nem da discussão e
votação no Plenário, a propósito daqueles dois preceitos (DAR, I Série, n.º 78,
de 23 de Abril de 2004, pp. 4258‑4262 e 4292) se retira qualquer contributo
explícito determinante para a densificação do conceito.
No entanto, crê‑se não ser abusivo associar a expressão
“âmbito regional”, para além de uma referência territorial, às expressões
“matérias que dizem [digam] respeito às Regiões Autónomas”, constantes dos
Projectos de revisão constitucional n.ºs 2/IX e 3/IX, definidas “em função da
especial configuração que as matérias assumem na respectiva região” (como se lê
na exposição de motivos do Projecto de revisão constitucional n.º 1/IX), e
surgindo aquela expressão como sucedânea da anterior menção a “matéria de
interesse específico para as respectivas regiões”, ainda utilizada nos
Projectos de revisão constitucional n.ºs 4/IX e 6/IX.
Elucidativas sobre o alcance desta alteração do limite da
competência legislativa regional são as considerações tecidas na declaração de
voto escrita do Deputado José Magalhães (DAR, I Série, n.º 79, de 24 de Abril de
2004, p. 4368), quando salienta que a 6.ª revisão constitucional “não veio
alterar o disposto no artigo 225.º da CRP”, “pelo que o limite dos poderes dos
órgãos próprios regionais continua desde logo a definir‑se pelo território e
pelos fins próprios da autonomia”, assinalando que, “em vez da competência para
aprovar legislação regional versando sobre matérias de interesse específico não
reservadas à Assembleia da República e ao Governo e com subordinação aos
princípios fundamentais das leis gerais da República, os decretos legislativos
surgem agora parametrizados em função da sua natureza regional (pelo território
e pelo objecto, que inevitavelmente há‑de assumir uma feição própria por as
questões terem um cunho original na região, por serem nela exclusivos ou nela
terem especial configuração) e versam sobre matérias enunciadas no estatuto
político‑administrativo da respectiva região autónoma que não sejam reservados
aos órgãos de soberania” (itálicos acrescentados).
Resta referir que, também na sequência de proposta surgida
no seio da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (proposta n.º 42,
DAR, II Série‑C, n.º 33, de 3 de Julho de 2004, p. 578‑(14)), a Lei
Constitucional n.º 1/2004 viria a inserir, como disposição transitória, o artigo
46.º, que, sob a epígrafe “Competência legislativa das regiões autónomas”,
dispõe:
“Até à eventual alteração das disposições dos estatutos
político‑administrativos das regiões autónomas, prevista na alínea f) do n.º 6
do artigo 168.º, o âmbito material da competência legislativa das respectivas
regiões é o constante do artigo 8.º do Estatuto Político‑Administrativo da
Região Autónoma dos Açores e do artigo 40.º do Estatuto Político‑Administrativo
da Região Autónoma da Madeira.”
Entende‑se que o objectivo desta norma transitória não
terá sido o de até à revisão dos estatutos político‑administrativos (revisão
que surge como “eventual” e para a qual não se fixa prazo) manter a definição da
competência legislativa regional anterior à 6.ª revisão, mas antes o de remeter
para as listas de matérias constantes das versões vigentes dos estatutos
(remissão essa cuja exacta extensão será adiante analisada, infra, 11.) o
preenchimento (provisório) do segundo limite do novo modelo de demarcação dessa
competência: “matérias enunciadas no respectivo estatuto
político‑administrativo”.
É que o catálogo de matérias consideradas de interesse
específico das regiões autónomas, que constava do artigo 228.º da CRP desde a
revisão de 1997, foi eliminado, remetendo agora o n.º 1 desse preceito para as
matérias enunciadas nos estatutos político‑administrativos, o que tem sido
considerado como correspondendo ou a uma desconstitucionalização por cotejo com
o anterior artigo 228.º ou a uma constitucionalização do correspondente
preceito estatutário (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo
V – Actividade Constitucional do Estado, 3.ª edição, Coimbra, 2004, p. 401; e
Maria Lúcia Amaral, A Forma da República – Uma Introdução ao Estudo do Direito
Constitucional, Coimbra, 2005, pp. 376‑377).
Numa apreciação global do alcance desta revisão
constitucional, refere Vitalino Canas (Constituição da República Portuguesa
(Após a sexta revisão constitucional – 2004), Lisboa, 2004, p. 22):
“A sexta revisão constitucional realizou uma importante clarificação e
consolidação dos poderes legislativos regionais e, por essa via, da própria
autonomia das regiões. Todavia, não é claro que o chamado contencioso das
autonomias tenha ficado em definitivo superado.
Merece especial relevo a simplificação dos parâmetros em que o poder
legislativo regional se pode exercer, tendo‑se resistido à tentação de criar
novos parâmetros vagos ou indeterminados que constavam de alguns dos projectos
de revisão constitucional.
Porém, se é verdade que o esforço de clarificação e de simplificação
funcionou de modo geral a favor do aprofundamento dos poderes legislativos
regionais, não se registou qualquer alteração radical nesse campo.
Assim, apesar do desaparecimento da referência às leis gerais da República
como categoria constitucional que constituía um limite à legislação regional,
elas reaparecerão eventualmente como categoria doutrinal, porventura
reportando‑se às leis emitidas por órgãos de soberania, no âmbito da sua
competência reservada, aplicáveis a todo o território nacional.
Por seu turno, embora se tenha suprimido o parâmetro do interesse
específico, não desaparecem os parâmetros materiais delimitadores das
atribuições das regiões tal como estão enunciados no (inalterado) artigo 225.º,
n.º 1.”
Desta última frase parece lícito extrair o entendimento de
que o “âmbito regional” comporta um elemento material, ligado à estatuição do
artigo 225.º da CRP.
9. Também o Tribunal Constitucional já teve oportunidade
de salientar as profundas alterações introduzidas pela revisão constitucional
de 2004 no quadro definidor da competência legislativa regional.
Assim, logo no Acórdão n.º 246/2005 – embora, no caso
sobre que recaiu, por se tratar de diploma anterior àquela revisão e atenta a
natureza do vício em causa, se ter concluído ser aplicável a versão
constitucional anterior –, o Tribunal Constitucional assinalou:
“Entre as alterações introduzidas por esta revisão constitucional [a sexta
revisão, de 2004] conta‑se a «simplificação dos parâmetros em que o poder
legislativo regional se pode exercer» (Vitalino Canas, Constituição da República
Portuguesa (após a sexta revisão constitucional – 2004), aafdl, 2004, pág. 22)
e, concomitantemente, o alargamento dos poderes legislativos das regiões
autónomas. As modificações assinaladas são, essencialmente, as seguintes:
a) desaparecimento da categoria de leis gerais da República (antigo n.º 5 do
artigo 112.º da Constituição), a cujos princípios fundamentais os diplomas
regionais se encontravam subordinados;
b) eliminação da necessidade de existência de interesse específico regional na
matéria regulada pelas regiões, enquanto pressuposto ou requisito do exercício
da competência legislativa destas últimas (veja-se o n.º 4 do artigo 112.º da
CRP, na sua actual redacção).
O poder legislativo das regiões autónomas continua, porém, a enquadrar‑se pelos
fundamentos da autonomia das regiões consagrados no artigo 225.º da CRP e a
restringir‑se ao âmbito regional e às matérias enunciadas no respectivo estatuto
político‑administrativo, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112.º e na
alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição (neste sentido, Jorge
Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 3.ª edição, Coimbra Editora,
2004, págs. 398 a 402, e Vitalino Canas, ob. cit., págs. 140 e 236).
Subsiste ainda como requisito de exercício da competência legislativa das
regiões autónomas o respeito da reserva de competência legislativa dos órgãos de
soberania, como se depreende da leitura conjugada dos preceitos constitucionais
acima mencionados. No que diz respeito à reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia da República, não se registam alterações, estando esta
totalmente vedada às regiões autónomas. Já no que se refere à reserva relativa,
poderão as regiões, salvo as excepções previstas na Constituição, tratar as
matérias nela compreendidas, mediante autorização parlamentar (alínea b) do n.º
1 do artigo 227.º da CRP).
O novo regime constitucional já foi aplicado pelo Tribunal
no Acórdão n.º 258/2006, que se pronunciou pela inconstitucionalidade, por
violação das disposições conjugadas dos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 112.º,
n.º 4, 227.º, n..º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP, de diversas normas do
decreto legislativo regional que “Define o regime de afixação ou inscrição de
mensagens de publicidade e propaganda na proximidade das estradas regionais e
nos aglomerados urbanos”, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira, em 7 de Março de 2006. Após reproduzir a transcrita
passagem do Acórdão n.º 246/2005, passou a aferir‑se da verificação cumulativa
dos novos requisitos da competência legislativa regional – (i) conter‑se a
legislação sindicada no âmbito regional; (ii) estarem as matérias em causa
enunciadas no respectivo estatuto político‑administrativo; e (iii) não estarem
reservadas aos órgãos de soberania –, tendo sido dada resposta positiva aos dois
primeiros e negativa ao terceiro. Com efeito, entendeu‑se, quando ao primeiro
requisito, que estar a legislação em causa limitada ao âmbito regional “é
conclusão a que facilmente se chega, não sendo outra (em rigor, não podendo ser
outra), aliás, a intenção do legislador regional, como decorre, desde logo, de
várias passagens do preâmbulo, nomeadamente daquela onde se afirma que «a
afixação de mensagens de publicidade ou propaganda exterior carece de
regulamentação própria a nível da Região Autónoma da Madeira», bem como do
próprio n.º 1 do artigo 1.º”. E, quanto ao segundo, considerou‑se que as
preocupações com a “tutela do ambiente, como requisito de preservação da
qualidade de vida” e com a “conservação e valorização da paisagem como parte
integrante do ambiente”, que, do ponto de vista do legislador regional,
justificaram a aprovação do decreto legislativo regional em causa, se incluíam,
para efeito de determinação do “âmbito material da competência legislativa” das
regiões autónomas (artigo 46.º da Lei Constitucional n.º 1/2004), nas alíneas
nn) e oo) do artigo 40.º do Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma
da Madeira (aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, alterada pelas Leis n.º
130/99, de 21 de Agosto, e n.º 12/2000, de 21 de Junho), que se referem,
respectivamente, à matéria de “valorização dos recursos humanos e qualidade de
vida” e “defesa do ambiente e equilíbrio ecológico”. Diversamente, quanto ao
terceiro requisito, concluiu o Tribunal que as normas em causa invadiam a
reserva de competência dos órgãos de soberania, consignando, a este propósito:
“5.1.3. Sobre este ponto e ainda em face da anterior versão do artigo
227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição (que respeitava a matérias «que não
estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania»), o Tribunal
Constitucional pronunciou‑se repetidas vezes, como se pode ler, por exemplo, no
Acórdão n.º 268/88 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
12.º, pág. 460), no sentido de que essas «matérias reservadas à competência
legislativa própria dos órgãos de soberania não se circunscrevem às que a CRP
expressamente reserva à Assembleia da República (cf. em especial os artigos
164.º, 167.º e 168.º da CRP) e ao Governo (cf. em particular o artigo 201.º da
CRP), abrangendo ainda as matérias em relação às quais a CRP, implicitamente
embora, exige a intervenção do legislador nacional (Acórdãos n.ºs 82/86, 164/86
e 326/86, Diário da República, I Série, n.ºs 176, de 2 de Abril de 1986, 130, de
7 de Junho de 1986, e 290, de 18 de Dezembro de 1986).»
Mais recentemente, no Acórdão n.º 415/2005, escreveu‑se, porém, que «poderá
hoje questionar‑se se esta jurisprudência […], sobre o sentido do requisito
negativo do poder legislativo regional, se mantém válida, nos seus traços
gerais, em face do novo texto constitucional – questão, esta, que não foi ainda
tratada na jurisprudência constitucional». Contudo, como logo se acrescentou
nesse mesmo acórdão, «seja, porém, como for quanto ao exacto alcance da parte
final do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, pode dar‑se por
assente que entre as matérias ‘reservadas aos órgãos de soberania’ se encontram,
pelo menos, as matérias de reserva de competência legislativa absoluta da
Assembleia da República e, também, as matérias de reserva relativa. Sobre estas
últimas, as regiões autónomas apenas poderão legislar, fora das matérias
previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º, mediante autorização da
Assembleia da República».
Ora, entre as matérias da reserva relativa da Assembleia da República está,
precisamente, a dos «direitos, liberdades e garantias», referida na alínea b)
do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, cuja violação é alegada pelo
requerente. Sendo certo que, em relação a essa matéria, nem sequer é admissível
a autorização da Assembleia da República às Assembleias Legislativas das Regiões
Autónomas, uma vez que tal está vedado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º
da Constituição.”
10. Como se assinalou (supra, 3.1.1.), o primeiro
parâmetro da competência legislativa regional que o requerente considera violado
pelas normas questionadas respeita ao “âmbito regional”, que não se limitaria ao
âmbito territorial, no sentido de que a legislação regional tem o seu campo de
aplicação espacialmente limitado ao território da Região, mas incluiria uma
componente institucional, que impediria “os Parlamentos insulares de emanar
legislação destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas
colectivas públicas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das
Regiões Autónomas – como sucede, sem sombra de dúvida, com o próprio Estado e,
bem ainda, com outras pessoas que integram constitucionalmente a Administração
Autónoma territorial e institucional (autarquias locais, associações públicas e
universidades)”.
Da nova formulação constitucional do âmbito da competência
legislativa regional deriva seguramente que não foi adoptado um sistema
“dualista”, segundo o qual um grupo de matérias (as matérias enunciadas no
respectivo estatuto político‑legislativo) constituiria “reserva” do legislador
regional e um outro grupo integraria a reserva dos órgãos de soberania,
constituindo compartimentos estanques. Não foi esse o modelo adoptado pela 6.ª
revisão constitucional, que, ao limite positivo da enunciação estatutária e ao
limite negativo da reserva dos órgãos de soberania, associou a exigência de a
legislação regional se conter no “âmbito regional”.
Este “âmbito regional”, tendo necessariamente uma
componente territorial, inerente à natureza de “pessoas colectivas territoriais”
que o corpo do n.º 1 do artigo 227.º da CRP associa às regiões autónomas (cf.
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V – Actividade
Constitucional do Estado, 3.ª edição, cit., p. 401), não se esgota, porém, nessa
componente. Há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites
que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os
fundamentos dessa autonomia assentam nas características geográficas,
económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e
nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins
consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento
económico‑social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no
reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os
portugueses; os limites derivam da não afectação da integridade da soberania do
Estado e do respeito do quadro constitucional.
Assim, a circunstância de a legislação regional se
destinar a ser aplicada no território da Região não basta, só por si, para dar
por verificado o apontado requisito. O modelo constitucional de repartição da
competência legislativa continua a não assentar numa “divisão territorial do
poder legislativo, com transferência de matérias do centro para a periferia”
(Maria Benedita Urbano, “Poder legislativo regional …”, cit., p. 77). Nesse
“âmbito regional” não podem deixar de relevar considerações sobre a matéria
sobre que versa essa normação, atenta a justificação material do regime
autonómico constante do artigo 225.º.
O território da Região é também (ou em primeira linha)
território do Estado, nele vigorando simultaneamente a ordem jurídica estadual e
a ordem jurídica regional, só se podendo considerar como integrando o âmbito
desta (o “âmbito regional”) a regulação de situações que não afectem, atentas as
pessoas (designadamente, pessoas colectivas públicas) envolvidas e os interesses
e valores em jogo, a ordem jurídica nacional.
Assumindo o requisito do “âmbito regional” uma componente
territorial e uma componente material, há que reconhecer que esta última
dimensão foi desrespeitada pelas normas questionadas quando pretendem regular o
protocolo de cerimónias que, apesar de realizadas no território da Região, são
promovidas por entidades públicas que não são “órgãos regionais” e quando
abrangem nessa regulação entidades que, designadamente, “representam” órgãos de
soberania.
Como atrás se assinalou, a propósito da motivação das
iniciativas legislativas que conduziram à aprovação da Lei n.º 43/2006, as
regras de precedências protocolares das altas entidades públicas devem
constituir uma projecção visível da arquitectura constitucional do Estado,
assumindo uma dimensão simbólica que convoca a intervenção do legislador
nacional, sendo actualmente insustentável a sua redução a regras de cortesia,
desprovidas de juridicidade.
A perspectiva da “representação simbólica” (cf. Hanna
Fenichel Pitkin, El Concepto de Representación, tradução espanhola de The
Concept of Representation, ed. Centro de Estúdios Constitucionales, Madrid,
1985, pp. 101 e seguintes), “centra‑se na utilização de esquemas simbólicos (v.
g., bandeira, hino, cargo político), os quais, através de um processo
intelectivo‑sensorial a levar a cabo pelos cidadãos, são associados a
determinadas realidades como a nação, o povo, etc.”, assinalando‑se que “a
função simbólica atribuída a certas pessoas (em particular ao chefe do Estado)
ou a coisas, cumpre algumas tarefas políticas de não negligenciável relevância
(v. g., identificação, integração política, coesão dos membros de um grupo)”
(Maria Benedita Urbano, Representação Política e Parlamento, Coimbra, 2004,
policopiado, p. 124).
A este propósito, cumpre referir que se considera de todo
irrelevante que diplomas regionais publicados em 1979, ao regularem o uso dos
símbolos regionais (bandeira e hino), tenham reflexamente interferido com o uso
dos símbolos nacionais. A Constituição não se interpreta de acordo com a
legislação ordinária, não sendo de acolher a existência de uma “presunção de
constitucionalidade” ou de “não inconstitucionalidade” derivada da promulgação
de leis ou decretos‑leis, extensível à assinatura de decretos legislativos
regionais (cf. a crítica desta tese, extraída, na vigência da Constituição de
1933, da diferenciação do regime de apreciação da inconstitucionalidade orgânica
ou formal dos diplomas promulgados e não promulgados, em Miguel Galvão Teles,
Direito Constitucional – Sumários Desenvolvidos Relativos ao Título II da Parte
III do Curso (Direito Constitucional Vigente), AAFDL, Lisboa, 1970, pp. 22‑24 e
99‑101, e Eficácia dos Tratados na Ordem Interna Portuguesa (Condições, Termos
e Limites), Lisboa, 1967, pp. 77‑80 e 155‑185; e, já na vigência da
Constituição de 1976, defendida por Rui Medeiros, A Decisão de
Inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, pp. 74‑89, em Jorge Miranda, “Apreciação da
dissertação de doutoramento do Mestre Rui Medeiros”, Direito e Justiça, vol.
XIII, 1999, tomo 2, pp. 259‑277, em especial n.º 6, pp. 263–267). Entende‑se,
antes, que a promulgação não é uma “declaração de constitucionalidade”, em
termos de constituir qualquer presunção nesse sentido, quer porque os poderes de
fiscalização dos tribunais e do Tribunal Constitucional, nessa matéria, atingem
indiferenciadamente actos promulgados e actos não promulgados, quer porque – e
determinantemente – o Presidente da República não está vinculado a requerer a
fiscalização preventiva da constitucionalidade (cf. Miguel Galvão Teles,
“Liberdade de iniciativa do Presidente da República quanto ao processo de
fiscalização preventiva da constitucionalidade”, O Direito, ano 120.º, 1988,
I‑II (Janeiro‑Junho), pp. 35‑43, e Miguel Lobo Antunes e Mário Torres, A
Promulgação, separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 405, p. 31).
A isto acresce que, desde a revisão constitucional de
1997, o regime dos símbolos nacionais integra a reserva absoluta da competência
legislativa da Assembleia da República (artigo 164.º, alínea s)), não sendo,
admissível a intervenção legislativa regional na matéria, nem primária, nem
autorizada (alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP) – cf. António de Araújo,
“A Nação e os seus símbolos (Breves comentários ao artigo 11.º da
Constituição)”, O Direito, ano 133.º, 2001, I (Janeiro‑Março), pp. 197‑224).
Conclui‑se, assim, que a iniciativa legislativa em
análise, quando pretende estabelecer o regime protocolar aplicável a cerimónias
promovidas por entidades públicas que, apesar de sedeadas na Região Autónoma dos
Açores, se encontram fora do âmbito de jurisdição dos órgãos regionais e
abrangendo nessa regulação entidades que, designadamente, representam órgãos de
soberania, desrespeita o limite da competência legislativa regional que a
confina ao “âmbito regional”.
Ora, justamente porque a iniciativa legislativa em apreço,
atenta a sua natureza inter‑relacional, tem necessariamente se ser encarada na
sua globalidade [assistindo neste ponto razão ao parecer que substancia a
resposta, quando refere que não “deve ser apreciada norma a norma, antes devendo
ressaltar (a) economia de um diploma regional, tendo em conta a matéria regulada
e o regime jurídico estabelecido” (n.º 18)], não cabendo, nesta sede de
fiscalização preventiva, qualquer tarefa de “redução” da normação, não se
justifica o aprofundamento da indagação quanto a saber se algumas entidades
(designadamente as ligadas às autarquias locais da Região) ainda se poderiam
considerar englobadas no “âmbito de jurisdição natural” dos órgãos regionais.
11. A segunda questão suscitada pelo requerente – versar o
diploma sobre matéria não enunciada no respectivo estatuto
político‑administrativo (supra, 3.1.2.) –, pressupõe a prévia dilucidação do
sentido do artigo 46.º da Lei Constitucional n.º 1/2004, que dispõe: “Até à
eventual alteração das disposições dos estatutos político‑administrativos das
regiões autónomas, prevista na alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º, o âmbito
material da competência legislativa das respectivas regiões é o constante do
artigo 8.º do Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma dos Açores e
do artigo 40.º do Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma da
Madeira”. Concretamente, coloca‑se a questão de saber se nesta ressalva cabe a
alínea hh) daquele artigo 8.º, que refere “outras matérias que respeitem
exclusivamente à Região ou que nela assumam particular configuração”.
Embora a referida disposição transitória não exclua, em
termos estritamente literais, esta alínea, sustenta o requerente que a
consideração da sua manutenção se mostra de todo incongruente com o sentido e
espírito da revisão constitucional. Um dos principais objectivos por esta
prosseguidos foi o da eliminação de critérios indeterminados, que, segundo
certas visões, teria propiciado, designadamente por parte do Tribunal
Constitucional, uma interpretação restritiva e limitadora da autonomia
legislativa regional. Como se assinalou, este Tribunal sempre entendeu que,
para determinada matéria ser considerada de interesse específico regional, não
bastava contar do elenco de matérias abstractamente enunciadas nos estatutos
regionais, sendo sempre necessária a apreciação, caso a caso, em concreto, de
que se tratava de matéria que respeitava exclusivamente à Região ou que nela
exigia um especial tratamento por aí assumir particular configuração.
Segundo esta visão das coisas, entendendo‑se por
“matérias” os “tipos de actividades concretas, identificadas tendo em conta os
fins sociais que com elas se pretende prosseguir: o ordenamento do território, a
protecção do património cultural, o ambiente ou o equilíbrio ecológico ou as
vias de comunicação” (Maria Lúcia Amaral, A Forma da República, cit., p. 374),
constituiriam “matérias” as elencadas nas alíneas a) a gg) do artigo 8.º do
Estatuto Político‑Administrativo dos Açores, mas já não a da sua hh), que
repete a noção de “interesse específico regional” que a revisão de 2004 teria
querido eliminar definitivamente.
Em sentido oposto, pode sustentar‑se que a anterior
interpretação, afastando do alcance da remissão a alínea hh) do artigo 8.º do
EPARAA, não tem qualquer correspondência no texto da disposição transitória, e
incorre no risco de condicionar a decisão, a adoptar nos procedimentos de
revisão das leis estatutárias, quanto à manutenção, ou não, do critério de
interesse específico, já não como limitador da competência legislativa regional,
mas como elemento atributivo dessa competência.
No entanto, na economia do presente acórdão, não se mostra
necessária uma tomada de posição do Tribunal Constitucional quanto a este
específico ponto, pois é seguro, pelas razões apontadas no ponto anterior, que,
admitindo‑se que a remissão da norma transitória abrange a alínea hh) do artigo
8.º do EPARAA, nunca a matéria sobre que recaiu o diploma em apreciação, com a
assinalada extensão a entidades estranhas à jurisdição dos órgãos regionais,
poderia ser considerada matéria que respeite exclusivamente à Região Autónoma
dos Açores ou que nela assuma particular configuração.
É ao legislador nacional que incumbe apreciar a eventual
necessidade de regulação de certos aspectos de cerimónias que ocorram nos
territórios das regiões, mas, para tanto, a salvaguarda dos interesses das
Regiões opera‑se, não através de edição de normas autónomas, mas através do
direito de se pronunciar, por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de
soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito
(primeira parte da alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP), faculdade esta
que, como já se referiu, foi efectivamente exercitada no âmbito da aprovação da
Lei n.º 43/2006.
Pode, assim, concluir‑se que, seja qual for o alcance que
se atribua à remissão do artigo 46.º da Lei Constitucional n.º 1/2004 para o
artigo 8.º do EPARAA, as normas questionadas desrespeitam, também, o segundo
requisito da competência legislativa regional: versar sobre matéria enunciada
no respectivo estatuto político‑legislativo.
12. Quanto ao parâmetro relativo à ressalva das matérias
da reserva de competência dos órgãos de soberania, há que atentar que a matéria
em causa, tendo uma natureza relacional, não se esgota nem pode ser
perspectivada isoladamente a propósito da definição dos estatutos de cada uma
das entidades envolvidas.
O que ocorre é que, englobando nesse tratamento relacional
titulares de órgãos de soberania, o órgão legislativo para tal competente não
pode deixar de ser o legislador nacional, por ser o único que se situa numa
posição de supra‑ordenação relativamente a todas essas entidades.
Trata‑se, assim, de matéria que, mesmo que se considere
não incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República,
sempre reclamará a intervenção do legislador nacional, justamente por afectar
o posicionamento institucional de entidades pertencentes a distintos poderes do
Estado e outros corpos públicos, sendo certo que as reservas assinaladas a este
entendimento “amplo” da “reserva da República”, que padeceria de um “sincretismo
de critérios”, se esbateram face ao desaparecimento do critério reportado ao
respeito das leis gerais da República.
13. Apurado que a Assembleia Legislativa da Região
Autónoma dos Açores carece de competência legislativa para editar a normação
questionada, com a extensão assinalada, não se justifica apreciar se o modo
como o fez padece de inconstitucionalidade material.
III – Decisão
14. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide
pronunciar‑se pela inconstitucionalidade, por violação dos artigos 112.º, n.º
4, e 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, das
normas constantes dos artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.ºs 1, 10, 12 a
18, 21 a 24, 26, 27, 1.ª parte, 28 a 31, 32, 1.ª parte, e 38, este na parte
referente à “administração local”, 9.º, n.º 1, 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º a 18.º e
20.º do Decreto n.º 8/2007, sobre Regime das Precedências Protocolares e do
Luto Regional, aprovado na sessão de 7 de Março de 2007 da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
Lisboa, 17 de Abril de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
José Manuel Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins
Rui Carlos Pereira (Com voto de vencido)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido a decisão constante do presente Acórdão,
por não poder acompanhar a tese, que claramente lhe subjaz, segundo a qual a
Constituição da República Portuguesa não autoriza uma assembleia legislativa
regional a aprovar um regime de precedências protocolares e de luto de âmbito
regional.
Ao consagrar os poderes das regiões autónomas, o n.º 1 do
artigo 227.º da Constituição indica, à cabeça, o poder de “legislar no âmbito
regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto político‑administrativo e
que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”. Este poder constitui um
elemento relevante para compreender a natureza e o alcance da autonomia das
regiões.
Seria incompreensível que tal poder não abrangesse o
regime de precedências protocolares e de luto. Há matérias com maior dignidade
(como, por exemplo, o ordenamento do território, a organização da administração,
a educação e o sistema fiscal) em relação às quais se não questiona a
competência legislativa das regiões autónomas no âmbito regional.
É certo que o protocolo de Estado não é de somenos
importância. Ele projecta a representação pública do Estado e deve retratar com
fidelidade a ordem constitucional. Constitui, afinal, um meio simbólico de
comunicar aos cidadãos a identidade e a posição relativa dos titulares de
órgãos de soberania e altos dignitários do Estado.
Todavia, o protocolo foi regido por normas
consuetudinárias (cuja jurisdicidade é, aliás, discutível) até à entrada em
vigor da Lei n.º 40/2006, de 25 de Agosto. Antes da codificação do regime de
precedências, nem a Assembleia da República, nem a doutrina constitucional, nem
os tribunais assinalaram qualquer inconstitucionalidade por omissão.
Na verdade, não creio que tenha persistido uma situação de
inconstitucionalidade por omissão durante os trinta anos decorridos entre a
entrada em vigor da Constituição de 1976 e a aprovação da Lei n.º 40/2006. Dada
a sua natureza, as precedências protocolares poderiam continuar a ser regidas,
ainda hoje, por normas consuetudinárias.
Se não estão sujeitas a lei escrita, as precedências
protocolares não cabem na reserva de competência legislativa de nenhum órgão de
soberania. A iniciativa da Assembleia da República, ao aprovar a Lei n.º
40/2006, deve ser apreciada no plano da oportunidade político‑constitucional e
não como exercício de uma competência exclusiva.
2. Após a revisão introduzida pela Lei Constitucional n.º
1/2004, de 24 de Julho, o exercício das competências legislativas regionais
passou a depender, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, da
verificação cumulativa de três requisitos. Assim, a legislação:
a) Deve possuir âmbito regional;
b) Deve incidir em matérias enunciadas no respectivo
estatuto político‑administrativo;
c) Não pode abranger matérias reservadas aos órgãos de
soberania.
No seu pedido, o Representante da República para a Região
Autónoma dos Açores alega que nenhum dos referidos parâmetros foi respeitado, o
que implicaria uma inconstitucionalidade orgânica dos artigos 1.º, n.º 1,
segunda parte, 7.º, n.ºs 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, 1.ª parte, 28 a 31,
32, 1.ª parte, e 38, este na parte referente à “administração local”, 9.º, n.º
1, 10.º, n.ºs 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º do Decreto n.º 8/2007, sobre Regime das
Precedências Protocolares e de Luto Regional, aprovado na sessão de 7 de Março
de 2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
A inconstitucionalidade alegada pelo autor do pedido é
efectivamente orgânica, na medida em que envolve um problema de delimitação de
competências. De todo o modo, esta classificação não tem hoje consequências,
ressalvada a hipótese do artigo 277.º, n.º 2, da Constituição. O que importa
averiguar é, simplesmente, se os requisitos de competência para aprovar
legislação regional foram respeitados.
3. Tal como se sustenta no Acórdão, considero que o
conceito de âmbito regional tem uma dimensão territorial obrigatória, por estar
em causa uma pessoa colectiva territorial, mas não se esgota nesse elemento. É
necessário, designadamente, o concurso de um elemento institucional.
No caso sub judicio, torna‑se fácil compreender o carácter
complexo e funcional do conceito de âmbito regional. Uma cerimónia não pode ser
classificada como regional só por ocorrer no território de uma região autónoma.
É possível promover, no território de uma região, uma cerimónia nacional para
comemorar, por exemplo, o Dia de Portugal.
No entanto, o Acórdão conclui que o Decreto n.º 8/2007
excede o âmbito regional por abranger entidades públicas que não são órgãos
regionais e que representam, em alguns casos, órgãos de soberania. Pode
inferir-se, a contrario sensu, que o Decreto em crise já respeitaria o requisito
constitucional se apenas dissesse respeito a órgãos regionais.
Ora, esta restrição inviabiliza a possibilidade de uma
assembleia legislativa regional aprovar um regime de precedências protocolares e
de luto, seja ele qual for. Com efeito, um tal regime relaciona,
inevitavelmente, os órgãos regionais com outras entidades públicas. Mas, ao
fazê‑lo, não sai do âmbito regional. O que interessa é saber se o regime versa
sobre cerimónias regionais, ou seja, cerimónias promovidas por órgãos regionais,
no âmbito do território da respectiva região, ainda que contem com a presença de
outras entidades.
Não significa isto que um regime regional possa ordenar de
forma arbitrária quaisquer entidades não regionais, incluindo órgãos de
soberania. Se assim fosse, tal regime poderia dar primazia ao Primeiro‑Ministro
sobre o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República,
subvertendo a ordem de precedências consagrada, de modo implícito, na própria
Constituição.
Contudo, estas considerações remetem‑nos para o plano da
inconstitucionalidade material. Tal como se defende na resposta da entidade
recorrida (que subscreve o parecer jurídico que anexa), é no plano material que
se averigua se a ordem de precedências seguida em relação a titulares de órgãos
de soberania por um regime regional é compatível com a Constituição. A simples
menção de entidades públicas não regionais não é, em si mesma, inconstitucional.
Sê‑lo‑á apenas se subverter a ordem de precedências que resulta da
Constituição.
4. O regime do Decreto n.º 8/2007 enquadra‑se no âmbito da
alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma
dos Açores, por versar “outras matérias que respeit(a)m exclusivamente à Região
ou que nela assum(e)m particular configuração”.
A matéria de precedências protocolares e de luto assume
uma configuração particular na Região Autónoma dos Açores (como também,
obviamente, na Região Autónoma da Madeira). Negar esta realidade equivale, em
substância, a negar que haja cerimónias regionais, apesar de haver cerimónias
oficiais promovidas pelas assembleias legislativas e pelos governos regionais.
Pode duvidar‑se, porém, que ainda esteja em vigor a alínea
hh) do artigo 8.º do Estatuto. Tendo em conta que a revisão constitucional de
2004 suprimiu a exigência de interesse específico na matéria regulada pelas
regiões, poderia sustentar‑se uma interpretação ab‑rogante valorativa (ou uma
redução teleológica) da remissão efectuada pelo artigo 46.º da Lei
Constitucional n.º 1/2004.
Nesta perspectiva, a remissão para o Estatuto
Político‑Administrativo abrangeria todas as alíneas do artigo 8.º, exceptuando
a hh). Alegadamente, a manutenção em vigor dessa alínea seria contrária ao
sentido da revisão constitucional, que suprimiu a referência ao interesse
específico regional na matéria regulada pelas regiões (anterior redacção do
artigo 227.º, n.º 1, alínea a)).
Porém, uma tal interpretação é paradoxal. Os trabalhos
preparatórios da revisão provam que o legislador pretendeu clarificar e
aprofundar a autonomia e não restringi‑la. Por isso, o artigo 46.º da Lei
Constitucional n.º 1/2004 remete para os estatutos político‑administrativos
pré‑existentes, presumindo inilidivelmente que eles são compatíveis com o novo
regime autonómico. Esta conclusão é vincada pela circunstância de a remissão
prever uma “eventual” revisão dos estatutos, admitindo como mera hipótese a sua
transitoriedade.
Por outro lado, não há contradição entre a supressão do
requisito constitucional do interesse específico e a persistência do interesse
específico como caso em que é admissível a edição de leis regionais. Na primeira
situação, o requisito constitucional funcionava como modo de restrição da
actividade legislativa regional; na segunda, opera em sentido oposto, permitindo
que seja emitida legislação regional em situações não contempladas
expressamente pelas alíneas anteriores do artigo 8.º do Estatuto.
As críticas feitas por parte da doutrina à técnica
utilizada no artigo 8.º do Estatuto, por misturar casos individualizados com
uma cláusula geral (de interesse específico), não têm relevância neste contexto.
Independentemente de quaisquer outras considerações, tal argumentação não
permite concluir que a norma da alínea hh) foi revogada.
5. Não entendo que as normas em análise invadam a reserva
de competência dos órgãos de soberania (nomeadamente, da Assembleia da
República). Pelo seu carácter relacional, as regras protocolares não podem fazer
parte integrante do estatuto de um órgão do Estado. Se assim fosse, poderia
cair‑se em contradição na atribuição de precedências, visto que a competência
para legislar sobre os vários órgãos é diversificada, pertencendo à Assembleia
da República ou ao Governo.
Por estas razões, sou de opinião que o regime de
precedências protocolares e de luto não cabe no âmbito das reservas de
competência legislativa. Em matéria de cerimónias regionais, a Assembleia da
República pode aprovar leis, mas as Assembleias Legislativas Regionais não estão
impedidas de o fazer.
Após a revisão constitucional de 2004, a repartição de
competências entre os órgãos de soberania e as Regiões Autónomas mudou de
configuração. Se antes valia uma regra de tendencial alternatividade, assente,
sobretudo, no requisito do interesse específico, agora vale uma regra de
concurso em todas as matérias de âmbito regional previstas nos estatutos e não
reservadas aos órgãos de soberania. No caso de concurso de leis com o mesmo
objecto, prevalece a legislação regional, por força do n.º 2 do artigo 228.º da
Constituição.
6. Não concordando com o juízo de inconstitucionalidade
orgânica em que assenta a decisão do presente Acórdão, julgo que a norma do n.º
1 do artigo 10.º do Decreto n.º 8/2007 padece de inconstitucionalidade material
porque quebra, como sustenta o autor do pedido, o princípio constitucional de
congruência entre a posição protocolar dos titulares de órgãos previstos na
Constituição e a posição que esses órgãos ocupam na estrutura institucional ou
no sistema de governo em que se inserem.
A esta luz, nada justifica a colocação do
Primeiro‑Ministro em posição inferior à do Presidente do Governo Regional. Um
tal posicionamento protocolar viola o estatuto do Primeiro‑Ministro, consagrado
nos artigos 183.º a 187.º e 201.º da Constituição.
Uma “interpretação conforme à Constituição” que invertesse
a ordem protocolar e desse prioridade ao Primeiro‑Ministro em relação ao
Presidente do Governo Regional não tem aqui sentido. Em primeiro lugar, a
interpretação conforme à Constituição deve obedecer às regras da Ciência do
Direito – assim, deve encontrar na letra da lei um mínimo de correspondência
verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e pressupor que o legislador soube
exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código
Civil); em segundo lugar, a interpretação conforme à Constituição é prevista no
âmbito da fiscalização concreta sucessiva (artigo 80.º, n.º 3, da Lei do
Tribunal Constitucional), como instituto de aproveitamento de normas jurídicas
em vigor, mas não em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
7. Já não acompanho a imputação de inconstitucionalidade
material que o autor do pedido formula quanto ao n.º 2 do artigo 10.º do Decreto
n.º 8/2007. De facto, existe um fundamento racional, constitucionalmente
atendível, que justifica o regime consagrado nesta norma. Trata‑se do princípio
protocolar que indica que as cerimónias oficiais são presididas pela entidade
que as organiza (artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 40/2006), princípio esse que é
recebido pelo artigo 6.º do Decreto n.º 8/2007.
Esta regra explica que, nos actos realizados na Assembleia
da República, presida o respectivo Presidente, mesmo que esteja presente o
Presidente da República (artigos 10.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, da Lei nº 40/2006).
De acordo com o mesmo critério, nos actos promovidos pelo Supremo Tribunal de
Justiça ou pelo Tribunal Constitucional, são também os respectivos Presidentes a
presidir, salvo se estiver presente o Presidente da República.
Rui Carlos Pereira