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Processo n.º 450/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A A., impugnou judicialmente, no Tribunal Tributário de
1ª Instância do Porto, a liquidação adicional da “Contribuição Especial” a que se refere o Regulamento da Contribuição Especial (RCE) anexo ao Decreto-Lei n.º
43/98, de 3 de Março, efectuada no processo n.º 88/99, no montante de € 59
939,97 (12 016 886$00), pelo 1.º Serviço de Finanças de Matosinhos, em 23 de Julho de 2001, aduzindo, além do mais, a inconstitucionalidade e a ilegalidade da liquidação efectuada, com fundamento em aplicação retroactiva da Contribuição Especial, por dizer respeito a aumento de valor de prédio em relação ao qual foi requerida a emissão de licença de construção em 17 de Novembro de 1997, anteriormente à data da entrada em vigor daquele diploma legal, e formulando, a final, as seguintes conclusões:
“1.ª – Ficou inequivocamente demonstrado nos presentes autos que a liquidação impugnada é inconstitucional e ilegal, desde logo, porque a tributação em sede de Contribuição Especial resulta, no caso em apreço, de uma aplicação retroactiva do RCE;
2.ª – A aplicação retroactiva decorre de o facto tributário se verificar integralmente em momento anterior à entrada em vigor do RCE;
3.ª – Aquela liquidação é, ainda, ilegal e inconstitucional, uma vez que mesmo que a aplicação do RCE ao caso sub judice não fosse retroactiva, a tributação em sede de Contribuição Especial violaria os princípios constitucionais da tributação do rendimento real, da unicidade do imposto sobre o rendimento e da proporcionalidade;
4.ª – A violação daqueles princípios é uma consequência, não só, do facto de se estar, em concreto, a fazer incidir a tributação sobre quem suportou, por via da aquisição do prédio, o encargo da sua valorização – a ora impugnante – e não quem dela beneficiou – a vendedora –, mas também, admitindo por dever de patrocínio que a impugnante beneficiou, de algum modo, da valorização do aludido prédio e atento o facto de este ter sido posteriormente objecto de venda, da dupla tributação – manifestamente excessiva – do mesmo rendimento em sede de Contribuição Especial e em sede de IRC;
5.ª – Pelo que devem ser anulados os actos de liquidação de contribuição especial sob impugnação.”
Por sentença de 25 de Março de 2003, o juiz do 3.º Juízo do Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto julgou inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial (RCE), anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, por violação da norma do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e, em consequência, decidiu anular a liquidação impugnada, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:
“2.2. O direito aplicável.
A primeira questão que importa decidir é de saber se ocorreu aplicação retroactiva do RCE anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março.
Vejamos.
Estabelece o artigo 1.º do RCE:
«1 – A contribuição especial incide sobre o aumento de valor dos prédios rústicos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção urbana, situados nas áreas das seguintes freguesias:
(...)
2 – A contribuição especial incide ainda sobre o aumento de valor dos terrenos para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes situados nas áreas referidas no número anterior.»
No caso vertente está em causa o aumento de valor de áreas resultantes da demolição de prédios urbanos.
Por sua vez, preceitua o artigo 2.° do mesmo RCE:
«1 – Constitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra e o seu valor à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido por aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda constantes da portaria a que refere o artigo 43.° do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, correspondendo, para o efeito, à data de aquisição a data de 1 de Janeiro de
1994 e à de realização a data da emissão do alvará de licença de construção ou de obra.»
A contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença de construção ou de obra – cfr. artigo 3.° do RCE.
Como resulta das normas que acabámos de transcrever, a contribuição especial prevista no Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, enquadra-se nas chamadas «contribuições de melhoria», que são aquelas em que é devida uma prestação, em virtude de uma vantagem económica particular resultante do exercício de uma actividade administrativa, por parte de todos aqueles que tal actividade indistintamente beneficia – nestes termos, José Casalta Nabais, Direito Fiscal, pág. 40.
Tais contribuições especiais são considerados impostos – cfr. artigo
4.°, n.° 3, da LGT.
Nos termos da própria lei, a contribuição especial criada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, incide sobre a valorização dos terrenos ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data do requerimento da respectiva licença de construção.
Ou seja, prevê-se nas normas conjugadas dos artigos 1.º, n.° 2, e
2.° do RCE, a tributação de um facto que ocorreu antes da entrada em vigor da lei que a determinou.
Trata-se, portanto, de normas fiscais retroactivas. Com efeito, uma norma é retroactiva quando ela se refere na sua previsão a factos ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor, tenham tais factos o valor de factos tributários ou de factos impeditivos (cfr. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, págs. 196-197).
Ora, nos termos do preceito constitucional contido no artigo 103.°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Também a norma do artigo 12.°, n.º 1, da Lei Geral Tributária reafirma, ao nível da legislação ordinária, esse princípio constitucional da proibição da retroactividade da lei fiscal:
«As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.»
Donde, parece claro, padecem as normas fiscais referidas de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 103.°, n.º 3, da CRP – no mesmo sentido, José Casalta Nabais, obra citada, pág. 43, nota 30.
Tal inconstitucionalidade implica que essas normas não possam ser aplicadas e, consequentemente, conduz à ilegalidade do acto tributário de liquidação que nelas se sustentou.
Procede, com este fundamento, a presente impugnação, resultando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.”
É desta sentença que vem interposto pelo Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – LTC, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do RCE, anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, cuja aplicação foi recusada, naquela decisão, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
Neste Tribunal, o representante do Ministério Público apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – O facto tributário gerador ou constitutivo da «contribuição de melhoria» criada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, é o aumento de valor dos prédios ou terrenos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção ou reconstrução urbana, nas freguesias cujas acessibilidades foram excepcional e substancialmente melhoradas com as obras públicas cuja realização está na base da edição daquele diploma legal.
2 – Como critério orientador da avaliação pericial que irá determinar tal
«aumento de valor», causalmente ligado à realização dessas obras públicas, o artigo 2.º do Regulamento aprovado pelo citado diploma legal manda atender ao valor hipotético que teriam os prédios em data anterior ao lançamento de tais obras públicas (que se estabelece com referência ao dia 1 de Janeiro de 1994), corrigido pelos coeficientes de desvalorização, e o valor actual de tais bens, à data em que se iniciou o processo de licenciamento que irá consumar e concretizar tal «aumento de valor».
3 – A ponderação da referida data – 1 de Janeiro de 1994 – surge, deste modo, como simples critério orientador do juízo pericial de avaliação, não tendo, deste modo, relação directa com o facto tributário, nem implicando sequer que se esteja perante um facto tributário de formação sucessiva, como ocorreria se a lei mandasse tributar os acréscimos de valor entretanto ocorridos em cada ano fiscal.
4 – O apelo à referida data, como meio de possibilitar aos peritos avaliadores um critério e ponto seguro de referência, para determinar o «valor hipotético» dos bens antes de iniciadas as obras públicas que os valorizaram, em nada afronta o princípio constitucional da proibição da retroactividade da lei fiscal.
5 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, já que as normas que integram o objecto do presente recurso não colidem com o princípio da não retroactividade da lei fiscal, nem ofendem qualquer outra norma ou princípio constitucional.”
A recorrida A., contra-alegou, concluindo:
“1.ª – Constitui fundamento do recurso a inexistência de inconstitucionalidade das normas sub judice em virtude de, por um lado, o facto tributário consubstanciado na emissão de licença de construção já ter ocorrido na vigência do RCE aprovado pelo Decreto-Lei n.º 43/98 e, por outro lado, porque a data e períodos indicados no artigo 2.º daquele Regulamento se tratarem de um mero indicador para efeitos de avaliação o qual comporta aplicação retroactiva;
2.ª – Integrando-se naqueles fundamentos questão cuja sindicância não pode, quer por força da natureza do recurso interposto, quer pela competência do Tribunal Constitucional, constituir objecto do mesmo, qual seja a da aferição do momento em que se deu por verificado o facto tributário em sede de Contribuição Especial;
3.ª – E constituindo esta a trave mestra de toda a argumentação expendida nas alegações do recorrente, deve esse Venerando Tribunal Constitucional abster-se de conhecer do objecto do recurso por força do disposto, designadamente, no artigo 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 71.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as redacções introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro;
4.ª – Tal conclusão não surge prejudicada por força da aplicação do princípio do aproveitamento dos actos processuais, uma vez que os restantes fundamentos daquele recurso somente permitiriam, em abstracto, suportar uma alegada constitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, do RCE e não da aplicação conjugada do mesmo com o artigo 1.º, n.º 2, do mesmo Regulamento;
5.ª – O princípio enformador da proibição retroactiva das normas fiscais prevista no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa é o da protecção das legítimas expectativas dos cidadãos contribuintes;
6.ª – Atenta a factualidade dada como provada nos autos de impugnação, aquela legítima expectativa, digna de protecção legal, firmou-se na data da apresentação do requerimento para a emissão da licença de construção, anterior à entrada em vigor do RCE;
7.ª – Logo, a tributação em sede de Contribuição Especial do «aumento de valor» dos prédios em apreço, por força da aplicação conjugada dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do RCE, só ocorre mediante a aplicação retroactiva dos mesmos, pelo que é violadora do citado normativo constitucional;
8.ª – Acresce que, mesmo apreciados em concreto os argumentos expendidos nas doutas alegações do ilustre Procurador-Geral da República Adjunto, os mesmos se afiguram ser insusceptíveis de suportar entendimento em sentido diverso;
9.ª – Com efeito, e em primeiro lugar, a emissão do alvará de licença de utilização não constitui elemento da incidência objectiva, mas da incidência subjectiva;
10.ª – Pelo que a sua verificação em momento posterior à entrada em vigor do RCE não afasta a retroactividade da aplicação do mesmo ao caso vertente;
11.ª – Em segundo lugar porque, quer a data de 1 de Janeiro de 1994, quer o período compreendido entre a mesma e a data da apresentação do requerimento tendente à emissão da licença de construção, não são um mero critério orientador para efeitos de avaliação, sem qualquer relação com o facto tributário;
12.ª – Efectivamente, tais data e períodos são elementos integrantes do próprio facto tributário;
13.ª – Assim, qualquer aplicação do artigo 2.º do RCE a período integralmente decorrido em momento anterior à sua entrada em vigor é inconstitucional por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa;
14.ª – Logo, é manifesta a inconstitucionalidade do preceituado nos artigos
1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial previsto no Decreto-Lei n.º 43/98, quando aplicados ao caso sub judice;
15.ª – Pelo que bem andou o Meritíssimo Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto ao decidir no sentido da não aplicação dos citados preceitos por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.”
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pela recorrida, veio o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional responder nos seguintes termos:
“1.º – Fundando-se o recurso interposto pelo Ministério Público na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, a sua cognoscibilidade depende apenas de ter ocorrido uma efectiva desaplicação das normas que integram o objecto do recurso, tal como é delimitado pelo recorrente.
2.º – Sendo evidente que, no caso dos autos, o tribunal recorrido desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas que o recorrente tratou de especificar – pelo que naturalmente se verificam inteiramente os pressupostos de admissibilidade do tipo de recurso interposto.
3.º – Afigurando-se que, na sua argumentação, a recorrida confunde os planos do objecto «normativo» de um recurso de constitucionalidade e das «questões» que o Tribunal Constitucional terá de resolver previamente, para concluir por um juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de tais normas.
4.º – E sendo evidente que, para realizar tal operação, cabe naturalmente, e por inteiro, nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional a densificação e concretização dos princípios constitucionais – no caso, o da não retroactividade da lei fiscal – quer a interpretação das próprias normas de direito infraconstitucional, na medida em que ela seja necessária à formulação do juízo acerca da constitucionalidade dos preceitos legais desaplicados – nomeadamente, no que respeita à definição de qual seja o facto tributário relevante para a situação controvertida nos autos e a sua localização temporal.
5.º – Termos em que deverá naturalmente conhecer-se do recurso, improcedendo a questão prévia suscitada.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Quer a questão de constitucionalidade que integra o presente recurso, quer a questão prévia suscitada pela recorrida foram alvo de apreciação pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 81/2005, de 16 de Fevereiro de 2005, em recurso com as mesmas partes que o presente, tendo por objecto sentença do mesmo tribunal, da mesma data e com o mesmo teor literal da ora em causa, e verificando-se nos dois casos que o requerimento de emissão de licença de construção foi apresentado em 17 de Novembro de 1997, portanto em data anterior à entrada em vigor do RCE.
Porque se subscreve a fundamentação desenvolvida nesse acórdão, a seguir se procede à sua transcrição:
“6. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do RCE anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, numa determinada interpretação: a de que, sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor do referido diploma, seria devida a contribuição especial por ele instituída, que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de
1994 e a data daquele requerimento.
Segundo o tribunal ora recorrido, as mencionadas normas, na interpretação descrita, contrariariam o disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, tendo sido, por isso, recusada a respectiva aplicação (...).
7. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (...), constitui seu pressuposto processual a recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma (ou interpretação normativa) que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Segundo a recorrida, o Tribunal Constitucional deveria abster-se de conhecer do objecto do presente recurso, pois que a identificação, pelo Ministério Público, nas suas alegações, de um facto tributário distinto daquele que foi considerado pelo tribunal recorrido implicaria que a questão a final submetida à apreciação do Tribunal Constitucional pelo Ministério Público não se reconduziria à questão analisada pelo tribunal recorrido; segundo o Ministério Público, esta argumentação não procederia, pois que a identificação de um facto tributário distinto daquele que foi considerado pelo tribunal recorrido não se repercutiria na delimitação do próprio objecto do recurso, constituído pelas normas cuja aplicação foi recusada.
Neste aspecto, assiste razão ao Ministério Público.
O que importa saber é se pode dar-se como verificado no caso o pressuposto processual do recurso interposto, ou seja, a recusa de aplicação de uma norma (ou interpretação normativa) pelo tribunal recorrido, com fundamento em inconstitucionalidade.
Ora este pressuposto encontra-se preenchido, pois que o tribunal recorrido considerou inconstitucionais as normas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do RCE anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na interpretação acima assinalada, e por isso recusou a sua aplicação. Como claramente se diz no texto do acórdão recorrido (...):
«(...) Nos termos da própria lei, a contribuição especial criada pelo Decreto-Lei n.º
43/98, de 3 de Março, incide sobre a valorização dos terrenos ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data do requerimento da respectiva licença de construção. Ou seja, prevê-se nas normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do RCE a tributação de um facto que ocorreu antes da entrada em vigor da lei que a determinou. Trata-se, portanto, de normas fiscais retroactivas.
(...).».
A circunstância de o Ministério Público discordar das razões que levaram o tribunal recorrido a formular o juízo de inconstitucionalidade, por questionar o próprio facto tributário identificado por este tribunal, não pode obviamente implicar a impossibilidade de conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
É que, não sendo este recurso, ainda que obrigatório, um recurso em que se restrinjam os normais poderes de alegação do Ministério Público, tem de se admitir que o respectivo objecto se mantém inalterado ainda que o Ministério Público discorde das razões que levaram o tribunal recorrido a concluir no sentido da retroactividade das normas que recusou aplicar, por ter identificado um facto tributário diverso daquele que foi identificado pelo tribunal recorrido.
8. Julgada improcedente a questão prévia levantada pela recorrida, vejamos agora a questão de fundo.
Importa, para tanto, considerar o texto dos artigos 1.º, n.º 2, e
2.º do Regulamento da Contribuição Especial (RCE), anexo ao Decreto-Lei n.º
43/98, de 3 de Março:
«Artigo 1.º
(...)
2 – A contribuição especial incide ainda sobre o aumento de valor dos terrenos para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes situados nas áreas referidas no número anterior.
(...).
Artigo 2.º
1 – Constitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra e o seu valor à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido por aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda constantes da portaria a que se refere o artigo 43.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, correspondendo, para o efeito, à data de aquisição a data de 1 de Janeiro de 1994 e à de realização a data da emissão do alvará de licença de construção ou de obra.
2 – Os valores que servem para determinar a diferença são determinados por avaliação nos termos do presente Regulamento.»
Como antes se assinalou, as normas dos preceitos transcritos serão analisadas numa específica interpretação, que é aquela que constitui o objecto do presente recurso: a de que a contribuição especial é devida nos casos em que a licença de construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, incidindo, como tal, sobre a valorização do terreno (no qual se pretende construir) ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento.
Não pode obviamente o Tribunal Constitucional controlar tal interpretação, sob o prisma da sua obediência às regras da interpretação da lei: nomeadamente, não pode o Tribunal Constitucional aferir se os citados preceitos legais deviam ter sido interpretados pelo tribunal recorrido do modo por que o foram, isto é, como sendo aplicáveis aos casos em que a licença de construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º
43/98, de 3 de Março. Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar se a interpretação perfilhada (bem ou mal) pelo tribunal recorrido contraria a Constituição, particularmente o princípio da não retroactividade dos impostos.
9. A contribuição especial instituída pelas normas transcritas (na sua modalidade de contribuição de melhoria), embora seja conceitualmente diferenciada do imposto, está sujeita ao regime constitucional desta figura
(cfr. José Casalta Nabais, «Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria fiscal», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 69,
1993, p. 387-434, p. 398).
E, de acordo com o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei (itálico acrescentado).
O princípio da não retroactividade dos impostos – consagrado nesta disposição com a quarta revisão da Constituição portuguesa, operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro –, «é, em geral, reconduzido ao princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, ou mesmo ao princípio da capacidade contributiva» (cfr. José Casalta Nabais, «Jurisprudência...», ob. cit., p. 404, nota 57). Assim, antes da quarta revisão da Constituição, era já possível sustentar que «é (...) no princípio da confiança jurídica, enquanto dimensão inarredável da ideia de Estado-de-direito democrático, e não simplesmente no princípio da legalidade, que se encontrará (...) um limite constitucional à admissibilidade de normas fiscais retroactivas» (cfr. J. M. Cardoso da Costa, «O enquadramento constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional», in Perspectivas Constitucionais: Nos 20 anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 397-428, p.
417).
Não obstante a norma do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição não resolver todos os problemas que, quanto à definição da lei fiscal retroactiva, se podem colocar (neste sentido, J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, Lex, 1998, p. 63), parece certo que nenhuma questão de retroactividade se coloca (e, portanto, nenhuma violação da pertinente proibição constitucional se verifica) quando o facto tributário seja instantâneo e tenha ocorrido na vigência da lei nova ou quando, sendo de formação sucessiva, tenha inteiramente ocorrido na vigência da lei nova.
10. Ora, a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido não considerou qualquer facto tributário de formação sucessiva.
Aliás, como salienta o Ministério Público nas suas alegações (...), as normas em apreço no presente recurso não pressupõem «um facto tributário de formação sucessiva, como sucederia se a lei mandasse contemplar autonomamente o acréscimo de valor ocorrido em cada ano ou período fiscal».
O facto tributário pressuposto pela interpretação normativa acolhida pelo tribunal recorrido é, assim, um facto instantâneo. Como, a propósito, salienta Jorge Bacelar Gouveia («A irretroactividade da norma fiscal na Constituição portuguesa», in Estudos de Direito Público, vol. I, Principia, 2000, pp. 257-301, p. 278), «a chave da determinação da retroactividade reside (...) na localização do nascimento do imposto, que é o da formação do facto tributário – não de qualquer outro momento posterior, como o do acto de liquidação».
Não levanta obviamente qualquer problema de retroactividade – nem de resto levantou ao tribunal recorrido – a ponderação da data de 1 de Janeiro de
1994, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do RCE, pois que a qualquer contribuição de melhoria subjaz a consideração de que ocorreu uma vantagem económica particular, o que só pode ser aferido por referência a uma situação patrimonial pretérita.
Contudo, tendo o tribunal recorrido considerado – num caso em que a licença para emissão de alvará de construção tinha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março – que o imposto incidia sobre o aumento do valor do prédio à data da apresentação do requerimento de licenciamento de construção, há que concluir que o facto tributário subjacente à interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso ocorreu num momento anterior à data da entrada em vigor do diploma que instituiu o imposto (o Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março).
Tal significa que essa interpretação normativa conduz ao pagamento retroactivo de um imposto, contrariando, por isso, o disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.”
Aderindo a esta argumentação, há que concluir, também no presente caso, pela improcedência do recurso interposto.
3. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do princípio da não retroactividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, as normas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial, anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na interpretação segundo a qual sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma seria devida a contribuição especial por este instituída, que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Março de 2005
Mário José de Araújo Torres Benjamim Silva Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos