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Processo n.º 423/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 24 de Maio de 2005, que decidira, no
uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do
objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. O arguido A. interpôs, a fls. 5629, «recurso de apreciação
concreta de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional do douto acórdão
de fls. 5317 e seguintes, do acórdão de 12 de Maio de 2004 e do douto acórdão de
fls. 5620 e seguintes, nos termos dos artigos 69.º, 70.º, n.ºs 1, alíneas b) e
i), 2 e 3, 75.º, n.ºs 1 e 2, e 76.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro».
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal
de Justiça, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional
(artigo 76.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – LTC).
E, de facto, entende-se que, no caso, não há que conhecer do
objecto do recurso, por inadmissibilidade do mesmo, o que permite a prolação de
decisão sumária, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, sem
necessidade, por manifesta inutilidade, de prévia formulação de convite ao
recorrente, ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, para indicar as menções
em falta no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade
(quanto ao recurso com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º: indicação da
norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada, da norma ou princípio
constitucional considerado violado e da peça processual em que teria sido
suscitada a questão da inconstitucionalidade; quanto ao recurso com base na
alínea h) [admitindo que houve lapso na menção da alínea i)]: identificação do
anterior acórdão do Tribunal Constitucional que teria julgado inconstitucional
a norma impugnada).
2. O recorrente interpôs recurso de três acórdãos proferidos pelo
STJ nos presentes autos:
1) o acórdão de fls. 5317 a 5468, datado de 11 de Fevereiro de 2004,
no qual o STJ rejeitou o recurso penal interposto pelo ora recorrente com um
duplo fundamento (cf. fls. 5464 e 5465): (i) tendo este arguido sido condenado
em pena de prisão inferior a 8 anos (o Tribunal da Relação confirmou a
condenação nas penas de 5 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de
estupefacientes e de 7 meses de prisão pela prática de um crime de detenção de
arma proibida e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 4 meses de
prisão), apesar de o primeiro crime ser abstractamente punível com pena de
prisão de 4 a 12 anos, a circunstância de o recurso ter sido interposto apenas
pelo arguido torna inaplicável pelo STJ pena superior à aplicada, por força da
proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal – CPP), pelo que o recurso é inadmissível nos termos da alínea f) do n.º 1
do artigo 400.º do CPP: (ii) o recorrente apenas levanta, praticamente,
questões de facto, invocando os vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo
410.º do CPP, que já foram devidamente apreciadas pelo Tribunal da Relação,
local próprio para tal exame, dado o n.º 1 do artigo 428.º do CPP, e, na
motivação do recurso interposto para o STJ, repete, praticamente, a motivação
apresentada no recurso da 1.ª instância, resultando do artigo 434.º do CPP que
tais vícios não podem servir de fundamento ao recurso interposto para o STJ,
tribunal de revista por excelência, acrescendo que, no caso, não ocorre o
circunstancialismo previsto no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, que
possibilitaria ao STJ pronunciar-se de modo oficioso sobre tais vícios;
2) o acórdão de 12 de Maio de 2004 (fls. 5524 a 5528), que indeferiu
pedido de aclaração do precedente acórdão, formulado pelo recorrente (fls. 5481
a 5490), por entender que o mesmo não padecia de qualquer ambiguidade ou
obscuridade; e
3) o acórdão de fls. 5620 a 5623, datado de 29 de Setembro de 2004,
que indeferiu a arguição de nulidade, deduzida pelo mesmo arguido, a fls. 5565
a 5571, contra o acórdão de 11 de Fevereiro de 2004, por omissão de pronúncia e
por falta de fundamentação.
A admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação cumulativa dos requisitos de
o recorrente haver suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer (n.º 2 do artigo 72.º da LTC),
e de a decisão recorrida haver feito efectiva aplicação, como ratio decidendi,
da dimensão normativa arguida de inconstitucional.
Na motivação do recurso penal interposto do Tribunal da Relação para
o STJ (fls. 5068 a 5076), o recorrente não suscitou qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, imputando ao acórdão recorrido violação do
disposto nos artigos 410.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPP, 26.º, n.º 1, e
25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e 71.º do Código
Penal.
No STJ, o representante do Ministério Público, no seu visto inicial
(fls. 5258 a 5260), suscitou a questão da rejeição do recurso com um duplo
fundamento: (i) o do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP, por não
poder ser aplicada pelo STJ, por se tratar de recurso interposto apenas pelo
arguido, pena superior à aplicada pela Relação, de acordo com orientação
actualmente dominante das duas Secções Criminais do STJ, da qual o referido
magistrado inicialmente divergiu mas com a qual se conformou; e (ii) o do
artigo 434.º do CPP, por ser inadmissível o recurso de revista visando o reexame
da matéria de facto, ainda que fundado na verificação de qualquer dos vícios do
artigo 410.º, n.º 2, do mesmo Código.
O recorrente foi notificado deste parecer, nos termos do artigo
417.º, n.º 2, do CPP (cf. fls. 5266), mas nada respondeu.
Só no pedido de aclaração de fls. 5481 a 5490 é que o recorrente
suscitou, pela primeira vez, a questão da inconstitucionalidade da
interpretação dada ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP. E só na arguição
de nulidade, deduzida a fls. 5565 a 5571, é que refere, «a talho de foice», que
o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 189/2001, teria entendido que aquela
norma se refere à «pena aplicável», e que suscita, pela primeira vez, a questão
da inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 358.º, n.ºs 1 e 3, 1.º,
n.º 1, alínea f), 359.º, n.º 1, e 119.º, alínea c), do CPP, «no sentido de que
sendo o arguido acusado e condenado pelo crime previsto no artigo 275.º, n.º 3,
do Código Penal e procedendo-se posteriormente à condenação do arguido pelo
crime previsto no artigo 6.º da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, sem que se haja
comunicado tal alteração», e da interpretação dos artigos 358.º, n.ºs 1 e 3,
359.º, n.º 1, 119.º, alínea c), e 122.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, «no sentido de que,
verificando-se em recurso uma alteração substancial ou não dos factos descritos
na acusação, a comunicação desses factos ou alteração da qualificação jurídica
pode fazer-se no tribunal de recurso».
3. Neste contexto, o presente recurso de constitucionalidade é
inadmissível.
Na verdade, relativamente à questão da inconstitucionalidade da
interpretação dada pelo STJ à norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP
não foi ela suscitada pelo recorrente, de modo e em tempo processualmente
adequados, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. O modo e o
tempo adequados para esse efeito teriam sido a resposta ao parecer do
representante do Ministério Público no STJ que suscitou a questão da rejeição
do recurso, com esse (e ainda outro) fundamento, oportunidade processual que foi
facultada ao recorrente e que este não aproveitou. Nem o pedido de aclaração
nem a arguição de nulidade do acórdão que fez aplicação da interpretação
questionada constituem já momentos adequados para a suscitação da questão de
inconstitucionalidade, como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, pois a
eventual aplicação de norma (ou interpretação normativa) inconstitucional não
torna a decisão judicial obscura ou ambígua nem acarreta a sua nulidade.
Por outro lado, nem o Acórdão n.º 189/2001 nem qualquer outra
decisão do Tribunal Constitucional se pronunciou, até ao momento, sobre a
(in)constitucionalidade da específica interpretação normativa do artigo 400.º,
n.º 1, alínea f), do CPP, acolhida pelo STJ.
Quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas, apenas no
requerimento de arguição de nulidade do acórdão que rejeitou o recurso
interposto do acórdão do Tribunal da Relação, a propósito da alteração da
incriminação, é óbvio que as decisões impugnadas não fizeram aplicação, como
sua ratio decidendi, das interpretações normativas impugnadas, que se prendem
com a alegada alteração da incriminação efectuada pelo Tribunal da Relação. Os
acórdãos do STJ agora recorridos limitaram-se a rejeitar o recurso interposto,
por inadmissibilidade do mesmo, e a constatar que o acórdão de rejeição do
recurso penal não padecia de obscuridade, ambiguidade, omissão de pronúncia ou
falta de fundamentação.
Finalmente, mesmo que as anteriores razões não fossem suficientes
para determinar o não conhecimento do recurso, sempre acresceria uma outra: a
da inutilidade desse conhecimento.
Na verdade, constitui jurisprudência reiterada do Tribunal
Constitucional (cf., por último, a Decisão Sumária n.º 101/2005), que a
decisão de constitucionalidade apresenta, em sede de fiscalização concreta, uma
«função instrumental», ou seja, a decisão da questão de constitucionalidade tem
de «influir utilmente na decisão da questão de fundo» (Acórdão n.º 169/92). Em
consequência do carácter instrumental deste recurso, a respectiva utilidade –
ou seja, a susceptibilidade de repercussão na decisão recorrida do julgamento da
questão de constitucionalidade – surge como condição do seu conhecimento (neste
sentido, Acórdãos n.ºs 366/96, 463/94, 634/2003 e 687/2004 e Victor Calvete,
«Interesse e relevância da questão de constitucionalidade, instrumentalidade e
utilidade do recuso de constitucionalidade – quatro faces de uma mesma moeda»,
Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra,
2003, pág. 424). Se assim não sucede (ou seja, se mesmo a concluir-se pela
inconstitucionalidade, a decisão sempre permaneceria a mesma), falta utilidade
ao recurso. Pelo que importará sempre proceder a um juízo de «antecipação»
quanto às consequências, na decisão recorrida, de um juízo de
inconstitucionalidade da norma questionada.
Ora, resulta da fundamentação do primeiro acórdão recorrido (de que
os outros dois estão dependentes) que a decisão de rejeição do recurso assentou
num duplo fundamento – por um lado, a interpretação dada à alínea f) do n.º 1 do
artigo 400.º do CPP; por outro, o comando do artigo 434.º do mesmo Código –,
qualquer um deles suficiente para, por si só, sustentar aquela decisão. O
recorrente jamais suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade
relativamente ao segundo fundamento, pelo que, mesmo que o recurso de
constitucionalidade viesse a proceder, por se reputar inconstitucional a
interpretação dada ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, sempre a decisão
de rejeição do recurso penal se manteria, embora limitada ao fundamento extraído
da norma do citado artigo 434.º. Sendo a decisão do recurso de
constitucionalidade insusceptível de afectar o sentido da decisão recorrida, é
inútil o seu conhecimento.
4. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do recurso.”
1.2. A reclamação apresentada pelo recorrente contra a
decisão sumária do relator desenvolve a seguinte fundamentação:
“2. Crítica da Decisão Reclamada
Se relativamente às razões apontadas para o não conhecimento da
inconstitucionalidade do artigo 400.°, n.º 1, alínea f), do Código de Processo
Penal na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, o
reclamante tende a concordar com as mesmas, já quanto às razões para o não
conhecimento das restantes questões de (in)constitucionalidade o mesmo não se
pode dizer.
De facto, o reclamante, no requerimento de arguição de nulidades,
tendo em conta a alteração da qualificação jurídica decorrente de o mesmo ter
sido acusado e condenado em 1.ª instância pelo crime previsto no artigo 275.°,
n.ºs 1 e 3, do Código Penal e posteriormente, sem que tal alteração lhe tenha
sido comunicada ou ao seu defensor, sido condenado na Relação do Porto pelo
crime previsto no artigo 6.° da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, arguiu duas
nulidades, em alternativa, de duas formas diferentes:
a) A primeira como nulidade do acórdão do STJ nos termos do disposto
no artigo 119.°, alínea c), e 379.º, n.º l, alínea c), do Código de Processo
Penal, ex vi artigo 425.°, n.º 4, do mesmo Código, dizendo que a mesma é de
conhecimento oficioso, como se segue:
«Se assim não se considerar, a interpretação que se retira do
vertido nos artigos 358.°, n.ºs 1 e 3, 1.°, n.º 1, alínea f), 359.°, n.º 1, e
119.°, alínea c), do Código de Processo Penal no sentido de que, sendo o arguido
acusado e condenado pelo crime previsto no artigo 275.°, n.º 3, do Código Penal
e procedendo-se posteriormente à condenação do arguido pelo crime previsto no
artigo 6.° da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, sem que se haja comunicado tal
alteração, é inconstitucional por violação do principio do contraditório e das
garantias de defesa postulados no artigo 32.°, n.ºs 1, 5 e 6, da Constituição.
Ora, a nulidade que se argui é insanável e, portanto, de
conhecimento oficioso (cfr. o artigo 119.°, alínea c), do Código de Processo
Penal), pelo que este tribunal dela poderia e deveria conhecer.
Não o fazendo, o acórdão de fls. 5713 e seguintes enferma de
nulidade, uma vez que este Tribunal não conheceu de questões de que deveria
conhecer (cfr. o artigo 379.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal).»
b) A segunda como nulidade insanável de conhecimento autónomo
prevista no artigo 119.°, alínea c), do Código de Processo Penal, dizendo-se:
«Mesmo que não se considere a arguida nulidade como nulidade de
sentença, sempre a mesma terá de ser apreciada autonomamente como nulidade
insanável, sendo que na procedência da presente arguição de nulidade a
consequência não poderá ser a baixa dos autos à Relação para que seja
comunicada a alteração dos factos ou da qualificação jurídica.
De facto, terão os autos de baixar à 1.ª instância para que seja
comunicada a alteração ao arguido, sob pena de se escamotear ao arguido o
direito ao recurso, sendo que a interpretação do vertido nos artigos 358.°, n.ºs
1 e 3, 359.°, n.º 1, 119.°, alínea c), e 122.°, n.ºs 1 e 2, do Código de
Processo Penal no sentido de que, verificando-se em recurso uma alteração
substancial ou não dos factos descritos na acusação, a comunicação desses factos
ou alteração da qualificação jurídica pode fazer-se no tribunal de recurso, é
inconstitucional por violação das garantias de defesa, do direito ao recurso e
do acusatório nos termos do disposto no artigo 32.°, n.ºs 1 e 5, da
Constituição.»
Vejamos agora, ponto por ponto, o porquê de o reclamante entender
que o recurso que se interpôs deveria ser recebido, ainda que em primeiro lugar
tivesse de ser notificado nos termos do disposto no artigo 75.°-A, n.º 6, da
LTC.
1) Do cumprimento do ónus de o recorrente sustentar a questão de
constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este ter a obrigação de a conhecer
(artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Em primeiro lugar, como se disse, a decisão reclamada entendeu que
não estavam reunidos os pressupostos para que se tomasse conhecimento do recurso
tendo em conta que a arguição de inconstitucionalidade foi inatempada, dado que
só foi suscitada no requerimento de arguição de nulidades e, como tal, a questão
da inconstitucionalidade não teria sido suscitada de modo processualmente
adequado, ou seja, em termos de o tribunal recorrido estar obrigado a dela
conhecer.
Ora, entende o reclamante que suscitando uma questão de
inconstitucionalidade relativa à arguição de uma nulidade que é do conhecimento
oficioso nos termos da lei de processo que a regula, o tribunal está sempre
obrigado a conhecer da mesma, a menos que tal nulidade e consequente
inconstitucionalidade seja arguida depois do trânsito em julgado da decisão
recorrida.
De facto, dispõe o artigo 119.°, alínea c), do Código de Processo
Penal que:
«Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente
declaradas em qualquer fase do procedimento (..):
a) (..);
b) (..);
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei
exigir a respectiva comparência;»
Por seu turno, relativamente à nulidade prevista no artigo 379.°,
n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, diz o n.° 2 do mesma disposição
que: «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso,
sendo lícito ao tribunal supri-las (...)»
Assim, sendo as nulidades arguidas de conhecimento oficioso e, como
tal, passíveis de ser suscitadas a todo o tempo, as questões de
constitucionalidade que às mesmas concernem são de conhecimento obrigatório
para o tribunal uma vez que, quanto às mesmas, não se esgotou o seu poder
jurisdicional (cfr. o artigo 670.°, n.º 3, do Código de Processo Civil).
De facto, condição da admissibilidade do recurso, tendo a questão da
inconstitucionalidade sido suscitada após a prolação da decisão final, «(..) é a
de a questão se conexionar com outra relativamente à qual o poder de jurisdição
do Tribunal a quo se não esgotou com a anterior decisão e de tal forma que esse
Tribunal ainda possa examinar, por via de reclamação, essa outra questão.
Assim, entendeu o TC (...) que, se na reclamação for arguida a
inconstitucionalidade de normas relevantes para a decisão de questões sujeitas
ainda ao poder de jurisdição do Tribunal (como serão as questões processuais
autonomamente postas em tal reclamação), já esta constitui meio idóneo e
atempado de suscitar a questão (Acórdãos n.ºs 206/86, 366/96 e 674/99).» – cfr.
Breviário de Direito Processual Constitucional, de Guilherme da Fonseca e Inês
Domingos, 2.ª edição, páginas 49 e 50.
Neste sentido a arguição da nulidade insanável prevista no artigo
119.°, alínea c), do Código de Processo Penal há-de considerar-se uma questão
autónoma relativamente às restantes questões de nulidade levantadas no
requerimento da sua arguição.
Do mesmo passo, a arguição da nulidade do acórdão por via do
disposto nos artigos 119.°, alínea c), 358.°, 359.° e 379.°, n.° 1, alínea c),
do CPP, sendo de conhecimento oficioso, leva a que a questão de
constitucionalidade conexa possa ser conhecida pelo tribunal recorrido.
Além disso, o acórdão que entenda que a alteração da qualificação
jurídica não deve ser comunicada ao arguido ou ao seu defensor, trata-se de uma
decisão verdadeiramente surpreendente por atentar contra o direito de defesa e
contra o princípio do contraditório constitucionalmente consagrados.
2 – Quanto à questão de as decisões impugnadas não terem feito
aplicação das interpretações normativas que se prendem com a alteração da
incriminação.
Diz-se ainda na decisão sumária reclamada que as decisões recorridas
não fizeram aplicação das interpretações normativas impugnadas que se prendem
com a alegada alteração da incriminação efectuada pelo Tribunal da Relação,
limitando-se as mesmas a constatar que o recurso era inadmissível e que o
acórdão não padecia de obscuridade, ambiguidade, omissão de pronúncia ou falta
de fundamentação.
Ora, como se disse, arguiu-se a nulidade do acórdão por omissão de
pronúncia relativamente à nulidade insanável invocada e ao mesmo tempo
referiu-se: «Mesmo que não se considere a arguida nulidade como nulidade de
sentença sempre a mesma terá de ser apreciada autonomamente como nulidade
insanável (..)».
No acórdão proferido a fls. 5620 e seguintes diz-se que a arguida
nulidade resultante da falta de comunicação da alteração da qualificação
jurídica dos factos ao arguido não é insanável, daí que, tendo-se questionado a
constitucionalidade da interpretação do artigo 119.°, alínea c), a decisão
impugnada fez aplicação da interpretação normativa arguida de inconstitucional.
Mas, ainda que assim não se entendesse, certo é que «A aplicação da norma tanto
pode ser expressa com implícita (Acórdãos n.ºs 88/86, 47/90 e 253/93)», sendo
certo que «o não conhecimento por parte de um Tribunal da inconstitucionalidade
de uma norma, quando podia e devia fazê-lo, equivale a aplicação implícita da
mesma (Acórdão n.º 318/90)».
Tendo em conta que, como se alegou, o Tribunal podia ter conhecido
da questão de constitucionalidade, ainda que se entenda que esse mesmo Tribunal
não conheceu dessa questão, o Tribunal Constitucional não está impedido de a
conhecer.
3 – Da inutilidade do conhecimento do recurso.
Por fim, a decisão sumária reclamada entendeu não tomar
conhecimento do recurso porquanto o conhecimento do mesmo seria inútil dado que
a decisão de rejeição se manteria.
Tendo em conta que, como se disse, se arguiu a nulidade constante do
artigo 119.°, alínea c), autonomamente, a procedência de tal nulidade teria como
efeito, nos termos do disposto no artigo 122.°, n.º 1, do Código de Processo
Penal, a invalidade do acto em que se verificou, bem como dos que dele
dependessem, pelo que o conhecimento da questão de constitucionalidade que se
prende com o disposto no artigo 119.°, alínea c), levaria a que, pelo menos,
fossem declarados nulos os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e o acórdão
do Tribunal da Relação.
Assim, pode firmemente concluir-se que o conhecimento das duas
questões de constitucionalidade suscitadas relativamente à alteração da
qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido não é, de forma alguma,
irrelevante para a decisão da questão de fundo, uma vez que poderia determinar
a nulidade de tal decisão.
Concluindo: este Tribunal deve conhecer do recurso quanto às
questões de constitucionalidade suscitadas relativamente à alteração da
qualificação jurídica dos factos. Designadamente deve aquilatar se a
interpretação que se retira do vertido nos artigos 358.°, n.ºs 1 e 3, n.º 1,
alínea f), e 119.°, alínea c), do Código de Processo Penal no sentido de que,
sendo o arguido acusado e condenado pelo crime previsto no artigo 275.°, n.º 3,
do Código Penal e procedendo-se posteriormente à condenação do arguido pelo
crime previsto no artigo 6.° da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, sem que se haja
comunicado tal alteração, é inconstitucional, por violação do princípio do
contraditório e das garantias de defesa postulados no artigo 32.°, n.ºs 1, 5 e
6, da Constituição.
Além disso, deverá ainda este Tribunal conhecer a questão de
constitucionalidade referente ao entendimento de que a nulidade do artigo
119.°, alínea c), tem de ser conhecida pela primeira instância, sendo comunicada
a alteração da qualificação jurídica ao arguido sob pena de se escamotear ao
mesmo o direito ao recurso, sendo que, no caso contrário, a interpretação dos
artigos 358.°, n.ºs 1 e 3, 359.°, n.º 1, 119.°, alínea c), e 122.°, n.ºs 1 e 2,
do Código de Processo Penal no sentido de que, verificando-se em recurso uma
alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação, a
comunicação desses factos ou a alteração da qualificação jurídica dever
fazer-se no Tribunal de recurso, é inconstitucional por violação das garantias
de defesa, do direito ao recurso e do princípio acusatório nos termos do
disposto no artigo 32.°, n.ºs 1 e 5, da Constituição.”
1.3. Notificado da apresentação desta reclamação, o
representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou
resposta, propugnando o seu indeferimento, porquanto:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente,
assentando em erradas premissas por parte do recorrente.
2 – Na verdade, o ora reclamante confunde os planos da ocorrência de
eventuais nulidades procedimentais, na tramitação dos autos perante as
instâncias, e da existência de nulidades do acórdão proferido pelo Supremo
Tribunal de Justiça.
3 – Sendo evidente que não constitui nulidade por omissão de
pronúncia o facto de o Supremo Tribunal de Justiça, ao considerar legalmente
inadmissível o recurso perante ele interposto pelo arguido, se não pronunciar
sobre o mérito do mesmo, em que se incluía a apreciação das invocadas nulidades
do processo, alegadamente cometidas pela Relação.
4 – Não fazendo, deste modo, o mínimo sentido atacar o acórdão que
entendeu, com base em certa interpretação normativa do artigo 400.° do Código
de Processo Penal, ser inadmissível o recurso, invocando o carácter «insanável»
das nulidades do processo que integravam o objecto de tal recurso do arguido, e
sendo evidente que as normas que se reportavam a tais nulidades procedimentais
não foram – nem tinham de ser – aplicadas pelo acórdão que julgou não ocorrer
qualquer omissão de pronúncia.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como resulta do teor da reclamação apresentada, o
recorrente conforma-se com a decisão sumária de não conhecimento, na parte em
que se reporta à questão da inconstitucionalidade da interpretação dada pelo
STJ ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.
Ficando, assim a reclamação limitada à decisão de não
conhecimento do recurso na parte respeitante à questão da
inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 358.º, n.ºs 1 e 3, 1.º, n.º
1, alínea f), 359.º, n.º 1, e 119.º, alínea c), do CPP, “no sentido de que sendo
o arguido acusado e condenado pelo crime previsto no artigo 275.º, n.º 3, do
Código Penal e procedendo-se posteriormente à condenação do arguido pelo crime
previsto no artigo 6.º da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, sem que se haja
comunicado tal alteração”, e da interpretação dos artigos 358.º, n.ºs 1 e 3,
359.º, n.º 1, 119.º, alínea c), e 122.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, “no sentido de que,
verificando-se em recurso uma alteração substancial ou não dos factos descritos
na acusação, a comunicação desses factos ou alteração da qualificação jurídica
pode fazer-se no tribunal de recurso”, o que na decisão ora reclamada se
consignou foi que, tendo essa questão sido suscitada pela primeira vez no
requerimento de arguição de nulidade do acórdão do SJT que rejeitara o recurso
interposto do Tribunal da Relação do Porto, era “óbvio que as decisões
impugnadas não fizeram aplicação, como sua ratio decidendi, das interpretações
normativas impugnadas, que se prendem com a alegada alteração da incriminação
efectuada pelo Tribunal da Relação”, uma vez que “os acórdãos do STJ agora
recorridos limitaram-se a rejeitar o recurso interposto, por inadmissibilidade
do mesmo, e a constatar que o acórdão de rejeição do recurso penal não padecia
de obscuridade, ambiguidade, omissão de pronúncia ou falta de fundamentação”.
As considerações tecidas pelo reclamante em nada abalam
esta conclusão. Na verdade, tendo o STJ decidido rejeitar o recurso por
inadmissibilidade do mesmo, o não conhecimento das questões suscitadas na
motivação do recurso rejeitado não constitui omissão de pronúncia, pois o não
conhecimento dessas questões é consequência necessária da solução negativa dada
à questão da admissibilidade do recurso (cf. artigo 660.º, n.º 2, do Código de
Processo Civil). Acresce que, na motivação do recurso para o STJ (fls. 5069 a
5076), nenhuma alusão é feita à questão da alteração da incriminação pelo crime
de uso de detenção de arma proibida nem nenhuma questão de inconstitucionalidade
é suscitada a esse respeito. Essa motivação versa exclusivamente sobre a
condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes e incide sobre alegados erro
da decisão da matéria de facto.
Assim, nem a arguição de nulidade do acórdão do STJ que
rejeitou o recurso do recorrente era momento adequado para a suscitação da
questão de inconstitucionalidade, nem o acórdão que desatendeu essa arguição
aplicou, sequer implicitamente, as normas cuja inconstitucionalidade o
recorrente pretende ver apreciada.
Anote-se ainda que, no mesmo requerimento em que
interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 5629 e 5630), o recorrente
requereu a baixa do processo à 1.ª instância ou ao Tribunal da Relação para ser
apreciada a alegada nulidade relativa à alteração da qualificação do crime de
detenção de arma proibida. Essa pretensão foi indeferida por despacho do
Conselheiro Relator do STJ, de 16 de Dezembro de 2004 (fls. 5633 e 5634), que
considerou sanada essa pretensa nulidade e consignou ter-se por transitada toda
a matéria relacionada com a condenação pelo crime de tráfico de
estupefacientes. O recorrente reclamou desse despacho para a conferência,
suscitando, entre outras, a questão da inconstitucionalidade da interpretação
dada aos artigos 63.º, n.º 1, 358.º, n.ºs 1 e 3, 1.º, n.º 1, alínea f), 359.º,
n.º 1, e 119.º, alínea c), do CPP, que consentiria a alteração da incriminação
pelo crime de detenção de arma proibida sem prévia comunicação ao arguido (fls.
5651 a 5657). Essa reclamação foi indeferida por acórdão de 9 de Fevereiro de
2005 (fls. 5668), contra o qual o recorrente apresentou requerimento de arguição
de nulidade (fls. 5687 a 5689), reeditando essa questão de
inconstitucionalidade, além de outras. O STJ, por acórdão de 20 de Abril de 2005
(fls. 5697 a 5699), no uso da faculdade prevista no artigo 720.º do CPC, ex vi
artigo 4.º do CPP, determinou a extracção de traslado para posterior apreciação
dessa arguição de nulidade, determinando a remessa do processo ao Tribunal
Constitucional para apreciação do recurso interposto do acórdão de rejeição do
recurso da Relação e dos acórdãos que desatenderam pedido de aclaração e de
arguição de nulidade daquele. Como deste relato resulta, é o próprio recorrente
que, com a sua conduta processual, coonesta o entendimento de que a questão da
eventual nulidade por alteração não previamente notificada da qualificação
criminal não radica nos acórdãos proferidos pelo STJ, o que comprova que
nestes, como se entendeu na decisão sumária ora reclamada, não se fez
aplicação, sequer implícita, da interpretação normativa a esse respeito
questionada. Será na sequência do desfecho da arguição de nulidade que se
encontra pendente, em traslado, no STJ, que poderá tal questão, uma vez reunidos
os respectivos pressupostos, constituir objecto de eventual recurso para o
Tribunal Constitucional.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos