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Processo n.º 438/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que
é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi proferida decisão sumária,
ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), por se ter entendido
que não podia conhecer-se do objecto do recurso, interposto ao abrigo do
disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da mesma Lei. Pretendia o recorrente a
apreciação dos artigos 400º, nº 1, alínea f), e 412º, nºs 2 e 3, do Código de
Processo Penal.
Considerou o Tribunal, em relação à primeira norma, que não foi suscitada
atempadamente a questão de inconstitucionalidade; quanto ao artigo 412º do
Código de Processo Penal, entendeu-se, por um lado, que a norma não foi aplicada
pela decisão recorrida e, por outro, que, durante o processo, não foi suscitada
a inconstitucionalidade da norma, mas sim da decisão proferida.
Foi utilizada a seguinte fundamentação:
“(…) 1. No que respeita à norma contida na alínea f) do nº 1 do artigo 400º do
Código de Processo Penal, é o próprio recorrente quem, no requerimento de
interposição de recurso, faz referência ao problema da verificação do requisito
da suscitação atempada da questão de constitucionalidade. De facto, estabelece a
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC – norma ao abrigo da qual foi interposto
o presente recurso - que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo; tal suscitação há-de ainda ter ocorrido “de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72º, 2, da LTC).
(…)
Ora, neste tocante, e sendo certo que a questão da inconstitucionalidade do
artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, não foi suscitada em
qualquer peça processual anterior ao requerimento de interposição de recurso,
esclarece o recorrente que a questão da constitucionalidade normativa não foi
anteriormente suscitada, em virtude de não ser previsível que o Supremo Tribunal
de Justiça viesse, ao contrário do determinado no Douto Tribunal da Relação de
Lisboa, a rejeitar o recurso interposto. Sucede, porém, que, como resulta de
quanto acima se transcreveu, não pode acompanhar-se esta conclusão. Na verdade,
o recorrente, para além de dever, em qualquer caso, contar com a possibilidade
de aplicação da norma, foi expressamente alertado para o problema mediante as
posições quanto ao mesmo expressas, primeiro na Relação de Lisboa e depois no
Supremo Tribunal de Justiça, pelo Ministério Público.
O arguido foi notificado dos pareceres em que se sustentou, justamente por força
da aplicação da alínea f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, a
inadmissibilidade do recurso e apresentou mesmo a sua resposta. Nesta,
pronunciou-se sobre a recorribilidade da decisão, mas não sobre a eventual
inconstitucionalidade da norma, possibilidade de que claramente dispunha em tal
momento processual, anterior à prolação da decisão recorrida. Nenhuma razão
assiste, pois, ao recorrente para que se tenha por dispensado, face ao exposto,
do ónus de suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade, decorrente
do preceituado nos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, ambos da LTC.
Por outro lado, não pode deixar de assinalar-se que, como foi referido na
decisão recorrida, o Tribunal Constitucional pronunciou-se já, por diversas
vezes, acerca da norma contida na alínea f) do nº 1 do artigo 400º do Código de
Processo Penal. Assim, designadamente pelos Acórdãos nºs 435/2001, 102/2004 (não
publicados), este Tribunal decidiu julgar não inconstitucional a mencionada
norma. Circunstância que, se não sobreviesse a já apontada falta de requisitos
de admissibilidade do recurso, que determina, nesta parte, a prolação de decisão
sumária (artigo 78º-A, nº 1, da LTC), sempre poderia vir a determinar o não
acolhimento da pretensão do recorrente.
2. Relativamente ao artigo 412º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, uma
outra circunstância impede o conhecimento do mérito do recurso. Na verdade, no
caso vertente, decorre da mera leitura da decisão recorrida, acima transcrita,
que a mesma não aplicou o artigo referido pelo recorrente, o que, aliás, resulta
da natureza da decisão em causa. Esta consiste na rejeição, por
inadmissibilidade legal, de recurso interposto, sendo certo que a norma referida
pelo recorrente respeita à elaboração das conclusões de recurso. Ora, um dos
requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da LTC é a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi,
da norma cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente.
E bem se compreende que assim seja: a 'exigência, de que a norma aplicada
constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a
decisão da questão de constitucionalidade poder reflectir-se utilmente no
processo. Sendo a referência à norma questionada mero obter dictum, ou existindo
na decisão recorrida outro fundamento, por si só, bastante para essa decisão, a
intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade
constitucional da norma impugnada não se reflectirá utilmente no processo, uma
vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada
seja declarada inconstitucional' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº
497/99, não publicado, e, no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos nºs
367/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994, 496/99, não
publicado, 674/99, Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000,
155/2000, Diário da República, II Série, de 9 de Outubro de 2000, e 418/01, não
publicado).
De qualquer forma, cumpre assinalar que, ainda que a decisão recorrida tivesse
aplicado a norma em causa, a falta de um outro requisito ditaria, no caso, a
impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso: o recorrente não suscitou
durante o processo a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 412º, nºs
2 e 3 do Código de Processo Penal.
Na verdade, do trecho processual que, face à exigência contida na parte final do
nº 2 do artigo 75º-A da LTC, o recorrente identifica como aquele em que suscitou
a questão de inconstitucionalidade desta norma (supra transcrito - ponto 3. do
Relatório), consta o seguinte:
“10. - O Acórdão Recorrido refere não ter sido dado cumprimento ao disposto no
art.º 412.º n.ºs 3 e 4 do CPP;
11. - Atendendo ao supra referido não se compreende como pode não ter sido dado
cumprimento ao disposto no referido normativo legal;
12. - Assim, também o disposto no art.º 412.º n.ºs 2 e 3 do CPP se mostra
violado;
13. - O Tribunal Recorrido considerou-se incapaz de sindicar a opção do Tribunal
Colectivo por inexistência de imediação na prova gravada ou escrita;
14. - Mais, acrescenta que o Juiz em 1ª Instância goza do princípio da livre
apreciação da prova e formação da convicção que é igualmente insindicável pela
Relação;
16. - A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente a
recorribilidade de todas as decisões judiciais em processo penal, não excluindo
a formação da convicção sobre a matéria de facto;
17. - Considerar que existe qualquer decisão da 1ª instância que é insindicável
equivale a atribuir a irrecorribilidade à decisão em claro confronto com o
disposto no art.º 32.º da CRP;
18. - Assim, o entendimento vertido no Douto Acórdão Recorrido violou o disposto
nos art.ºs 379.º n.º 1 do CPP e art.º 32.º n.º 1 da CRP” (itálico aditado).
Do excerto transcrito resulta que, também nesta parte, o recorrente atribuíu à
própria decisão recorrida e não a qualquer norma o vício da
inconstitucionalidade, referindo, aliás, a violação pela decisão recorrida, em
simultâneo, de normas de direito infraconstitucional e de normas da
Constituição. Ora, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº
489/04, tal implica, de facto, o juízo de que tais normas estão em consonância
com a Constituição, sendo justamente a situação inversa que justifica o recurso
para o Tribunal Constitucional: “se se utiliza uma argumentação consubstanciada
em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente,
violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de
desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos
factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infra-constitucional que se tem
por violado com essa decisão, pois que se posta como contraditório sustentar-se
que há violação desse ordenamento e este é desconforme com o Diploma Básico.
Efectivamente, se um preceito da lei ordinária é inconstitucional, não deverão
os tribunais acatá-lo, pelo que esgrimir com a violação desse preceito,
representa uma óptica de acordo com a qual ele se mostra consonante com a
Constituição” (itálico aditado; decisão não publicada).
Trata-se, pois, de situação em que, para além do mais, o que de facto se
sustentou sempre foi a inconstitucionalidade da decisão recorrida e não de
qualquer norma. Também esta circunstância, que acresce à da não aplicação da
norma pela decisão recorrida, sempre imporia, nesta parte, a presente decisão
sumária, face à impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso (artigo
78º - A, nº 1, da LTC)”.
2. Da decisão sumária vem agora o então recorrente reclamar para a conferência,
ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, mediante o seguinte
requerimento:
“A interposição do recurso do Arguido para esse Tribunal foi feita ao abrigo do
disposto no art.º 70, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82 de 15 de Novembro - Lei
Orgânica sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional -, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 85/89 de
Setembro rectificado no D.R. de 21/09/89, lª série, pág.4.208. (Lei 13-Al98)
O Arguido pretendia em suma ver apreciada a inconstitucionalidade material da
alínea f) do art.º 400 do C.P.P. nomeadamente quanto ao caso de concurso de
infracções, pois entende que tal norma viola o disposto nos artºs 13.º, 20.º e
32° da Constituição da República Portuguesa.
Tal questão de constitucionalidade normativa não foi anteriormente suscitada
pois não era previsível que o Supremo Tribunal de Justiça rejeitasse o recurso
interposto.
Além disso, o ora Reclamante pretendeu igualmente ver apreciada a
inconstitucionalidade material do art° 412 n.ºs 2 e 3 do C.P.P.
Neste caso, o pedido do Arguido resulta do facto de tal norma afastar a
sindicância por Tribunal Superior da livre apreciação da prova produzida em
audiência de julgamento.
No entender do Arguido, a referida norma viola claramente o princípio da
recorribilidade das decisões judiciais ao arrepio do disposto no art.º 32.º da
Constituição da República Portuguesa.
Tal questão foi suscitada nas motivações de recurso do ora Reclamante.
Assim, o que o Arguido e ora Reclamante pretende é a aferição da
constitucionalidade das normas supre referidas em confronto com os preceitos
constitucionais que entende serem ofendidos.
È evidente que a determinação da inconstitucionalidade de tais normas poderá ter
efeito sobre a sentença de que o Arguido foi alvo, porém, in casu o que se
pretende e requereu é a aferição da constitucionalidade das normas e não das
decisões”.
3. O Ministério Público respondeu, qualificando como manifestamente improcedente
a reclamação, por a argumentação do reclamante em nada abalar os fundamentos da
decisão reclamada, no que respeita à óbvia inverificação dos pressupostos do
recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Analisado o teor da presente reclamação, verifica-se que da mesma nada resulta
que possa pôr em causa o anteriormente decidido, pois que o reclamante não aduz
quaisquer argumentos susceptíveis de infirmar os fundamentos da decisão de não
conhecimento do objecto do recurso.
1. No que concerne ao artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal,
o reclamante limita-se a reproduzir aquilo que já havia afirmado no requerimento
de interposição de recurso para este Tribunal, ou seja, que não era previsível
que o Supremo Tribunal de Justiça rejeitasse o recurso interposto. Para além de
não esclarecer em que medida e por que razões tal não era previsível, o
reclamante em nada contraria os argumentos utilizados na decisão sumária.
2. Relativamente ao artigo 412º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal,
verifica-se, no que diz respeito à não aplicação, pela decisão recorrida, da
norma em causa, que nada é dito na reclamação em apreço. Cumprindo realçar que a
falta de tal pressuposto sempre seria suficiente para que não se pudesse, in
casu, conhecer do objecto do recurso.
Por outro lado, no que toca à questão da não suscitação da questão de
inconstitucionalidade normativa, limita-se o reclamante a afirmar que a questão
foi suscitada nas motivações de recurso e que o que se pretende e requereu é a
aferição da inconstitucionalidade das normas e não das decisões. Tal asserção
não fica, porém, demonstrada, não ensaiando sequer o reclamante fazê-lo, por
qualquer meio. O reclamante não contraria, pois, a decisão sumária proferida,
demonstrando haver suscitado atempadamente uma questão de inconstitucionalidade
normativa.
Impõe-se, assim, o indeferimento da reclamação deduzida, com a consequente
manutenção da decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto para
o Tribunal Constitucional.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Lisboa, 6 de Julho de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício