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Processo n.º 560/01
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., interpôs, junto do Tribunal Central Administrativo, recurso
contencioso contra o despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais,
datado de 12-08-1997, que havia indeferido um recurso hierárquico deduzido
contra as correcções efectuadas pela Administração fiscal relativamente à
matéria tributável de IRC declarada no ano de 1992.
O Tribunal Central Administrativo, por Acórdão de fls. 192 e seguintes, negou
provimento ao recurso por não se verificar qualquer vício dos que haviam sido,
em alegações, imputados ao acto recorrido.
De tal decisão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo, tendo a recorrente feito constar nas conclusões do alegado,
entre outros, os seguintes argumentos:
“(...)
A) O douto acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto no art. 668.º,
n.º 1, al. b) do CPC, ex vi art. 1.º da LPTA, porquanto considera que as
correcções efectuadas pelo acto foram feitas de acordo com a lei (art. 57.º do
CIRC) sem ter dado como provados os factos que suportam a referida decisão;
B) O art.º 57.º, n.º 1, do CIRC permite à Administração Fiscal efectuar
correcções que sejam necessárias para a determinação do lucro tributável sempre
que, em virtude das relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa,
sujeita ou não a IRC, tenham sido estabelecidas condições diferentes das que
seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o
lucro apurado com base na contabilidade seja diverso do que se apuraria na
ausência dessas relações;
C) Em direito fiscal, por força do princípio da legalidade previsto no art.
106.º, n.º 2, da Constituição da República e dos princípios da tipicidade e
determinação em que aquele se desdobra, as normas de incidência têm de ser
predeterminadas no seu conteúdo, devendo os elementos integrantes da mesma estar
formulados de modo preciso e determinado;
D) A determinação do conteúdo da norma tributária de incidência exclui a
utilização de conceitos vagos e indeterminados, cuja aplicação ao caso concreto
assenta em valoração subjectiva ou pessoal do órgão de aplicação, sob pena de
ser postergada a segurança jurídica;
E) Não estando definidos na lei ordinária fiscal os conceitos de relações
especiais e dos critérios que permitam determinar as condições diferentes das
que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, a grande amplitude
e indeterminação do conteúdo desses conceitos permitem ao órgão de aplicação
recorrer à arbitrariedade para fixar as correcções ao lucro tributável apurado
com base na contabilidade, sacrificando-se assim a segurança jurídica, que se
traduz na susceptibilidade de previsão objectiva, pelos particulares, das suas
situações jurídicas futuras;
F) A norma do n.º 1 do art.º 57º do CIRC estando formulada em termos vagos e
imprecisos, com recurso a conceitos indeterminados é uma norma materialmente
inconstitucional, por ofensa do princípio da tipicidade e legalidade consagrado
no citado art.º 106º, n.º 2, da CRP;
G) O reconhecimento expresso no texto do acórdão recorrido de que a lei não
esclarece o que deve entender-se por “relações especiais” confirmam o carácter
indeterminado do conteúdo da norma e a necessidade de valorações subjectivas
para fixação dos conceitos nela integrados;
H) A norma contida no art.º 57º, n.º 1, do CIRC foi assim aplicada, mas é
desconforme à Constituição, com o Princípio da Legalidade, vertido no seu n.º 2,
do art.º 106º e como tal deverá ser declarada tal inconstitucionalidade;
(…)”.
O Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 6 de Junho de
2001, negou provimento ao recurso. Aí foram analisadas as questões suscitadas
pela recorrente nos seguintes termos:
“(…) Sustenta a recorrente que o art. 57.º, n.º 2, do CIRC é
inconstitucional, por violação do ex-art. 106.º, n.º 2, da CRP, pois não define
os conceitos de relações especiais e dos critérios que permitam determinar as
condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas
independentes, tendo em conta a grande amplitude destes conceitos e a sua
indeterminação, os quais permitem ao Fisco recorrer à arbitrariedade para fixar
as correcções do lucro tributável apurado com base na contabilidade,
sacrificando-se assim a segurança jurídica, que se traduz na susceptibilidade de
previsão objectiva pelos particulares, das suas situações futuras. A recorrente
não concorda com esses termos vagos e imprecisos nem com o recurso a conceitos
indeterminados por parte do legislador fiscal, pelo que entende ter sido
ofendido o princípio da tipicidade (…).
Resulta desta norma [artigo 57.º, n.º 1, do CIRC] que relações
especiais são as que se tenham estabelecido em condições diferentes das que
seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes. Logo, o conceito de
relações especiais está definido em função do conceito de pessoas independentes.
Este conceito de relações especiais volta a estar definido da mesma forma pelo
art. 80.º, al. b), do Código de Processo Tributário.
Como ensinou o Prof. Casalta Nabais, o princípio constitucional da
legalidade não impede em absoluto que a norma, mormente por razões de
praticabilidade em que sobressai a luta eficaz contra a fraude e a evasão
fiscais, utilize nesse domínio conceitos indeterminados ou se socorra mesmo da
atribuição de discricionariedade à administração fiscal. Diz esse fiscalista que
o art. 57.º do CIRC, sobre relações especiais, é um dos casos em que a lei
concede uma verdadeira faculdade discricionária à administração fiscal (…).
Logo, não estamos em face de um verdadeiro conceito indeterminado, pois
ele tem alguma determinação: relações especiais são aquelas que não têm lugar
entre pessoas independentes. Mas o Fisco é que vê, caso por caso, quando é que
há verdadeiras relações especiais, sem prejuízo de os tribunais tributários
poderem controlar os casos de erro manifesto do Fisco.
Ora, tendo em conta os factos dados como provados não parece ter havido
erro manifesto por parte do Fisco. Desde logo, tenha-se em conta que um terreno
foi vendido em 1992 pelo preço por que fora comprado em 1973, o que contraria
todas as regras da experiência da vida.
Deste modo, o art. 57.º, n.º 1, do CIRC não é inconstitucional.
Sustenta a recorrente que o referido preceito não diz o que se deve
entender por relações especiais. Mas se a recorrente reparar bem, esse preceito
diz que relações especiais são aquelas que são diferentes das que seriam
normalmente estabelecidas entre pessoas independentes (…)”.
2 – Inconformado com tal decisão, a recorrente veio, ao abrigo da
al. b) do art. 70.º da Lei de Organização e Processo do Tribunal Constitucional,
interpor recurso para este tribunal e, pretendendo “ver apreciada a
inconstitucionalidade das normas do art. 57.º, n.os 1 e 2 do Código do IRC,
aprovado pelo DL 442-B/88, de 30 de Novembro”, formulou as seguintes conclusões:
“1. Estabelece o texto constitucional, no art. 103.º, n.º 2 (ex art.
106.º, n.º 2), a obrigatoriedade de os impostos serem criados por lei e de esta
determinar “a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos
contribuintes”.
2. Por força do Princípio da Legalidade Tributária as normas de
incidência têm de ser predeterminadas no seu conteúdo, devendo os elementos
integrantes da mesma estar formulados de modo preciso e determinado.
3. A determinação do conteúdo da norma tributária de incidência exclui
a utilização de conceitos indeterminados, bem como os conceitos determinados
normativos, cuja aplicação ao caso concreto assenta em valoração subjectiva ou
pessoal do órgão de aplicação, sob pena de ser postergada a segurança jurídica.
4. Segundo Nuno Sá Gomes, in Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 2000,
pág. 39, “… Por sua vez, diz-se que estamos perante reserva absoluta da lei
quando se estabelece, como entre nós, que a lei formal deve conter não só o
fundamento da conduta da administração, mas também os critérios de decisões dos
casos concretos, não dando margem a qualquer discricionariedade ou
disponibilidade de tipo tributário pela administração fiscal”.
5. No caso concreto, as correcções efectuadas resultam da aplicação do
art. 57.º, n.º 1, do CIRC e do entendimento por parte do agente da administração
fiscal da existência de relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa
por efeito daquele preceito legal.
6. Ora, “as relações especiais” e “as relações que estabeleçam
condições diferentes das que são acordadas entre pessoas diferentes” são
conceitos vagos, indeterminados que conferem à administração fiscal poderes
discricionários para a correcção da matéria colectável.
7. Porém, não se trata de discricionariedade técnica, pois a lei não
faz apelo, para a sua aplicação a conhecimentos científicos não jurídicos ou
artísticos ou profissionais, mas sim à apreciação das relações estabelecidas, se
o lucro apresentado é diferente do normal e como se quantifica o montante
efectivo que serviu de base à correcção.
8. É a lei ordinária – art. 103.º, n.ºs 2 e 3, e art. 268.º da CRP –
que tem de estabelecer os parâmetros em que essa actividade é regulada sob pena
de inconstitucionalidade.
9. E esses critérios não existem nem se encontram estabelecidos pela
lei, pelo que a grande amplitude e indeterminação do conteúdo daqueles conceitos
permitem ao órgão de aplicação incluir na norma todo e qualquer ganho,
sacrificando-se assim a segurança jurídica!!!
10. Assim, a norma do art. 57.º, n.º 1, do CIRC, estando formulada em
termos vagos e imprecisos, com recurso a puros conceitos normativos, sem
qualquer concretização e determinação, é uma norma materialmente
inconstitucional por ofensa do princípio da legalidade e tipicidade fiscais.
11. Segundo Nuno Sá Gomes, ob. Cit., pág. 193 “…o citado art. 57.º não
esclarece o que se deve entender por relações especiais aflorando apenas o
critério da dependência, parecendo, portanto, que há relações especiais sempre
que as entidades em causa são dependentes uma da outra”.
12. E daqui decorre, desde logo, uma indeterminação ampla que equivale
a atribuir à administração fiscal o poder discricionário de decidir quando há
relação especial de dependência o que, como dissemos, é inconstitucional.
13. A circunstância de a lei fiscal não definir o que se deve entender
por RELAÇÕES ESPECIAIS e o carácter vago, elástico, deste conceito, leva-nos a
concluir que a fórmula empregada, logo aí, viola o art. 106.º, n.º 2 da CRP, que
exige que “a lei determine… a incidência”.
14. Assim, enquanto a legislação fiscal não enunciar os critérios a
seguir deve considerar-se que o art. 57.º do CIRC é inconstitucional, por
conferir à Administração Fiscal poderes discricionários para a correcção da
matéria tributável.
15. Deve, assim, a norma do n.º 1 do art. 57.º, do CIRC ser declarada
inconstitucional!”
Contra-alegando, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
afirmou, em conclusão, que:
“a) A recorrente não tem razão quando levanta a questão da indeterminação do
conceito de relações especiais. Como bem referiu o douto Acórdão do STA, ‘não
estamos em face de um verdadeiro conceito indeterminado, pois ele tem alguma
determinação: relações especiais são aquelas que não têm lugar entre pessoas
independentes’.
b) Relativamente à alegada inconstitucionalidade material do artigo
57.º do CIRC, ela não procede porquanto a norma aí constante só pode ser
aplicada em consonância com os requisitos específicos exigidos pelo art. 80.º do
CPT, o que deita por terra o argumento da existência de conceitos vagos e
imprecisos.
c) Também não tem razão a recorrente quando afirma que a lei não
estabelece quais os critérios a utilizar, uma vez que tais critérios são aqueles
utilizados no recurso aos métodos indiciários, a saber: margens médias de lucro
bruto sobre vendas e prestações de serviços, segundo o sector e actividade da
empresa; taxas médias de rendibilidade do capital investido.
d) Pelo que se considera que a norma em causa não viola, como pretende
a recorrente, o artigo 106.º, n.º 2, da CRP, nem o artigo 103.º, n.º 2, da CRP,
pelo que não é inconstitucional”.
Tudo visto, cumpre decidir.
B - Fundamentação
3 – O artigo 57.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Colectivas (CIRC), na sua redacção originária, aplicável no momento a
que se reportam os autos, dispunha, sob a epígrafe “Correcções nos casos de
relações especiais ou sujeição a vários regimes de tributação”, que (acentuam-se
com itálico os segmentos convocados):
“1 - A Direcção-Geral das Contribuições e Impostos poderá efectuar as correcções
que sejam necessárias para a determinação do lucro tributável sempre que, em
virtude das relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa, sujeita ou
não a IRC, tenham sido estabelecidas condições diferentes das que seriam
normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o lucro
apurado com base na contabilidade seja diverso do que o que se apuraria na
ausência dessas relações.
2 - O disposto no número anterior observar-se-á igualmente sempre que o lucro
apurado em face da contabilidade relativamente a entidades que não tenham sede
ou direcção efectiva em território português se afaste do que se apuraria se se
tratasse de uma empresa distinta e separada que exercesse actividades idênticas
ou análogas, em condições idênticas ou análogas e agindo com total
independência.
3 - Também se aplicará o disposto no n.º 1 quanto às pessoas que exerçam
simultaneamente actividades sujeitas e não sujeitas ao regime geral do IRC,
quando relativamente a tais actividades se verifiquem idênticos desvios.
4 - Quando o disposto no n.º 1 se aplique relativamente a um sujeito passivo do
IRC por virtude de relações especiais com outro sujeito passivo do mesmo imposto
ou do IRS, na determinação do lucro tributável deste último serão efectuados os
ajustamentos adequados que sejam reflexo das correcções feitas na determinação
do lucro tributável do primeiro”.
Por sua vez, o parâmetro constitucional invocado pela Recorrente –
plasmado no artigo 106.º, n.º 2, da Constituição (artigo 103.º, n.º 2, na
redacção actual) – prescreve que:
“Artigo 106.º (Sistema fiscal)
1. [...]
2. Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os
benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
3. [...]”.
4 – Ora, como resulta dos autos, a correcção administrativa fundada no
transcrito artigo 57.º do CIRC reportava-se a uma situação inteiramente
integrável na esfera do n.º 1 do presente preceito, não estando em causa, nos
autos, “o lucro apurado em face da contabilidade relativamente a entidades que
não tenham sede ou direcção efectiva em território português [que] se afaste do
que se apuraria se se tratasse de uma empresa distinta e separada que exercesse
actividades idênticas ou análogas, em condições idênticas ou análogas e agindo
com total independência”.
Nestes termos, não tendo esta norma sido aplicada pelo tribunal a quo
como ratio decidendi do juízo proferido na decisão recorrida, há que delimitar o
objecto do recurso à hipótese circunscrita no n.º 1 do preceito.
5 – A questão de constitucionalidade emergente incide sobre um nódulo fiscal
assaz problemático. De facto, a matéria relativa aos “preços de transferência”
tem conhecido, nos últimos tempos, um tratamento jurídico-dogmático ímpar no
domínio da ciência jusfiscalista, estando-lhe associado, muito por obra dos
trabalhos de organizações internacionais dinamizadoras do estudo da questão e da
implementação de instrumentos preordenados à resolução de conflitos que surgem
neste âmbito temático, um papel verdadeiramente jurisgénico ao nível do
tratamento legislativo que o domínio dos preços de transferência tem sofrido.
Na “economia” do presente recurso, estando em causa o confronto da norma do
artigo 57.º do CIRC com o parâmetro constitucional cristalizado no princípio da
legalidade fiscal, importa, em primeiro lugar, ter em conta a(s)
especificidade(s) que recortam o quadro normativo aqui em crise, para, depois,
apurar se a regulamentação concretamente em causa contraria as exigências
próprias da repartição material-funcional que está subjacente à imposição
constitucional de que “os impostos são criados por lei, que determina a
incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.
5.1 – Perscrutando a ratio subjacente à previsão do artigo 57.º do CIRC, emerge
indubitavelmente que o seu âmbito de aplicação está delimitado em torno da
problemática dos preços de transferência, visando acautelar as consequências
resultantes de uma “facilitada” manipulação de valores fiscalmente relevantes
para efeitos do cálculo do imposto devido pelo sujeito passivo numa óptica que
não será de todo estranha à fenomenologia própria da evasão e fraude fiscais.
Contudo, apesar de o preceito, considerado na sua globalidade operativa, ser
susceptível de abarcar um tal conteúdo realístico, não pode ignorar-se que a
regulamentação dos preços de transferência, a bem ver, não deve ser agrilhoada,
tout court e in rerum natura, à estrita presunção de que, por detrás do “preço
estabelecido entre sujeitos dependentes”, existirá forçosamente um princípio de
acção norteado por uma intentio de evasão ao pagamento do imposto. Daí que,
apesar de ser certo, como adverte o Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE (OCDE –
Preços de transferência e empresas multinacionais – Relatório do Comité dos
Assuntos Fiscais da OCDE de 1979, in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º
144, Lisboa, 1985), que a problemática relativa a preços de transferência
imbrica com a de fraude e de evasão fiscais por aqueles poderem ser utilizados
para tais fins, também não pode ignorar-se, como se verá, que as “próprias
características dos P[reços de] T[ransferência], (...) contêm intrinsecamente
riscos de distorsão e instrumentalização tributária”, susceptíveis de ocasionar
“distorções económicas correlativas à impropriedade do apuramento da situação
tributária” (Duarte Barros, Metodologias na Determinação do Preço de Plena
Concorrência, Perspectiva da Administração Fiscal, Conferência da Associação
Portuguesa de Consultores Fiscais, Lisboa, Novembro de 1999, pp. 1).
Em todo o caso, a realidade subjacente ao problema dos preços de transferência
pode, de facto, definir-se, em termos de manifesta neutralidade, como dizendo
respeito “aos valores atribuídos a bens e serviços pelos agentes económicos nas
trocas que efectuam entre si, incluindo as transferências de bens e prestações
de serviços que têm lugar no âmbito dos estabelecimentos e divisões
independentes que integram a mesma unidade económica” (Maria Teresa Veiga de
Faria, “Preços de Transferência – problemática geral”, in Aa. Vv., A
internacionalização da economia e a fiscalidade – Colóquio comemorativo do XXX
aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1993, pp. 401).
Como se compreende, tal problemática assume particular acuidade relativamente às
operações desenvolvidas no seio de empresas associadas onde as respectivas
operações “não sofrem necessariamente da mesma maneira [do que sucede perante
empresas independentes onde as condições das suas relações comerciais e
financeiras são regidas, em regra, pela dinâmica do mercado] a influência
directa dos mecanismos de mercado”, como é reconhecido pela OCDE (cf. OCDE –
Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às
empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, Cadernos de Ciência e
Técnica Fiscal, n.º 189, Lisboa, 2002, pp. 35). É neste domínio particular que,
por diversas razões relacionadas com a gestão concreta das unidades empresariais
podem ocorrer manipulações dos preços atribuídos aos bens e serviços
transaccionados, daí podendo resultar que “a natureza e o montante dos
pagamentos efectuados entre elementos do grupo possam ser influenciados por
considerações de ordem fiscal” (cf. OCDE – Preços de Transferência e empresas
multinacionais – Relatório do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979, op.
cit., pp. 12).
Ora, ainda que as motivações subjacentes a tal modelação económico-financeira
possam ser determinadas por uma diversidade de factores extra-fiscais (como
possíveis motivações para a manipulação de preços de transferência elencam-se
razões atinentes à “flutuação cambial, restrições económicas, instabilidade
política, vantagens competitivas, parceiros estrangeiros, tributação, relações
públicas e relações interpessoais”; vide, Maria Teresa Veiga de Faria, “Preços
de Transferência – problemática geral”, op. cit., pp. 404, e Fernando Rocha
Andrade, Preços de transferência e tributação de multinacionais: As evoluções
recentes e o novo enquadramento jurídico português, Separata do Boletim de
Ciências Económicas da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. XLV-A, 2002, pp.
310 e ss.), não pode ignorar-se que as manipulações de preços contratados entre
entidades dependentes acabam sempre por influenciar a matéria tributável do
sujeito passivo, moldando-a com base em valores que, mesmo sendo reais, são
distorcidos pela existência de relações propiciadoras de uma artificiosa fixação
dos preços acordados.
Reconhecendo-se tal realidade, o “laboratório fiscal” vem adoptando, como
critério orientador da determinação dos preços de transferência, o “princípio de
plena concorrência”, que, tal como consta do artigo 9.º, n.º 1, do Modelo da
Convenção Fiscal da OCDE, vem sendo enunciado em torno da seguinte
especificação: “[Quando]... as duas empresas [associadas], nas suas relações
comerciais ou financeiras, estiverem ligadas por condições aceites ou impostas
que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas independentes, os lucros
que, se não existissem essas condições, teriam sido obtidos por uma das
empresas, mas não o foram por causa dessas condições, podem ser incluídos nos
lucros dessa empresa e tributados em conformidade” (cf. OCDE – Princípios
aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas
multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., pp. 37). Procura-se,
assim, com a mobilização do modelo operatório condensado em tal critério, apurar
os preços que “teriam sido acordados entre empresas independentes, relativamente
a operações idênticas ou similares, no mercado livre”, pelo que, nos casos onde
seja possível individualizar transacções efectuadas num mercado de livre
concorrência, a concreta determinação do preço de transferência, à luz do
referido princípio, implica, pois, “a possibilidade de remeter, directamente,
para o preço que seria praticado em transacções comparáveis entre empresas
independentes ou entre uma empresa de um grupo e uma empresa independente” (cf.
OCDE – Preços de Transferência e empresas multinacionais – Relatório do Comité
dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979, op. cit., pp. 11 e ss. esp.te 20 e ss.).
Daí que, hodiernamente, e com maior ou menor densidade conceitual-normativa, os
ordenamentos jurídicos reajam à abertura de uma “área de evasão ou de elisão do
imposto com uma maciça intervenção normativa e administrativa”, acolhendo, ao
nível do seu direito interno, um conjunto de normas que estabelecem ”a
obrigação, a cargo de sujeitos ligados por um vínculo de independência, de
observar, nas relações económicas estabelecidas entre si, critérios de
determinação do valor de cada operação que não sejam diversos dos praticados ou
dos que seriam praticados entre operadores independentes, ou seja, entre
operadores com interesses e escopos contrapostos” (cf. Guglielmo Maisto, Il
“Transfer Price” nel diritto tributario italiano e comparato, Padova, 1985, pp.
5).
Assim sucede, inter alia, na Bélgica (artigo 24.º do Code des Impôts sur les
Revenus); em França (artigo 57.º do Code General des Impôts); no Reino Unido
(Secção 485 do Income and Corporation Taxes Act); nos Estados Unidos da América
(Secção 482 do Internal Revenue Code); na Alemanha [Secção I (1) da
Aussensteuergesetz]; em Espanha (artigo 16.º da Ley 43/1995, de 27 de diciembre
de 1995, del Impuesto sobre Sociedades), e em Itália (artigo 100.º, n.º 7, do
Testo Unico delle Imposte sui Redditi).
É certo que, na sua abrangência, as questões suscitadas pela problemática dos
preços de transferência vão muito para além de um determinado espaço físico
delimitado pela muralha da soberania fiscal estadual, designadamente quando, no
âmbito da actuação das empresas multinacionais, a fixação dos preços de
transferência nas relações intra-grupo tangem com diversos ordenamentos
jurídicos.
Contudo, mesmo fora do âmbito de tais situações fiscais plurilocalizadas, os
princípios – e as preocupações... – que vêm sendo firmados nesta área tributária
não deixam, mutatis mutandis, de valer em face de “entidades situadas no mesmo
espaço territorial-fiscal” (cf. Maria Teresa Veiga de Faria, “Preços de
Transferência – problemática geral”, op. cit., pp. 402).
5.2 – Entre nós, o legislador fiscal consagrou, no artigo 57.º do CIRC, a
possibilidade de a Administração Fiscal proceder às “(...) correcções que sejam
necessárias para a determinação do lucro tributável sempre que, em virtude das
relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa, sujeita ou não a IRC,
tenham sido estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente
acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o lucro apurado com base
na contabilidade seja diverso do que o que se apuraria na ausência dessas
relações”.
Segundo a Recorrente, tal norma, “estando formulada em termos vagos e
imprecisos, com recurso a puros conceitos normativos, sem qualquer concretização
e determinação, é uma norma materialmente inconstitucional por ofensa do
princípio da legalidade e tipicidade fiscais”, na medida em que essa
“indeterminação ampla (...) equivale a atribuir à administração fiscal o poder
discricionário de decidir quando há relação especial de dependência o que (...)
é inconstitucional”.
É o que importa, pois, apurar, tendo em conta, por um lado, a construção
normativa que concretiza a intencionalidade prática do critério legal em crise
no âmbito problemático individualizado pelo legislador, e, por outro, a
densidade normativa reclamada pelo princípio da legalidade fiscal no âmbito do
horizonte regulamentado, na parte aqui relevante, pela norma do artigo 57.º do
CIRC.
5.2.1 – Considerando o teor normativo do artigo 57.º, ressalta, ao nível dos
seus pressupostos de aplicação, a exigência de que: (a) existam relações
especiais entre o contribuinte e uma outra entidade sujeita ou não ao regime do
IRC; (b) e, em virtude dessas relações, sejam estabelecidas condições diferentes
das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes; (c) conduzindo
ao apuramento de uma base tributária distinta da que seria apurada na ausência
de tais relações (cf. Paula Rosado Pereira, “O novo regime dos preços de
transferência”, in Fiscalidade, n.º 5, 2001, pp. 25).
Ora, atentando no teor do preceito – que, na essência, cristaliza
uma afirmação do princípio de plena concorrência tal como este vem sendo
enunciado pelas orientações firmadas no âmbito dos estudos da OCDE –, é patente
que, na redacção que imprimiu à norma, o legislador nacional lançou mão de uma
construção tipológica assente em conceitos indeterminados (“relações especiais”,
“condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas
independentes”), cujo preenchimento, por definição, não decorre, expressis
verbis, da estrita consideração semântico-gramatical da norma, antes exige uma
mediação concretizadora da intencionalidade prático-normativa com que o
legislador recortou, constitutivamente, o domínio problemático nela
individualizado.
O caminho trilhado pelo legislador português na formulação da norma
– que, nesta sede, corresponde genericamente ao seguido por diversos
ordenamentos jurídicos, onde a concretização da norma fica a cargo de
directrizes administrativas e, em ultima ratio, à jurisprudência [cf. Guglielmo
Maisto, “Transfer pricing in the absence of comparable market prices”, in
Cahiers de droit fiscal international, Volume LXXVII, pp. 216. O Autor dá, aí,
conta de que as “instruções administrativas”, quando existam, têm acolhido de
forma directa - caso da Áustria - ou indirecta - como sucede no Reino Unido - as
guidelines formuladas pela OCDE; contudo, em países como a França, Holanda e
Suiça, a prática tem também seguido tais orientações sem que “seja necessário
indicar a [sua] aplicação” e o mesmo sucede, de resto, no âmbito do ordenamento
jurídico finlandês e neozelandês perante a ausência de directrizes
administrativas] – mereceu a crítica dogmática de alguns autores que apontam à
“forma genérica” do preceito o perigo de a sua aplicação do preceito ficar
“demasiado dependente do arbítrio do funcionário da fiscalização” (cf. J.J.
Amaral Tomás, “Os preços de Transferência”, in Fisco, n.º 29, 1991, pp. 19;
Maria Teresa Veiga de Faria, “Preços de Transferência – problemática geral”, op.
cit., pp. 437; Paula Rosado Pereira, “O novo regime dos preços de
transferência”, op. cit., pp. 25; e Fernando Rocha Andrade, Preços de
transferência e tributação de multinacionais: As evoluções recentes e o novo
enquadramento jurídico português, op. cit., pp. 328 e ss.).
A “Comissão para o desenvolvimento da reforma fiscal”, após reflectir sobre os
pressupostos de aplicação do artigo 57.º, recomendou igualmente que, “por razões
de certeza e segurança jurídicas, bem como de operacionalidade da inspecção
tributária, se deve evoluir no sentido do desenvolvimento daqueles elementos, na
linha dos princípios e critérios recomendados pela OCDE e do que tem sido a
tendência em muitos países” (cf. Relatório da Comissão para o desenvolvimento da
reforma fiscal, Ministério das Finanças, Lisboa, 1996, pp. 659 e ss.; vide,
igualmente, o “Relatório da Comissão de Reforma da Fiscalidade Internacional”,
in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 395, 1999, pp. 103 e ss.).
Acolhendo tais recomendações, o nosso legislador, pela Lei n.º
30-G/2000, de 29 de Dezembro, alterou a redacção do artigo 57.º do CIRC e, com a
revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, o artigo 58.º do
CIRC, sob a epígrafe “preços de transferência”, passou a dispor que:
“1 - Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de
operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras,
efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a
IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados,
aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que
normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades
independentes em operações comparáveis.
2 - O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições
que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades
independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau
de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e
outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de
ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as
características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação
económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características
relevantes das empresas envolvidas, as funções por elas desempenhadas, os
activos utilizados e a repartição do risco.
3 - Os métodos utilizados devem ser:
a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda
minorado ou o método do custo majorado;
b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação
ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser
aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos
e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou
praticariam.
4 - Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas
situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma
influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera
verificado, designadamente, entre:
a) Uma entidade e os titulares do respectivo capital, ou os cônjuges,
ascendentes ou descendentes destes, que detenham, directa ou indirectamente, uma
participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;
b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respectivos cônjuges,
ascendentes ou descendentes detenham, directa ou indirectamente, uma
participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;
c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de
administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges,
ascendentes e descendentes;
d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de
quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as
mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por
casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta;
e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro
de efeito equivalente;
f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos temos em que esta é
definida nos diplomas que estatuem a obrigação de elaborar demonstrações
financeiras consolidadas;
g) Entidades entre as quais, por força das relações comerciais, financeiras,
profissionais ou jurídicas entre elas, directa ou indirectamente estabelecidas
ou praticadas, se verifica situação de dependência no exercício da respectiva
actividade, nomeadamente quando ocorre entre si qualquer das seguintes
situações:
1) O exercício da actividade de uma depende substancialmente da cedência de
direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de know-how detidos pela
outra;
2) O aprovisionamento em matérias-primas ou o acesso a canais de venda dos
produtos, mercadorias ou serviços por parte de uma dependem substancialmente da
outra;
3) Uma parte substancial da actividade de uma só pode realizar-se com a outra
ou depende de decisões desta;
4) O direito de fixação dos preços, ou condições de efeito económico
equivalente, relativos a bens ou serviços transaccionados, prestados ou
adquiridos por uma encontra-se, por imposição constante de acto jurídico, na
titularidade da outra;
5) Pelos termos e condições do seu relacionamento comercial ou jurídico, uma
pode condicionar as decisões de gestão da outra, em função de factos ou
circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional.
5 - Para efeitos do cálculo do nível percentual de participação indirecta no
capital ou nos direitos de voto a que se refere o número anterior, nas situações
em que não há regras especiais definidas, são aplicáveis os critérios previstos
no n.º 2 do artigo 483.º do Código das Sociedades Comerciais.
6 - O sujeito passivo deve manter organizada, nos termos estatuídos para o
processo de documentação fiscal a que se refere o artigo 121.º, a documentação
respeitante à política adoptada em matéria de preços de transferência, incluindo
as directrizes ou instruções relativas à sua aplicação, os contratos e outros
actos jurídicos celebrados com entidades que com ele estão em situação de
relações especiais, com as modificações que ocorram e com informação sobre o
respectivo cumprimento, a documentação e informação relativa àquelas entidades e
bem assim às empresas e aos bens ou serviços usados como termo de comparação, as
análises funcionais e financeiras e os dados sectoriais, e demais informação e
elementos que tomou em consideração para a determinação dos termos e condições
normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes e
para a selecção do método ou métodos utilizados.
7 - O sujeito passivo deve indicar, na declaração anual de informação
contabilística e fiscal a que se refere o artigo 113.º, a existência ou
inexistência, no exercício a que aquela respeita, de operações com entidades com
as quais está em situação de relações especiais, devendo ainda, no caso de
declarar a sua existência:
a) Identificar as entidades em causa;
b) Identificar e declarar o montante das operações realizadas com cada uma;
c) Declarar se organizou, ao tempo em que as operações tiveram lugar, e mantém,
a documentação relativa aos preços de transferência praticados.
8 - Sempre que as regras enunciadas no n.º 1 não sejam observadas,
relativamente a operações com entidades não residentes, deve o sujeito passivo
efectuar, na declaração a que se refere o artigo 112.º, as necessárias
correcções positivas na determinação do lucro tributável, pelo montante
correspondente aos efeitos fiscais imputáveis a essa inobservância.
9 - Nas operações realizadas entre entidade não residente e um seu
estabelecimento estável situado em território português, ou entre este e outros
estabelecimentos estáveis daquela situados fora deste território, aplicam-se as
regras constantes dos números anteriores.
10 - O disposto nos números anteriores aplica-se igualmente às pessoas que
exerçam simultaneamente actividades sujeitas e não sujeitas ao regime geral de
IRC.
11 - Quando a Direcção-Geral dos Impostos proceda a correcções necessárias para
a determinação do lucro tributável por virtude de relações especiais com outro
sujeito passivo do IRC ou do IRS, na determinação do lucro tributável deste
último devem ser efectuados os ajustamentos adequados que sejam reflexo das
correcções feitas na determinação do lucro tributável do primeiro.
12 - Pode a Direcção-Geral dos Impostos proceder igualmente ao ajustamento
correlativo referido no número anterior quando tal resulte de convenções
internacionais celebradas por Portugal e nos termos e condições nas mesmas
previstos.
13 - A aplicação dos métodos de determinação dos preços de transferência, quer
a operações individualizadas, quer a séries de operações, o tipo, a natureza e o
conteúdo da documentação referida no n.º 6 e os procedimentos aplicáveis aos
ajustamentos correlativos são regulamentados por portaria do Ministro das
Finanças”.
As diferenças perante a regulamentação anterior, aqui em crise,
estão bem patentes na pormenorizada densificação que a norma actualmente em
vigor ilustra.
Porém, como se compreende, no presente recurso não está em causa a desvelação do
“melhor direito”, no sentido de criticar ex constitutionis uma determinada
solução normativa quando o legislador lhe poderia ter imprimido uma outra – e
melhor – redacção, mas sim sancionar o “não direito”, na perspectiva de apurar
se a norma concretamente em causa não se há-de ter por válida à luz dos
parâmetros constitucionais relevantes.
É o que, de seguida, importa considerar.
5.2.2 – A norma sindicanda insere-se num particular momento da vida do imposto,
dizendo directamente respeito à questão da determinação da base material que
há-de estar sujeita à imposição fiscal.
Como é consabido, a delimitação do conceito de incidência relevante
para a tutela garantística que o princípio da legalidade empresta a este âmbito
dogmático passa pela abrangência dos pressupostos de facto geradores do imposto
e da respectiva matéria tributável, sendo que, quanto a esta, como refere
Cardoso da Costa (“O enquadramento constitucional do direito dos impostos em
Portugal”, in Aa. Vv. Perspectivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição
de 1976, volume II, Coimbra, 1997, pp. 409-410), «sempre foi entendimento
tradicional na doutrina portuguesa (...) o de distinguir entre a sua “definição”
e a sua “determinação”: na primeira, está em causa a identificação da entidade
económica (...) sujeita a imposto, e, consequentemente, um elemento
“substantivo” e “essencial” da normação tributária; na segunda, trata-se já do
método ou dos métodos a adoptar no cálculo e no estabelecimento do respectivo
valor e, portanto, de um domínio “instrumental”, com carácter fundamentalmente
“procedimental” e “adjectivo”», devendo também este domínio da determinação da
matéria tributável «respeitar as específicas e estritas exigências do princípio
da legalidade fiscal, quando o seu conteúdo e alcance transcender a pura esfera
“processual” e assumir já, afinal, um carácter “material ou substantivo”».
Cumprida tal explicitação, torna-se claro que, mesmo estando em
causa um problema atinente à determinação da matéria tributável, susceptível de
conduzir à correcção dessa base, é pertinente o confronto da norma em crise com
as exigências inerentes ao princípio da legalidade fiscal na medida em que a sua
regulamentação incorpora uma substancialidade determinante da conformação do
valor dos rendimentos sujeitos a tributação, não estando, assim, apenas em causa
a estrita fixação do iter procedimental que permitirá o estabelecimento do
rendimento sujeito a imposto.
5.2.3 – Quanto ao sentido normativo que recorta o âmbito de relevo assinalado ao
parâmetro constitucional em causa, este Tribunal, na sua jurisprudência, vem
desenvolvendo um critério interpretativo que, pela sua pertinência, deve
reiterar-se perante o caso sub judicio.
Nas suas imputações gerais, o princípio da legalidade fiscal, como se
salientou, entre outros, no Acórdão n.º 70/2004, publicado no Diário da
República II Série, de 7 de Maio de 2004, é caracterizado, essencialmente, por
duas dimensões normativas: «[§]Uma corporizada na reserva absoluta de lei formal
(Gesetzvorbehalt): os impostos apenas podem ser lançados mediante lei da
Assembleia da República ou decreto-lei do Governo emitido no uso de autorização
legislativa do Parlamento. [§]Trata-se de uma acepção que busca os seus
fundamentos em razões puramente políticas cuja afirmação originária se perde na
bruma dos tempos da Idade Média e cuja positivação começou por afirmar-se na
Magna Charta Libertatum (1215), traduzindo uma ideia de auto-tributação, de
auto-imposição dos tributos ou de consentimento no lançamento das contribuições
e impostos e que se acha significativamente traduzida na expressão inglesa no
taxation without representation, mas que entretanto recebeu um novo sopro de
legitimidade e de fundamento substanciais com a consagração do Estado de direito
democrático, na medida em que o exercício do poder tributário passou a ser uma
expressão dos representantes eleitos do povo justificada pela realização dos
fins materiais do Estado de direito (cfr., entre outros, Alberto Pinheiro
Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 275 e ss.; José Manuel
Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 1972, pp. 154 e ss. e José Casalta
Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 321 e ss. e Direito Fiscal,
2ª edição refundida e aumentada, Coimbra, 2003, pp. 123 e ss.). [§] Outra
dimensão do princípio da legalidade fiscal é a que é traduzida pelo princípio do
nullum vectigal sine lege, da tipicidade (Tatbestandsmässigkeit), ou de reserva
material ou “conteudística da lei” (como a denomina Casalta Nabais, O Dever...,
op. cit. pp. 345), nos termos do qual a lei deve conter em si, essencialmente, o
critério de decisão das situações concretas.[§] Segundo a sua formulação rígida,
o princípio da tipicidade fiscal traduz-se na exigência de o imposto dever ser
desenhado ou recortado na lei através de todos os seus momentos constitutivos,
sem margem para qualquer discricionariedade administrativa ou de afirmação de
quaisquer poderes jurídico-conformantes das situações concretas. [§] Trata-se de
uma dimensão que visa dar resposta, essencialmente, a preocupações de certeza e
de segurança jurídicas que constituem também exigências próprias do Estado de
direito democrático, entre nós reconhecido no art. 2º da Constituição. [§] A
primeira dimensão está acolhida no art. 165º, n. 1, alínea i) e a segunda
mostra-se vertida no art. 103º, n.º 2, ambos os preceitos da Constituição».
Ora, considerando estas duas traves-mestras do princípio da legalidade fiscal, é
manifesto que o caso emergente dos presentes autos contende, na sua essência,
com a segunda dimensão de cumprimento do princípio, estando em causa, de modo
particular, reflectir em torno do grau de densidade normativa compatível com as
exigências daí resultantes.
E já por outras ocasiões este Tribunal ponderou a relevância normativa
assinalada ao princípio da legalidade fiscal, em “torno de saber qual o grau de
exigência constitucional quanto à densificação normativa face aos ditames do
princípio da legalidade tributária (artigo 106º, n.º 3, da Constituição), o
mesmo é dizer, quais os limites constitucionalmente consentidos ao
preenchimento, pela Administração, de conceitos jurídicos indeterminados
constantes de uma norma fiscal e ao âmbito de poderes discricionários da mesma
eventualmente pressupostos”.
Não obstante a questão de constitucionalidade nele apreciada dizer respeito a
uma norma que relevava essencialmente o juízo de ponderação subjectiva da
administração sobre a não correspondência à realidade da matéria colectável
declarada como elemento determinador do critério ou regime legal de tributação a
ser adoptado (o § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial) e, por
outro lado, afastava a possibilidade desse juízo poder ser objecto de controlo
jurisdicional (art.º 78º do mesmo Código), ao contrário do que se passa com a
norma aqui constitucionalmente sindicada em que o critério determinante nela
conformado tem uma matriz substancialmente objectiva, exterior à administração,
e em que o acto administrativo-tributário poderá ser, em todas as suas
dimensões, sindicado contenciosamente – o que, tudo sopesado nos termos adiante
reflectidos, não pode deixar de conduzir, como se verá, a resultados diferentes
- impõe-se considerar, entre as decisões do Tribunal Constitucional que
trataram de tal problemática, o Acórdão n.º 233/94, publicado no Diário da
República II Série, de 27 de Agosto de 1994 (e também no BMJ, 435, pp. 311, e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., pp. 595), dada a densidade do
discurso aí desenvolvido sobre a matéria, apoiado numa larga ponderação da
doutrina pertinente ao problema, e a bondade da tese seguida quanto à
admissibilidade de tais conceitos, no âmbito da determinação/definição da
matéria colectável.
Lembra-se a propósito, para acentuar as referidas diferenças que ressaltarão
melhor do discurso subsequente, que o § 2º do artigo 114º do Código da
Contribuição Industrial dispunha que “sempre que em face do exame à escrita se
verifique a impossibilidade de controlar a matéria colectável já determinada de
harmonia com as disposições dos artigos 22.º a 49.º ou desse exame ressaltem
dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade
será a matéria colectável determinada de novo de harmonia com as disposições
aplicáveis aos contribuintes do grupo B, com as necessárias adaptações e com
notificações das fixações aos contribuintes para efeito de reclamação dentro do
prazo de quinze dias, nos termos do artigo 70.º, sendo de observar o disposto no
§ 3º do artigo 54.º”) e que o art.º 78º do mesmo Código estabelecia que “os
valores calculados determinados e fixados pelo chefe de repartição de finanças
ou pela comissão distrital de revisão não eram [são] susceptíveis de reclamação
ou de impugnação nos termos do Código de Processo das Contribuições e Impostos,
salvo se tiver havido preterição de formalidades legais, caso em que os
contribuintes poderão recorrer para o Tribunal Tributário de 1ª Instância”,
donde resulta, como se verá, estar-se perante um quadro jurídico bem diferente
do recortado no preceito agora sob censura constitucional.
Considerou-se nesse aresto que:
«8. O § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial é, quanto à sua
natureza, uma norma jurídico-fiscal. Ora, como escreve cardoso da costa, Curso
de Direito Fiscal (2ª edição actualizada, Coimbra, 1972, reimpressa e aditada de
notas de actualização em 1977), pág. 57, 'não vemos (...) motivo para abandonar
a conclusão, já antes avançada, de que as normas jurídico-fiscais se subsumem no
âmbito mais geral das normas jurídico-administrativas: efectivamente, elas não
disciplinam senão um especial sector de actividade da Administração - definindo
os respectivos pressupostos e o conteúdo das relações jurídico-públicas dela
decorrentes, e precisando os termos em que a mesma deve desenvolver-se - e
fazem-no recorrendo aos dogmas fundamentais do direito administrativo.'
Esta identidade, segundo o autor, não invalida que a actividade fiscal se
processe segundo uma 'tonalidade própria dentro da actividade administrativa:
é-lhe a mesma conferida pelo seu carácter extremamente vinculado, em face da
maior ou menor margem de poder discricionário de que gozam na generalidade dos
outros sectores da Administração os respectivos órgãos ou agentes' (pág. 58).
Tal carácter 'extremamente vinculado', contudo, não impede que certos elementos
típicos da actividade fiscal (v.g. a identificação da base do imposto, ou o
cálculo da matéria colectável) comportem 'muitas vezes uma zona de mais ou menos
livre apreciação por parte da Administração fiscal ou dos órgãos mistos (i.é,
compostos por agentes do Fisco e representantes dos contribuintes) a quem cabe
tal tarefa. Mas - ao contrário do que já se tem entendido – trata-se apenas
daqueles insuprimíveis momentos de liberdade - de apprezzamento subjectivo - por
onde necessariamente passam, quer a interpretação das normas que a Administração
tem de aplicar, quer a fixação (na sua identidade e medida) dos factos que vão
ser o pressuposto da sua actuação' (pág. 59).
Segundo este autor, importa distinguir entre a 'liberdade discricionária', 'em
que a lei devolve para o próprio critério do agente a escolha da medida mais
conveniente e oportuna a tomar em cada caso em ordem à prossecução do interesse
público em causa', e a 'liberdade científica', em que, pelo contrário, há uma
'simples liberdade de 'investigação ou crítica', no exercício da qual se não
remete a Administração para o que esta considerar melhor em cada caso mas se
pretende ainda que ela averigue o verdadeiro (e único) sentido da lei e
estabeleça a exacta (e única também) figuração dos factos', ou, na expressão de
Alessi (Intituzzioni di diritto tributario, com stammati, Torino, s/d, pág. 103,
também retomada por cardoso da costa) ' não se trata de avaliar a base de facto
segundo critérios de oportunidade e conveniência em relação com o interesse
público de conseguir uma maior ou menor colecta; mas de determinar, com a maior
aproximação possível, a sobredita situação na sua realidade'.
Neste contexto se insere a denominada discricionariedade técnica, reportável,
pois, àqueles juízos subjectivos (apprezzamento subjectivo) dos agentes da
Administração em sede de determinação da subsunção de uma dada realidade de
facto ao âmbito de previsão de uma norma legal, isto é, os juízos técnicos
destinados a apurar se um determinado facto ou uma determinada situação da vida
se enquadram nas regras de incidência de um dado imposto ou qual o valor de
determinados bens ou rendimentos sujeitos a tributação (cardoso da costa, op.
cit., pág. 61).
O autor que temos vindo a seguir alerta para o facto de a discricionariedade
técnica constituir um 'conceito equívoco', quer pela plurisignificação que lhe
tem sido atribuída pela doutrina [ em especial em Itália], quer pelo facto de 'a
decisão discricionária verdadeira e própria se resolver[r] também afinal num
juízo técnico: a autoridade que a profere desincumbe-se do dever de 'boa
administração', a que está adstrita, escolhendo e adoptando para cada caso, não
uma solução prefixada pelo legislador, mas também não uma qualquer solução,
antes aquela que os seus conhecimentos e experiência - o seu saber técnico, em
suma - lhe ditarem como a melhor' (pág. 61).
[...]
A questão da delimitação entre o conteúdo da lei em matéria fiscal e a margem de
livre decisão da Administração é também objecto da reflexão de josé luis
saldanha sanches, “A Segurança Jurídica no Estado Social de Direito. Conceitos
Indeterminados, Analogia e Retroactividade no Direito Tributário”, in Ciência e
Técnica Fiscal, n.ºs 310-312, Outubro-Dezembro de 1984, que coloca o problema à
luz das diferentes concretizações que têm sido ensaiadas, no domínio do direito
fiscal, de superação da permanente relação de tensão entre a defesa da certeza e
segurança do direito e da execução das normas constitucionais que impõem a
generalidade das obrigações fiscais e a igualdade perante o fisco, escrevendo,
pois, que 'a linha principal da argumentação a ser seguida consiste em que essa
abordagem do problema - que reflecte, no campo do direito fiscal, como já se
afirmou - a concretização do normativismo positivista, se pode hoje considerar
esgotada, dados os problemas que tem encontrado, sem conseguir resolver, nos
sistemas fiscais dos países industrializados do ocidente, onde se reflecte com
mais intensidade a problemática das modernas formas de fuga legal ao imposto - a
'fiscal avoidance' dos anglo-saxónicos, a que se tem chamado entre nós elisão
fiscal, mas a que se poderia talvez chamar, com maior rigor e propriedade,
evitação fiscal.(...) [P]erante o aparecimento de esquemas cada vez mais
generalizados de evitação fiscal é sistematicamente posta à prova a capacidade
do legislador fiscal para abranger na sua previsão todas as manifestações de
capacidade contributiva que deverão, para a manutenção dos princípios
fundamentais da justiça tributária, ser sujeitas a tributação.' (pág. 286-287).
Apreciando, a este propósito, a evolução do sistema fiscal inglês ( e a crise do
sistema da interpretação estrita - subordinada ao principle of strict
interpretation), saldanha sanches (op. cit., pág. 289) refere:
'É um sistema que tem como fundamento uma distinção de base entre interpretação
e integração jurídica, desconhecendo - ou mais exactamente, recusando-se a
admitir - a existência de um continuum entre a interpretação e a integração. Mas
esta concepção (...) acaba por ser de todo abandonada (...) quando a
jurisprudência, ao ser chamada a conhecer dos litígios entre a administração
fiscal e os contribuintes acerca da exacta determinação das realidades
económicas que realizam ou não os tipos fiscais pela lei determinados, vêm não
só proceder a um julgamento sobre a intenção dos contribuintes - caso da recente
jurisprudência britânica sobre o fiscal planning - permitir o uso de cláusulas
gerais anti-evasão por parte do legislador fiscal - caso da legislação alemã -,
recuar nas suas exigências de formulação da lei fiscal através de uma expressão
verbal que permita uma interpretação e inequívoca - como sucede nos direitos
britânicos e alemães - ou aceitar pelo legislador o uso de conceitos
indeterminados ou de preceitos-poder (Kann-Vorschrift) que remetem para uma
valoração que será efectuada pelo encarregado da execução da lei, como sucede
frequentemente no direito fiscal português.'
Neste contexto, cumpre reconhecer que a possibilidade de utilização, pelo
legislador, no domínio fiscal, quer de cláusulas gerais, quer de conceitos
indeterminados, pressupõe, para efeitos da sua aplicação, uma certa margem de
livre apreciação da administração fiscal na aplicação desses preceitos aos casos
concretos. O que faz com que, como sublinha saldanha sanches (op. cit., pág.
296) 'a sua inclusão nas leis fiscais [esteja] sempre em potencial conflito com
os princípios da determinabilidade e mensurabilidade das obrigações fiscais, uma
vez que a sua utilização envolve necessariamente um certo grau de
indeterminação. E a relação bipolar justiça-segurança surge com contornos de
particular nitidez, pois a utilização de conceitos indeterminados, conceitos de
valor ou cláusulas gerais constituem 'instrumentos de consideração das
circunstâncias concretas dos actos e dos problemas, enquanto exigência da
igualdade e da justiça materiais' [A. castanheira neves, A Instituição Jurídica
dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais].(...) O aumento da
complexidade da decisão - ou mesmo da imprevisibilidade da mesma, se estas
possibilidades pela lei conferidas forem utilizadas de forma abusiva pela
administração fiscal sem que os tribunais o impeçam - vem pôr em causa o
principio da segurança do direito, se entendermos que esta só pode ser garantida
se da letra da lei tiverem de constar todos os elementos da decisão'.
9. Feito este enquadramento, consideremos agora o parâmetro constitucional
invocado em primeiro lugar, o artigo 106º, n.º 3 da nossa Lei Fundamental, que
dispõe que 'ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido
criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se não façam nas
formas prescritas na lei'.
Comentando este preceito, gomes canotilho e vital moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 459, escrevem:
'Fora da reserva parlamentar de lei fiscal parece ficar a matéria da liquidação
e da cobrança (cfr. n.º 3), naquilo que não afecte as garantias dos
contribuintes, pois ela não consta do elenco mencionado no n.º 2. Em todo o
caso, mantém-se a regra da reserva de lei, não podendo a liquidação e a cobrança
ser reguladas por via regulamentar'.
A que acrescentam (op. cit., loc. cit.):
'Os impostos são uma das poucas obrigações públicas dos cidadãos
constitucionalmente consagradas (...). Como tal, está sujeita a algumas regras
equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da
generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu
pagamento os cidadãos em geral (art.º 12º/1), e devem estar sujeitos a ele em
idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (art.º 13º/2). É nisto que
consiste o princípio da igualdade tributária (o qual, evidentemente, em nada
contraria o princípio constitucional da progressividade dos impostos)'.
De igual forma os citados autores defendem, como corolário do princípio da
legalidade tributária, a aplicação dos princípios da necessidade (no sentido de
não ser concebível um imposto 'arbitrário') e da não retroactividade (neste
último caso, contudo, com algumas limitações).
Considerando o problema numa outra perspectiva, centrada no plano do Direito
Administrativo, jorge miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990,
pág. 281 e ss., retira da reserva de lei (no confronto com a administração), o
corolário da 'proibição ou limitação rigorosa do exercício de poder
discricionário da Administração (ou da discricionariedade da actuação
administrativa) - previsão pela lei do contéudo e das circunstâncias das
decisões individuais e concretas sobre matérias de reserva de lei, não podendo a
Administração emitir juízos de oportunidade e de conveniência acerca delas'.
Abordando especificamente a questão da admissibilidade de conceitos
indeterminados em direito fiscal, diogo leite de campos, “Evolução e
Perspectivas do Direito Fiscal” in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43,
Dezembro de 1983, págs. 664 e ss., partindo do pressuposto de que a referência
constitucional do n.º 2 do artigo 106º à incidência dos impostos abarca tanto a
matéria colectável como a sua determinação, refere que 'em direito fiscal o
único modo de a lei se adaptar à evolução social e à riqueza de vida é através
da sua modificação e da sua valia técnica', donde 'no direito fiscal não
cabe[re]m, pois, conceitos indeterminados nem normas 'incompletas' ou
'elásticas', atendendo a que 'o princípio da legalidade, com todas as suas
implicações, transforma um conceito indeterminado em lacuna 'intra legem'; ou
seja, o princípio da legalidade não encontra suficiente expressão nas normas em
causa, que se transformam em normas 'abertas' postulando a sua integração.'
Ao que acrescenta que 'nestes casos não se trataria à primeira vista de
discricionariedade da Administração, e que nada impede que a integração possa
ser controlada pelo tribunal - através da aplicação da doutrina germânica do
controlo total.'
Num sentido totalmente diverso se pronuncia saldanha sanches (op. cit., pág.
298) socorrendo-se da evolução doutrinária e jurisprudencial verificada na
Alemanha. A este propósito refere que 'o Tribunal Constitucional alemão começou
por definir, através do princípio da determinabilidade - Bestimmenheitgrundsatz
- que exige das normas fiscais uma construção do tipo que, assegurando um mínimo
de clareza e de transparência do tipo, permita a calculabilidade e a
previsibilidade da obrigação fiscal.' O mesmo tribunal, contudo, não impede a
utilização de conceitos indeterminados no domínio da tributação do rendimento,
pois que 'o princípio da determinabilidade tem o seu núcleo essencial na reserva
da competência da lei para a selecção dos factos da vida social que devem ser
objecto de tributação, na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à
determinação dos factos tributáveis: não impede que este se sirva de uma
formulação suficientemente ampla para abranger factos da mesma natureza e
igualmente indiciadores de capacidade tributária, ainda que com características
que entre si os diferenciem', daí decorrendo a admissibilidade, na ordem
jurídica alemã, de cláusulas gerais, de conceitos jurídicos indeterminados, de
conceitos tipológicos e de tipos discricionários.
[...]
Em sentido divergente, francisco de sousa da câmara, “Direitos e Garantias dos
Contribuintes”, in Fisco, n.º 35, Ano 3, Outubro de 1991, pág. 19, escreveu que:
'Os dois casos conhecidos por discricionariedade técnica ou discricionariedade
imprópria (abrangendo os conceitos vagos e indeterminados), respectivamente,
também não envolvem uma verdadeira discricionariedade, apesar da sua designação.
No primeiro caso, atribui-se apenas à Administração possibilidade de verificar
se se encontra preenchido o conteúdo do tipo técnico elaborado pelo legislador,
agindo em conformidade.
No segundo caso, concedeu-se à Administração a possibilidade de preencher o
conteúdo dos conceitos vagos e indeterminados ou indirectamente determinados,
mas atribuindo-lhes a tarefa constante de o fazer com base numa interpretação
que se deve afigurar como a única solução juridicamente correcta e que, por
isso, deve ser sempre susceptível de fiscalização judicial.'
Para mais adiante, depois de reconhecer que a 'margem de livre apreciação da
Administração' na área do direito fiscal introduz sempre insegurança e
incerteza, 'esteja ela ou não revestida da capa de uma actividade vinculada a
uma interpretação correcta ou à aplicação do 'justo valor' ', conclui que 'se
não vierem a reconhecer-se como inconstitucionais as múltiplas normas dos vários
códigos tributários que as prescrevem, por contrárias ao princípio da
legalidade, pelo menos, deve admitir-se hoje - sem os limites do passado - a sua
sindicância jurisdicional, de modo a se poder questionar se a Administração
respeitou ou não os pressupostos definidos na lei.' (op. cit., pág. 20).
[...]
Ora, o que verdadeiramente a recorrente pretende criticar na norma em causa é a
violação do princípio da legalidade tributária na óptica da insuficiente
densificação legislativa das condições de aplicação do aludido preceito (ou
seja, do insuficiente grau de precisão e determinabilidade das regras legais
atinentes a esta específica situação tributária que poderiam colocar o regime em
crise a descoberto das garantias decorrentes dos aludidos princípios constantes
do artigo 106º, n.ºs 2 e 3, da Constituição).
Dito ainda de outra forma, estando em causa matéria tributária, matéria de
definição dos pressupostos de aplicação de um determinado imposto, a recorrente
parece entender que se mostra incompatível com o aludido princípio da legalidade
tributária a circunstância de a lei, com base em conceitos indeterminados ou só
indirectamente determinados, conferir uma certa margem de livre apreciação à
Administração para efeitos de determinação da substituição de um sistema de
tributação (típico do grupo A) por um outro (o do grupo B), este mais gravoso do
que aquele, em virtude do incumprimento, por parte do contribuinte, de certas
regras atinentes às suas obrigações fiscais.
Recorde-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional já teve ocasião de
dizer que em sede de restrição de direitos, liberdades e garantias, a
Constituição não veda ao legislador a possibilidade de este conferir à
Administração a faculdade de actuar ao abrigo de poderes discricionários, desde
que as balizas de exercício de tais poderes constem de forma suficientemente
densificada na própria lei ( cfr. Acórdão n.º 285/92, publicado no Diário da
República I Série-A, de 17 de Agosto de 1992). Ou seja: em sede de restrições de
direitos, liberdades e garantias, o recurso a conceitos jurídicos
indeterminados, para efeitos de definição dos pressupostos e da amplitude de
exercício de poderes discricionários pela Administração, deve encontrar na letra
da lei um tal grau de densificação normativa que correspondam a um mínimo de
critérios objectivos que balizem essa actuação discricionária da Administração,
em termos tais que permitam aos cidadãos, com um mínimo de segurança, saber com
que quadro normativo contam quanto à possível aplicação dessa lei e que
simultaneamente confiram aos tribunais elementos objectivos suficientes para
apreciação da adequação e proporcionalidade no uso de tais poderes.
E se se chama este lugar paralelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional
para apreciação do caso em análise é apenas para tornar mais evidente que, desde
logo para quem entenda que a actividade normativa de definição do sistema
tributário, à luz do princípio da legalidade tributária, não se traduz numa
verdadeira e própria restrição de direitos, liberdades e garantias, então parece
não constituir obstáculo inultrapassável que a lei acolha na sua formulação
conceitos jurídicos indeterminados e, com base neles, confira à Administração
uma 'margem de livre apreciação' para analisar uma dada situação de facto de
incumprimento ou de desvio de um dever fiscal e, consequentemente, decidir da
aplicação do mecanismo de substituição do sistema de tributação (como resulta do
§ 2º do art.º 114º do Código da Contribuição Industrial), desde que tal
habilitação preencha o conteúdo mínimo exigível ao cabal cumprimento do aludido
requisito da legalidade tributária (no sentido de previsão legal do imposto).
Mas mesmo para quem veja na definição normativa do sistema tributário, em
concorrência com os ditames do princípio da legalidade e da tipicidade
tributárias, uma específica forma de restrição de direitos, liberdades e
garantias, ou melhor, de direitos fundamentais de natureza análoga, que
beneficiariam do regime do artigo 18º da Constituição, por força do disposto no
artigo 17º da Lei Fundamental, será também de concluir que, à luz do critério
jurisprudencial atrás referenciado, quando a lei usa conceitos jurídicos
indeterminados, embora daí resulte que a Administração vem a beneficiar de uma
certa margem de liberdade de apreciação, não haverá ofensa da Constituição desde
que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos
destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os
pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os
tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade
administrativa assim desenvolvida.
No caso vertente, constituirá exigência do princípio da legalidade tributária
que os conceitos indeterminados contenham uma densificação normativa que permita
aos particulares saber em que situações concretas possíveis é que pode ter lugar
a substituição do sistema de tributação em contribuição industrial segundo o
grupo A pelo do grupo B e aos tribunais conhecer da exigibilidade e da
proporcionalidade da conduta da Administração ao determinar essa substituição do
sistema de tributação.
Assim sendo, a norma em apreço torna claro que tal substituição só poderá operar
quando 'em face do exame à escrita se verifique a impossibilidade de controlar a
matéria colectável' bem como quando, face ao mesmo exame, resulte que existem
'dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade'.
É bem certo que a delimitação dos pressupostos de aplicação daquele normativo
depende de um juízo valorativo tributário de elementos de carácter técnico -
inexistência de elementos que permitam o controlo da matéria colectável e
fundadas dúvidas de incorrecção ou inexactidão dos elementos constantes da
escrita face à realidade económico-financeira da empresa -, mas não se afigura
que da imposição constitucional constante do princípio da legalidade tributária
decorra que tais pressupostos de aplicação do normativo impugnado legalmente
estabelecidos se mostram insuficientemente densificados, atentas as
especificidades do domínio fiscal, onde frequentemente, e em sede de exercício
dos poderes de controlo, se terá que recorrer a conceitos jurídicos
indeterminados e ao contributo de elementos de carácter técnico para fundar as
decisões da Administração na prossecução do interesse público expresso numa
correcta tributação dos agentes económicos.
Com efeito, o particular sabe, em face do postulado normativo, que não é toda e
qualquer situação que justificará a mudança de sistema de tributação, mas apenas
aquelas que, nos termos da lei, decorram de uma efectiva impossibilidade de
controlo da matéria colectável, com base na escrita da empresa, e de fundadas
dúvidas que a mesma escrita suscite quanto à correspondência entre o resultado
atinente à matéria colectável apurado e declarado pelo contribuinte e a
realidade da empresa, tal como a Administração a aprecia.
Ora a escrita é um elemento objectivo de prova, constitui matéria de facto
constante do processo administrativo, e a impossibilidade de determinação da
matéria colectável há-de resultar da sua insuficiência (ou mesmo inexistência),
podendo sempre ser objecto de contradita quer em sede de reclamação quer de
recurso contencioso.
De igual forma as 'fundadas dúvidas' sobre a efectiva correspondência entre os
resultados declarados pelo contribuinte e a realidade económica da empresa
hão-de resultar de elementos objectivos da escrita da empresa, designadamente
quando cotejados com a prática da Administração na apreciação de situações
paralelas de outros contribuintes em situações similares.
Assim sendo, a norma em crise contem um quadro normativo definido por referência
a conceitos jurídicos relativamente indeterminados, cujo preenchimento vai ser
levado a cabo pela Administração em função do exame à escrita do contribuinte
(aquilo a que cardoso da costa chama 'momentos insuprimíveis de liberdade', de
apprezzamento subjectivo ) e, para o efeito, socorrendo-se dos elementos de
carácter técnico (da 'liberdade de investigação ou científica') que se mostrem
operativos face ao seu grau de conhecimentos e de saber e que correspondem a uma
certa flexibilidade adaptativa da norma à complexidade das relações sociais e ao
próprio progresso e sofisticação das técnicas envolvidas nos casos de fraude ou
de 'evitação' fiscal. Tal quadro normativo contido no preceito legal confere
directrizes genéricas que permitem, pois, ao contribuinte saber em que casos e
situações é que pode vir a sofrer as consequências de mudança do sistema de
tributação.
Sem embargo, não se pode deixar de reconhecer que a efectiva adequação do
procedimento da Administração face aos pressupostos legais é matéria que, em boa
verdade, só pode ser realmente apurada partindo dos próprios resultados da
actividade administrativa. Com efeito, quando se trata de saber se houve 'erro
manifesto', o tribunal tem que partir do resultado da actividade da
Administração para verificar se a decisão de aplicar a norma ao caso encontrava
fundamento nos próprios pressupostos de facto da situação, ou seja, se a
situação fáctica do contribuinte podia ou não ser subsumida à previsão legal na
sua assinalável latitude.
O que só por si indicia que a efectiva observância do princípio da legalidade
tributária não se pode quedar pela análise do grau de densificação normativa na
óptica do seu conhecimento pelos particulares, antes tem que ir mais longe, num
sentido de maior exigência quanto à garantia das posições jurídicas subjectivas
dos administrados e, consequentemente, tem também que ser vista à luz da
possibilidade de controlo jurisdicional da exigibilidade e da proporcionalidade
dos juízos emitidos pela Administração no preenchimento daqueles conceitos
indeterminados e na sua aplicação ao caso concreto. O mesmo é dizer que, nesta
segunda vertente, a observância do próprio princípio da legalidade tributária
vai de par com a garantia de recurso contencioso e com a amplitude dos poderes
de cognição dos tribunais fiscais.
[...]
14. Mas definido desta forma o âmbito da garantia constitucional do recurso
contencioso, cumprirá perguntar se é legítimo, à luz da nossa Lei Fundamental,
que se tenha por excluído um controlo 'mais profundo' [como o aparentemente
pretendido pela recorrente], ou seja, um controlo que vá mais além do
'apprezzamento técnico', da verificação da atendibilidade do juízo expresso pelo
órgão administrativo. Isto é, será constitucionalmente legítimo excluir, como
atrás se afirmou, do controlo jurisdicional, ao abrigo da garantia de recurso
contencioso (de anulação), a esfera de livre decisão da Administração criada por
força de uma norma jurídica, quando esta se traduza na emissão de juízos de
prognose ou de probabilidade mediante o recurso a meios técnicos, sem suporte
directo numa norma legal?
A questão é tanto mais pertinente quanto tem-se chamado a atenção para a
dificuldade de proceder à demarcação da análise e juízo técnico-científico e do
ulterior momento atinente à escolha entre uma série de possibilidades
equivalentes entre si do ponto de vista da compatibilidade com uma norma que
impõe um determinado procedimento cognoscitivo, até porque entre essas duas
fases pode existir uma relação de interpenetração, de influência recíproca
(cfr., neste sentido, georgio pelagatti, op. cit., pág. 174).
Para responder a tal questão, de si extremamente complexa, importa desde logo
sublinhar, por um lado, que a garantia do recurso contencioso, constante do n.º
3, do artigo 268º da Constituição, não esgota, por si só, o complexo de
instrumentos colocados à disposição dos particulares para fazerem valer os seus
direitos e interesses legítimos (cfr. v.g. artigos 20º e 268º, n.º 4) e, por
outro, que a Constituição Portuguesa não consagra nenhuma 'reserva de
administração' (Verwaltungsvorbehalt), isto é, não institui nenhuma área de
actividade administrativa em relação à qual estejam excluídos os poderes do
legislador e o controlo jurisdicional (cfr., neste sentido, sérvulo correia, op.
cit., pág. 487, gomes canotilho, op. cit., pág. 811 e nuno piçarra, 'A reserva
de Administração', in O Direito, Ano 122º, 1990, II, pág. 325 e ss. e III-IV,
pág. 571 e ss.).
Tradicionalmente a destrinça entre os juízos de 'accertamento' e os juízos
propriamente valorativos assenta num pressuposto filosófico segundo o qual a
ciência constitui uma actividade produtora de verdade, de certeza absoluta. Mas
esta explicação tem vindo progressivamente a ser submetida a severas críticas,
que põem em relevo a sua natureza de explicação/fundamento marcadamente
ideológico, que parece cada vez mais claudicante face às mais recentes
aquisições da epistemologia contemporânea, que sublinham precisamente o carácter
não absoluto do conhecimento científico (cfr. Karl Popper, La Logica della
scoperta scientifica, Torino, 1970, pág. 5, e Congetture e confutazioni. Lo
sviluppo della conoscenza scientifica, Bologna, 1972, pág. 369 e ss, e T.H.
Khun, La struttura delle rivoluzioni scientifiche, Torino, 1978, pág. 22 e ss.).
Num plano mais centradamente jurídico, uma relevante corrente doutrinal (de
inspiração germânica) tende a fundamentar a exclusão de um tal controlo
jurisdicional 'mais profundo' (incidente sobre os juízos valorativos) com base
na dicotomia entre Rechtsfragen (questões de direito) e Ermessenfragen (questões
de oportunidade) [cfr. f. ledda, op. cit., pág. 432], identificando os juízos
técnicos às primeiras, com base no pressuposto de que o reenvio levado a cabo
pelo direito para uma norma técnica, ao produzir a juridificação desta,
constitui ainda uma espécie dentre os fenómenos interpretativos, e portanto,
enquanto aplicação da norma, tais juízos são susceptíveis de um controlo
jurisdicional directo (f.ledda, op. cit., loc. cit.), se bem que confinado à
apreciação da correcção do procedimento cogniscitivo adoptado.
Este entendimento afasta, pois, expressamente os juízos técnicos do fenómeno da
discricionariedade administrativa, e nesta medida proscreve o recurso à
categoria do 'juízo de mérito administrativo' como fundamento da exclusão de um
controlo jurisdicional total dos juízos técnicos. Mas uma vez que o controlo
jurisdicional se restringe à verificação da atendibilidade do juízo expresso
pelo órgão administrativo, sobre a correcta aplicação das regras técnicas e
científicas reclamadas pela norma legal, e uma vez verificada tal atendibilidade
e correcção, então estar-se-ia perante uma questão de escolha entre várias
soluções possíveis, todas em si mesmas legítimas porque todas apuradas segundo
os critérios normativamente preestabelecidos, escolha essa que já não seria
meramente 'técnica' mas antes fundada em critérios de 'oportunidade', cuja
natureza os exclui do controlo jurisdicional, porque uma decisão do juiz não se
pode substituir, em sede de oportunidade, à decisão da Administração (f. ledda,
op. cit., pág. 434).
Nesta linha de orientação, a discricionariedade e a margem de liberdade de
apreciação dos conceitos jurídicos indeterminados por parte da Administração
encontram o seu fundamento no próprio princípio da separação de poderes,
gerando, assim, uma 'reserva de decisão parcial' da Administração face aos
tribunais (sérvulo correia, op. cit., pág. 487), estabelecida pelo próprio
legislador com base numa norma jurídica que fixa, ela própria, 'um núcleo mínimo
incomprimível de pressupostos e de elementos do conteúdo do acto' (idem, ibidem,
pág. 486).
Diversamente, outra corrente doutrinária tem vindo a qualificar os juízos
técnicos como parte de uma fenomenologia mais vasta, reportável aos denominados
'factos opinativos', que contemplam as hipóteses nas quais a verificação da
existência e do relevo dos factos (accertamento dei fatti) abstractamente
previstos numa norma determina uma solução - pela própria natureza dos factos em
causa - que resulta inevitavelmente controversa, ou seja, o 'facto opinativo'
consiste numa situação real prevista - tipicizada - por uma norma imprecisa
[cfr. c. marzuoli, Potere amministrativo e valutazioni techniche, Milano, 1985,
pág. 151 e ss.].
Neste contexto, a valoração discricionária constitui um facto (em sentido amplo)
correlacionado a uma norma elástica, imprecisa, a qual impõe a prossecução de
uma finalidade de interesse público e remete à decisão da autoridade
administrativa e fixação dos valores e das prioridades no conjunto dos
interesses em presença. Esta qualificação operada pela Administração enquanto
actividade reservada, ao excluir um controlo jurisdicional pleno e substitutivo,
deriva da natureza política da opção que lhe preside: 'a imprecisão, a
elasticidade da norma reporta-se à definição de uma ordem de relações sociais,
económicas, cuja individualização responde a critérios de oportunidade
totalmente opinativos. A subtracção da valoração discricionária a controlo
jurisdicional ( fora os casos da jurisdição de mérito), por isso, pode dizer-se
que é imposta pelos princípios constitutivos da forma de Estado: o princípio
democrático exige que as decisões inerentes à gestão de interesses sejam
assumidas por sujeitos representativos da vontade expressa dos titulares desses
interesses' [ georgio pelagatti, op. cit., pág. 180].
Assim, uma adequada valoração técnica impõe subsequentemente escolhas associadas
à valoração do interesse público em presença ( como refere sérvulo correia, op.
cit., pág. 480, 'no âmbito da margem de autodeterminação que lhe é deixada, o
titular do poder tem de comparar e valorar todos os interesses públicos e
privados que possam ser satisfeitos pela decisão e hierarquizá-los à luz do
interesse público específico em termos de escolher um ou alguns em detrimento
dos restantes'), mas tais escolhas são, por natureza, alheias à valoração
técnica, porquanto, ao assentarem na imposição ou na prevalência de certos
valores face a outros, são, em última análise, reconduzíveis à função de
'direcção política' ('indirizzo politico') formulada pelos órgãos
constitucionais e correspondem à crescente dimensão técnica da própria política
[cfr. c. marzuoli, op. cit., pág. 227].
Razão pela qual esta corrente doutrinária entende que a Administração pública,
por contraste com as entidades jurisdicionais, representa o sujeito melhor
habilitado para formular tais escolhas, já que os 'valores' expressos pela
Administração, enquanto 'filtrados e influenciados' pelos valores do 'indirizzo
politico', surgem como mais representativos e daí que a possibilidade de um
poder reservado de valoração técnica encontre o seu fundamento no princípio
democrático e de representatividade [cfr., neste sentido, c. marzuoli, op. cit.,
loc. cit., giorgio pelagatti, op. cit., pág. 183; em sentido contrário - no da
prevalência do juízo jurisdicional, v. ottaviano, Giudice ordinario e giudice
amministrativo di fronte agli apprezzamenti tecnici dell' amministrazzione, in
Studi in Onore di V. Bachelet, II, Milano, 1987, pág. 439, nota 25; ainda numa
perspectiva crítica quanto a este entendimento, face aos riscos da 'politização
da Administração' e da autonomização dos aparelhos administrativos face às
insuficiências das instâncias de controlo político, ver g. pelagatti, op. cit.,
pág. 189-190].
Do exposto resulta que, independentemente do fundamento teórico que se adopte,
questão que em si mesma não releva neste momento, existem argumentos ancorados
em princípios básicos do nosso ordenamento constitucional que se mostram
suficientemente relevantes para poder concluir que a existência de domínios de
discricionariedade e de valoração técnica excluídos de um controlo jurisdicional
pleno (no sentido de 'controlo substitutivo') não constitui, em sede de recurso
contencioso de ilegalidade, atentado à garantia constitucional constante do n.º
3, do artigo 268º, da Constituição.
[...]”.
No Acórdão n.º 756/95, o Tribunal Constitucional voltou a ser chamado a
pronunciar-se sobre o problema da mobilização legislativa de “cláusulas gerais”,
“conceitos indeterminados” ou “conceitos tipológicos”, tendo concluído que o
recurso a tais instrumentos tipológicos só será de considerar inadmissível
quando possa concluir-se que, por seu intermédio, se coloque “nas mãos da
administração um poder arbitrário ou de concretização”, sendo que, como indica
Cardoso da Costa (“O enquadramento constitucional do direito dos impostos em
Portugal”, op. cit., p. 411), mencionando o citado aresto, aí se manifestou a
necessidade de uma “harmonização” dos dois valores conflituantes, porquanto aí
se confrontam «de um lado, a exigência da “determinabilidade” da norma
tributária, como condição da “calculabilidade” dos encargos para os
contribuintes (o que tem a ver com a dimensão “garantística”, num dos seus
pontos cruciais, do princípio da legalidade) e, do outro, a necessidade de
conferir a essa norma uma “plasticidade” que a torne suficientemente capaz de
abranger a realidade a tributar na sua diversidade evolutiva, frustrando formas
artificiosas de evasão e assegurando, assim, a igualdade de tratamento (o que,
se é expressão, dir-se-á, de um “princípio de realidade” por que há-de pautar-se
a construção de todo o direito público, tem também a ver, afinal, e por seu
turno, com essa outra dimensão do princípio da legalidade, que é a sua dimensão
democrática)».
Ainda que a sua análise não se tenha centrado especificamente em
torno do âmbito de admissibilidade da utilização de conceitos indeterminados na
construção de normas fiscais de incidência e de determinação da matéria
colectável à luz do princípio da legalidade tributária, é, igualmente, de
lembrar o Acórdão n.º 84/2003, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 55º vol., pp. 91, e Diário da República II Série, de 29 de Maio
de 2003. Na verdade, apreciando a constitucionalidade de diversas normas em cujo
recorte intervêm diversos conceitos desse tipo, o Tribunal concluiu pela sua não
inconstitucionalidade.
Ao nível da doutrina cabe notar a posição de José Casalta Nabais (O dever
fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1998, p.373 e ss. esp.te 378), que, no
recorte dogmático do princípio da legalidade fiscal, entende “chamar aqui à
colação, enquanto limite à determinabilidade requerida pelo princípio da
tipicidade fiscal, (...) o princípio da praticabilidade, o qual implica que o
legislador não vá tão longe na determinação das soluções legais quanto seria de
exigir, permitindo à administração uma dada margem de livre decisão, sob pena de
nos depararmos com soluções impraticáveis no sentido de economicamente
insuportáveis (...). Daí que, em face à realidade das situações cujo grau de
diferenciação e individualização não é possível de acompanhar por razões de
ordem prática, nomeadamente pelos custos insuportáveis ou inadequados que
implicam, se apele à edição de normas de simplificação, seja em sede
legislativa, seja em sede administrativa, através das quais se proceda à
tipificação (ou tipi(ci)zação), globalização ou estandardização, assumindo como
regra o que é típico, normal, provável (...)”, sendo que, para o Autor, “o
princípio da praticabilidade ainda pode contribuir para uma atenuação das
exigências da determinabilidade do princípio da legalidade fiscal (...),
constituindo-se em suporte para o legislador utilizar conceitos indeterminados
(...) ou conceder mesmo faculdades discricionárias, o que de resto se verifica
em toda a parte e que, entre nós, tem diversas manifestações (...)”, sendo uma
delas, precisamente, a da norma que permite “a correcção dos lucros em caso de
relações especiais”.
Mais recentemente, e na mesma linha das suas posições anteriormente sustentadas
– referidas no aresto supra transcrito – Saldanha Sanches (“A LGT e a tributação
segundo o lucro normal”, in Fiscalidade, n.º 15, Julho, 2003, pp. 61 e ss.),
discreteando sobre a fundamentação aduzida pelo Provedor de Justiça no Processo
n.º 531/99 (que mereceu o referido Acórdão n.º 84/2003) – para quem a
possibilidade de definição por um membro do Governo dos indicadores de
actividade de base técnico-científica previstos no artigo 89.º da Lei Geral
Tributária “traduz em si mesma um poder discricionário da administração fiscal
inadmissível num Estado de direito democrático, que põe seguramente em crise as
exigências que estão subjacentes ao princípio da segurança jurídica aplicado ao
domínio tributário” –, não deixou de criticar a posição doutrinária de acordo
com a qual “o princípio da tipicidade e da legalidade proíbe em absoluto a
discricionariedade por parte da Administração fiscal”, afirmando que “assim
entendido o princípio da legalidade estamos perante uma posição marcada por um
total irrealismo metodológico: poderemos dizer, tal como o faz o § 5 da
Abgabenordung, que a Administração fiscal tem uma habilitação para agir segundo
a sua discricionariedade que deve ser exercida de acordo com os fins que a lei
define e dentro dos seus limites”.
5.2.4 – Condensadas as linhas de rumo firmadas pela densificação
material-substantiva do princípio da legalidade fiscal e encontradas, assim, as
linhas reflexivo-dogmáticas que hão-de nortear a resolução do problema sub
judicio, importa agora confrontar a previsão do artigo 57.º do CIRC com o
parâmetro constitucional, procurando esclarecer se – e em que medida – a sua
formulação apresenta – ou não – uma suficiente densidade normativa à luz do
parâmetro constitucional e se aí se implicará – ou não – a concessão de
verdadeiros poderes discricionários à administração fiscal incompatíveis com o
âmbito de tutela emergente da “Constituição fiscal”.
Desde logo, ao nível do âmbito subjectivo de aplicação do preceito, fica claro
que a actuação administrativa fica agrilhoada à prova de existência de relações
especiais entre o sujeito passivo e uma outra entidade, sujeita ou não ao regime
do IRC, decorrendo imediatamente do preceito que a verificação de tais situações
está condicionada pela existência de uma relação objectiva de dependência tal
que permita uma manipulação dos preços de transferência em face dos valores de
transacção praticados por entidades independentes que, por definição, não se
inter-relacionam em termos do exercício de um poder de influência dominante
susceptível de determinar uma actuação marcada por uma concertação de interesses
com a intentio supra firmada.
Os pressupostos de actuação administrativa vão, nesses termos, concretizados –
como bem se referiu na decisão recorrida – em torno do conceito de dependência,
sendo manifesto, atendendo à teleologia da norma, que a aplicação do regime
exigirá a existência de um especial vínculo entre os sujeitos que possa
determinar o estabelecimento de condições anómalas em face das que seriam
impostas entre entidades “dealing at arm’s length”.
Por outras palavras, o recorte do âmbito de aplicação da norma sindicanda passa,
indubitavelmente, pela constatação de que os preços de transferência não
reflectem adequadamente os mecanismos de mercado e o princípio de plena
concorrência, devendo tal distorção ter na sua base a existência de uma relação
especial, de dependência, entre sujeitos distinta da que ocorre entre entidades
não associadas, não vinculadas entre si e, assim, não sujeitas a influências de
gestão heteronomamente determinadas (hoc sensu, independentes).
5.2.4.1 – Assim, “respondendo” aos problemas supra enunciados – e levando em
linha de conta as considerações já tecidas sobre a problemática em questão –,
sempre importa começar por evidenciar que a ratio normativa e o campo de
aplicação por ela implicado se apresentam moldados com base na afirmação de um
claro e apreensível pressuposto subjectivo que passa pela exigência de que as
condições estabelecidas sejam determinadas por uma relação especial traduzida,
na imanente teleologia normativa, numa relação de dependência.
Considerado na sua globalidade significante e valorativa, o preceito exige que o
verificável desfasamento objectivo seja fundado numa constatável relação
intersubjectiva qualificada pelo nexo de dependência, em termos da
susceptibilidade de induzir/produzir uma actuação empresarial concertada em
função de uma partilha de interesses – estranha em face das regras de
funcionamento do mercado entre entidades não vinculadas – e concretizada num
poder de ingerência condicionador e controlador da actuação empresarial segundo
uma ratio não explicável – e compreensível –, segundo o cânone da plena
concorrência, à luz dos criteria determinantes da actuação de sujeitos não
vinculados.
A esta luz, não só se torna imperioso determinar, numa lógica que leva
subjacente uma ideia de comparabilidade, os termos em que decorrem as relações
entre sujeitos independentes – sabendo-se que “(...) os métodos que aplicam o
princípio de plena concorrência partem do pressuposto de que as empresas
independentes examinam as diferentes opções de que dispõem e, na comparação
dessas opções, tomam em consideração todas as diferenças susceptíveis de
influenciar de modo significativo o valor das mesmas (...) [sendo] de esperar
que empresas independentes, antes de comprarem um produto por um dado preço,
verifiquem a possibilidade de comprar mais barato a outra empresa” – cf. OCDE -
Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às
empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., pp. 42) –, mas
também demonstrar que a especial qualidade das relações entre os sujeitos
traduzida num vínculo que, em concreto, é condição sine qua non da fixação de um
valor estranho ao mercado.
Na verdade, como resulta da intencionalidade prático-normativa do preceito, não
será um qualquer afastamento objectivo do standard referencial assumido pelo
valor de plena concorrência a ditar a aplicabilidade do presente regime.
A este propósito, Fernando Rocha Andrade (Preços de transferência e tributação
de multinacionais: As evoluções recentes e o novo enquadramento jurídico
português, op. cit., pp. 333-334), em crítica à actual formulação legislativa,
maxime, no que tange com as hipóteses abrangidas pela alínea g) do n.º 4 do
artigo 58.º, não deixa de notar, como hipótese, que “(...) o preço obtido pode
afastar-se do que existiria num mercado totalmente concorrencial, mas isso
acontece precisamente porque há uma situação de imperfeição de concorrência – ou
seja, porque a realidade económica não é conforme aos modelos do mercado
concorrencial”, mas determinada “por uma empresa com maior poder de mercado”.
Tem-se entendido, face à ratio do regime legal, que a conformação do valor
estipulado há-de ser produto de uma vontade convergente dos sujeitos numa
relação de comunhão/associação de interesses (comuns), ou seja, é forçoso que a
transacção não seja de algum modo comparável ao resultado emergente entre
entidades que se separam (“dealing at arm’s length”....) na prossecução de
interesses próprios – et pour cause, divergentes –, mas o reflexo de um “abraço”
intencional, fruto de uma vontade comum susceptível de «levar a que os valores
das transacções transfiram parte da matéria colectável entre os vários pólos
fiscais de um mesmo centro de interesses económicos convergentes, afastando-se
dos que seriam praticados por “entidades independentes”» (cf. Fernando Rocha
Andrade, Preços de transferência e tributação de multinacionais: As evoluções
recentes e o novo enquadramento jurídico português, op. cit., pp. 333).
Assim, ainda que o conceito de relações especiais – de dependência, pode
dizer-se – possa assumir, quanto às suas possíveis manifestações
concretizadoras, uma certa geometria variável, a verdade é que ele goza, quanto
ao grau determinante da aplicabilidade do regime, de uma formulação basicamente
constante e apreensível quando reportado, em termos de intencional causalidade,
ao pressuposto objectivo elencado na norma.
Na essência é também este o critério que vem igualmente explicitado ao nível do
direito comparado, e, ainda que o seu grau de densificação assuma, nos diversos
ordenamentos jurídicos, uma tonalidade matizada, é nota comum a todos a
concretização do conceito de relações especiais em volta de uma tal relação de
dependência, sendo possível “evidenciar que este pressuposto subjectivo (...)
tende a ser definido em termos voluntariamente elásticos e, sobretudo, tendendo
a prescindir da subsistência de precisos requisitos formais para resolver-se na
verificação (...) da efectiva existência de uma determinada situação de controlo
de um sujeito sobre o outro, ou da sujeição de ambos a um comum centro de poder
e direcção” [cf. Francesca Balzani, “Il transfer pricing”, in Aa. Vv. (coord. de
Victor Uckmar), Corso di diritto tributario internazionale, 2.ª ed., Pádova,
2002, pp. 426].
Em França, o artigo 57.º do Code General des Impôts alude, a esse nível, às
“enterprises qui sont sous la dependance ou qui possèdent le contrôle
d’enterprises”, tendo a doutrina vindo a reconhecer que aí se deverão incluir
“todas as hipóteses de comunhão de interesses explicada juridicamente pelo poder
de incidir sobre a vontade de outrem (...) ou decorrentes, de facto, de
condições económicas que ‘disciplinam’ uma ligação” (cf. Gilbert Tixier/Guy
Gest, Droit fiscal international, Paris, 1985, pp. 353 e ss. esp.te 558 e ss.).
Na Bélgica, o artigo 24.º do Code des Impôts sur les Revenus refere-se a “liens
quelconques d’interdependance” entre empresas, sendo que, como refere Guglielmo
Maisto (Il “Transfer Price” nel diritto tributario italiano e comparato, op.
cit., pp. 79), a doutrina e a jurisprudência vêm aí incluindo, extensivamente,
“todas as hipóteses de influência jurídica ou económica de uma empresa sobre a
outra”.
Também nos Estados Unidos da América se referem as relações entre empresas em
torno da afirmação de um nexo que denuncie a existência de uma comunhão de
interesses. Nesse sentido a Secção 482 do Internal Revenue Code refere-se a
“owned or controlled directly or indirectly by the same interest” – tendo a
jurisprudência elaborado um conceito de “presunção de controlo” mediante o qual
a administração fiscal poderá provar o “nexo de dependência” com base na
anormalidade do valor da transacção inter-partes (cf. Guglielmo Maisto, Il
“Transfer Price” nel diritto tributario italiano e comparato, Padova, 1985, pp.
82).
No ordenamento jurídico italiano, o artigo 76.º do Testo Unico delle Imposte
sui Redditi, na sua versão original, referia-se a uma relação entre sujeitos de
“influenza dominante”, compreendida de molde a abarcar todas as situações no
âmbito das quais «a relação jurídica ou económica entre sujeitos é de modo a
pressupor uma alteração dos valores das trocas comerciais, com uma assimilação
prática às hipóteses de “comunanza di interessi”», estando hoje concretizado,
perante a redacção actual do artigo 110.º, n.º 7, do mesmo diploma, que tais
hipóteses se desenvolvem em torno das “operações com sociedades (...) que
directa ou indirectamente controlam a empresa” (cf. Guglielmo Maisto, Il
“Transfer Price” nel diritto tributario italiano e comparato, op. cit., pp. 69;
Benedetto Lavagnino, Nuovo TUIR 917 – Imposte sui Redditi, Nápoles, 2004, pp.
224).
Por seu lado, o regime espanhol, na Lei n.º 43/1995 (Ley del Impuesto sobre
Sociedades), admite, no seu artigo 16.º, que a administração fiscal possa
«valorar, dentro do período de prescrição, pelo seu valor normal de mercado as
operações efectuadas “entre pessoas ou entidades vinculadas” quando a valoração
acordada houver determinado, considerando o conjunto de pessoas ou entidades
vinculadas, uma tributação em Espanha inferior à que teria correspondido por
aplicação do valor normal de mercado ou um deferimento em tal tributação»,
especificando, no n.º 2 do referido preceito, que as pessoas ou entidades que se
consideram vinculadas, apesar de a legislação espanhola admitir igualmente que,
fora de tais “pressupostos de vinculação”, possa ter lugar uma correcção
administrativa segundo o valor normal de mercado independentemente da existência
ou não de uma vinculação entre os sujeitos (cf. Carlos Herrero Mallol, Precios
de transferencia internacionales – Estudio tributario y microeconómico,
Pamplona, 1999, pp. 215 e ss.).
E essa relação de dependência, causalmente assumida – como o é no contexto da
regulamentação em crise –, conduz a que se haja de fazer relevar neste âmbito os
modos pluriformes de controlo e influência suficientes (hoc sensu,
determinantes) para condicionar uma determinada transacção (cf. Francesca
Balzani, “Il transfer pricing”, op. cit., pp. 425).
Também no nosso art.º 57º do CIRC vai implicado um conceito técnico-funcional de
dependência que tem, quanto à sua intensidade, um recorte especificamente
determinado (recte, determinável) em sintonia com a sua intencionalidade fiscal,
autorizando-se a correcção sempre que exista, entre as entidades envolvidas, uma
relação pela qual uma possa, em face de uma operação concreta, influenciar
determinantemente a autonomia decisória da outra, exercitando sobre ela «directa
ou indirectamente uma influência “análoga ao controlo”» de forma a não poder
afirmar-se uma exclusiva autodeterminação como substrato voluntarístico de uma
dada operação.
Trata-se, enfim, como infra se tornará mais claro, de apurar da existência de
uma situação fáctica ou jurídica que possa influenciar as decisões empresariais,
determinando-lhes um conteúdo material insusceptível de repetir-se numa relação
entre sujeitos não vinculados.
E não é outro o sentido que emerge de importantes modelos operatórios
imediatamente mobilizáveis no sentido de, perante um caso concreto, melhor se
concretizar a intencionalidade prático-normativa do critério legal.
Releve-se, ainda, a este propósito, a noção de “empresa associada” constante das
diversas convenções internacionais para evitar a dupla tributação e prevenir a
evasão fiscal celebradas por Portugal, onde foi acolhida, ipsis verbis, a
formulação presente na Convenção Modelo da OCDE (cf. Francisco de Sousa da
Câmara, “A avaliação indirecta da matéria colectável e os preços de
transferência na LGT”, in Diogo Leite de Campos et alii, Problemas Fundamentais
do Direito Tributário, Lisboa, 1999, pp. 364-365).
E na perspectiva de acentuação das “semelhanças e diferenças”, podem ainda
convocar-se outros domínios dogmáticos (ainda que, em todo o caso, a sua
influência para a determinação do sentido jurídico-normativo do preceito haja de
ser enquadrada, de acordo com a ratio da tributação, no seio da norma
aplicanda).
Atente-se, por exemplo, na regulamentação constante do Código das Sociedades
Comerciais relativa às “Sociedades Coligadas” (artigos 481.º e seguintes), onde
se disciplinam os pressupostos e o regime das sociedades em relação de simples
participação, das sociedades em relação de participação recíproca, das
sociedades em relação de domínio e das sociedades em relação de grupo; ou,
principaliter, no plano contabilístico, o disposto na Norma Internacional de
Contabilidade n.os 24 e 28 do International Accounting Standards Commitee (cf.
Duarte Barros, Metodologias na determinação do preço de plena concorrência –
perspectiva da Administração Fiscal, op. cit., pp. 4 e ss.; cf., igualmente,
João Rodrigues, Adopção em Portugal das normas internacionais de relato
financeiro, Lisboa, 2003, pp. 429 e ss.).
Por outro lado, como se infere do já exposto, além da existência de relações
especiais, a lei estabelece, como pressuposto da correcção administrativa, a
presença de um desvio ou discrepância das condições concretamente acordadas
entre as entidades vinculadas relativamente àquelas que seriam acordadas entre
sujeitos independentes, firmando, neste domínio, um nexo de causalidade (cf.
Alberto Xavier, Direito tributário internacional, Coimbra, 1993, p. 323) que tem
de ser necessariamente provado e, formalmente, levado à fundamentação do acto
administrativo na exigência de demonstração da existência de “relações
especiais” e, mais especificamente, dos “termos em que normalmente decorrem
operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas
circunstâncias”.
Explicitando os termos concretizadores da exigência de uma especial densidade
significante do discurso administrativo que faça aplicação da norma
constitucionalmente impugnada, o artigo 80.º do Código de Processo Tributário
–vigente no período temporal a que se referem os autos – obrigava a que:
“Sempre que as leis tributárias permitam que a matéria colectável seja corrigida
com base em relações especiais entre contribuinte e terceiro e verificando-se o
estabelecimento de condições diferentes das que se verificariam sem a existência
de tais relações, a fundamentação das correcções obedecerá aos seguintes
requisitos:
a) Descrição das relações especiais;
b) Descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza
entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias;
c) Descrição e quantificação do montante efectivo que serviu de base à
correcção”.
Pelo que a “particularização” ou concretização dos elementos factuais do caso e
dos referenciais de mercado exigidos neste preceito não deixa de assumir uma
natureza explicativa do sentido material da norma de tributação, integrando, por
esta via, o seu conteúdo material.
Em todo o caso, remete-se sempre o intérprete para um confronto do valor de uma
transacção com o preço que seria fixado ou acordado entre entidades
independentes no seio de um mercado livre, firmando-se, assim, neste domínio, “a
existência de um pressuposto objectivo – que preside à operatividade do
instituto – que é constituído pela “anormalidade” do valor acordado entre
empresas vinculadas que realizam uma determinada operação” (cf. Guglielmo
Maisto, Il “Transfer Price” nel diritto tributario italiano e comparato, op.
cit., pp. 85).
É precisamente neste nódulo problemático que a generalidade dos operadores
(sejam eles os particulares, a administração ou os tribunais) são remetidos para
a consideração do preço de plena concorrência, concretizado este, como já se
salientou, como o preço estabelecido entre sujeitos independentes para uma dada
operação como expressão do livre mecanismo de mercado (open market price).
Neste domínio, vem-se reconhecendo que a determinação dos preços de
transferência, dealing at arm’s length, não constitui uma “ciência exacta” (cf.
Patrick Cauwenbergh, “Does the arm’s length standard require a flexible or a
rigid interpretation?”, in International Transfer Pricing Journal, n.º 3,
Maio-Junho, 1997, p. 139 e Francisco de Sousa da Câmara, “A avaliação indirecta
da matéria colectável e os preços de transferência na LGT”, op. cit., pp. 364)
no sentido de permitir predefinir com exactidão todo o “conjunto de
possibilidades” e vertê-lo numa fórmula conducente, ao estilo matemático, a um
resultado único e inequívoco quanto ao processo de apuramento de um valor “at
arm’s length”. Sendo inúmeras as possibilidades, apenas a prática – e o
problemático-concreto – poderão decidir da metodologia a seguir na prossecução
de tal objectivo, não sendo imposto pelo princípio da legalidade fiscal que os
elementos de índole técnico-empírica de desenvolvimento da actividade
administrativa, num domínio como este – onde vai inerente o reconhecimento
apodíctico de uma ineliminável esfera de liberdade valorativo-probatória –
tenham de constar da norma legal.
De qualquer modo, a própria consideração do princípio de plena
concorrência permite que, a partir dele, se extraiam directamente, desde logo,
certos corolários-vectores de não discipienda relevância para a metodologia a
seguir na sua determinação.
Pode notar-se, a propósito, que Maria Teresa Veiga de Faria (“Preços de
Transferência – problemática geral”, op. cit., pp. 412; vide, igualmente, quanto
a este ponto, em discurso análogo, Francesca Balzani, “Il transfer pricing”, op.
cit., pp. 441 e ss.; e Guglielmo Maisto, Il “Transfer Price” nel diritto
tributario italiano e comparato, op. cit., pp. 101 e ss.), partindo do Relatório
da OCDE de 1979, identifica como tais: “a) a análise deverá incidir sobre
transacções específicas, individualmente identificadas (análise transaccional);
b) a transacção efectuada deve ser comparada com uma outra transacção (...)
igual ou semelhante inserida num contexto igual ou semelhante; c) os termos
legais dos contratos celebrados devem, em princípio, ser tidos em conta,
designadamente em matéria de obrigações emergentes; d) o preço de transferência
a determinar deve tomar como base um mercado concorrencial e as práticas
habituais nos negócios; e) a individualidade do contexto em que a transacção é
efectuada deve ser respeitada, ainda que tal implique um desvio ao “valor justo
de mercado” (fair market price); f) a determinação do preço de plena
concorrência deve ter em conta as funções desempenhadas pelas empresas
associadas – análise funcional (...) [que deve englobar], designadamente, a
identificação e avaliação do risco económico, das obrigações e grau de
responsabilidade de cada elemento do grupo”.
Tendo em conta a fisionomia caracterizadora do princípio de plena
concorrência, pode, desde logo, defender-se que esse critério aponta, só por si,
para uma metodologia susceptível de conduzir à sua determinação.
Nessa linha perfila-se todo um conjunto de métodos que directa ou
indirectamente são reconduzíveis a uma lógica de comparabilidade, apelando para
a valoração de determinada transacção em função da referência aos preços que
seriam acordados entre sujeitos independentes em face de operações idênticas ou
manifestamente análogas no âmbito de um mercado não controlado. É o que sucede
com o método do preço comparável de mercado (comparable uncontrolled price),
que, em rigor, se assume, recta via, como uma autêntica «expressão típica do
princípio “dealing at arm’s length”» e como o “método mais directo de
determinação do preço de plena concorrência” (cf. OCDE – Relatório do Comité dos
Assuntos Fiscais da OCDE de 1979, op. cit., pp. 50, e Guglielmo Maisto, Il
“Transfer Price” nel diritto tributario italiano e comparato, op. cit., pp.
105); com o método do preço de revenda minorado (Resale price method), tido como
o método “mais adequado à determinação do preço de plena concorrência em
operações comerciais de venda de bens” (cf. Paula Rosado Pereira, “O novo regime
dos preços de transferência”, op. cit., pp. 37; Princípios aplicáveis em matéria
de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e às
Administrações Fiscais, op. cit., pp. 71; Carlos Herrero Mallol, Precios de
transferencia internacionales – Estudio tributario y microeconómico, op. cit.,
p. 89; Guglielmo Maisto, “Transfer pricing in the absense of comparable market
prices”, op. cit., p. 225, e Francesca Balzani, “Il transfer pricing”, op.
cit., pp. 431); com o método do custo majorado – “método do preço de custo
acrescido de uma margem de lucro” (“Cost plus method”) (cf. “OCDE-Princípios
aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas
multinacionais e às Administrações Fiscais”, op. cit., pp. 78 e ss.;
“OCDE-Preços de transferência e empresas multinacionais - Relatório do Comité
dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979”, op. cit., pp. 59 e ss.; Daniel De Crem,
“Margin and Cost Base for applying the Cost-plus Method”, in International
Transfer Pricing Journal, vol. 6, n.º 1, Jan-Fev., 1999, pp.15 e ss.; William T.
Cunningham, “Application of the Cost-plus Method”, in International Transfer
Pricing Journal, vol. 6, n.º 1, Jan-Fev., 1999, pp. 19; Andrew Casley/Ahmad
Abu-el-Ata, “The Cost-plus Method”, in International Transfer Pricing Journal,
vol. 6, n.º 1, Jan-Fev., 1999, pp.20 e ss.; Deloris R. Wright/Harry A. Keates,
“The Cost-plus Method”, in International Transfer Pricing Journal, vol. 6, n.º
1, Jan-Fev., 1999, pp. 26 e ss.; Guglielmo Maisto, “Transfer pricing in the
absense of comparable market prices”, op. cit., pp. 226; Francesca Balzani, “Il
transfer pricing”, op. cit., pp. 432; Carlos Herrero Mallol, Precios de
transferencia internacionales – Estudio tributario y microeconómico, op. cit.,
pp. 90 e ss.); com o método do fraccionamento do lucro (Profit split method),
este aplicável, essencialmente, nas situações em que ocorre falta de operações
comparáveis entre entidades independentes em resultado da estrutura do mercado,
designadamente em caso da existência de oligopólios ou de monopólios e de
especificidade dos bens ou dos serviços objecto da operação, principalmente no
caso de royalties, cedência de know-how e assistência técnica (cf. Paula Rosado
Pereira, “O novo regime dos preços de transferência”, op. cit., pp. 39; OCDE –
Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às
empresas multinacionais e às Administrações Fiscais, op. cit., pp. 89 e ss.); e,
também nessa linha, o método da margem líquida da operação (Transactional net
margin method) (cf. OCDE – Princípios aplicáveis em matéria de preços de
transferência destinados às empresas multinacionais e às Administrações Fiscais,
op. cit., pp. 96 e ss.. Sobre estes Transactional Profit Methods, cf., inter
alia, Francesca Balzani, “Il transfer pricing”, op. cit., pp. 435; Carlos
Herrero Mallol, Precios de transferencia internacionales – Estudio tributario y
microeconómico, op. cit., pp. 91 e ss.; guglielmo maisto, “Transfer princing in
the absence of comparable market prices”, in Cahiers de Droit Fiscal
International, vol. LXXVIIa, 1992; Paula Rosado Pereira, “O novo regime dos
preços de transferência”, op. cit., pp. 39 e ss..).
5.2.4.2 – Não há dúvida de que a presente construção legislativa assenta na
mobilização tipológica de conceitos indeterminados, que, pela sua natureza, não
se prestam a uma aplicação “automática”, antes exigindo uma valoração
problematicamente concretizadora do sentido jurídico-normativo da norma, e,
portanto, uma concretização especificante em atenção ao caso a considerar.
Contudo, tal conclusão não autoriza que, sem mais, possa concluir-se por uma
apodíctica preterição do princípio da legalidade fiscal – com a inerente
dimensão de tipicidade – e, do mesmo passo, pelo reconhecimento de um
insindicável espaço de discricionariedade à actuação administrativa, mesmo
salientando-se que nessa esfera não pode estar em causa a concessão de um poder
arbitrário de conformação normativa, porquanto, a bem ver, no âmbito de um
Estado de direito materialmente comprometido, toda a actuação administrativa,
ainda que discricionária, está sempre “sujeita a uma regra de absoluta
juridicidade” (cf. João Pedro Silva Rodrigues, Critérios normativos de
predeterminação da matéria tributável – Os novos caminhos abertos pela [pré-]
suposta avaliação indirecta na imposição fiscal do rendimento, Coimbra, 2002,
pp. 110; e, mais expressivamente, A. Castanheira Neves, “O problema da
discricionariedade”, in Digesta – Escritos acerca do Direito, do Pensamento
jurídico, da sua Metodologia e Outros, Volume 1.º, Coimbra, 1995, pp. 531 e ss.,
esp.te 586).
Nesta linha discursiva, sempre haverá, então, que distinguir as questões
relacionadas com o exercício de poderes discricionários, “daqueloutras onde,
perante um conceito indeterminado, a actuação administrativa é completamente
vinculada e, por isso, sindicável pelo tribunal em toda a sua extensão (...)”,
sendo que, no domínio tributário – mesmo no que toca especificamente à
definição dos elementos essenciais dos impostos e aos aspectos relacionados com
a sua incidência – o princípio da legalidade não impede que a prescrição
legislativa que contenha conceitos indeterminados através dos quais se “remeta
(...) a administração para a consideração de circunstâncias de índole técnica
(...) [possa] significar a preterição da instância jurisdicional decidente, [ou]
a condenação do contribuinte a uma mera decisão administrativa (...)”.
Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que tais «conceitos
indeterminados são passíveis de uma interpretação concretizadora que opere a sua
determinação conceitual (...) [não colocando] nas mãos da administração fiscal o
monopólio da sua densificação, (...) como autênticas “cláusulas de
discricionariedade”», porquanto, “se nem todos os conceitos legais têm o mesmo
grau de indeterminação, a verdade é que todos são interpretáveis e, embora a
determinação do sentido jurídico-normativo da norma interpretanda seja marcada
por uma ineliminável subjectividade, tal não significa, contudo, que a
mobilização de normas legais onde estejam inseridos conceitos indeterminados não
possa ser pertinentemente sindicada pelos tribunais fiscais” (cf. João Pedro
Silva Rodrigues, «Conceitos indeterminados e a sindicabilidade pelo tribunal da
sua “interpretação-aplicação”», in Saldanha Sanches et alii, Jurisprudência
Fiscal Anotada, 2001, pp. 89 e ss. esp.te 102-103)
E, no âmbito desta distinção, sempre importará precisar que não será, pois, o
maior ou menor grau de indeterminação conceitual a determinar – ou afastar – a
sindicância jurisdicional do juízo administrativo, antes havendo que determinar
se, para lá da estrutura conceitual da norma e, portanto, do seu “conteúdo
significativo-conceitual”, o legislador pretendeu desvincular a actuação
administrativa de uma esfera de revisibilidade jurisdicional, admitindo, quanto
a determinados aspectos do acto administrativo, uma verdadeira – e insindicável
– liberdade de escolha.
Além disso, é certo que, a montante desta distinção – mas irradiando sobre ela –
as exigências do princípio da legalidade determinam uma construção tipológica
assente na ideia de que os critérios legalmente estabelecidos devem conter uma
densificação e uma aptidão problemático-significante tais que possam ser tidos
pelos destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os
pressupostos de actuação da administração e que simultaneamente habilitem os
tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade
administrativa assim desenvolvida. Mas aqui, em sede do problema relativo à
densidade normativa reclamada pelos corolários da tipicidade e determinabilidade
legais, a questão é, no problema que lhe subjaz, diferenciada da que tange com a
abertura do controlo jurisdicional da actividade administrativa, porquanto não
só não será a “ausência de indeterminação normativa” a desvelar esta
possibilidade, como não será, em todo o caso, a (im)pertinência de uma falaciosa
construção axiomático-dedutiva a ditar a linha de fronteira da esfera da
discricionariedade – para a qual, tradicionalmente, se remetiam os juízos de
conformação normativa insusceptíveis, pela sua inerente subjectividade, de uma
cega aplicatio de índole lógico-dedutiva (aí se incluindo, em razão da sua
específica ductilidade, os conceitos indeterminados) –, mas sim o exercício, por
parte do legislador, de uma opção político-jurídica condicionada pelo especial
travão que a função administrativa aqui encontra.
Essencial, será, assim, que a norma em questão possa “ser interpretada e
aplicada em termos de assegurar aos interessados uma suficiente densificação que
sirva de critério orientador à actividade administrativa e à dos próprios
tribunais quando chamados a controlar a actividade da administração” (cf. o
mencionado Acórdão n.º 233/94, deste Tribunal).
Ora, in casu, é manifesto que o campo de actuação normativa e o desenho
problemático evidenciado no preceito, ainda que suscitem uma ponderação
prático-prudencial de concreta realização, compreendem uma ductilidade
compatível com o princípio da legalidade fiscal, abarcando-se no tipo os
criteria suficientes para permitir aos sujeitos apreender o sentido aplicativo
inerente à norma e permitir aos tribunais uma sindicância do juízo
administrativo que dela faça aplicação.
Como se torna agora mais visível, a delimitação substancial da fattispecie
impositiva aqui moldada opera uma valoração das operações fiscalmente relevantes
levadas a cabo entre sujeitos passivos subordinada a uma quantificação da
matéria tributável desocultada em função de um padrão objectivo suficientemente
delimitador do quantum que há-de ser relevado para efeitos da determinação do
imposto e que o legislador assume como expressão efectiva de uma capacidade
contributiva não ficcionada ou manipulada.
É nesse contexto que o problema de determinação do rendimento entre partes
relacionadas assume dimensão tributária: a sua relevância decorre da forma
condicionada com que os negócios são celebrados, por conter potencialidades de
distorção comercial, pela natureza dos laços preexistentes. Daí que devido à
condição não livre e independente das partes intervenientes nas transacções a
norma venha reagir à possibilidade de “deturpação da capacidade contributiva”
nos casos onde exista uma “submissão a regras isoladas da actuação do mercado”
(cf. Duarte Barros, Metodologias na determinação do preço de plena concorrência
– perspectiva da Administração Fiscal, op. cit., p. 9), devendo acautelar-se, a
esse nível, que “as diferentes entidades que rigorosamente estejam em situações
de dependência real, facilmente se configur[rem] como independentes, defendendo
preços realmente distorcidos, recorrendo a movimentações clandestinas ou
ocultas” (Rogério Fernandes Ferreira, Fiscalidade e contabilidade – Estudos
críticos, diagnósticos, tendências, Lisboa, 2003, pp. 122).
Nesta medida, a norma sindicanda traça um quadro de actuação que opera perante a
possibilidade de uma relação entre entidades poder ditar uma construção
artificiosa do rendimento tributável, admitindo uma correcção do quantum
tributário em face da expressão que aquele assume, na ausência de tal vínculo
relacional, entre sujeitos independentes. E, nesse quadro de actuação, a norma é
idónea para dar a conhecer ao(s) seu(s) destinatário(s) qual a expressão
quantitativa do facto tributário que é relevada. O que determina igualmente a
circunstância de esse lucro ser totalmente apreensível pelo sujeito passivo, na
medida em que, quer a modelação concreta dos factos tributários, quer a sua
expressão contabilística tem como razão de ser a não evidenciação do lucro real
que emergeria em circunstâncias semelhantes perante relações entre pessoas
independentes.
Desde logo, ao nível subjectivo, como se viu, a norma individualiza uma
fattispecie apreensível e, bem vistas as coisas, susceptível de constituir um
referencial objectivável da actuação dos contribuintes e da administração
fiscal, assentando na constatação de que os valores de transacção, enquanto se
afastam do referencial do preço de plena concorrência, há-de ficar a dever-se à
existência de relações diversas das que ocorrem entre sujeitos independentes,
daí resultando, sem grande esforço interpretativo – ou mesmo, tão-só, exegético
– a sua concretização numa possibilidade de co-determinação
bilateral-multilateral, projectada no exercício de um poder de influência apto
ao estabelecimento de tais condições como reflexo de um procedimento decisório
“em comum” e “de mãos dadas” para prossecução de um objectivo compartilhado.
Não foi, de resto, outra a interpretação sufragada, in casu, pelas instâncias,
maxime, no âmbito do decidido pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo,
na esteira, aliás, de outras decisões da Secção de Contencioso Tributário do
Supremo Tribunal Administrativo (cf., inter alia, os Acórdãos, de 23 de Outubro
de 1991 – R. 13.350; de 6 de Novembro de 1996 – R. 20.188; de 9 de Dezembro de
1998 – R. 19.858; de 14 de Fevereiro de 2001 – R. 21.514; de 13 de Março de
2001 – R. 25.744; de 26 de Setembro de 2001 – R. 25.533; de 21 de Janeiro de
2003 – R. 21.240, e de 4 de Fevereiro de 2004 – R. 21.240).
É, aliás, nesse mesmo sentido que na actual regulamentação supra mencionada (o
artigo 58.º do CIRC relativo aos “preços de transferência”) se vem explicitar o
critério aferidor da existência de relações especiais, concretizado no “poder de
exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de
gestão”, estabelecendo-se uma panóplia não taxativa de situações denunciadoras
dessa realidade.
Mas igualmente quanto à aferição das sobreditas condições “objectivas” há-de
reconhecer-se que o critério distintivo adoptado pelo legislador, porque
referido ao mercado, tem uma manifesta natureza objectiva, não entrando, na sua
conformação, visões subjectivas da administração, a quem compete determinar a
matéria colectável ao abrigo do artigo 57.º do CIRC, sendo por isso totalmente
controlável pelo sujeito passivo e, em ultima ratio, pelos tribunais.
Na verdade, também aqui a actuação administrativa fica vinculada ao
estabelecimento do preço de plena concorrência, não manifestando a norma
qualquer intenção ou abertura possibilitadora da existência de uma liberdade de
eleição ou de escolha quanto ao efeito jurídico que a fixação dos “termos e
condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre
entidades independentes” é possível de consequenciar.
Não se duvida de que o iter determinante do resultado a alcançar é aqui balizado
pela aplicação de uma pauta normativa não estritamente jurídica, que remete o
intérprete para a consideração de regras operatórias extra-jurídicas.
Contudo, tal constatação apenas releva no âmbito da afirmação de um espaço de
liberdade de escolha dos meios de prova – hoc sensu, dos critérios de valoração
probatória – por banda da administração fiscal num plano que há-de expressar,
inter alia, “as regras de experiência comum, de prudência (...), as regras
científicas ou técnicas” (João Pedro Silva Rodrigues, Critérios normativos de
predeterminação da matéria tributável..., op. cit., pp. 116) no seio de uma
actividade “de interpretação e de valoração dos factos (que) envolvem complexos
juízos técnicos e a utilização de máximas de experiência” (cf. Alberto Xavier,
Conceito e natureza do acto tributário, Coimbra, 1972, pp. 369 e 374).
Trata-se, no fundo, mutatis mutandis, de uma situação materialmente análoga à
que emerge, no âmbito da avaliação indirecta da matéria tributável fundada na
impossibilidade de comprovação directa e exacta dos elementos indispensáveis à
sua correcta determinação [artigo 87.º, alínea b), da Lei Geral Tributária], da
necessidade de se apurar o rendimento tributável tendo em conta, entre outros
elementos, “as margens médias do lucro líquido sobre as vendas e prestações de
serviços ou compras e fornecimentos de serviços de terceiros”, “as taxas médias
de rentabilidade de capital investido”, “o valor de mercado dos bens e serviços
tributados” [alíneas a), b) e h) do n.º 1 do artigo 90.º da Lei Geral
Tributária].
E quanto a este ponto, não é de deixar passar em claro que este Tribunal
considerou, no seu Acórdão n.º 84/2003, a pertinência do recurso a estes
elementos objectivos no domínio da avaliação indirecta da matéria tributável
(posição que já fora defendida por Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e
Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária, comentada e anotada, Lisboa, 1999, pp.
308).
Reflectindo sobre esta mesma realidade, João Pedro Silva Rodrigues (Critérios
normativos de predeterminação da matéria tributável..., op. cit., pp. 112) diz
que “estamos perante simples regras que o legislador entendeu dever assumir como
elementos constituintes ou integrantes da norma jurídica por as haver adequadas
sob o ponto de vista da ciência ou da técnica para valorar os factos cujo
conhecimento logrou alcançar através da sua actividade inquisitória e da sua
liberdade probatória e, através delas, poder descortinar o rendimento (...)”.
Tratando-se “de meras regras científicas, técnicas, financeiras ou de natureza
semelhante, elas devem ser apreendidas e aplicadas segundo o conteúdo próprio do
ramo da ciência de que provêm – art.º 11.º, n.º 2, da LGT –, assumindo-o o
direito como critério de decisão jurídica. [§] Nesta perspectiva, a
administração não goza de qualquer discricionariedade quanto à aplicação de tais
regras, podendo o seu exercício ser totalmente sindicado pelo tribunal, que,
assim, pode apreciar a correcção do modo como foram obtidas essas margens de
lucro líquido, aí se incluindo os critérios de selecção dos valores usados para
base da obtenção das médias (...) tudo com vista a poder concluir-se se a margem
média encontrada pode ser havida como adequada para, em face de tais critérios
não jurídicos – mas juridicamente assumidos –, evidenciar um valor materialmente
adequado”.
Ora, considerando especificamente a regulamentação concretamente em
causa, não deve ignorar-se que, se é certo que a norma sindicanda não concretiza
o critério de valoração que há-de presidir à determinação do preço de plena
concorrência – a par também do que sucede noutros ordenamentos jurídicos onde
este particular domínio técnico apenas se encontra concretizado em
orientações/directrizes administrativas –, também não é menos verdade que o
princípio geral de individualização dos preços estabelecidos entre entidades
independentes no contexto de um mercado não controlado acaba por “delinear
exclusivamente os limites dentro dos quais podem ser elaborados os métodos
empíricos de valoração” desses preços (cf., nesse sentido, Guglielmo Maisto, Il
“Transfer Price” nel diritto tributario italiano e comparato, op. cit., pp. 85),
e é dentro de tal baliza que se deve desenvolver toda a actividade
administrativa no sentido de concretizar, perante a diversidade e complexidade
das situações oferecidas pela realidade in concreto, todas as operações
técnico-empíricas susceptíveis de desvelar substancialmente o efeito plasmado no
preceito em causa.
Destarte, no caso concreto, atentas as considerações tecidas, terá de
concluir-se que a norma sindicanda não só apresenta uma suficiente densidade
normativa – em termos de conter, na sua formulação, uma suficiente aptidão
significante, susceptível de recortar um quadro de actuação administrativa
legalmente pressuposta e condicionada -, como permite aos tribunais sindicar a
bondade e a correcção do juízo administrativo.
Noutros termos, pode afirmar-se que o quadro legalmente traçado não permite que
a determinação do sentido prático-normativo do preceito, concretizado na sua
aplicação, enquanto resultado da consideração do problema, se faça à margem do
comando jurídico enunciado na norma, como resultado, portanto, de uma liberdade
de actuação administrativa que seja insindicável jurisdicionalmente. Pelo
contrário, a norma não reflecte qualquer opção jurídico-política do legislador
pela concessão de poderes discricionários, remete, outrossim, a decisão
administrativa para a (vinculada) verificação dos pressupostos aplicativos a
partir da consideração dos concretos problemas jurídicos, podendo, pois, nesta
medida, os tribunais fiscais apreciar a verificação dos pressupostos da actuação
administrativa e apurar, em face de um problema concreto, a existência das
relações especiais a que a norma se refere.
Podemos assim concluir, sintetizando, que estamos, no caso, perante conceitos
indeterminados cujo conteúdo não demanda a atribuição de qualquer poder
constitutivo à administração fiscal em sede de determinação da matéria
colectável, pois apenas pode ser admitido como critério de decisão aquele
sentido objectivo que resulta directamente da lei tributária. Isto, ao contrário
do que se passava na norma sindicada pelo Acórdão n.º 233/94, em que a lei
erigia a dúvida subjectiva da administração fiscal sobre a correspondência à
realidade da matéria colectável declarada a elemento normativo determinante e
especificante da mudança do critério de tributação. Diversamente, à
administração tributária apenas é reconhecida, agora, uma competência de
prognose probatória relativamente aos factos que preencherão esses conceitos
jurídicos, gozando tão somente de liberdade quanto à escolha dos meios de prova
a utilizar, de entre os permitidos em direito.
E conquanto a determinação em concreto dos termos em que ocorrem as relações
entre “pessoas independentes” admita, segundo os padrões de normalidade
probatória, alguma álea, como vem sendo dito, não poderá dizer-se que esta seja
atentatória do princípio da previsibilidade das obrigações fiscais do
destinatário da norma e do princípio da segurança jurídica, que encarnam a
essência material do princípio da legalidade tributária no Estado de direito
democrático, avaliados pelo crivo dos princípios da necessidade e da
proporcionalidade: até porque ninguém melhor do que o sujeito passivo conhecerá
as regras de mercado cuja existência pode evidenciar à administração e perante o
tribunal.
Por fim, acentuar-se-á, novamente, que é este o sentido que enformava o artigo
80º do Código de Processo Tributário (CPT), que, como norma “explicativa” do
sentido do preceito substantivo, exigia não só uma especial densidade da
fundamentação do acto tributário em causa como também uma consideração
esfecífica(nte) dos elementos objectivos susceptíveis de evidenciar, segundo os
referidos padrões normativos, as relações especiais e, por contraste, os termos
em que as operações referenciadas ocorrem entre pessoas independentes.
Por outro lado – e também aqui ao invés do que ocorria no regime apreciado pelo
mesmo Acórdão n.º 233/94 –, o contribuinte poderá sindicar quer pela via
administrativa quer pela via contenciosa o acto aplicativo da norma aqui
constitucionalmente impugnada. E pode fazê-lo em toda a sua expressão, nos
termos dos artigos 23º, alíneas a) a d) e 120º do CPT, constituindo fundamento
de impugnação “a errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros,
valores patrimoniais e outros factos tributários; incompetência; ausência ou
vício de fundamentação legalmente exigida e preterição de outras formalidades
legais”.
Há, pois, que concluir que o preceito impugnado não padece de
inconstitucionalidade.
C - Decisão
6 – Destarte, atento o exposto, decide-se negar provimento ao
recurso.
Custas pela Recorrente com 15 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Maio de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos