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Processo n.º 551/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão, da decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer das questões de constitucionalidade apontadas no seu requerimento de interposição de recurso.
2. Refutando esta decisão de não conhecimento do objeto do recurso, assim argumentou o reclamante:
«(...)
O acórdão prolatado sumariamente julgando in limine as suscitadas questões de inconstitucionalidade na interpretação de normas em que assenta, expressa ou tacitamente, a decisão da Presidência do Supremo Tribunal de Justiça ao improvir a Reclamação sobre a inadmissão de recurso daqueloutro aresto, da Relação de Lisboa, que aplicou em processo criminal a regra do art.º 720.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, aprecia em primeira linha os preceitos dos art.ºs 407.º, n.º 1, e 408.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da lei adjetiva penal, no sentido de não terem estes sido aplicados, em nenhuma das instâncias percorridas no antecedente como efetivo fundamento jurídico da decisão sindicada.
Ora, com o devido respeito, que muito é, afigura-se ao recorrente que se perfila aqui um errado entendimento do texto recursivo que aqui se transcreve parcialmente, nessa parte, para mais célere perceção:
“Pretende-se com ele ver apreciada a inconstitucionalidade interpretativa das normas contidas nos art.ºs 61.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, devidamente conjugadas com as dos seus art.ºs 407.º, n.º 1, e 408.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 (...)” — sublinhado e realce de agora.
Crê-se assim que não podem ser confundidas estas normas coadjuvantes do raciocínio lógico indutivo em formulação com as que sustentam a vexata quaestio do recurso a apreciar, as dos art.ºs 61.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alíneas a) e b)[1], ou seja: que é claro para o recorrente que as regras processuais submetidas a crítica no presente recurso são apenas as primeiras expressas sendo as derradeiras meras extensões complementares dessa mesma questão.
Na verdade o recorrente pretendia — e pretende — com a sua convocação para a discussão reforçar a essencialidade da regra respeitante aos direitos e deveres processuais do arguido, onde se inclui o de recurso específico para o STJ quanto às decisões proferidas em 1ª instância pelas Relações, plasmado na segunda das normas sindicadas, carreando para essa discussão o elemento reforçante dessa essencialidade retirado dos preceitos que fixam o momento imediato da sua subida e o efeito suspensivo da decisão.
Sendo as duas primeiras regras processuais o objeto da discussão jurídico-interpretativa, as demais subsequentes são meros detalhes confirmantes da razoabilidade, correção e indissolúvel harmonia dessa interpretação normativa efetuada pelo recorrente.
Destarte, sendo verdade que não foram elas as aplicadas na decisão fundamento do recurso, não o é menos que foram convocadas como meros auxiliares de raciocínio, não merecendo fora dessa função coadjutora o mérito de apreciação nesta sede, ainda menos em separado das que acompanham, essas sim o móbil do recurso constitucional.
Por outro lado, verifica-se, em reporte à primeira das regras jurídicas suscitadas com entendimento inconstitucional, que ela corresponde àquela que efetivamente é afetada diretamente com o inesperado acórdão que “força” o trânsito em julgado de decisão que indefere o recurso tirado sobre a condenação do arguido, pois que a abrangência e efeitos reais de uma tal decisão afeta o direito do arguido a “ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete.” — art.º 61.º, n.º 1, al. b), CPP, com sublinhado nosso.
Sendo verdade que a norma não foi expressamente invocada naquela decisão, não o é menos que os efeitos e consequências desta afetam pessoal e diretamente o arguido, limitando-lhe, senão mesmo cerceando, o seu direito a defender-se contra qualquer tramitação processual que coloque em causa o seu direito à liberdade, não carecendo de ser expressamente nomeada para se atentar na sua efetiva aplicação negativa.
Ora, do texto decisório contido no aresto sob recurso ordinário, inadmitido, resulta expressa uma única norma legal, a do art.º 720.º, n.ºs 2 e 3, da lei adjetiva civil, aplicada por integração de lacunas da correspondente lei penal, facto esse que não afasta que outros preceitos estejam contidos na decisão ou dela tenham sido afastados ilegalmente ou nela violados, como invocado pelo recorrente quanto ao art.º 61.º, no seu n.º 1, alínea b).
Sendo indiscutível que o direito do arguido em se defender de inusitadas e inesperadas decisões judiciais que afetem a sua vida pessoal, liberdade, honra e bom nome foi violado por uma decisão pouco usual e totalmente alheia à matéria que se discutia ali, tomando impossível a prévia suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade sobre uma matéria absolutamente nova, antes inabordada ou discutida, senão mesmo injustificada e inaplicável ao caso.
E esse inusitado e inesperado, em absoluto inquestionável, a novidade imprevista e imprevisível da questão, impediu o recorrente de poder cumprir o ónus da suscitação adequada em tempo oportuno, tendo-o feito, no entanto, em sede de recurso para o grau jurisdicional seguinte, o STJ, recurso esse cuja inadmissão se critica severamente, ainda que com todo o respeito.
Não é, não pode ser, a imprevisibilidade e inesperado de questão jurídica nova, que poderá fazer-se vigorar como impeditiva do exercício do direito à audição prévia e ao recurso por parte do arguido, afetando gravemente os seus direitos de personalidade e à liberdade, certeza confirmada em vários Acórdãos deste Tribunal que, de consabidos, se dispensa o recorrente de elencar.
Já no que tange ao preceito legal contido no art.º 432.º, n.º 1, do Código de Processo Pena1, a segunda das regras componentes do recurso apresentado a esta instância constitucional, a verdade é que o Venerando Tribunal da Relação, no despacho de fls. 158 que inadmite o recurso para o STJ, funda-se nessa norma sem especificação da alínea a que se reporta, sendo perfeitamente extemporâneo e desadequado a emenda interpretativa lavrada em sede de decisão da subsequente Reclamação (pág. 5, § 1.º) considerando ser aplicável a alínea b) daquela regra processual quando o recorrente havia previamente invocado a alínea a), na liberdade que a omissão referida que deixava e que se lhe afigura a própria.
Aparece assim ao longo do processado do presente translado, um conjunto de lacunas e contradições que, data venia, criam perturbações de raciocínio fatais à boa apreciação da legalidade aplicada e sentido correto das normas aplicadas ou omissas, não podendo deixar-se ao critério de um sujeito processual, mesmo que tão interessado quanto o arguido condenado, a interpretação sobre qual das alíneas omissas de uma mesma norma expressamente invocada se pretende reportar a decisão, tampouco vir suprir tal deficiência na instância seguinte, pelo que fica inquinado o raciocínio que preside ao texto decisório reproduzido na página 7 da decisão sumária, humildemente se argui.
Como se aceita que tenha criado perturbação o arreliador erro que convocou a alínea c) do n.º 1 do mesmo art.º 432.º ao texto recursivo apreciando, a qual, como foi verificado, não cabe no contexto da matéria a apreciar, penitenciando-se o recorrente de tal lapso, e requerendo a sua retificação como sendo “alíneas a) e b”) sendo evidente que foi a a) aquela a que o recorrente atribuiu aplicação e a b) aquela que o STJ considerou (pág. 5, § 1.º), como acima se anotou.
No entanto, relativamente a todas as questões que antecedem é convicção do recorrente que, as lacunas, omissões e erros patenteados, bem como o facto de no STJ terem sido entendidas na perfeição as questões de inconstitucionalidade interpretativa então suscitadas ante o inesperado e inusitado da questão a apreciar — ao ponto de suprir a lacuna de indicação da alínea aplicada na sustentação da decisão de rejeição liminar do recurso, como se deixou dito — é preclaro para o recorrente ter cumprido integral e satisfatoriamente, no primeiro momento processual possível, o ónus de suscitação adequada dos erros interpretativos que dão vida ao presente recurso, pelo que deverá ele ser julgado em conferência e provido, o que se requer.
Em suma se dirá, pois, que:
a) a referência à alínea c) do n.º 1 do art.° 432.º, CPP, deverá ser considerada como alínea b), a norma tida como aplicada pelo STJ;
b) os art.ºs 407.º, n.º 1, e 408.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do mesmo CPC são indicados no recurso como meros coadjuvantes do raciocínio lógico das duas outras normas que as antecedem e são, de facto, o objeto do recurso apreciando;
c) sendo que a norma do art.º 61.º, n.º 1, alínea b), da referida lei adjetiva penal teve interpretação inconstitucional ao não ser dado o garantido direito de audição prévia para contraditório ao arguido interessado com a aplicação de outra regra legal (civil) numa decisão criminal que afeta a sua pessoa e direitos;
d) e o preceito do art.º 432.º, n.º 1, teve uma errada interpretação à luz da lei fundamental, ao rejeitar o recurso num único grau para a instância seguinte, vista a novidade e inesperado do seu objeto e móbil, sendo aplicável a regra da sua alínea a) e não a da b) como o STJ fixou em suprimento da lacuna da decisão em apreço;
e) tendo o recorrente agido com diligência e precisão ao apresentar o recurso em tempo oportuno, na primeira intervenção seguinte à decisão, e de forma adequada, identificando as normas legais a julgar, os imperativos constitucionais violados, a interpretação alcançável da deficientemente fundamentação da decisão criticada e o entendimento que defende em contraposição, ressalvado o erro de escrita já referenciado.
(...)»
3. Notificado da reclamação apresentada, o Ministério Público pugnou pelo respetivo indeferimento.
II. Fundamentação
4. A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«(...)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) à reclamação por si apresentada, com fundamento na inconstitucionalidade – por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 13.º, da Convenção Europeia para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais - da interpretação, sufragada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e por aquele reiterada, dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal (CPP), conjugadas com as dos artigos 407.º, n.º 1 e 408.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do mesmo diploma.
2. O requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional assume o seguinte teor:
«(...)
Pretende-se com ele ver apreciada a inconstitucionalidade interpretativa das normas contidas nos art.ºs 61.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, devidamente conjugadas com as dos seus art.ºs 407.º, n.º 1, 408.º, n.ºs 1, alínea a), e n.º 3, na interpretação que Veneranda Relação de Lisboa fez em sede de decisão proferida em primeira instância e no âmbito de recurso em apreciação, com o sentido de que, em súmula, a questão da fixação do trânsito em julgado por simples declaração judicial efetuada nos termos do art. 720.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, em integração de lacuna penal, não é passível de recurso ordinário para a instância subsequentemente superior, tese sufragada sem crítica pelo Supremo Tribunal de Justiça, na Reclamação a quo, sobre a inadmissibilidade de um segundo grau de jurisdição após a declaração formal de trânsito em julgado de sentença condenatória, mesmo que o objeto deste recurso incida sobre matéria nova não suscitada nem discutida no que então se apreciava.
As teses interpretativas das normas elencadas supra, mesmo que de forma imperfeita ou insuficientemente expressas e fundamentadas com a imprescindível precisão, percetibilidade e rigor, afiguram-se desde sempre ao recorrente como violadoras do imperativo do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, para além do que, sobre tal direito, se encontra o disposto no art. 13.º da Convenção Europeia para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e art. 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
As questões de inconstitucionalidade interpretativa foram acauteladas prévia e expressamente, ainda que de forma sucinta e resumida mas totalmente inteligível, nas conclusões 1.ª, 2.ª, 5.ª, 9.ª e 12.ª do inadmitido recurso para o STJ e reiteradas expressamente no item n.º 11 da subsequente reclamação, aqui por mera indicação.
(...)»
3. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. No entanto, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
4. Assim, em Acórdão com data de 11 de abril de 2012, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa nos seguintes termos:
«(...)
Assim, nada mais nos resta senão fazer uso da disciplina definida no art. 720.º C. P. Civil, acima transcrito – com igual consagração no Tribunal Constitucional (artº 84º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro) – por o mesmo se mostrar aplicável ao processo penal, ex vi o art. 4.º do C. P. Penal, já que se apresenta patente que o arguido vem procurando obstar ao cumprimento da decisão, através da reiterada suscitação de incidentes a ela posteriores e manifestamente infundados.
E, por tal razão, todos os requerimentos que, a partir desta data, se relacionem com questões já definitivamente decididas no âmbito do acórdão deste TRL referido no ponto 1. , das quais se pretenda interpor recurso/aclaração/nulidade ou incidente afim, nos quais se inclui o acima mencionado no ponto 17 [o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, em requerimento com data de 22 de novembro de 2011], serão processados em separado, baixando os autos à 1.ª Instância para imediata execução da pena aplicada ao arguido.
IV- Decisão.
Nestes termos, atento o vertido nos n.ºs 2 e 3 do art. 720.º do C. P. Civil, aplicável ex vi do disposto no art.º 4.º do C. P. Penal:
1. Determina-se a extração de traslado composto pelas seguintes peças processuais:
a. Decisão proferida em 1.ª instância;
b. Todas as peças processuais mencionadas no relatório supra (pontos 1 a 17, inclusive);
c. Decisão ora proferida.
Oportunamente, proceda-se à abertura de conclusão para apreciação do requerimento de recurso mencionado no ponto 17 [o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, em requerimento com data de 22 de novembro de 2011].
2. Ordena-se a remessa imediata à 1.ª Instância dos presentes autos, para cumprimento da decisão proferida por este TRL, de 23 de junho de 2010.
(...)»
Em despacho com data de 18 de abril de 2012, o Tribunal da Relação rejeitou, com fundamento em intempestividade e na irrecorribilidade da decisão, o recurso de constitucionalidade que havia sido interposto pelo recorrente, em 22 de novembro de 2011.
Em 27 de abril de 2012, o recorrente interpôs recurso do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 11 de abril de 2012, produzindo, para o efeito, as seguintes conclusões:
«(...)
1.ª - O aresto que respeitosamente se critica no presente recurso foi prolatado, inesperadamente, a anteceder a admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional e autónomo dele, constituindo uma decisão em 1.ª instância que carece de sindicância recursiva para a sede jurisdicional seguinte, segundo a regra do art. 432.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal e em submissão ao imperativo do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que, estando em tempo e tendo o arguido legitimidade e interesse, é de admitir para subida imediata vista a sua superveniente inutilidade, nos próprios autos, em atenção à evidente necessidade de conferir a alegação fundamental de “manifestamente infundado” que qualifica o sobredito recurso extraordinário, e com efeito suspensivo do processo atentos à sua muito provável influência na validade e eficácia da tramitação posterior, mormente quanto à ofensa aos direitos de personalidade do arguido e sua liberdade, tudo segundo as regras dos artºs. 407.º, n.º 1, 408.º, n.ºs 1, alínea a), e n.º 3, da supra aludida lei adjetiva penal, tendo por fundo também o dispositivo do seu art. 61.º, n.º 1, alínea i).
2.ª - O recorrente tendo em vista as decisões anteriores acautela aqui um eventual entendimento contrário, no sentido da inadmissão do presente recurso, que possa surgir sobre todas as normas processuais que invocou a conclusão antecedente, arguindo cautelarmente a sua inconstitucionalidade por violação do imperativo do citado art.º 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, do art.º 13.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, e do art.º 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, tendo por correto o entendimento que já deixou expresso nessa conclusão e que mais detalhadamente ficou consignado nas correspondentes motivações cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido para estes efeitos.
(...)
5.ª - Pois que ao arguido está garantido o direito ao recurso, numa única instância que seja, como emana do art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na senda do art.º 13.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, como também do art.º 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, tese que tem por correta.
(...)
8.ª - E cerceando assim ao arguido recorrente o direito a ver apreciadas em recurso todas as questões jurídicas relevantes que sustentam a sua condenação antes de, eventualmente, cumprir pena, como acontecerá ao fazer-se executar a sentença sem aguardar a decisão sobre o recurso que sindica a interpretação normativa aplicada na sentença condenatória.
9.ª - Situação invulgar e ilegal que decapita o já mencionado princípio constitucional do direito ao recurso que o art.º 32.º, n.º 1, consagra e impõe, secundando as normas das Convenções Internacionais a que acima se fez referência, entre as mais.
(...)
11.ª - Ademais o que é manifesto e incontornável no aresto em crise é o esboço de uma doutrina castrante dos direitos, liberdades e garantias que vem coroada com as inesperadas referências ao instituto de proteção jurídica de que o recorrente beneficia e com que se defende e que, para além de manifestar uma visão economicista da administração da justiça, assenta no profundo erro de que o beneficiário desse instituto, com tutela jurisdicional nos art.ºs 13.º e 20.º, não paga as custas processuais devidas pois que as concertadas regras dos Códigos de Processo Penal e de Código das Custas Judiciais ou do nóvel Regulamento de Custas Processuais impõem a sua responsabilização durante os cinco anos seguintes ao termo do prazo do seu pagamento voluntário, como é consabido e pacífico, dispensando-se o arguido de as invocar detalhadamente visto o princípio jura novit curia.
(...)»
Em despacho com data de 11 de maio de 2012, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu não admitir o recurso interposto para o STJ, por a decisão proferida - que fez aplicação do disposto no artigo 720.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º do CPP - não ser recorrível, ao abrigo do vertido nos artigos 432.º, n.º 1, e 400.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPP. Inconformado, o recorrente apresentou reclamação junto do STJ, a qual foi, porém, indeferida, em despacho com data de 4 de julho de 2012.
3. Tendo sido o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, o respetivo conhecimento pelo Tribunal Constitucional está dependente da verificação do preenchimento de uma série de pressupostos processuais. Com efeito, deve o recorrente requerer a reapreciação de uma questão de inconstitucionalidade, tempestiva e adequadamente suscitada perante o tribunal a quo, referente a normas jurídicas ou interpretações normativas de que este haja feito efetiva aplicação, entenda-se, que hajam constituído efetivo fundamento jurídico da resolução da questão principal.
Assim, no que concerne ao ónus de suscitação tempestiva do incidente de inconstitucionalidade, é mister referir o modo como a jurisprudência constitucional consolidada vem interpretando e densificando este pressuposto processual. De facto, entende o Tribunal Constitucional que “a questão de constitucionalidade deve ser suscitada durante a pendência da causa, ou seja, até ser proferida a decisão recorrida” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2010, p. 947-948), por ser este o “único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela” (cf. Acórdão n.º 352/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em consonância, há que concluir que, salvo situações excecionais, é extemporâneo o levantamento da questão de constitucionalidade que ocorra em incidentes pós-decisórios e, por maioria de razão, no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional.
Depois, centrando-nos no último requisito processual mencionado, resulta igualmente da jurisprudência constitucional consolidada a exigência de que a norma ou segmento normativo dela extraído cuja inconstitucionalidade o recorrente predica inquinada constitua “ratio decidendi” da decisão recorrida, entenda-se, tenha sido o “efetivo fundamento jurídico” e não um mero “obiter dictum” daquela (Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª ed., Almedina, 2007, p. 73).
Sendo extraíveis do mesmo preceito vários segmentos ou interpretações normativas, o conhecimento do presente recurso de constitucionalidade está ainda dependente da existência de identidade material entre, por um lado, a interpretação cuja inconstitucionalidade o recorrente contesta e, por outro, a interpretação que o tribunal recorrido efetivamente perfilhou e aplicou no processo-base. Mais: como explica Lopes do Rego (in Os recursos de fiscalização concreta na Lei do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 73), quando a norma a que vem reportado o recurso não constitui efetivo fundamento jurídico da solução dada ao litígio pelo tribunal, “é indiferente (...) que este haja tomado posição – de forma lateral – sobre a questão jurídico-constitucional enunciada pelo recorrente, em simples contraponto à respetiva argumentação, não relevando, porém, tal norma manifestamente para a solução jurídica que veio a ser dada ao litígio.”
4. No caso vertente, somos levados a concluir que o presente recurso não entra nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, por não se acharem cumpridos os requisitos processuais supra identificados. Vejamos.
Seja nas conclusões do recurso para o STJ, seja no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, sustenta o recorrente a inconstitucionalidade de uma dada interpretação normativa, retirada a partir dos artigos 61.º, n.º 1, alínea i), e 432.º, n.º 1, alíneas a) e c), conjugados com os artigos 407.º, n.º 1 e 408.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, todos do CPP.
Tal interpretação passa por considerar que, estando em causa decisão proferida em primeira instância, “a questão da fixação do trânsito em julgado por simples declaração judicial efetuada nos termos do art.º 720.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, em integração de lacuna penal, não é passível de recurso ordinário para a instância subsequentemente superior, tese sufragada sem crítica pelo Supremo Tribunal de Justiça, na Reclamação a quo, sobre a inadmissibilidade de um segundo grau de jurisdição após a declaração formal de trânsito em julgado de sentença condenatória, mesmo que o objeto deste recurso incida sobre matéria nova não suscitada nem discutida no que então se apreciava.” Isto porque, no entender do recorrente, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com data de 11 de abril de 2012, é “uma decisão em 1.ª instância que carece de sindicância discursiva para a sede jurisdicional seguinte, segundo a regra do art. 432.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal e em submissão ao imperativo do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (...).”
Ora, no que concerne os artigos 407.º, n.º 1, e 408.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do CPP, cumpre dizer que não foram tais preceitos objeto de qualquer interpretação ou aplicação, autónoma ou conjugada com os demais, por parte do tribunal recorrido. De facto, nem o Tribunal da Relação de Lisboa, ao não admitir o recurso interposto, nem o STJ, ao indeferir a reclamação apresentada pelo recorrente, aplicaram aqueles preceitos em termos de eles haverem constituído efetivo fundamento jurídico da decisão recorrida. Visto que tais normas disciplinam o momento e o modo de subida do recurso, é mister que, para serem pertinentes para o processo-base, esse recurso haja – a montante - sido admitido pelo tribunal recorrido, algo que não aconteceu. Percebe-se, deste jeito, a razão da sua impertinência para a decisão recorrida.
Igual juízo deve ser assacado aos artigos 61.º, n.º 1, alínea i), e 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP. Tais preceitos assumem, com efeito, a seguinte redação:
«(...)
Artigo 61.º
Direitos e deveres processuais
1 - O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, dos direitos de:
(…)
i) Recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis.
(…)
Artigo 432.º
Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância
(…)
Ora, ao contrário do que predica o recorrente, o tribunal recorrido não interpretou os preceitos em crise com o sentido normativo cuja constitucionalidade se contesta. Noutros termos, a decisão recorrida não interpretou aqueles preceitos no sentido de extrair deles o critério de que é inadmissível o recurso de decisões, proferidas em primeira instância, que fixem o trânsito em julgado por simples declaração judicial (ao abrigo do vertido no artigo 720.º, n.º 2 e 3, do Código de Processo Civil). Basta, para tanto, atentar na resposta do STJ à reclamação apresentada pelo recorrente, a qual se abona no seguinte arrazoado:
«(...)
O acórdão da Relação não foi proferido em primeira instância, com o sentido em que o pressuposto está estabelecido no artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
Com efeito, a situação em causa não é subsumível na previsão desta norma já que o acórdão da Relação, baseado no entendimento de que o arguido vem procurando obstar ao cumprimento da decisão, através da reiterada suscitação de incidentes a ela posteriores e manifestamente infundados, fez uso do art. 720.º do CPC.
As decisões proferidas em 1.ª instância pela Relação, para efeitos do art. 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP, são apenas aquelas em que a competência em razão da matéria e da hierarquia para a decisão do caso e do objeto do processo caiba, em primeiro grau de conhecimento, e segundo as leis de organização e competências dos tribunais, aos tribunais da Relação.
A decisão de que o reclamante pretende recorrer, não se trata, assim, de decisão proferida pela relação em primeira instância (art. 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP), isto é, em que a competência em razão da matéria e da hierarquia para a decisão do caso e do objeto do processo caiba, em primeiro grau de conhecimento, e segundo as leis de organização e competência dos tribunais, aos tribunais da Relação (cf., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.02.2005, proferido no processo n.º 4551/04 – 3.ª).
(...)»
Não é suscetível de perturbar o acerto deste juízo - sublinhe-se - o facto de o STJ se ter pronunciado sobre as questões de constitucionalidade levantadas pelo recorrente no recurso para esse Tribunal. Isto porque não havendo identidade material entre a interpretação normativa contestada pelo recorrente e a interpretação normativa efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido, o juízo proferido pelo STJ relativamente àquelas questões constitui um mero “obiter dictum”, sem verdadeira influência na decisão judicial exarada. Como se retira da jurisprudência constitucional consolidada (v., por ex., os Acórdãos n.ºs 68/99 e 614/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), é ao “Tribunal Constitucional que incumbe, definitiva e decisivamente, determinar que normas foram efetivamente aplicadas pela decisão recorrida, para efeitos de apreciação do recurso de constitucionalidade” (Lopes do Rego (in Os recursos de fiscalização concreta na Lei do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 73).
Finalmente, tampouco vingam os argumentos do recorrente quanto à alínea c), do n.º 1, do artigo 432.º, por duas ordens de razões: em primeiro lugar, a decisão recorrida não aplicou nem interpretou o preceito em crise com o sentido vertido no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional; em segundo lugar, relativamente a tal norma, é patente não ter o recorrente cumprido o ónus da suscitação prévia a que anda associado o presente recurso de constitucionalidade. Com efeito, devendo o recorrente suscitar o incidente de inconstitucionalidade durante o processo, isto é, num momento em que o tribunal a quo ainda possa (e deva) dele conhecer, o levantamento de tal questão no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional afigura-se intempestivo, situação que obsta, no que a esta questão de constitucionalidade respeita, ao efetivo conhecimento do recurso de constitucionalidade.
Assim, somos levados a concluir que o recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente não reúne os pressupostos processuais inferidos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
5. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto de recurso.
(...)»
6. Ora, na reclamação apresentada, o ora reclamante avança fundamentalmente dois novos argumentos.
Em primeiro lugar, invoca que o artigo 60.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, deve integrar o objeto do recurso de constitucionalidade previamente interposto, na medida em que: (i) apesar de do “texto decisório contido no arresto sob recurso ordinário” resultar expressa uma única norma legal, a do artigo 720.º, n.º 2 e 3, do Código de Processo Civil, tal facto “não afasta que outros preceitos estejam contidos na decisão ou dela tenham sido afastados ilegalmente ou nela violados, como invocado pelo recorrente quanto ao art.º 61.º, no seu n.º 1, alínea b)”; (ii) a decisão judicial que interpretou de forma inconstitucional aquele preceito foi de todo “imprevista” e “imprevisível”, algo que impediu o reclamante de “poder cumprir o ónus da suscitação adequada em tempo oportuno, tendo o feito, em sede de recurso para o grau jurisdicional seguinte, o STJ (...).”
Porém, não assiste razão ao ora reclamante. Desde logo porque se a decisão judicial reputada de “inesperada” ou “surpreendente” foi o Acórdão do Tribunal da Relação, de 11 de abril de 2012, ou mesmo o despacho que não admitiu o recurso interposto para o STJ, de 11 de maio de 2012, sempre deveria e poderia ter o reclamante suscitado a dita questão de inconstitucionalidade na reclamação apresentada, em 25 de maio de 2012, junto do STJ – algo que não sucedeu. Com efeito, pode ler-se naquela reclamação tão-só o seguinte (os sublinhados são nossos):
«(...)
2 – Preliminarmente e à cautela o ora reclamante invocou o direito do arguido, abstrato ele, a recurso numa instância de amparo, pelo mínimo, fazendo sustentar a sua tese nos art.ºs 432.º, n.º 1, alínea a) do CPP, e art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, em apoio àqueloutra norma do art.º 61.º, n.º 1, alínea i), da mesma lei processual.
3 – Complementarmente convocaram-se os dispositivos dos art.ºs 407.º, n.º 1, e 408.º, n.ºs 1, alínea a), e n.º 3, do referido CPP, para sustentar a subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo, vista a necessidade de verificação urgente da ausência de recursos ou incidentes de natureza “manifestamente infundados”.
(...)
11 – Acautelando-se aqui qualquer interpretação normativa diversa da defendida pelo recorrente e sucintamente explicitada, embora com clareza bastante, com a reiteração de inconstitucionalidade interpretativa arguida nas conclusões 1.ª e 2.ª do recurso sub judice, corolário das mais, nesta matéria, e das motivações que as sustentavam, que se têm aqui por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.
(...)»
Em segundo lugar, explica o reclamante que o objeto do recurso de constitucionalidade interposto deve igualmente abranger a alínea b), do n.º 1, do artigo 432.º, do CPP, pois, por lapso, ao invés de referir tal alínea, fez constar do requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional a alínea c) do mesmo preceito.
Sucede, porém, que não pode o reclamante servir-se da reclamação para a conferência de juízes da Secção para introduzir alterações quanto ao objeto do recurso. De facto, a jurisprudência constitucional constante sobre a matéria vem sufragando que “o requerimento de interposição de recurso limita o seu objeto às normas nele indicadas (cfr. artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º 1 do artigo 75º-A desta Lei), sem prejuízo de esse objeto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões das alegações (cfr. citado artigo 684º, n.º 3). O que a recorrente não pode fazer é nas alegações (recte, nas suas conclusões) ampliar o objeto do recurso antes definido (neste sentido, cfr. Acórdãos nºs. 71/92, 323/93, 10/95, 35/96, 379/96 e 20/97, publicados na II Série do Diário da República, de 18/8/92, 22/10/92, 22/3/95, 2/5/96, 15/7/96 e 1/3/97, respetivamente) – cfr. o Acórdão n.º 286/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Noutros termos, “ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa que pretende submeter ao Tribunal Constitucional, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, nomeadamente no âmbito da reclamação que deduza ou da alegação que produza (Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 207).
III. Decisão
7. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 21 de novembro de 2012.- J. Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.
[1] Por lapso referenciada a última como sendo alínea c), como melhor se alegará ainda.