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Processo n.º 805/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação apresentada tem o seguinte teor:
‹(…)
A., supra identificado, notificado da decisão sumária proferida, não se conformando com a mesma, vem ao abrigo do disposto no artigo 77 da L.T.C. (redação da Lei nº 13-A/98 de 26 de fevereiro, reclamar para a conferência, nos termos e com os seguintes fundamentos:
Do despacho de indeferimento do recurso ora interposto, decorre que o recorrente não indicou de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional, designadamente, os arts 97 n.º 4, 379 al c) do C.P.P. e 668 do C.P.C.
Ou seja, não explica de que forma é que a interpretação dada destes artigos colide com os arts 32 e205 do C.R.R. Ora.
No fundo existiu una falta de conciso da motivação do recurso interposto. Assim sendo, e ao contrário do referido na decisão sumária, deveria ao abrigo do disposto no número 6 do artigo 75-A da LTC a recorrente ser convidada a corrigir ou a aperfeiçoar a motivação apresentada.
Na verdade, dispõe o nº 5 da referida norma “Se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias.”
Peio que, atento o disposto no artigo 32 da C.R.P, onde se refere expressamente que “São asseguradas todas as garantias de defesa dos arguidos”, o facto de não se dar á recorrente a possibilidade de corrigir as deficiências na motivação apresentada, implica uma clara diminuição das suas garantias de defesa. Tanto mais que,
O Tribunal Constitucional decidiu, que são inconstitucionais as normas do nº 1 do artigo 420 do C.P.P., quando interpretadas no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição do recurso interposto pelo arguido (Acs 193/97, 43/99 e 417/99), e sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para aperfeiçoar as deficiências (Ac de 99.01-19, proc º 46/98, 1ª Secção. Isto por se entender que o direito ao recurso assume expressamente a natureza de garantia constitucional de defesa (art 32, nº 1 da C.R.P)
Termos em que, requer seja revogada a decisão supra referida sendo o requerente convidado no prazo legal a proceder ao aperfeiçoamento da motivação apresentada, explicando de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional.
(…)›
3. Notificado, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação apresentada.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
«(…)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação em 11 de julho e 24 de setembro de 2012, pretendendo ver apreciada “a inconstitucionalidade da norma incita no artigo 379 al c) do CPP, na interpretação acolhida na decisão recorrida, isto é, se o tribunal ao fundamentar a manutenção da pena aplicada, nos antecedentes criminais do arguido deveria ter feito menção ao bom enquadramento familiar e profissional, designadamente o facto do arguido dispor de colocação profissional, estar integrado a nível familiar e manter-se abstinente do consumo de drogas, factos referidos no teor do relatório social junto aos autos e que serviu de base para formar a convicção do tribunal. Tal norma, com a interpretação com que foi aplicada, viola os arts 32 e 205 da CRP.”
2. Com efeito, no primeiro dos acórdãos mencionado, considerou o Tribunal da Relação de Lisboa que a pena aplicada ao arguido em primeira instância seria “justa, adequada, proporcionada e fixada em obediência aos critérios previstos nos art.ºs 40º e 71º do CP, impondo-se a sua manutenção, com a consequente improcedência do recurso por si interposto.” Arguiu o recorrente, em requerimento com data de 24 de julho de 2012, a nulidade de tal decisão, veiculando, para o efeito, os seguintes argumentos:
«(...)
1 – O arguido no recurso por si interposto recorreu da medida da pena que lhe foi aplicada.
Invocou entre outros fundamentos, o seu comportamento processual, destacando a confissão dos factos, o facto da condenação anteriormente sofrida, ainda que por factos de idêntica natureza, terem sido praticados em 1-07-2003, com condenação transitada em julgado em 19-01-06, pena já declarada extinta.
E, no caso em apreço, para além do bom comportamento posterior aos factos e o facto de se manter abstinente do consumo de substâncias estupefacientes, o mesmo dispor de colocação laboral, concretizada no Documento intitulado “Contrato Promessa”, datado de 20.12.2011, de onde consta que a sociedade que nele surge identificada “declara, para os devidos e legais efeitos que A. (...) fará parte dos quadros desta empresa, com a categoria de Motorista, recolhendo e entregando cargas diversas.
2 – No acórdão ora proferido, o tribunal da Relação não se pronunciou quanto a tais factos, nomeadamente a sua influência quanto à medida da pena aplicada, pronunciando-se única e exclusivamente quanto à gravidade do crime praticado, e às consequências nefastas que o mesmo determina para a sociedade, aflorando, o período, e forma de execução do crime praticado.
Quanto à confissão dos factos e ao reconhecimento por parte da arguida do caráter ilícito da sua conduta, associado ao bom enquadramento social, familiar e profissional, nada é referido.
3 – O acórdão é, assim, nulo uma vez que não se pronunciou sobre questão que foi suscitada e que, salvo o devido respeito, devia apreciar (artigo 379 n.º 1 al c) do C.P.P e art. 668 al d) do C.P.C.
4 – A entender-se de forma diferente há omissão se pronúncia, o Tribunal faz uma errada interpretação das referidas normas, interpretação que contende com a possibilidade de defesa da arguida violando desta forma os artigos 32 nº 1 e 205 da CRC.
5 – Violação, que expressamente se invoca e só agora, uma vez que, não poderia anteriormente ter conhecimento da mesma.
(...)»
Simultaneamente, o recorrente interpôs recurso da decisão proferida para o Supremo Tribunal de Justiça. Seguiu-se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 24 de setembro de 2012, que indeferiu a arguição de nulidade e não admitiu o recurso interposto pelo arguido para o tribunal superior, com fundamento na alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal. Finalmente, interpôs o recorrente o recurso de constitucionalidade que agora se aprecia.
1. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
2. O presente recurso de constitucionalidade é interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, preceito que faz depender o conhecimento do objeto do recurso de uma série de pressupostos processuais. Necessário se revela, portanto, que para além de esgotados os recursos ordinários tolerados pela decisão, o recorrente haja, durante o processo, suscitado de forma adequada o incidente de inconstitucionalidade, incidente que – sublinhe-se – deve respeitar a normas jurídicas que hajam constituído ratio decidendi da decisão recorrida (cfr., entre muitos outros, o Acórdão n.º 355/2005, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
3. Ora no caso vertente, o recorrente arguiu a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação por omissão de pronúncia, resultante do facto de tal tribunal não se ter pronunciado sobre a influência de uma série de fatores (v.g., comportamento processual, colocação laboral, abstinência no consumo de drogas) na medida da pena. Tal circunstância, no entender do recorrente, corresponde a uma “errada interpretação” do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, violadora dos artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, da CRP.
Sucede, porém, que a questão assim enunciada pelo recorrente não é uma questão de constitucionalidade normativa de que este Tribunal deva conhecer. Talqualmente referimos supra, o controlo realizado pelo Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que pressupõe, portanto, a invocação de uma relação de desconformidade entre uma norma jurídica para efeitos de controlo (objeto do controlo) e o conjunto das normas e princípios constitucionais (parâmetro de controlo). Isto implica a recusa do modelo de recurso de amparo ou de queixa constitucional, o que significa que a competência do Tribunal Constitucional deve abranger “a fiscalização da constitucionalidade de uma regra abstratamente enunciada para uma aplicação genérica e não simplesmente o controlo da concreta decisão de um caso jurídico” (Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, p. 339).
Talqualmente se percebe a partir dos autos, a divergência subjacente ao caso vertente não tem por objeto uma norma jurídica ou mesmo uma interpretação normativa dela extraída – a saber, o artigo 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – mas antes o conteúdo da fundamentação constante do Acórdão do Tribunal da Relação de 11 de julho de 2012. Com efeito, enquanto o recorrente alega que, em tal acórdão, aquele Tribunal não se pronunciou quanto a uma série de factos e respetiva influência na medida da pena aplicada, o Tribunal da Relação esclarece inequivocamente que algumas dessas considerações – mormente as relativas à confissão e colocação profissional do arguido - nunca poderiam ter sido apreciadas, por não constarem da matéria de facto da decisão recorrida, enquanto as outras, não obstante objeto de apreciação, não foram suficientes para considerar a culpa do arguido diminuída. Veja-se, neste sentido, a seguinte passagem do acórdão de 24 de setembro de 2012:
«(...)
O recorrente vem agora apontar ao acórdão por nós proferido a nulidade da omissão de pronúncia por entender não terem sido expressa e devidamente valorados nele a sua confissão e os factos supra referidos.
Ora, não lhe assiste qualquer razão, quer porque as alegadas confissão e colocação profissional nem sequer constam da matéria de facto da douta decisão em recurso, que não foi impugnada, pelo que, nem poderiam ter sido apreciadas, quer porque nos pronunciamos quanto aos restantes aspetos, apenas lhes dando um valor “atenuativo” da ilicitude e da culpa diferente daquele que o recorrente pretendia que lhes fosse atribuído.
(...)»
Não assumindo a questão levantada pelo recorrente teor normativo, devem dar-se por não preenchidos os requisitos processuais de que está dependente a admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
4. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(…)».
5. Ora, a reclamação que agora se aprecia em nada machuca o acerto da decisão sumária proferida. Vejamos.
Argumenta o reclamante que “do despacho de indeferimento do recurso ora interposto, decorre que o recorrente não indicou de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional, designadamente, os arts 97 n.º 4, 379 al c) do C.P.P. e 668 do C.P.C.” Esta leitura, porém, não se afigura legítima à luz da decisão sumária proferida, visto que em momento algum aí se contesta o rigor, rectius, a adequação da arguição da questão de constitucionalidade veiculada pelo recorrente nos autos. Com efeito, o obstáculo ao não conhecimento do objeto do recurso em que se estriba a decisão sumária reclamada é anterior ao problema da adequação – leia-se, da clareza e percetibilidade – do levantamento da questão de constitucionalidade em causa.
Na verdade, a decisão sumária proferida considerou que a questão de constitucionalidade levantada pelo recorrente não tinha objeto normativo, isto é, não se vertia numa questão de constitucionalidade normativa. Significa isto que a divergência que resulta dos autos e que o (ora) reclamante pretende ver sindicada não tem por objeto uma norma jurídica, ou um qualquer entendimento normativo dela extraído, antes a concreta e casuística valoração, pelo tribunal a quo, das específicas circunstâncias do caso. Porém, o nosso modelo de justiça constitucional, não admitindo as figuras da queixa constitucional ou do recurso de amparo, afasta-se do controlo da constitucionalidade das próprias decisões jurisdicionais, insistindo que o objeto de controlo são, em termos exclusivos, “os critérios jurídicos autonomizados, genérica e abstratamente referidos pelo julgador”, almejando “decidir quanto ao acerto constitucional de uma certa norma ou dimensão normativa do direito infraconstitucional, face ao texto constitucional” (cfr. o Acórdão n.º 551/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Feito este esclarecimento sobre o teor da decisão sumária reclamada e respetivos fundamentos, carece naturalmente de fundamento a outra pretensão veiculada na reclamação apresentada, nos termos da qual, tendo existido uma “falta de conciso da motivação do recurso interposto”, “deveria ao abrigo do número 6 do artigo 75-A da LTC o recorrente ser convidado a corrigir ou aperfeiçoar a motivação apresentada.”
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento constante dos n.º 5 e 6, do artigo 75.º-A, da LTC, visa, como se antecipa, a correção das insuficiências formais de que padeça o requerimento de interposição do recurso, não podendo ser mobilizado para o suprimento de erros sobre os pressupostos do recurso, ou mesmo para a realização de alterações substanciais quanto ao seu objeto. In casu, como se depreende, não está em causa a mera correção de uma insuficiência formal, faltando, na verdade, um dos requisitos essenciais à admissibilidade do recurso – o objeto normativo da questão de constitucionalidade enunciada - requisito esse, aliás, comum a todos os recursos de constitucionalidade tolerados no âmbito do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade.
III. Decisão
6. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional indeferir a reclamação apresentada e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 19 de dezembro de 2012. – J. Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.