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Processo n.º 778/06
3ª Secção
Relatora: Conselheiro Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de S. João da Madeira
de 10 de Março de 2005, de fls. 355, foi decidido, designadamente, e apenas para
o que agora releva, condenar o arguido A. pela prática de um crime de homicídio
negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena
de prisão de um ano, suspensa na sua execução por dois anos, e julgar
improcedente o pedido de indemnização feito por B.contra a Companhia de Seguros
C., S. A.
O homicídio em causa foi consequência de um acidente de viação que o
tribunal entendeu ter sido provocado, em síntese, por 'negligência inconsciente'
na realização de uma manobra ilegal por parte do arguido, não tendo ficado
provado que a vítima tivesse, por alguma forma, concorrido para tal resultado.
Inconformada, B. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por
acórdão de 10 de Maio de 2006, de fls. 533, lhe negou provimento.
Ao recorrer, B. – que considera que a sentença 'não atendeu ao
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 275/2002' –– sustentou a
inconstitucionalidade da 'norma do n.º 2 do artigo 496º do CC., enquanto
interpretada no sentido de que exclui a atribuição de um direito a indemnização
por danos não patrimoniais ao unido de facto', o que deveria conduzir, 'a esta
luz', à inclusão naquele n.º 2 do 'unido de facto'. Em seu entender, aquela
norma viola, quer o artigo 13º, quer o n.º 1 do artigo 36º e o artigo 67º, todos
da Constituição.
Apenas para o que agora releva, o Tribunal da Relação do Porto decidiu
o seguinte:
«Facilmente se constata que a letra do preceito legal não comporta o
membro da união de facto sobrevivo na elencagem dos titulares do direito de
indemnização por danos não patrimoniais.
Não o fazendo (como aliás vem invocado em sede de recurso) e devendo
tê-lo previsto estará a violar-se o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP)?
Já em 1998 o STJ (cfr. Ac. Do STJ de 23/04/98, CJ/Acs. Do STJ, 2.º -
49) decidiu quanto à matéria que “…não é inconstitucional o n.º 2 do art. 496.º
do Código Civil ao não contemplar a chamada união de facto.
O princípio da igualdade não recusa as distinções, podendo o legislador
estabelecer distinções de tratamento desde que para elas exista fundamento
material.
O que o princípio recusa é o arbítrio legislativo, ou seja, à luz de
tal princípio, inconstitucionais são apenas as distinções de tratamento que a
lei estabeleça e que sejam manifestamente irrazoáveis, irracionais.
No caso não existem razões materiais capazes de explicar, de tornar
racionalmente aceitável, atribuição do direito de indemnização ao ex-cônjuge e
de não prever outro tanto para o ex-companheiro de facto.
A doutrina do Assento do STJ de 23/04/87 foi declarada
inconstitucional, com força obrigatória geral, apenas por violação do princípio
da não discriminação dos filhos, contido no art. 36.º, n.º 4, da Constituição, e
não por ter sido preterida a equiparação da união de facto à união matrimonial.
O art. 67.º da Constituição não proíbe que o legislador dispense certa
protecção à união de facto, mas não lhe impõe que o faça…”.
Posteriormente, no mesmo sentido se veio a decidir no Ac. do STJ de
4/11/2003 – in CJ/Acs. Do STJ – Ano XI, T. III, págs. 133 a 136. Ali se escreveu
que: …Sob tal perspectiva, não há como não concluir que a dita norma n.º 2 do
art. 496.º do CC) nem vai contra o artigo 13.º (CRP) (princípio da igualdade),
nem contra o art. 36.º, n.º 1 (família, casamento e filiação), conjugado com o
princípio da proporcionalidade, nem contra o art. 67.º (família), todos da
Constituição da República, porque na verdade, a distinção que se estabelece tem
respaldo numa prioridade de valores e num programa de protecção que ela própria
adoptou e, por isso, não é injustificadamente arbitrária nem discriminatória,
nem desprotege a família de facto.
Trata diferentemente, para aquele efeito indemnizatório, o cônjuge
legal e o cônjuge de facto, tendo boas razões para distinguir, aí, o que
distinto é, sem, por outro lado, a negar o direito ao cônjuge de facto passar
dos limites da necessidade, da adequação e da racionalidade, que dão corpo à
ideia de proporcionalidade.
É de dizer, nesta última perspectiva que o direito previsto no n.º 2 do
art. 496.º do CC, não constitui, na óptica da proporcionalidade, como princípio
de direito constitucional inspirador dos direitos fundamentais, uma medida
necessária à protecção do direito fundamental a constituir família, porque não
implica com a protecção minimamente exigível àquele elemento de base da
sociedade, e que, nessa medida, atribuir tal direito ao cônjuge de direito e não
ao cônjuge de facto não constitui defeito de protecção deste último.
Mais recentemente, no mesmo sentido, decidiu o STJ, por Acórdão datado
de 24/05/2005 – in www.dgsi.pt .
Assim sendo, e como também se decidiu na sentença recorrida, entendemos
que a norma do referenciado n.º 2 do art. 496.º do Código Civil não enferma de
qualquer juízo de inconstitucionalidade, entendendo acertada a decisão, o que
implica, nessa parte, a improcedência do recurso.»
Cumpre esclarecer que, com esta fundamentação, a Relação indeferiu a pretensão
de indemnização, formulada pela recorrente, por danos morais sofridos por ela
própria e pelo falecido (perda do direito à vida e danos decorrentes do
sofrimento que a antecedeu). A recorrente sustenta que, em ambos os casos, se
trata direitos que o n.º 2 do artigo 496º do Código Civil lhe atribui
originariamente, e não a título hereditário.
2. B. recorreu deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Começando por considerar que se 'contrapõem (…) duas interpretações, quanto à
constitucionalidade, do n.º 2 do artigo 496º CC, na sua aplicação quanto ao
direito a indemnização, em caso de morte da vítima de acidente de viação a caber
à pessoa que vivia com a vítima em situação de união de facto estável, e
duradoura e em condições análogas às dos cônjuges, pelos danos não patrimoniais
pessoalmente sofridos', diz pretender a 'apreciação da interpretação dada, no
caso concreto, ao n.º 2 do artigo 496.º CC. (…) porque a interpretação dada
viola o n.º 1 do artigo 36.º da CRP e artigo 13.º da CRP, conjugado com o
princípio da proporcionalidade'.
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações.
A recorrente, B. formulou então as seguintes conclusões:
«1- A Constituição da República Portuguesa, faz no seu artigo 67°, uma
distinção clara entre família e casamento, consagrando assim família como uma
realidade mais ampla que o casamento.
2- A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 67°, consagra também o
princípio da protecção dessa realidade ampla – família e seus membros –
independentemente do casamento.
3- A Constituição da República Portuguesa, consagra também no seu artigo 13° o
princípio da igualdade dos membros da família, o qual deve ser interpretado no
sentido de que sem justificação material bastante, razoável, não deve haver
tratamento diferente entre as duas situações iguais.
4- As situações de cônjuge ou de unido de facto, são iguais, quando analisadas à
luz da protecção à família insertas na CRP, pelo que não devem ter tratamento
diferente. Ambos são membros da família protegida pela Constituição da República
Portuguesa.
5- Assim, para efeito do n° 2 do artigo 496° CC, o unido de facto que sobreviveu
à morte de seu companheiro deve ser considerado na situação de cônjuge para
efeitos de beneficiário do direito à indemnização por danos não patrimoniais.
6- O sofrimento sofrido pelo companheiro sobrevivo de união de facto é igual ao
sofrimento pela dor e perda sentida pelo cônjuge sobrevivo.
7- A distinção entre as duas situações – no caso, cônjuge ou unido de facto –
tem de se basear num critério que possa ser relevante considerado o efeito
querido.
8- O vínculo matrimonial por contraposição à convivência em união estável e
duradoura, não constitui só por si fundamento razoável para excluir a
companheira da vítima da indemnização por danos não patrimoniais.
9- O intérprete tem de interpretar a lei de modo que a sua interpretação não
choque, sem justificação razoável, com os princípios fundamentais de ordenamento
jurídico, nomeadamente a constituição da República Portuguesa.
10- A interpretação, da norma do n° 2 do artigo 496 CC. é inconstitucional,
quando interpretada no sentido de excluir o sobrevivente da união de facto, em
caso de homicídio, do direito à indemnização por danos não patrimoniais, por
violação do artigo 13°, n° 1 do artigo 36° e 67° CRP.
11- A recorrente vivia em união de facto, estável e duradoura e a equiparação da
sua posição à do cônjuge, coloca-a no 1° grau dos beneficiários, quando os pais
são colocados no 2° grau.
12- Foram pois violados os princípios consignados nos artigos 13º, 36° e 67° da
CRP.
13- Deverá ser declarada a referida inconstitucionalidade daquela interpretação
do n° 2 do artigo 496° CC.»
Contra-alegou, em primeiro lugar, a recorrida COMPANHIA DE SEGUROS C.,
SA, concluindo da seguinte forma:
«1. Não podem ter o mesmo tratamento jurídico situações juridicamente
diferentes;
2. Os 'parceiros' não podem pretender beneficiar do estatuto de
'cônjuge';
3. O Tribunal Constitucional não pode ser o 'padroeiro' dos
contravalores e 'encaixar' no n.º 2 do artº 496º do CC uma situação de facto que
o legislador não quis lá 'meter';
4. Sob pena de estar a invadir a área reservada ao Poder Legislativo e
cometer ele próprio uma inconstitucionalidade'.
Alegou igualmente o Ministério Público, formulando estas conclusões:
«1 – É inconstitucional, por violação do artigo 36°, n° 1, da Constituição,
conjugado com o princípio da proporcionalidade, a norma do n° 2 do artigo 496°
do Código Civil, na parte em que – em caso de morte da vítima de um crime,
doloso ou negligente, exclui a atribuição de um direito de indemnização pelos
danos não patrimoniais pessoal e directamente sofridos pela pessoa que convivia
com a vítima em situação de facto, estável e duradoura, em condições análogas às
dos cônjuges – e visando ressarcir a destruição da relação afectiva que ligava
os membros daquela união de facto.
2 – Não impondo a Lei Fundamental uma total e plena equiparação entre a situação
dos cônjuges e a dos membros da união de facto – e devendo as soluções
legislativas procurar conciliar a protecção, quer da família não fundada no
casamento, quer do parentesco juridicamente constituído – não é violador dos
princípios constitucionais a interpretação normativa segundo a qual a
indemnização pelos danos morais originariamente sofridos pela vítima apenas é
atribuível – mesmo que se considere inexistir um fenómeno próprio de transmissão
“jure hereditario” – às classes sucessórias contempladas especialmente no n° 2
do artigo 496° do Código Civil, pela ordem aí considerada.
3 – Termos em que deverá proceder, em parte, o recurso, em conformidade com o
julgamento de inconstitucionalidade normativa atrás proposto.»
Finalmente, alegaram os recorridos D. e mulher, E., terminando assim a
contra-alegação:
«A declaração de inconstitucionalidade que a recorrente requer significaria,
isso sim, a violação dos artigos 13°, 36°, 67°, 68° n°2 da Constituição:
- originaria a discriminação dos cidadãos casados, desiguais perante os unidos
de facto. Estes estariam arredados de quase todas as obrigações legais a que os
primeiros estão sujeitos, mas veriam os seus direitos equiparados para efeitos
de direitos e benefícios legais.
- a protecção da família seria extensiva àqueles que família não querem
constituir: as relações de família estão previstas na lei e não contemplam a
situação de facto criada por duas pessoas a que (no entanto e com outra mens
legis) a lei atribui efeitos jurídicos próprios.
- o casamento não é união de facto e a protecção que consta da Lei Fundamental
diz respeito ao casamento. A protecção deste vínculo seria destruída e o
instituto do casamento esvaziado de significado e de conteúdo se se acolhesse a
tese da recorrente, pois ela teria que ser estendida à posição e protecção do
cônjuge que atravessa transversalmente a lei civil. Estando o casamento previsto
e protegido na Constituição este esvaziar constituiria uma irremediável
inconstitucionalidade.
- também assim para a protecção da família como elemento essencial da sociedade
e da maternidade e paternidade como valores sociais eminentes, com consagração
constitucional (artigos 67º e 68°), o que não ocorre com as uniões de facto,
cuja equiparação pretendida colidiria com estes valores e seria
inconstitucional.
A recorrente não pode pretender entrar à força numa disposição legal que a não
contempla, sobretudo invocando a Constituição em clara oposição ao que ela
dispõe, maxime forçando a ocupação de um lugar que a norma ao cônjuge e só a
este atribui.
E pior, querer – numa subversão absoluta – arredar e substituir-se àqueles que,
ao invés, tal norma expressa e muito justamente designa.
Tal subversão destruiria os princípios que regem o direito de família que se
fundam na letra e no espírito da nossa Constituição.»
Concluíram que o recurso não deve ser admitido (o que, notificada, a recorrente,
contestou) ou, se assim se não entender, 'deve ser desatendido'.
3. Não cabe ao Tribunal Constitucional tomar partido na controvérsia de
saber se o direito à indemnização por danos sofridos pela vítima, em caso de
morte, é atribuído originariamente às pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496º
do Código Civil (independentemente, agora, de saber se nelas se deve ou não
incluir o 'unido de facto' sobrevivo) ou se, diferentemente, lhes cabe a título
sucessório. Como se disse já, a ora recorrente pediu uma indemnização, quer
pelos danos morais por ela própria sofridos, quer pelos danos morais sofridos
pelo falecido; e ambos os pedidos foram indeferidos, sempre com o fundamento de
que se não encontrava abrangida no elenco de titulares de direito a
indemnização, definido no n.º 2 do citado artigo 496º do Código Civil.
Ao Tribunal Constitucional apenas competiria, eventualmente, determinar
se a Constituição impõe, como sustenta a recorrente, a sua equiparação ao
cônjuge, nos dois casos.
Sucede, todavia, que, no requerimento de interposição de recurso de
constitucionalidade, a recorrente limitou expressamente o âmbito do recurso à
questão da titularidade do direito a indemnização 'pelos danos não patrimoniais
pessoalmente sofridos».
E verifica-se ainda, disse-se já, que o homicídio (negligente) resultou
de um acidente de viação provocado exclusivamente por negligência do arguido.
Assim, o objecto do presente recurso restringe-se à norma do n.º 2 do
artigo 496º do Código Civil, na parte em que exclui o sobrevivente da união de
facto, em caso de homicídio negligente decorrente de acidente de viação
resultante de culpa exclusiva de outrem, do direito à indemnização por danos não
patrimoniais, pessoalmente sofridos em consequência da morte da vítima.
4. No seu acórdão n.º 275/2002 (Diário da República, II série, de 24 de
Julho de 2002), o Tribunal Constitucional analisou a norma do n.º 2 do artigo
496º do Código Civil igualmente apenas enquanto referida aos 'danos não
patrimoniais sofridos, com a morte da vítima, directamente pela pessoa que com
ela convivia em união de facto'. Após uma análise exaustiva da jurisprudência
constitucional e da evolução verificada no 'enquadramento legal' das situações
'do cônjuge (não separado judicialmente de pessoas e bens)' e da pessoas que
vivem em união de facto, para a qual se remete, o Tribunal afastou a violação,
então também alegada, do princípio da igualdade, por comparação com a situação
do cônjuge sobrevivo, mas concluiu no sentido da inconstitucionalidade «por
violação do artigo 36º, n.º 1, da Constituição, conjugado com o princípio da
proporcionalidade, [d]a norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil na parte
em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um
direito de 'indemnização por danos não patrimoniais' pessoalmente sofridos pela
pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e
duradoura, em condições análogas às dos cônjuges».
Como, aliás, se esclareceu posteriormente no acórdão n.º 86/2007 – o
qual, como ali se escreveu, versava sobre um objecto diverso, já que nele não
era 'questionada, como no caso do Acórdão n.º 275/2002, a consequência, no plano
da compensação por danos não patrimoniais, da prática de um crime (de um
homicídio), e de um crime doloso, mas antes a consequência de um acidente de
viação que se deveu a culpa (negligência) exclusiva do lesante' –, a razão que
então conduziu ao juízo de inconstitucionalidade foi, essencialmente, a
verificação de uma 'total desadequação da dimensão normativa então em apreciação
às justificações ou finalidades para ela adiantadas', nestes termos:
«6. Afigura-se, porém, essencial recordar a forma como se concretizou o
confronto com o princípio da proporcionalidade. Com efeito, depois de se
observar que o legislador constitucional não quis reduzir a noção de família à
união conjugal baseada no casamento, e que impõe a protecção da “família, como
elemento fundamental da sociedade”, com “um dever de não desproteger, sem uma
justificação razoável, a família que se não fundar no casamento”, a apreciação
da conformidade com o princípio da proporcionalidade não se centrou em qualquer
“desproporção” das consequências do regime jurídico (que, efectivamente, podem
ser tão ou mais gravosas, por exemplo, no não reconhecimento da qualidade de
sucessível na sucessão legitimária). O iter seguido para o confronto com o
princípio da proporcionalidade, passou, antes, pela averiguação daquela
“justificação razoável” especificamente para a solução normativa em questão,
atentando, precisamente, na relação entre a justificação que para ela é
adiantada e os dados do caso em que a dimensão normativa impugnada fora aplicada
(e recorde-se que se tratou de decisão proferida em fiscalização concreta e
incidental da constitucionalidade).
No contexto dessa averiguação da conformidade com o princípio da
proporcionalidade, enquanto princípio geral atinente à relação entre meios e
fins da actuação do poder público (conjugada com a protecção constitucional
também da “família não fundada no casamento”), logo se pôde verificar a total
desadequação da dimensão normativa então em apreciação às justificações ou
finalidades para ela adiantadas. Salientou-se, assim, que, para a “compensação
dos sofrimentos e da dor sofrida por quem convivia com a vítima de um homicídio
doloso em condições análogas às dos cônjuges”, não podia proceder, nem a
justificação da solução do artigo 496.º, n.º 2, “consistente na necessidade de
limitar as pretensões indemnizatórias, nem a que valoriza a necessidade de uma
solução certa, já que a expectativa do lesante de se não ver confrontado com um
número não definido de pretensões indemnizatórias não merece protecção e que o
titular do direito à compensação se encontra perfeitamente determinado”
(itálicos aditados – e cf. também já antes, a propósito do princípio da
igualdade, no n.º 10 da fundamentação do Acórdão n.º 275/2002). E ainda se
verificou, “com relevo para a determinação dos limites da discricionariedade
legislativa”, que a solução normativa em apreço se reporta a um problema que se
afigura como “inadequado para a prossecução de eventuais objectivos políticos de
protecção ou incentivo ao casamento”, não só por estar em causa compensar um
dano, normalmente de grande gravidade, como por este resultar de “um evento que
é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso)”.
Só estes passos permitiram concluir pela existência de “violação do artigo 36.º,
n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade” no caso
decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, como resulta logo da leitura da sua
fundamentação – e sem que se afigure necessário recordar as virtudes,
democráticas e para o próprio funcionamento de um órgão de fiscalização concreta
da constitucionalidade, do emprego de fundamentações estreitas e limitadas à
dimensão normativa aplicada (…).
E note-se, ainda, que as considerações expendidas na fundamentação do Acórdão
n.º 275/2002, relevantes, nos termos expostos, à luz do princípio da
proporcionalidade não dependeram de qualquer tomada de posição na discussão
sobre a verdadeira natureza ou função da “indemnização”, “compensação” ou
“satisfação” (“Genugtuung”) por danos não patrimoniais (nos termos do artigo
496.º, n.º 1, apenas dos que “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”),
isto é, numa discussão em que, como é sabido, tem também sido defendida, entre
outras posições, a da atribuição de uma função sancionatória ou punitiva, ou
pelo menos de uma dupla função, compensatória e punitiva, a tal “satisfação”
(…)».
Tendo em conta as diferenças entre os objectos de ambos os recursos, o
acórdão n.º 86/2007 concluiu no sentido de 'não julgar inconstitucional a norma
do artigo 496º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que exclui o direito a
indemnização por danos não patrimoniais da pessoa que vivia em união de facto
com a vítima mortal de acidente de viação resultante de culpa exclusiva de
outrem'.
6. Ora verifica-se que a dimensão em que a parte relevante do n.º 2 do
artigo 496º do Código Civil foi aplicada no presente recurso coincide com a
norma que foi apreciada neste acórdão n.º 86/2007. E é o julgamento de não
inconstitucionalidade ali alcançado que aqui se reitera, razão pela qual se
transcreve esse mesmo acórdão:
«7. A decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 foi objecto de análise
sobretudo no plano da comparação entre a posição do cônjuge e de quem vive em
“união de facto” com outrem, à luz das normas e princípios constitucionais sobre
a família e o casamento. É certo que, como se disse, se aceitou então a
relevância, para a noção constitucional de família, também da “família não
fundada no casamento”, rejeitando a redução da família à que assenta no
matrimónio (…), e que se afirmou “um dever de não desproteger, sem uma
justificação razoável”.
Nos presentes autos, pode reiterar-se este entendimento, que só por si está,
porém, longe de implicar qualquer equiparação geral do regime da família fundada
no casamento e da família não assente no matrimónio (…).
8. Mais do que uma comparação “transversal” entre a posição do cônjuge e de quem
vive em “união de facto” com outrem, a “revisitação” efectuada à decisão do
Tribunal Constitucional que o recorrente invoca, e que o acórdão recorrido se
preocupou em “desqualificar” como precedente, impõe, porém, que se recorde e
aprofunde a referência, contida já no Acórdão n.º 275/2002, especificamente à
ratio da delimitação, pelo n.º 2 do artigo 496.º, dos titulares de um direito a
uma “indemnização” (compensação ou “satisfação”) por danos não patrimoniais por
morte da vítima, e em particular no que toca ao problema da exclusão daqueles
que de facto, tendo em conta as circunstâncias do caso, eram mais próximos
desta.
O problema é – contrariamente ao que se poderia pensar – bastante anterior ao
reconhecimento legislativo de efeitos jurídicos da “união de facto”, entre nós e
lá fora. Adriano Vaz Serra tratou-o assim já em 1959, nos trabalhos
preparatórios do Código Civil (“Reparação do dano não patrimonial”, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 69-111, esp. 96-98), depois de perguntar a
quem deve ser reconhecido o direito à compensação em causa (e baseando-se em
doutrina alemã e suíça da primeira metade do século XX):
«Não parece que deva ser reconhecido aos herdeiros como tais, os quais podem ser
estranhos à família, caso em que não terão, em regra, dor moral suficiente para
justificar uma compensação.
Tal direito deve ser reservado para os familiares da vítima, que são as pessoas
nas quais é de presumir a existência de sentimentos de afeição bastante fortes.
Mas, por um lado, esses sentimentos podem ser ainda mais fortes da parte de
pessoas estranhas à família juridicamente entendida; e, por outro lado, o facto
de ser membro da família não implica necessariamente a existência de uma afeição
suficiente.
Pareceria assim, que por família, para este efeito, deveriam entender-se aquelas
pessoas que, segundo as circunstâncias materiais do caso concreto, desempenham
de facto as funções de família [citando, neste sentido, A. von Tuhr]. Essas
pessoas seriam as que, pelas especiais relações com a vítima, é de presumir
sofrerem mais, na sua afeição, com a morte dela. O critério não seria, pois,
jurídico, mas de facto.
No entanto, poderia também entender-se que só às pessoas ligadas juridicamente
por laços de família (Cônjuge, parentes e afins) deveria reconhecer-se o direito
à satisfação de danos não patrimoniais. As outras não tinham o direito de contar
com a continuação da situação de facto em que se encontravam com o falecido e
não poderiam, portanto, alegar danos, patrimoniais ou não, resultantes da morte
dele.
Assim, a concubina ou a noiva não poderiam reclamar a referida satisfação, nem o
poderiam fazer outras pessoas colocadas de facto na situação de familiares.
Dadas as razões que podem ser invocadas num sentido e no outro, talvez seja
preferível usar uma fórmula que permita à jurisprudência decidir como lhe
parecer melhor, ou, reconhecendo, em princípio, o direito de satisfação aos
parentes, permitir que se atribua tal direito a pessoas estranhas à família mas
ligadas à vítima de modo a constituírem de facto família dela.
(…)
Se não se limitasse assim o direito à satisfação do dano não patrimonial,
poderia ele ser invocado por vezes por um número considerável de pessoas, com o
resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima ou com o de a
cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que seria
praticamente nula.»
Vaz Serra referia ainda, em nota, que, “quanto à concubina”, poderia intervir,
para excluir o direito à compensação, a consideração da “atitude tomada a
respeito da união livre” (p. 98, n. 58, e pp. 91-92). Mas concluía propondo
(também como alternativa) que no caso de morte de uma pessoa, quando as
circunstâncias de facto o impusessem, poderia “reconhecer-se direito de
satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde que tais
pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família
dela” – ob. cit., p. 107, e Adriano Vaz Serra, Direito das obrigações (com
excepção dos contratos em especial) – Anteprojecto, Lisboa, 1960, artigo 759º,
n.º 3, p. 624 (itálico aditado).
O projecto de Código Civil (artigo 498.º, n.º 2) veio, porém, a fixar-se na
alternativa de reconhecimento da “indemnização por danos não patrimoniais” por
morte “em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e
aos filhos ou outros descendentes, na falta destes, aos pais ou outros
ascendentes, e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem”, numa
solução em que (segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado,
vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1987, art. 496.º, anot. 5, p. 501), as
“excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens
do direito estrito”.
Considerando que a morte de uma pessoa é um evento lesivo susceptível de causar
danos não patrimoniais a um círculo alargado de pessoas, a delimitação dos
possíveis titulares da compensação por danos não patrimoniais (próprios) em caso
de morte da vítima obedeceu, fundamentalmente, já a uma razão de certeza,
evitando-se a multiplicação indeterminada de pretensões indemnizatórias em
consequência da morte, já à conveniência em evitar que o lesante por mera culpa
se visse assoberbado por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número
alargado, ou mesmo ilimitado, de pessoas, com as quais não poderia contar. Por
estas razões, no n.º 2 do artigo 496º o legislador limitou o leque de pessoas
cujos danos não patrimoniais, causados directamente pela morte da vítima, são
atendíveis, e dividiu mesmo tais pessoas em dois grupos, segundo uma presunção
assente na proximidade familiar (primeiro, o cônjuge não separado judicialmente
de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; “na falta destes”, os pais
ou outros ascendentes; e, “por último”, os irmãos ou sobrinhos que os
representem).
Disse-se no Acórdão n.º 275/2002 que tais justificações se revelavam
desajustadas à dimensão normativa em questão nesse caso, por o beneficiário da
indemnização se encontrar então perfeitamente delimitado e ser apenas um, e por
não merecer “certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se
eximir à compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”.
Há que apurar se é igualmente assim no presente caso.
9. Revertendo então ao caso dos autos – em que (recorde-se) o que está em causa
é a constitucionalidade da exclusão da “indemnização por danos não patrimoniais”
sofridos pela pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente
de viação resultante de culpa exclusiva de outrem –, pode igualmente proceder-se
a um confronto com os parâmetros constitucionais relevantes em dois momentos, e
desdobrando a análise segundo o invocado pelo recorrente – que é, recorde-se
também, a “violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP;
do direito a constituir família independentemente de qualquer vínculo formal
estabelecido no art.º 36.º, n.º 1 da nossa Lei Fundamental e da concepção
constitucional de família vertida no art.º 67.º, n.º 1 da Constituição”.
Assim, quem não acompanhasse a decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 (tirado
com dois votos de vencido) dificilmente chegará a uma solução de
inconstitucionalidade no presente caso, considerando que se não está perante um
crime doloso, mas perante um acidente de viação (com violação de regras de
circulação e de deveres de cuidado) provocado por negligência, isto é, não só
perante diferentes graus de culpa, mas perante ilícitos também de diverso tipo e
gravidade, como se notou na decisão recorrida; e considerando, ainda, que, sob a
perspectiva (se não da normal previsibilidade, pelo menos) da frequência dos
ilícitos e dos eventos lesivos em questão, se estava, no caso então decidido,
perante um evento (homicídio doloso) muito pouco frequente, o que, infelizmente,
já se não pode seguramente dizer do que deu origem ao acidente de viação
ocorrido no caso dos autos.
Não existem, com efeito, na dimensão normativa em apreciação no presente
recurso, outras particularidades que, para quem não acompanhasse o juízo de
inconstitucionalidade a que se chegou no Acórdão n.º 275/2002, possam conduzir a
uma conclusão de desconformidade com a Constituição da República, por violação
dos princípios da igualdade ou de outros princípios ou normas constitucionais.
10. Mas mesmo quem tenha subscrito o julgamento de inconstitucionalidade do
Acórdão n.º 275/2002 não é necessariamente conduzido, pelo seus fundamentos, a
uma solução de incompatibilidade com a Constituição da solução normativa em
apreciação no presente recurso de constitucionalidade.
Quanto ao princípio da igualdade, já se notou que ele não constituiu o
fundamento decisivo para a decisão tomada maioritariamente no Acórdão n.º
275/2002. E recorde‑se, a propósito, o que se disse no citado Acórdão n.º
195/2003:
«Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o
legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas,
e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da
relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo
diferente que pretendem constituir familía mediante uma plena comunhão de vida,
nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577º do Código
Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois
anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter
no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e
adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento.»
E, posteriormente, no também citado Acórdão n.º 159/2005:
«Assim, na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que
declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a
um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e
um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem,
intencionalmente, opta por o não fazer. O legislador constitucional não pode ter
pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador
infra-constitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos
políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a
formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a
posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito
a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge.»
O regime da indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima
é, justamente, um desses pontos submetidos a um regime jurídico distinto, tal
como distintas são, também, as relações entre a vítima e quem pede a
indemnização.
Não existe, pois, violação do princípio da igualdade na norma em apreciação.
11. Como resulta do que se disse, e também se afirmou no citado Acórdão n.º
159/2005,
«Superada a objecção que se pudesse pretender extrair do princípio da igualdade,
e admitida a presente diferenciação à luz da política legislativa que o
legislador democrático entenda dever prosseguir, não ficam, porém, dissipados
todos os argumentos conducentes a uma conclusão de inconstitucionalidade. Aliás,
o acórdão recorrido [dir-se-á, agora, o Acórdão n.º 275/2002] baseou o seu
julgamento de inconstitucionalidade, decisivamente, na invocação do princípio da
proporcionalidade (conjugado com o reconhecimento constitucional da “família não
fundada no casamento”) […].»
Sobre o confronto com o princípio da proporcionalidade conjugado com o
reconhecimento constitucional da “família não fundada no casamento” importa
novamente recordar que, como também já se notou (e se disse igualmente no
Acórdão n.º 159/2005),
«[…]o que está em causa no confronto de uma solução normativa com o princípio da
proporcionalidade não é simplesmente a gravidade ou a dimensão das desvantagens
ou inconvenientes que pode acarretar para os visados (com, por exemplo, a
necessidade da prova da carência de alimentos, ou, mesmo, a exclusão total de
certos direitos). O recorte de um regime jurídico – como o da destruição do
vínculo matrimonial ou o dos seus efeitos sucessórios – pela hipótese do
casamento, deixando de fora situações que as partes não pretenderam
intencionalmente submeter a ele, tem necessariamente como consequência a
exclusão dos respectivos efeitos jurídicos. O que importa apurar é se tal
recorte é aceitável – se segue um critério constitucionalmente aceitável – tendo
em conta o fim prosseguido e as alternativas disponíveis – sem deixar de
considerar a ampla margem de avaliação de custos e benefícios e como de escolha
dessas alternativas, que, à luz dos objectivos de política legislativa que ele
próprio define dentro do quadro constitucional, tem de ser reconhecida ao
legislador (e que este Tribunal reconheceu, por exemplo, no Acórdão n.º
187/2001, publicado no Diário da República, II série, de 26 de Junho de 2001).»
Mas lembre-se, também, o que este Tribunal tem afirmado sobre o alcance do
princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo jurisdicional da
actividade legislativa. Afirmou-se, assim, seguindo anterior jurisprudência, no
citado Acórdão n.º 187/2001:
«Não pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que
originariamente relevante sobretudo no domínio do controlo da actividade
administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-se-á mesmo – como o
comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da
proporcionalidade cobra no controlo da actividade do legislador um dos seus
significados mais importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências
decorrentes do princípio se configurem de forma diversa para a actividade
administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática
aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado‑Administrador e
para o Estado-Legislador.
(…)
Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da
administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as
suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros
constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da
competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação (…)
afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação
medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a objectividade dos
juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de
estabelecer.
Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve
substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre
o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as
controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro
manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as
medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser
resolvidas contra a posição do legislador.
Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso
concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a
decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou não existe – e a norma é
constitucionalmente conforme. Tal objecção, segundo a qual apenas poderia
existir “uma resposta certa” do legislador, conduz a eliminar a liberdade de
conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria averiguação
jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do
princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de
se poder detectar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e
seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador
a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.»
As considerações que precedem afiguram-se relevantes no caso dos autos: o
legislador goza de uma considerável margem de discricionariedade na delimitação,
no artigo 496.º, n.º 2, do círculo das pessoas que podem pedir indemnização por
morte da vítima.
E a apreciação da conformidade com o princípio da proporcionalidade, nos termos
referidos, não deve, também, deixar de tomar em conta – sobretudo em
fiscalização concreta e incidental da constitucionalidade – as particularidades
da dimensão normativa ora em apreciação, e o diverso recorte do caso a que foi
aplicada (…).
E há, ainda, que recordar que, como este Tribunal tem repetidamente afirmado,
não está em causa, no controlo da constitucionalidade a que procede, a
qualificação do “melhor direito” (e a “desqualificação” do “pior direito”) em si
mesmo, isto é, o juízo sobre qual seria a solução mais conveniente ou que melhor
concilia todos os interesses em presença. Tal é missão do legislador. Ao
Tribunal Constitucional compete apenas um controlo de constitucionalidade, ou
seja, ajuizar sobre a questão de saber se uma solução ou dimensão normativa
viola normas ou princípios constitucionais: não, neste sentido, avaliar o
“melhor direito”, mas apenas dizer o “não direito”, porque incompatível com a
Constituição da República (cf. os seus artigos 3.º, n.º 3, 204.º, 223.º, n.º 1,
e 277.º, n.º 1).
12. Ora, entende-se que o confronto, que levou no citado aresto de 2002 a
afirmar a “violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o
princípio da proporcionalidade” , entre a justificação da delimitação operada no
artigo 496.º, n.º 2, e a dimensão normativa em análise no presente recurso
conduz a resultados diversos dos alcançados naquele aresto. Falta, pois,
identidade substancial, neste aspecto constitucionalmente relevante, entre as
normas ou dimensões normativas em apreciação nos dois casos (…).
Não é, com efeito, possível detectar no presente caso qualquer falta grosseira
ou evidente de adequação entre a dimensão normativa ora em apreço e as
finalidades dessa delimitação, resultante do artigo 496.º, n.º 2 (note-se,
aliás, e como se referiu, que o legislador goza, neste âmbito, de uma
considerável margem de discricionariedade para ponderar os vários interesses
envolvidos, e sem que se possa retirar da Constituição um certo e único regime
constitucionalmente admissível, e que, na dúvida, sobre tal inadequação sempre
seria de decidir no sentido da inexistência de inconstitucionalidade).
É o que facilmente se conclui, desde logo, para a justificação consistente na
necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, por razões de certeza, que
se pode revelar procedente para lesões que se verificam com uma frequência
diária, e sem qualquer relação prévia entre lesante e lesado (diversamente do
que acontecia com a lesão provocada pelo homicídio no caso do Acórdão n.º
275/2002). Sem tal limitação, os prejuízos não patrimoniais resultantes da morte
poderiam ser invocados frequentemente, e “por vezes por um número considerável
de pessoas, com o resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima
ou com o de a cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que
seria praticamente nula” (nas palavras citadas de Vaz Serra).
O que é reforçado pela consideração da expectativa do lesante de se não ver
assoberbado com um número não definido de pretensões indemnizatórias. Na
verdade, afirmou-se, no caso decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, que “não merece
certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à
compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”. Tal posição do
lesante, se não merecia protecção, dada a “gravidade extrema do ilícito” e o
dolo do lesante, no caso do Acórdão n.º 275/2002, não tem de ser considerada
irrelevante – sob pena de erro grosseiro de avaliação do legislador – num caso
como o dos autos, em que está em causa a infracção de regras legais de
circulação rodoviária e de deveres de cuidado, com negligência do lesante, da
qual veio a resultar o acidente que provocou a morte. Não pode, com efeito,
excluir-se que o legislador atenda à conveniência em que os lesantes civis por
mera culpa se não vejam assoberbados por pretensões indemnizatórias deduzidas
por um número ilimitado de pessoas, dada a frequência estatística de situações
como a dos autos.
(…)
13. Conclui-se, pois, que a norma do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, na
parte em que exclui o direito a indemnização por danos não patrimoniais da
pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação
resultante de culpa exclusiva de outrem, não viola nem o princípio da igualdade
nem o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da
proporcionalidade, parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente (já que
nada mais se pode retirar, no sentido da inconstitucionalidade, da invocação da
“concepção constitucional de família vertida no art.º 67.º, n.º 1 da
Constituição”, que não tenha já sido considerado na fundamentação que antecede).
Não se descortinando outros fundamentos para um juízo de inconstitucionalidade,
há que negar provimento ao presente recurso.»
7. É este julgamento de não inconstitucionalidade, pelas razões
constantes do acórdão n.º 86/2007, que se reitera.
Assim, nega-se provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que
respeita à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 21 de Março de 2007
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra (votei a decisão atendendo, essencialmente, às razões que carreei à
declaração de voto que apus ao Acórdão n.º 275/2002)
Gil Galvão (vencido, no essencial, pelas razões constantes da declaração de voto
da Exma. Conselheira M.ª Fernanda Palma aposto no Acórdão n.º 89/2007)
Artur Maurício – vencido pelo essencial das razões expressas no voto de vencido,
subscrito pela Cons. Maria Fernanda Palma, no Acórdão 86/2007)