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Processo n.º 138/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Franca de
Xira, impugnação judicial de uma apreensão de bens por si produzidos, ordenada
pela Inspecção-Geral das Actividades Económicas (fls. 5 e seguintes), tendo
invocado, entre o mais, a inconstitucionalidade material e orgânica do
Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril.
Por decisão de 7 de Janeiro de 2005 (fls. 343 e seguintes), o juiz
do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Vila Franca de Xira viria a
considerar procedente esse recurso.
A decisão proferida, que assentou no juízo de inconstitucionalidade
dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril, concluiu assim:
“[…]
Em face do exposto, resulta que o diploma legal em apreço, o Decreto-Lei n.º
86/2004, de 17 de Abril, é orgânica e materialmente inconstitucional, nos termos
do art. 277º da C.R.P., por violação, respectivamente, dos arts. 165º, n.º 1,
al. b), e arts. 13º, 18º, 26º, 29º, 32º, n.º 10, 61º, 62º e 268º, todos da
Constituição da República Portuguesa, pelo que, nos termos do art. 280º, n.º 1,
al. a), da Lei Fundamental, não aplico o diploma legal em apreço e, em
consequência, impõe-se o levantamento da apreensão efectuada em 18 de Maio de
2004.
Saliente-se que, em face do exposto não se analisam os demais fundamentos
invocados pela recorrente, por desnecessidade, e, considerando, ainda, a
restrição do objecto do recurso apenso a estes autos, não nos pronunciamos,
quanto às apreensões de produtos da A. efectuadas em datas diversas, quanto à
sua legitimidade, mas apenas quanto à questão concretamente suscitada, a qual é,
como se viu, supra, improcedente.
[…]
Pelo exposto, e em conformidade:
a) Julga-se procedente, porque provado, o presente recurso de impugnação
judicial da apreensão efectuada, pela Inspecção Geral das Actividades
Económicas, em 18 de Maio de 2004, no armazém da sociedade B., pessoa colectiva
n.º ---------------, sito na --------------------, Armazém ---, Fracção ---,
--------, de fls. , interposto pela recorrente A., e, em consequência,
determina-se o levantamento daquela apreensão, em virtude de se basear em
violação dos arts. 4º e 5º do DL n.º 86/2004, de 17 de Abril, os quais são
orgânica e materialmente inconstitucionais por violação dos arts. 165º, n.º 1,
al. b), e 13º, 18º, 26º, 29º, 32º, n.º 10, 61º, 62º, e 268º, todos da C.R.P., e
a entrega imediata dos produtos apreendidos à recorrente;
[...].”.
2. O magistrado do Ministério Público na comarca de Vila Franca de Xira
interpôs recurso obrigatório desta sentença para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, das normas dos artigos
4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril (fls. 393).
Admitido o recurso no efeito suspensivo, por despacho de fls. 395,
viria a A. a requerer que ao recurso fosse fixado o efeito meramente devolutivo
e, bem assim, que fosse revogada a medida de apreensão de bens e ordenada a
restituição, à requerente, dos produtos apreendidos (fls. 398 e seguintes).
Por despacho de fls. 406 e seguintes, foi indeferido o requerimento,
no que diz respeito à modificação do efeito do recurso, e esclarecida a
requerente de que cabia à entidade administrativa a decisão de levantamento da
apreensão.
3. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 412
e seguintes), concluiu o Ministério Público:
“1º - A liberdade de iniciativa económica, proclamada pelo artigo 61° da
Constituição da República Portuguesa, não pode perspectivar-se, atenta a sua
amplíssima indeterminação constitucional, como um «direito fundamental»,
totalmente sujeito ao regime plasmado nos artigos 18° e 165°, n.° 1, alínea b),
da Constituição da República Portuguesa.
2° - Na verdade, sendo tal «direito» conferido nos termos previstos na
Constituição e na lei, não revestem natureza restritiva, mas antes meramente
delimitadora, as normas que regulam o âmbito da autonomia na realização das
actividades empresariais e respectiva promoção publicitária ou comercial.
3° - As restrições ao uso, para fins publicitários ou comerciais, de certas
designações ou símbolos, legalmente reservados a terceiros, não afectam o núcleo
essencial, constitucionalmente garantido, da liberdade de iniciativa económica.
4° - Não ofende os princípios da tipicidade e da legalidade a previsão de certo
tipo contraordenacional com alguma latitude ou indeterminação, bastando que se
possa extrair claramente do tipo legal o núcleo essencial da proibição –
preenchendo tal requisito o tipo que proíbe e sanciona a utilização «directa ou
indirecta» de determinados símbolos ou sinais, de modo a criar um risco de
confundibilidade ou «falsa impressão» de associação de quem os utiliza a certo
evento desportivo nacional.
5° - Não pode considerar-se violadora do princípio da igualdade a referida
restrição de utilização a um determinado círculo de sujeitos, já que ela tem
como causa a compensação de uma comparticipação nos custos, suportados pelos
beneficiários, com a organização e promoção de certo evento desportivo nacional.
6° - A norma proibitiva e sancionatória, constante dos artigos 4° e 5° do
Decreto-Lei n.° 86/04, não é retroactiva, enquanto aplicável a actos autónomos
de utilização ilegal de certos símbolos ou denominações, consumados em momento
ulterior à vigência de tal diploma legal.
7° - As restrições à utilização, directa ou indirecta, de símbolos ou sinais que
sejam susceptíveis de criar no público a «falsa impressão» de que certa empresa
está associada ao evento desportivo que aqueles representam, instituída pelo
Decreto-Lei n.° 86/04, de 17 de Abril, não se configura como violadora de
expectativas legítimas e consolidadas na plena utilização de tais elementos
distintivos, atento, nomeadamente, o princípio da reserva de utilização que já
constava do n.° 3 do artigo 10° do Decreto-Lei n.° 268/01 – e radicando a edição
do Decreto-Lei n.° 86/04, de 17 de Abril, na prossecução de relevantes
interesses públicos, garantindo a organização e imagem do evento desportivo em
causa e permitindo o seu aproveitamento apenas às entidades que suportaram os
custos da sua organização e promoção.
8°- Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um
juízo de constitucionalidade das normas desaplicadas na sentença recorrida.”
Quanto ao efeito do recurso, o Ministério Público sustentou o
seguinte:
“Relativamente à questão do efeito a atribuir ao recurso de constitucionalidade,
parece-nos evidente que não é aplicável o estatuído no n.° 2 do artigo 78° da
Lei do Tribunal Constitucional: efectivamente, a previsão normativa aí contida
conexiona-se com o recurso previsto na alínea b) do n.° 1 do artigo 70° da Lei
n.° 28/82 e com a questão do esgotamento dos recursos ordinários possíveis. Na
verdade, se a parte optar pela preclusão do recurso ordinário possível – não o
interpondo, no prazo legal, ou evitando o seu seguimento, por motivos de ordem
processual, nos termos previstos no artigo 70°, n.° 4 – o efeito de tal recurso
de constitucionalidade é o que corresponderia ao «recurso ordinário» precludido
pela vontade do recorrente.
A situação dos autos é completamente diversa: tratando-se de recurso obrigatório
para o Ministério Público, ele é necessariamente interposto, em via directa,
para o Tribunal Constitucional, estando excluída a utilização de qualquer outro
meio impugnatório ordinário: deste modo, a não interposição deste recurso
ordinário possível não radica na vontade do recorrente, na estratégia processual
por ele delineada, decorrendo antes directamente da lei – o que determina a
aplicação do regime-regra, estabelecido no n.° 4 do artigo 78°.”.
4. A A. contra-alegou (fls. 426 e seguintes), tendo formulado as
seguintes conclusões:
“A. Na medida em que o recurso admitido a fls. 395 foi interposto de uma
Sentença absolutória, por não se inscrever em nenhuma outra previsão do
mencionado art. 408º do C.P.P., tal recurso não tem efeito suspensivo, como lhe
foi fixado, mas sim efeito meramente devolutivo, nos termos dos arts. 666º, n.º
3, e 669º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, ex vi art. 4º do C.P.P..
B. No que ao fundo da questão respeita, com todo o respeito, não assiste
qualquer razão ao Recorrente, desde logo porque tanto a liberdade de iniciativa
privada como o direito à propriedade privada são direitos fundamentais análogos
aos direitos, liberdades e garantias.
C. Sendo uma lei reguladora da concorrência quanto à utilização de um evento
público, condicionando a organização do mercado e a liberdade de actuação das
empresas, que vai mais além da simples defesa de patentes e símbolos e
denominações existentes, o Decreto-Lei n.º 86/2004 toca, no seu âmbito de
aplicação, naqueles dois direitos fundamentais.
D. Acontece que o bem jurídico que o legislador do Decreto-Lei n.º 86/2004
pretendeu proteger – as designações e símbolos do Campeonato Europeu de Futebol
de 2004 – já se encontra protegido por lei anterior àquele diploma, em concreto,
no Código da Propriedade Industrial, no Código dos Direitos de Autor e dos
Direitos Conexos e no Código da Publicidade, como de resto resulta da
interpretação do n.º 5 do art. 5º, que prevê a aplicação das normas daqueles
Códigos, o que permite desde logo imputar ao Decreto-Lei n.º 86/2004 um juízo de
violação do princípio da igualdade, vertido no art. 13º da C.R.P..
E. O Decreto-Lei n.º 86/2004 prevê uma regulamentação especial para a situação
bastante concreta da realização do evento do Campeonato Europeu de Futebol de
2004 e fá-lo de forma indubitavelmente mais restrita do que já resultaria da
aplicação das normas gerais acima indicadas, através da previsão, nos arts. 4º e
5º, n.º 1, de um ilícito contra-ordenacional susceptível de abarcar uma
infinidade de situações, atenta a sua formulação tão genérica e a utilização de
conceitos completamente indeterminados.
F. O mencionado Diploma efectua, por conseguinte, uma efectiva restrição do
direito fundamental à iniciativa económica privada e do direito fundamental de
propriedade, acolhidos, respectivamente, nos arts. 61º, n.º 1, e 62º, n.º 1,
análogos aos direitos, liberdades e garantias, nos termos e para os efeitos do
art. 17º, bem como do direito à protecção legal contra quaisquer formas de
discriminação e do direito à liberdade e segurança, consagrados nos arts. 26º,
n.º 1, e 29º, n.º 1, e aplicáveis nos termos do art. 12º, n.º 2, todos da
C.R.P., sem que para tanto exista autorização constitucional.
G. Apesar da redacção do art. 2º do Decreto-Lei n.º 86/2004, o certo é que estão
manifestamente determinadas, por lei, as entidades que têm a seu cargo a
«organização, a promoção, a realização ou a gestão de bens, equipamentos ou
estruturas necessários a este evento desportivo» – a sociedade EURO 2004, S.A. e
a UEFA – e, por conseguinte, gozam da reserva das designações e símbolos do EURO
2004 e da protecção que o Decreto-Lei n.º 86/2004 lhes pretende conferir.
H. Ou seja, as normas restritivas de direitos, liberdades e garantias do
Decreto-Lei n.º 86/2004 que consagram um novo tipo de ilícito
contra-ordenacional não são gerais e abstractas como impõe o art. 18º, n.º 3, da
C.R.P..
I. O Decreto-Lei n.º 86/2004 não respeita, de todo, o princípio da proibição do
excesso que, estabelecido na parte final do art. 18º, n.º 2, da C.R.P.,
constitui um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador,
antes apresentando nos seus arts. 4º e 5º, n.º 1, verdadeiras normas penais em
branco, ao consagrar expressões como «utilização, directa ou indirecta, por
qualquer meio»; «sugira ou crie a falsa impressão»; «passível de criar um risco
de associação»; «utilização, directa ou indirecta»; «susceptível de criar a
falsa impressão».
J. Efectivamente, as leis sancionatórias devem ser redigidas com a maior clareza
possível para que tanto o seu conteúdo como os seus limites se possam deduzir, o
mais exactamente possível, do texto legal, isto é, o tipo de infracção deve
estar suficientemente especificado, não sendo lícito o recurso à analogia para
definir infracções e deve estar determinado o tipo de sanção que cabe a cada uma
delas, razão pela qual viola também o Decreto-Lei n.º 86/2004 o princípio da
legalidade e da tipicidade protegido pelo art. 29º da C.R.P..
K. Em termos de ponderação de interesses, o Decreto-Lei n.º 86/2004, criando uma
clara desigualdade no mercado, é desproporcional e desadequado.
L. Há ainda que salientar que, conforme ficou provado nos autos, a campanha
promocional da A. ora em questão começou a ser delineada e foi lançada muito
antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 86/2004, o que torna retroactiva a
aplicação das normas restritivas aí consagradas, em violação do art. 2º do RGCO
e do n.º 1 do art. 29º da C.R.P..
M. Finalmente, o Decreto-Lei n.º 86/2004 não foi publicado no uso de qualquer
autorização legislativa, violando também o art. 165º, n.º 1, al. b) da C.R.P.,
pelo que enferma, além de inconstitucionalidade material, com os fundamentos
supra indicados, de inconstitucionalidade orgânica.
[…].”
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. No requerimento de fls. 398 e seguintes (supra, 2.), pretende a
recorrida que ao presente recurso seja fixado o efeito meramente devolutivo e,
desse modo, alterado o despacho de fls. 395, que lhe fixou o efeito suspensivo.
Não tem, porém, razão a recorrida. Na verdade, ao presente recurso
não são aplicáveis as regras dos n.º s 1 a 3 do artigo 78º da Lei do Tribunal
Constitucional, pelo que só pode ser aplicada a regra do n.º 4, que estabelece o
efeito suspensivo do recurso.
Na verdade, o presente recurso não é um recurso de uma decisão que não admita
recurso por razões de valor ou alçada, não é um recurso de uma decisão da qual
coubesse recurso ordinário, não interposto ou declarado extinto, e, finalmente,
não é um recurso de decisão proferida já em fase de recurso. O presente recurso,
obrigatório para o Ministério Público, é necessariamente interposto, em via
directa, para o Tribunal Constitucional, estando excluída a utilização de
qualquer outro meio impugnatório ordinário. A hipótese dos autos insere-se num
dos “restantes casos”, a que alude o artigo 78º, n.º 4, da Lei do Tribunal
Constitucional, tendo consequentemente o recurso efeito suspensivo.
É de manter, portanto, o efeito que lhe foi fixado.
6. Constituem objecto do presente recurso de constitucionalidade as
normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/04, de 17 de Abril, que o
tribunal recorrido recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, por
violação do disposto nos artigos 165º, n.º 1, alínea b), 13º, 18º, 26º, 29º,
32º, n.º 10, 61º, 62º e 268º, todos da Constituição.
É o seguinte o teor dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/2004,
de 17 de Abril:
“Artigo 4º
Proibições
1 - É proibida a utilização, directa ou indirecta, por qualquer meio, de uma
firma, denominação, marca ou outro sinal distintivo do comércio por quem não
tenha obtido autorização das entidades responsáveis pela realização da fase
final do Campeonato Europeu de Futebol de 2004 que sugira ou crie a falsa
impressão de que está autorizada ou que está, de alguma forma, associada ao
evento.
2 - A proibição contida no número anterior aplica-se, também, nos casos em que a
promoção de produtos, serviços ou estabelecimentos por entidade que, não
utilizando qualquer meio previsto no artigo 3.º e ainda que reconhecendo não
estar associada ao Euro 2004, seja, ainda assim, passível de criar um risco de
associação ao evento ou às respectivas entidades promotoras, independentemente
do local ou momento em que ocorrem.
Artigo 5º
Ilícito contra-ordenacional
1 - A utilização das designações e símbolos reservados ao Euro 2004 ou qualquer
utilização, directa ou indirecta, de um sinal que seja susceptível de criar a
falsa impressão de que se trata de um sinal associado ao evento, se efectuada
com fins publicitários ou comerciais e sem autorização da entidade ou entidades
referidas no artigo 1.º, constitui contra-ordenação punível com coima de € 1000
a € 3740, se se tratar de pessoa singular, ou com coima de € 4000 a € 44890, se
o infractor for uma pessoa colectiva.
2 - A negligência é punível.
3 - A fiscalização do presente diploma compete à Inspecção-Geral das Actividades
Económicas, à Inspecção-Geral das Actividades Culturais e ao Instituto do
Consumidor, no âmbito das respectivas competências.
4 - A instrução dos processos de contra-ordenação compete:
a) Em matéria de publicidade, ao Instituto do Consumidor;
b) Em matéria de direitos de autor e dos direitos conexos, à Inspecção-Geral das
Actividades Culturais;
c) Nas restantes matérias, nomeadamente as relacionadas com a propriedade
industrial, à Inspecção-Geral das Actividades Económicas.
5 - Para a aplicação de coimas são competentes:
a) O Instituto Nacional da Propriedade Industrial para as infracções previstas
conjuntamente neste diploma e no Código da Propriedade Industrial, sem prejuízo
do disposto na alínea c) do número anterior;
b) A Inspecção-Geral das Actividades Culturais para as infracções previstas no
Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos;
c) A Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade
(CACMEP), para as restantes infracções, nomeadamente as previstas no Código da
Publicidade.
6 - A sanção prevista no n.º 1 do presente artigo é aplicada se outra mais grave
lhe não couber nos termos da lei aplicável.”
7. Analisemos, antes de mais, a questão da eventual violação do disposto
no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição – a alínea d) deste preceito
(como, aliás, se refere na sentença recorrida) não está evidentemente em
discussão, atendendo a que o diploma em causa não respeita ao regime geral dos
actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Ora, de acordo com aquela alínea b), “é da exclusiva competência da Assembleia
da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
[...] b) direitos, liberdades e garantias”.
As normas em apreciação constam de um diploma emitido pelo Governo sem
credencial parlamentar, pois que foi decretado nos termos da alínea a) do n.º 1
do artigo 198º da Constituição. Seria tal credencial exigível, por versarem as
normas em causa sobre direitos, liberdades e garantias?
Os únicos direitos fundamentais que poderiam estar em causa – e a que se faz
alusão na sentença recorrida – são o direito de iniciativa económica privada
(artigo 61º, n.º 1, da Constituição) e o direito de propriedade privada (artigo
62º da Constituição). O Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril “estabelece o
regime de protecção jurídica a que ficam sujeitas as designações do Campeonato
Europeu de Futebol de 2004, abreviadamente designado por Euro 2004, e reforça os
mecanismos de combate a qualquer forma de aproveitamento ilícito dos benefícios
decorrentes daquele evento desportivo” (artigo 1º). Ora, a aqui recorrida usou
tais designações precisamente no exercício de uma actividade económica privada.
7.1. Perspectivemos primeiro a questão à luz do direito de iniciativa
económica privada.
Como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição portuguesa anotada,
Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 620-621), o direito de iniciativa económica
privada consiste, num primeiro momento, na liberdade de estabelecimento, que é
“o direito de iniciar uma actividade económica; o direito de constituir uma
empresa; o direito, que pode ser individual e que pode ser institucional, de
organização de certos meios de produção para um determinado fim económico” e,
num segundo momento, na liberdade de empresa, que é o “direito da empresa de
praticar os actos correspondentes aos meios e fins predispostos e de reger
livremente a organização em que tem de assentar”.
As normas em apreciação não estão, como é evidente, conexionadas com a liberdade
de estabelecimento, nos moldes que ficaram descritos. Podem porventura afectar
apenas a liberdade de empresa, pois que, ao proibirem o uso de sinais associados
ao Euro 2004, interferem simultaneamente no modo de comercialização de certos
produtos e, por esta via, conformam o “direito da empresa de praticar os actos
correspondentes aos meios e fins predispostos”.
Significará isto que as normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/2004,
de 17 de Abril, na medida em que de algum modo se prendem com a liberdade de
empresa, versam sobre as matérias a que alude o artigo 165º, n.º 1, alínea b),
da Constituição?
A resposta deve ser negativa.
Na verdade, nem todas as matérias relacionadas com a liberdade de empresa se
inserem na competência legislativa reservada da Assembleia da República.
Seguramente não o são a matéria da publicidade nem a regulamentação global da
concorrência, diferentemente do que parece sustentar a sentença recorrida.
Assim, ainda que se aceite que as normas dos artigos 4º e 5º do
Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril, interferem com a publicidade e com a
disciplina da concorrência, tais normas não podem ser qualificadas como normas
atinentes a direitos, liberdades e garantias, no sentido em que esta trilogia
aparece protegida no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Com efeito, as normas em apreço no presente recurso não versam
directamente sobre a liberdade de iniciativa económica privada. E, de todo o
modo, este Tribunal tem entendido que a lei a que se refere o artigo 61º, n.º 1,
da Constituição só tem que ser uma lei parlamentar ou parlamentarmente
autorizada no que se refere aos quadros gerais e aos aspectos garantísticos
daquela liberdade (veja-se o acórdão n.º 329/99, de 2 de Junho, publicado no
Diário da República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, p. 10576 ss).
7.2. Perspectivemos agora a questão à luz do direito de propriedade privada
(artigo 62º da Constituição). Dele decorre que “os particulares, sejam pessoas
singulares ou colectivas, gozam do direito de ter bens em propriedade e, em
geral, do direito de se tornar, por actos inter vivos ou mortis causa, titulares
de quaisquer direitos de valor pecuniário – direitos reais, direitos de crédito,
direitos materiais de autor, direitos sociais ou outros” (Jorge Miranda e Rui
Medeiros, ob. cit., p. 627).
Será que as normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/2004,
de 17 de Abril – especialmente as do artigo 4º –, na medida em que vedam a
utilização de certos sinais distintivos do comércio, afectam o direito de
propriedade privada daquele que os pretende utilizar e, consequentemente, deviam
ter sido emitidas ao abrigo de autorização legislativa, nos termos do artigo
165º, n.º 1, alínea b), da Constituição?
A resposta é negativa. Como o Tribunal Constitucional afirmou no já
mencionado acórdão n.º 329/99, embora o direito de propriedade possa ser
qualificado como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, na reserva parlamentar apenas se inclui o núcleo essencial do
direito: e a esse núcleo essencial não pertencem, por exemplo, os direitos de
urbanizar, lotear e edificar.
No caso das normas ora em apreciação, não só o núcleo essencial do
direito de propriedade não é atingido, como o próprio direito de propriedade não
é atingido.
Com efeito, a tutela constitucional do direito de propriedade não
contempla a possibilidade de usufruir, sem qualquer restrição, de um bem de
natureza patrimonial. E a tese que considera necessária a autorização
parlamentar para a regulação do uso de certos sinais associados ao Euro 2004
parte do pressuposto de que qualquer pessoa é, por natureza, titular do direito
de utilizar esses sinais, representando a exigência de autorização uma regulação
desse direito preexistente. Ora a Constituição não tutela semelhante direito,
quando protege a propriedade. A autorização do uso de sinais distintivos do
comércio não é regulação de direito preexistente; a própria existência do
direito decorre de tal autorização.
Não pode, assim, considerar-se que as normas ora em apreciação
violem o disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
8. O que acabou de dizer-se significa também que – contrariamente ao que
se sustentou na decisão recorrida – as normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei
n.º 86/2004, de 17 de Abril, não representam qualquer restrição do direito de
propriedade, susceptível de ofender o disposto no artigo 62º da Constituição.
Desnecessário se torna, portanto, averiguar se as normas questionadas se
conformam com os parâmetros constitucionais a que devem obedecer as restrições
do direito de propriedade.
9. E representarão as normas em causa uma restrição constitucionalmente
inadmissível do direito à iniciativa económica privada (artigos 18º e 61º da
Constituição)?
9.1. A este respeito, é evidente que, na situação dos autos, o núcleo
essencial da iniciativa económica privada não foi afectado. Como assinala o
Ministério Público nas suas contra-alegações (supra, 3.; fls. 415-416), nada
impediu a recorrida de “exercer plena e livremente o objecto da sua actividade
comercial, colocando no mercado os géneros alimentícios que produzia: a única
restrição, decorrente das normas desaplicadas, incide sobre determinado limite
legal quanto ao conteúdo de certas e determinadas mensagens publicitárias ou
comerciais incluídas nos produtos transaccionados”.
Ainda que se admitisse que, no caso, se está perante verdadeiras
restrições, o limite previsto no artigo 18º, n.º 3, parte final, da Constituição
encontrar-se-ia, assim, manifestamente verificado.
Importa todavia assinalar, quanto a este ponto que, de acordo com o
artigo 61º, n.º 1, da Constituição, a iniciativa económica privada se exerce
livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei.
Ora, sendo o direito de iniciativa económica privada balizado, por
natureza, por esses quadros, é evidente que as normas ora em apreciação, mesmo a
admitir-se que constituam restrições, sempre encontrariam cobertura no disposto
no próprio artigo 61º, n.º 1. Ou seja: a asserção, constante da sentença
recorrida, de que “não se vislumbra qualquer autorização constitucional para
essa restrição” (fls. 375), do que decorreria a violação do disposto no artigo
18º, n.º 2, 1ª parte, da Constituição, não pode aceitar-se, pois que a própria
Constituição concebe a liberdade de iniciativa económica privada como um direito
que está sujeito, no seu exercício, ao enquadramento legalmente definido (quanto
a este ponto, veja-se, por exemplo, o que o Tribunal Constitucional afirmou no
acórdão n.º 474/89, publicado no Diário da República, II, n.º 25, de 30 de
Janeiro de 1990, p. 1025 ss).
9.2. Considera a sentença recorrida que não existe, no caso, “necessidade
de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos,
porquanto os direitos que se pretendem salvaguardar já se encontravam tutelados,
de modo geral e abstracto, em outros diplomas legais, designadamente [em
diversas disposições, que enumera, do Código do Direito de Autor e dos Direitos
Conexos, do Código da Propriedade Industrial, do Código da Publicidade]” (fls.
375 da sentença), o que redundaria em violação do disposto no artigo 18º, n.º 2,
2ª parte, da Constituição.
Não pode igualmente aceitar-se este entendimento da decisão
recorrida. As condutas a que se referem as normas dos artigos 4º e 5º do
Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril, não se encontram forçosamente previstas
no Código da Publicidade (na verdade, o artigo 5º, n.º 1, prevê expressamente a
possibilidade de a utilização dos sinais ter fins publicitários, o que significa
que pode não os ter), nem no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos
ou no Código da Propriedade Industrial, pois que tais normas não exigem o uso de
um sinal cujo direito de uso esteja atribuído a um terceiro.
9.3. Invoca depois a sentença recorrida que o Decreto-Lei n.º 86/2004 não
se configura como uma lei de carácter geral ou abstracto, não apenas porque
exclui do seu âmbito de aplicação determinadas entidades, em violação do
princípio da igualdade expresso no art. 13º da C.R.P., mas também porque viola
os princípios da legalidade e da tipicidade das contra-ordenações, visando
aplicar-se a situações concretas, cujo conteúdo não descreve com precisão,
pretendendo solucionar uma situação definida.
No que diz respeito à violação do princípio da igualdade, é
manifesta a improcedência do argumento, já que a discriminação imputada às
normas em causa, a existir, não se apresenta como infundamentada ou carecida de
suporte material adequado: com efeito, a utilização de certas designações ou
símbolos, representativos do evento desportivo em causa, exclusivamente pelas
respectivas entidades organizadoras e patrocinadoras, surge como a contrapartida
da sua participação nos custos associados à organização, promoção e realização
de tal evento desportivo.
Também não procede o argumento que consiste em atribuir carácter
retroactivo às normas dos artigos 4° e 5° do Decreto-Lei n.° 86/2004, em
violação do artigo 29° da Constituição. Com efeito, a tipificação das proibições
constantes do artigo 4° é obviamente desprovida de natureza retroactiva. Tal
norma apenas é aplicável aos actos de utilização que tenham ocorrido após a
vigência do diploma em que se insere (18 de Abril de 2004). No caso dos autos, o
que está em causa é o facto – imputado à aqui recorrida – de, em dado momento,
posterior à data da entrada em vigor do diploma (concretamente, em 18 de Maio de
2004), estarem a ser comercializados determinados produtos, em que eram
utilizadas, de modo ilegítimo, certas denominações ou símbolos.
Não ocorre, pois, qualquer violação dos artigos 18º, n.º s 2 e 3, e
13º da Constituição, nem dos artigos 29º e 32º, n.º 10, na parte em que estas
disposições constitucionais proíbem a retroactividade em matéria de
contra-ordenações.
9.4. Problema diferente do da retroactividade das normas ora em apreciação
(e, aliás, só lateralmente tratado na sentença recorrida: fls. 380, in fine)
seria o de saber se essas mesmas normas violam o princípio da confiança. Na
verdade, pode perguntar-se se a proibição delas constante frustrou legítimas
expectativas da recorrida, por lhe ter impedido, já após o lançamento da
campanha publicitária, o uso de certos símbolos e denominações.
A resposta deve ser, também aqui, negativa: como, em síntese, refere
o Ministério Público, “«a restrição» constante do Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17
de Abril, já tinha [...] a sua origem básica e matriz essencial em diploma legal
anteriormente editado [o Decreto-Lei n.º 268/2001, de 4 de Outubro],
limitando-se o Decreto-Lei n.º 86/2004 a explicitar e concretizar a «reserva» de
utilização proclamada em 2001, pelo artigo 10º, n.º 3, do citado diploma legal”
(fls. 419-420).
10. Considera ainda a sentença recorrida que as normas ora em apreciação
violam o disposto no artigo 26º da Constituição, na parte em que a todos
reconhece o direito à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação
(cfr. conclusão da sentença e fls. 371).
Não se alcança, porém, a razão de ser de tal entendimento. De
qualquer modo, se ele se prende com a invocada violação do princípio da
igualdade, valem aqui as considerações anteriormente feitas a propósito de tal
princípio.
11. Afirma-se na sentença recorrida que as normas ora em apreciação violam
o disposto no artigo 268º da Constituição (direitos e garantias dos
administrados).
A sentença recorrida não fundamenta tal asserção, nem, aliás, se vê
como podem estas normas contrariar o artigo 268º da Constituição.
12. Finalmente, lê-se na sentença recorrida que “o Decreto-Lei em apreço é
inconstitucional nos seus artigos 4º e 5º por definir ilícitos
contra-ordenacionais mediante a utilização de conceitos vagos e indeterminados,
o que está em clara violação do art. 29º da C.R.P., como também a interpretação
efectuada pelos Inspectores do IGAE, no sentido de que qualquer menção a futebol
em publicidade estava vedada por virtude da entrada em vigor do DL n.º 86/2004,
de 17 de Abril, é inconstitucional por violação do art. 18º da C.R.P.,
designadamente na sua vertente de proibição do excesso” (cfr. fls. 387).
A mencionada interpretação dos Inspectores do IGAE – que, aliás, a
sentença recorrida não reporta a qualquer preceito legal em concreto – não
constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, definido no
respectivo requerimento de interposição (fls. 393, supra, 2.), e, desde logo por
esse motivo, dela não se tomará conhecimento.
Quanto à utilização de conceitos vagos e indeterminados nos
referidos artigos 4º e 5º, que a sentença recorrida censurou, é certo que o
Tribunal Constitucional vem considerando que “o princípio da tipicidade
subentende a garantia constitucional de uma especificação dos factos que
integram o tipo legal de crime, mostrando-se, nessa medida, avesso a definições
vagas ou incertas que, nomeadamente, permitam ou proporcionem a via analógica”.
A este propósito, ponderou-se no acórdão n.º 93/2001 (publicado no
Diário da República, II série, n.º 130, de 5 de Junho de 2001, p. 9479 ss):
“[…]
[...] o princípio da tipicidade subentende a garantia constitucional de uma
suficiente especificação dos factos que integram o tipo legal de crime, sendo,
como tal, avesso a definições vagas ou incertas que proporcionem ou admitam a
via analógica.
Só que, se a norma deve ser formulada de modo ao seu conteúdo se poder impor
autónoma e suficientemente, permitindo um controlo objectivo na sua aplicação
individualizada e concreta (cfr. António Castanheira Neves, «O Princípio de
Legalidade Criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático», in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, pág.
334), nem sempre é possível alcançar uma total determinação – nem será,
porventura, desejável –, bastando que o facto punível seja definido com
suficiente certeza: a própria natureza da linguagem impede uma determinação
integral, sendo certo que pode representar-se negativamente uma enumeração
demasiado casuística, a multiplicar a eventualidade das lacunas e a dificultar a
determinação do que é essencial em cada caso.
A este respeito, escreveu um autor nunca ser o caso concreto um puro facto, «mas
uma unidade de sentidos socialmente relevante, mais ou menos complexa e
normalmente integrados por elementos culturais difíceis de definir», de modo que
a descrição de previsão legal contém muitas vezes expressões que não se deixam
reduzir a conceitos precisos (cfr. José de Sousa e Brito, «A lei penal na
Constituição», in Estudos sobre a Constituição, vol. 2º, Lisboa, 1978, págs.
243/244).
A necessidade de, na definição de crimes, se usar uma linguagem precisa e
delimitadora, com repúdio de preceitos abertos ou vagos, tem vindo a ser
jurisprudencialmente reconhecida, nomeadamente na matriz
jurídico-constitucional.
Desde logo, a Comissão Constitucional reconheceu que o princípio do nullum
crimen sine lege seria inoperante se fosse dada ao legislador ordinário a
possibilidade de não determinar com um mínimo de rigor, através do tipo legal, o
facto voluntário a considerar punível, sem prejuízo de admitir a inviabilidade
de uma total determinação e a eventual contraprocedência de um demasiado
casuísmo (assim, o Parecer n.º 19/78, publicado in Pareceres da Comissão
Constitucional, 6º volume, Lisboa, 1979, pág. 89).
Em linha consonante, o parecer n.º 32/80 (in Pareceres citados, 14º volume,
1983, pág. 60), após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou
flexibilidade normativa para os efeitos em causa, reconhece que uma relativa
indeterminação dos tipos legais de crime pode mostrar-se justificada, sem que
isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade.
De igual modo vem ponderando o Tribunal Constitucional, como são exemplo os
acórdãos n.ºs 147/99, 168/99 e 179/99, inédito o segundo, publicados os demais,
no Diário da República, II Série, de 5 e 9 de Julho de 1999, respectivamente.
Retira-se dos lugares jurisprudenciais citados que, não sendo possível a
determinação absoluta – o que a Doutrina igualmente corrobora – é
constitucionalmente compatível um certo grau de indeterminação.
No citado acórdão n.º 168/99 escreveu-se, a certo passo:
«Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto
expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da
conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para
que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas,
prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se
revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de
punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.».
Reconhece-se a impossibilidade de uma pré-determinação integral, dada a dimensão
pragmática da linguagem jurídica, a intenção normativa das prescrições
jurídicas, a índole problemático-concreta do decisório juízo jurisdicional (A.
Castanheira Neves, loc. cit., pág. 377), para, no entanto, se concluir por se
pedir à norma penal, em síntese, «que obedeça a um grau de determinação
suficiente para não pôr em causa os fundamentos do princípio da legalidade».
Assim, pode a modelação do tipo não dispensar o recurso a técnicas
exemplificativas que nem por isso, necessariamente, se pode considerar afrontada
a exigência constitucional da lege certa que o princípio da tipicidade implica.
Decerto, a valoração jurídico-criminal dos comportamentos há-de ser formulada de
maneira tanto quanto possível precisa, de modo a não restarem dúvidas quanto aos
valores protegidos e à clara definição dos elementos da infracção, como se
ponderou, por exemplo, nos citados acórdãos n.ºs 179/99 e 383/00, ainda inédito.
Ponto é que haja um «completamento normativo» (Maria Fernanda Palma, Direito
Penal – Parte Especial – Crimes contra as Pessoas, sumários policopiados,
Lisboa, 1983, pág. 49), de modo a que o critério decisivo para aferir do
respeito pelo princípio da legalidade «[...] residirá sempre em saber se, apesar
da indeterminação inevitável resultante da utilização desses elementos
(elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas e fórmulas gerais),
do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de
protecção claramente determinados», nas palavras de Jorge Figueiredo Dias
(Direito-Penal – Questões Fundamentais – A doutrina geral do crime, apontamentos
policopiados, 1996, pág. 173).
[…].”.
As considerações expendidas neste acórdão são transponíveis para o
presente caso. Com efeito, nem sempre é possível – nem será mesmo desejável –
uma determinação do tipo de tal modo acabada que se possa libertar de conceitos
“algo imprecisos”. Aliás, em certos casos, uma rigorosa enumeração casuística
poderia revelar-se contraproducente, dada a multiplicação de espaços lacunares
que inevitavelmente comportaria.
Ora, a verificação de “uma relativa indeterminação tipológica” não
significa violação dos princípios da legalidade e da tipicidade, como o Tribunal
Constitucional sublinhou no acórdão n.º 338/2003 (publicado no Diário da
República, II série, n.º 245, de 22 de Outubro de 2003, p. 15922 ss).
De todo o modo, sempre terá de existir um mínimo de
determinabilidade que permita identificar os tipos de comportamentos descritos,
na medida em que integram noções correntes da vida social, aferidas pelos
padrões em vigor. Correspondem a essa exigência conceitos como “utilização,
directa ou indirecta, por qualquer meio”, “sugira ou crie a falsa impressão”,
“passível de criar um risco de associação”, “susceptível de criar a falsa
impressão”, utilizados no preceito em análise.
Acolhem-se, assim, as considerações que, a este propósito, constam
das contra-alegações do Ministério Público (cfr. fls. 417-418):
“[…]
No caso dos autos, não vemos que a «indeterminação» subjacente aos conceitos
legais seja sequer superior à que – quer no direito penal, quer no domínio das
contraordenações – o legislador utiliza frequentemente (veja-se, por exemplo, em
matéria conexa com a situação controvertida no presente processo a tipificação
do ilícito criminal de contrafacção, imitação ou uso ilegal de marca, constante
do artigo 323° do Código da Propriedade Industrial).
Na realidade – e face ao bem jurídico tutelado – o elemento essencial do tipo
terá necessariamente a ver com a «confundibilidade» de certa marca ou sinal,
efectivamente utilizada pelo arguido, com determinado símbolo, representativo de
certa realidade ou evento, a valorar naturalmente em função da criação de uma
«falsa impressão» no destinatário da mensagem publicitária – pelo que não vemos
que a tipificação, apesar do seu carácter amplo e genérico, afecte a percepção,
pelos destinatários da norma, do núcleo essencial da conduta punível, do seu
conteúdo de desvalor a respeito da lesão ou colocação em perigo de bens
jurídicos.
Por outro lado, é irrelevante o facto, notado pela sentença recorrida, de que o
grau de indeterminação da norma pode possibilitar uma conduta errónea ou abusiva
da Administração: estando asseguradas as garantias de defesa e o direito ao
recurso, tem naturalmente o arguido a plena possibilidade de fazer sindicar – e
corrigir judicialmente o eventual erro ou abuso cometido, fazendo repercutir na
interpretação da norma a correcta ponderação do valor ou bem jurídico tutelado.
[…].”.
As normas em apreço não violam, pois, os princípios da tipicidade e
da legalidade consagrados no artigo 29º da Constituição.
III
13. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 4º e 5º do
Decreto-Lei n.º 86/04, de 17 de Abril;
b) Consequentemente, conceder provimento ao presente recurso,
determinando a reforma da sentença recorrida em conformidade com o presente
juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 6 de Julho de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício