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Processo nº 166/07
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A.,
Lda., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea
a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC), de decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de 9 de Outubro
de 2006, mediante requerimento com o seguinte teor:
«A Procuradora da República neste tribunal, não se conformando com a douta
sentença proferida nos autos em epígrafe, vem da mesma interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, por estar em tempo e ter legitimidade, recurso
obrigatório para o Ministério Público, nos termos do art° 70º nº 1 al. a) da Lei
28/82 de 15/10, restrito à questão de inconstitucionalidade decidida na
sentença, a qual recusou a aplicação da norma contida no art° 98° nº 1 do Código
do IRC, aprovado pelo DL nº 442-B/88 de 30/11, com a redacção introduzida pelo
DL 198/2001 de 03/07, norma cuja inconstitucionalidade se pretende que seja
apreciada pelo Tribunal Constitucional.
O recurso sobe imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo,
regendo-se pelo disposto nos art° 70° nº 1 al. a), 710º 72° nº 1 al. a) e nº 3,
74º, 75º, 75°-A nº 1, 76°, 78° e 79° da Lei 28/82 de 15/10».
2. Na decisão recorrida pode ler-se, para o que agora releva, o seguinte:
«5. O mérito do recurso.
(…)
Dispõe o n.º 1 do art.º 98.º do CIRC (Redacção do Decreto-lei n.º 198/2001- 3 de
Julho) que:
«Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º, os sujeitos
passivos aí mencionados, excepto os abrangidos pelo regime simplificado previsto
no artigo 53º, ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar
durante o mês de Março ou, em duas prestações, durante os meses de Março e
Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação
não coincidente com o ano civil, no 3º mês e no 10º mês do período de tributação
respectivo».
E do art.º 33.º da LGT consta a seguinte comando:
«As entregas pecuniárias antecipadas que sejam efectuadas pêlos sujeitos
passivos no período de formação do facto tributário constituem pagamento por
conta do imposto devido a final».
Por seu turno, o art.º 114.º do RGITT diz-nos o seguinte:
«1. A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período
superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da
prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável
entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o
limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de
negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será
aplicável coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa
ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
5. Para efeitos contra-ordenacionais são puníveis como falta de entrega da
prestação tributária:
(…)
f) A falta de pagamento, total ou parcial, da prestação tributária devida a
título de pagamento por conta do imposto devido a final, incluindo as situações
de pagamento especial por conta.
(…).»
E a seu tempo o n.º 5 do art.º 27.º da Lei n.º 32-B/2002 de 30 de Dezembro
estatui o que segue:
«O incumprimento do disposto no artigo 98.º do Código do IRC é punido, nos
termos da alínea f) do n.º 5 do artigo 114.º do Regime Geral das Infracções
Tributárias, com coima variável entre 50% e o valor da prestação tributária em
falta, no caso de negligência, e com coima variável entre o valor e o triplo da
prestação tributária em falta, quando a infracção for cometida dolosamente.»
Também é sabido que no , n.º 4 do art.º 26.º do RGIT estabeleceu-se esta norma:
«Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, os limites estabelecidos nos
números anteriores, os limites mínimo e máximo das coimas previstas nos
diferentes tipos legais de contra-ordenação, são elevados para o dobro sempre
que sejam aplicadas a uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente
constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada.»
Sendo as coisas assim e uma vez que a Arguida deixou de entregar nos cofres do
Estado o pagamento especial por conta a que a citada norma do art.º 98.º, n.º 1
do CIRC refere, naturalmente que a conclusão a retirar dessa situação seria a
que a Administração Fiscal retirou, a saber, o cometimento negligente da
contra-ordenação prevista e punível pelos demais normativos atrás referidos.
Acontece, porém, que o n.º 2 do art.º 104.º da Constituição da República
Portuguesa reza assim:
«A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.»
E ainda relevante se mostra o que, ao tempo, dispunha o n.º 2
do art.º 98.º do CIRC (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 107-B/2003, de
31 de Dezembro e que vigorou até à entrada em vigor da Lei n.º 60-A/2005, de
30/12, que lhe deu a actual redacção):
«O montante do pagamento especial por conta é igual a 1% do volume de negócios
relativo ao exercício anterior, com o limite mínimo de (euro) 1250, e, quando
superior, será igual a este limite acrescido de 20% da parte excedente, com o
limite máximo de (euro) 40000.»
Discorrendo sobre o citado comando constitucional, refere o Prof. Saldanha
Sanches (em Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, página 263 e seguinte), que:
«A proclamação constitucional do direito subjectivo do contribuinte a ser
tributado de acordo com o seu lucro real é uma particularidade do ordenamento
jurídico-tributário português. O legislador constitucional optou pela
consagração expressa desse direito.
(…)
Pode mesmo fazer-se um contraste entre a liberdade de conformação que tem o
legislador ordinário quanto às escolha do objecto de tributação e a escolha do
nível das taxas com a obtenção da igualdade na distribuição dos encargos
tributários que a Constituição lhe impõe: uma vez legalmente decidida a
tributação das empresas o modo como é distribuída a carga tributária entre elas
tem que respeitar o princípio da igualdade.
E isso conduz-nos às regras de determinação do valor ou da quantificação do
imposto: uma zona onde uma obrigação de resultado, a distribuição justa dos
encargos tributários, incide sobre o legislador ordinário.
E essa especifica concretização do princípio da igualdade vai exigir uma
tributação segundo o rendimento líquido objectivo o que por sua vez se vai
decompor num conjunto de sub-princípios …»
Daí que as dúvidas que sobre a questão assaltaram o Prof.
Casalta Nabais (em Direito Fiscal, 2.ª edição, 3.ª reimpressão da edição de
2003, página 263 e seguinte), as quais abaixo se sintetizam:
«Introduzido em 1998, o pagamento especial por conta foi objecto de profundas
alterações na LOE/2003. Nos termos daquele artigo na redacção dada por esta Lei,
este pagamento é igual à diferença entre o valor correspondente a l % dos
respectivos proveitos ou ganhos do ano anterior, com o limite mínimo de € 1.250
e máximo de € 200.000 e o montante dos pagamentos por conta efectuados no ano
anterior. O pagamento especial por conta, diferentemente do que acontece com os
pagamentos por conta normais (que segundo o art.º 96.° dão lugar ao imediato
reembolso caso sejam superiores ao imposto devido), será deduzido, nos termos do
art.º 87.°, ao montante apurado na declaração periódica de rendimentos do
próprio exercício a que respeita ou, se insuficiente, até exercício seguinte.
O que torna o pagamento especial por conta num empréstimo forçado ou mesmo num
imposto (na medida em que não venha a ser deduzido nos quatro exercícios
seguintes) de discutível constitucionalidade.»
Note-se que nessa mesma linha seguiram Leite de Campos, Silva Rodrigues e Lopes
de Sousa, em Lei Geral Tributária - Comentada e Anotada, 3.ª edição, página 163
(em anotação ao citado art.º 33.º da LGT), como se pode ver deste passo dali
retirado:
«As entregas em causa são qualificadas de pagamento por conta do imposto; sem se
indicar o seu regime jurídico, do qual tudo depende.
As entregas pecuniárias antecipadas poderão ser entendidas em termos de
pagamentos fraccionados do imposto sujeitos às condições resultantes da
existência e do montante deste.
Contra esta caracterização invocar-se-á, porventura, o princípio da capacidade
contributiva. Antes de verificado (completamente) o facto tributário não se sabe
sequer se há lugar a imposto. É certo que tais prestações assentam em
rendimentos passados que se presume manterem-se. Mas não se pode considerar como
facto tributário algo que não se prende com rendimentos, riqueza ou despesa
actuais.
Tais prestações antecipadas poderão ser configuradas como meros financiamentos
ao Estado. Cria-se uma conta devedora do Estado que será compensada com o
imposto a pagar.
Estaríamos, pois, nesta perspectiva perante empréstimos forçados, não se lhes
aplicando as normas dos impostos.
Na tese aposta, dir-se-á que são prestações antecipadas do imposto devido a
final. Assim, aplicar-se-lhes-iam as normas dos impostos.»
Mais definitivo se mostrou João de Avillez Ogando, no estudo
citado pela Arguida (que vimos no sítio web da Ordem dos Advogados, de onde
seguimos o link para a página
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=16885&idsc=16886&ida=16888),
o qual, inter alia, referiu:
«No que em particular diz respeito à tributação das pessoas colectivas, a
Constituição da República Portuguesa adoptou, como critério aferidor da
capacidade contributiva das empresas, o seu lucro real, ao proclamar que “a
tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento
real”(19), o que demonstra claramente que a tributação das empresas deve
basear-se fundamentalmente na sua contabilidade, o que foi aliás adoptado pelo
legislador ordinário ao consagrar que “o lucro tributável (...) é constituído
pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações positivas
e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado,
determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos
deste Código.”(20).
A determinação do lucro com base na contabilidade foi adoptada como critério de
aferição do rendimento real das empresas por ser a forma mais rigorosa de
determinar a imagem fiel do património, da situação financeira e dos resultados
das empresas, e por essa via, de apurar em atenção à sua capacidade
contributiva, a sua medida de oneração fiscal.
(…)
Até à reforma operada pelo Orçamento de Estado para 2003, não existia qualquer
dúvida de que como vimos, o pagamento especial por conta pago, com a
configuração que lhe era dada pela Lei n.° 30-G/ 2000 de 29 de Dezembro,
tinha-se transformado num verdadeiro e próprio imposto mínimo, dada a
impossibilidade de reembolso em caso de insuficiência de colecta, excepto em
situações de cessação de actividade. A verdade é que dada a sua baixa expressão
na contabilidade das empresas, o pagamento especial por conta encontrava-se
integrado no IRC, e era este que conferia legitimidade para a imposição do
pagamento especial por conta e não o contrário, sendo que quando constituía um
tributo não era contestado pela generalidade dos agentes económicos.
Ora, não temos hoje qualquer razão para sustentar entendimento diferente, pelo
que o actual regime do pagamento especial por conta continua a apresentá-lo como
um verdadeiro imposto sobre as vendas, e agora sobre os proveitos e ganhos.
Mais: com a actual configuração do pagamento especial por conta, quer no que diz
respeito à ampliação da sua base de incidência, quer no que diz respeito ao
aumento dos seus limites mínimo e máximo o método de cálculo do IRC passa a
definir-se como um conjunto de normas unicamente dirigidas à Administração
Tributária como segundo critério na cobrança de impostos sobre o rendimento das
pessoas colectivas. A utilidade das regras sobre tributação do lucro esgota-se
na questão de saber se a excepção se verifica, ou seja, se o pagamento especial
por conta foi insuficiente para cobrir uma outra colecta possível. Como segundo
critério na cobrança de impostos, o IRC passou apenas a ser uma forma de
legitimação da nova fórmula de tributação das empresas: a de um imposto
subsidiário sobre os proveitos e ganhos, pago em caso de insuficiência do lucro
tributável.
(…)
O pagamento especial por conta viola o princípio da tributação na medida da
capacidade contributiva, na sua função solidarista, ao não ter em linha de
conta—por ser calculado com a medida de uma taxa única sobre os proveitos (23) —
as diferenças económicas entre empresas, designadamente de que diferentes
sectores de actividade apresentam diferentes rácios de rentabilidade, e, por
conseguinte uma diferente capacidade para pagar imposto. Além disso, apresenta o
efeito perverso a que atrás se faz referência, de permitir às empresas que
apresentem volumes anuais de proveitos e ganhos superiores a e 20.000.000,00, de
apresentar inferiores rentabilidades dos proveitos e ganhos antes de impostos. É
do conhecimento geral, não apenas dos estudiosos das matérias económico
financeiras, que as vendas são um indicador que pode ser altamente falacioso
atenta a diversidade de actividades empresariais, uma vez que há negócios pouco
interessantes com elevadas rentabilidades de vendas mas com baixa rotação do
activo, podendo o inverso também ser verdadeiro. Quando ainda se acrescentam
outros proveitos e ganhos, sem distinção, ainda se agrava a sua iniquidade(24).
Viola ainda o princípio da capacidade contributiva na sua função garantística,
por duas vias: pois pagam em termos iguais os que podem e os que não podem
pagar, por não apresentarem rendimentos, sejam quais que não tenham forem os
seus proveitos — pois que sempre os terão ainda que não tenham lucro —, e ainda
por afastar arbitrariamente possibilidade de reembolso às empresas que sejam
susceptíveis de ser abrangidas pelo regime simplificado de tributação (25), o
que é incompreensível.
Finalmente e no âmbito do princípio da igualdade tributária, o pagamento
especial por conta viola outro seu corolário formal que é o princípio da
uniformidade na tributação, uma vez que a sua taxa é proporcional e não
progressiva (26), o que é indutor de maior desigualdade entre os contribuintes.
Como atrás se fez referência, caso se revele a insuficiência da colecta apurada
no ano a que se refere o pagamento especial por conta, o contribuinte pode
proceder à sua dedução até ao quarto exercício seguinte(27). Nesta
circunstância, o pagamento especial por conta perde a sua característica de
pagamento por conta passando a afirmar-se como uma entrega antecipada de imposto
de anos vindouros. Isto decorre aliás do disposto no artigo 33.° da Lei Geral
Tributária (28), que reforça esta ideia ao referir que os pagamentos por conta
do imposto devido a final são “entregas pecuniárias antecipadas que sejam
efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto tributário”.
E isto viola o princípio da capacidade contributiva, pois esta não é levada em
consideração — como aliás não poderia em qualquer caso sê-lo por tratar-se do
pagamento por conta — e na medida em que a capacidade contributiva de anos
vindouros não existe, por ser indeterminada e indeterminável (29).»
Diremos, por fim, que a violação do mencionado princípio
constitucional da capacidade contributiva resulta patente na seguinte
circunstância (assinalada pelo jornal Diário Económico, edição de 27-01-2006, a
propósito da última alteração introduzida no pagamento especial por conta, vista
no sítio Web daquele periódico, a saber,
http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diario_economico/edicion_impresa/impostos/pt/desarrollo/612881.html):
«Outra alteração importante a esta matéria tem ver com o facto de, pela primeira
vez desde a criação do pagamento especial por conta em 1998, pelo Decreto-Lei
n.º 44/98, de 3 de Março, o Governo Português ter tomado uma posição em relação
ao pagamento especial por conta devido pelos sujeitos passivos que apenas
aufiram rendimentos isentos de IRC.
(…) com esta alteração fica claro que o pagamento especial por conta, que até
agora era entendido como um adiantamento por conta do imposto devido a final,
também abrange os sujeitos passivos que tenham apenas rendimentos isentos de IRC
e que, de facto, podem não ter qualquer imposto devido a final.»
Ora, sendo as coisas assim e considerando que, de acordo com o
disposto no n.º 3 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa,
«ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos
termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e
cobrança se não façam nos termos da lei», impõe-se concluir que a decisão que
aplicou a coima à Arguida violou o nosso texto legislativo fundamental e por
isso se não pode manter».
3. Em 27 de Fevereiro de 2007, foi proferida decisão de não conhecimento do
recurso interposto, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, com os
seguintes fundamentos:
«Nos presentes autos levanta-se a questão de saber se podem dar-se como
verificados os requisitos do recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º
da LTC, que cabe de decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer
norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
No caso presente, da leitura integral da decisão recorrida não decorre qual seja
afinal a norma – se alguma foi – cuja aplicação o tribunal a quo recusou, com
fundamento em inconstitucionalidade. Ora, como se escreveu no Acórdão nº
530/2006, deste Tribunal (não publicado), proferido em recurso igualmente
interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC,
«É por demais sabido que o objecto dos recursos visando a fiscalização concreta
da constitucionalidade normativa é constituído por normas precipitadas no
ordenamento jurídico infra-constitucional.
(…) para que se possa abrir o recurso de constitucionalidade, haverá nela [na
decisão judicial] de ser realizado um juízo que repouse ou tenha directo reflexo
num determinado preceito desse diploma, preceito esse que, em abstracto, seria
convocável para reger o decidido».
Como na situação ali em análise, também agora é de afirmar que na decisão
recorrida não se encontra uma qualquer asserção da qual decorra, directa e
especificamente, a recusa de aplicação do preceito indicado no requerimento de
interposição de recurso. Pelo contrário, o que acaba por decorrer, de forma
directa e específica, é que a sentença que julga procedente o recurso da decisão
administrativa e que, em consequência, a anula, assenta num juízo de
inconstitucionalidade da decisão que aplicou a coima, à luz do preceituado no
artigo 103º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa:
“(…) considerando que, de acordo com o disposto no n.º 3 do art.º 103.º da
Constituição da República Portuguesa, «ninguém pode ser obrigado a pagar
impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham
natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da
lei», impõe-se concluir que a decisão que aplicou a coima à Arguida violou o
nosso texto legislativo fundamental e por isso se não pode manter”.
Não tendo a sentença recorrida recusado a aplicação de qualquer norma – imputou
a uma decisão a violação de um preceito constitucional –, é de concluir pela não
verificação de um dos requisitos do recurso previsto na alínea a) do nº 1 do
artigo 70º da LTC, o que determina o não conhecimento do respectivo objecto e
justifica a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
4. Desta decisão reclama agora o Ministério Público para a conferência, nos
termos previstos no 78º-A, nº 3, da LTC, com os seguintes fundamentos:
«1º
Afigura-se que – percorrida a linha argumentativa expendida na decisão recorrida
– esta desaplicou – ao menos de forma implícita – a norma que constitui objecto
do recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público.
2°
Na verdade, a fundamentação da decisão recorrida passa pela consideração de que
o regime legal dos pagamentos por conta, em sede de IRC, viola o princípio da
capacidade contributiva, desaplicando, consequentemente, nos termos do artigo
103°, n° 3, da Constituição da República Portuguesa, a norma que sujeita
determinadas pessoas ou entidades ao pagamento respectivo – o citado n° 1 do
artigo 98°.
3º
E ditando tal conclusão acerca da inconstitucionalidade da norma que cria a
referida obrigação de pagamento a insubsistência da contra-ordenação imputada à
entidade recorrente, sancionada pela decisão administrativa impugnada perante o
Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.
4º
Ou seja: no nosso entendimento, a anulação da decisão sancionatória da
Administração Fiscal passou necessariamente pela formulação de um precedente
juízo de inconstitucionalidade da norma fiscal que criou para a arguida a
obrigação de os sujeitos passivos, em sede de IRC, procederem aos pagamentos
especiais por conta, impostos pelo n° 1 do artigo 98° do CIRC – verificando-se,
pois, os pressupostos do recurso interposto pelo Ministério Público.
5º
Pendendo, aliás, na 2ª Secção, dois casos perfeitamente idênticos, em fase de
produção de alegações (procos. 163/07 e 189/07)».
5. Notificada, a recorrida não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão de não conhecer o objecto do recurso interposto pelo Ministério
Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, assentou na não
verificação, no caso, do requisito da recusa de aplicação de norma, com
fundamento em inconstitucionalidade.
Sustenta agora o Ministério Público que, “percorrida a linha argumentativa
expendida na decisão recorrida”, esta teria desaplicado, “ao menos de forma
implícita”, o artigo 98º, nº 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Colectivas (CIRC), aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-B/88, de 30 de
Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, cuja
redacção é a seguinte:
«Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º, os sujeitos
passivos aí mencionados, excepto os abrangidos pelo regime simplificado previsto
no artigo 53º, ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar
durante o mês de Março ou, em duas prestações, durante os meses de Março e
Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação
não coincidente com o ano civil, no 3º mês e no 10º mês do período de tributação
respectivo».
Sucede, porém, que, analisada a fundamentação da decisão recorrida, dela não
decorre um qualquer juízo de inconstitucionalidade sobre a norma fiscal que cria
a obrigação de os sujeitos passivos, em sede de IRC, procederem a pagamentos
especiais por conta.
De facto, em tal decisão não se encontra uma qualquer asserção da qual decorra,
ainda que de forma implícita, a recusa de aplicação do preceito indicado no
requerimento de interposição de recurso – o nº 1 do artigo 98º CIRC. Percorrida
a linha argumentativa da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé,
construída a partir de várias posições doutrinais, o que dela decorre é apenas
uma apreciação, designadamente à luz do disposto no nº 2 do artigo 104º da
Constituição – a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu
rendimento real –, da forma como é determinando o montante do pagamento especial
por conta. O qual é igual a 1% do volume de negócios relativo ao exercício
anterior, com o limite mínimo de € 1250, ou, quando superior, igual a este
limite acrescido de 20% da parte excedente, com o limite máximo de € 40 000,
segundo o artigo 98º, nº 2, do CIRC. Assim sendo, seria esta a norma cuja
aplicação foi recusada implicitamente e não a identificada no requerimento de
interposição de recurso.
Resta, pois, concluir pelo indeferimento da presente reclamação, mantendo a
decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Lisboa, 30 de Março de 2007
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício