Imprimir acórdão
Processo n.º 22/05
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 620 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. propôs acção ordinária contra B. e C., pedindo a condenação dos Réus a reconhecerem-na como dona e legítima proprietária (em regime de propriedade resolúvel) da fracção autónoma, identificada nos autos, com a consequente entrega da mesma livre e devoluta, e a pagarem-lhe mensalmente Esc. 200.000$00 pela ocupação ilícita, desde a citação até à efectiva desocupação do imóvel. Os Réus contestaram, deduzindo ainda o Réu B. reconvenção pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe uma quantia relativa ao reembolso de despesas relativas ao imóvel por si suportadas.
Por sentença do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras de 15 de Junho de 2001, constante de fls. 406 e seguintes, os Réus foram absolvidos do pedido, e foi julgada parcialmente procedente a reconvenção.
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 26 de Junho de 2003, de fls. 486 e seguintes, julgou parcialmente procedente o recurso, condenando os Réus a reconhecerem a Autora como dona e legítima proprietária da fracção autónoma, em regime de propriedade resolúvel, confirmando no mais a decisão recorrida.
Ainda inconformada, A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 4 de Maio de 2004, de fls. 570 e seguintes, concedeu a revista, condenando o Réu a entregar a aludida fracção autónoma à Autora, livre e devoluta, e a pagar-lhe a quantia que se liquidar em execução de sentença pela ocupação ilícita da mesma fracção desde a citação até efectiva desocupação e entrega, e absolvendo a Autora do pedido reconvencional.
Entretanto, o Réu B., após requerer o esclarecimento de uma alegada ambiguidade constante do mencionado acórdão de 4 de Maio de 2004, o que foi indeferido por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Julho de 2004, de fls. 590, veio “requerer a nulidade do Acórdão proferido”, invocando, designadamente, que o mesmo constituiu “uma verdadeira decisão-surpresa, sobre cujos fundamentos nem R. nem a A. se pronunciaram”, que “ao tal acontecer, desrespeitou-se, inaplelavelmente, o n.º 3 do citado artigo 3º do C.P.C”, deste modo “comprometendo-se, inexoravelmente, o direito constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da C.R.”.
Por acórdão de 2 de Novembro de 2004, de fls. 602 e seguintes, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação, por nulidade, do anterior acórdão de 4 de Maio de 2004, desta forma:
“Efectivamente o n.º 3 do artigo 3º do CPC determina que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar.
Ressalva, porém, o mesmo preceito, os casos de manifesta desnecessidade.
O pensamento jurídico do recorrido/reclamante encontrava-se cristalinamente expresso nos autos, dispensando, por manifestamente desnecessária, a sua audição prévia à prolação do acórdão reclamado, que não acolheu a qualificação jurídica dos factos operada pelo ora reclamante.
O artigo 137º proíbe mesmo a prática de actos inúteis.
Não tendo sido coarctado o acesso do recorrido/reclamante ao direito e aos tribunais (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), pois se podia defender e defendeu, nomeadamente em sede de recurso de revista, relativamente à subsunção jurídica dos factos assentes nos autos, acordam em indeferir a reclamação do acórdão por nulidade.”
2. Veio então B. recorrer para este Tribunal, “ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro”, dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio e 2 de Novembro de 2004, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas:
“a) Quanto ao Acórdão de 4 de Maio:
1) Dos artºs 1129º, 1137º, 1689º e 2101º, todos do C. Civil, na interpretação que, globalmente, lhe foi dada na decisão recorrida, de que o direito à utilização exclusiva da casa de morada de família atribuído ao cônjuge marido por sentença transitada em julgado em 4.12.85 e proferida no processo que correu termos com o n.º 4516/83, 2º Juízo, 1ª Secção, do Tribunal de Família de Lisboa, se traduziu num mero comodato que vigoraria após o divórcio, com a obrigação de o R. restituir a casa de família com o trânsito em julgado da sentença de partilha, sendo certo que, após isto, a utilização da dita casa pelo R. se deveu a mera tolerância da A.
2) Do artº 334º do C. Civil, na interpretação de que se, porventura, assistisse ao R. direito a metade do que despendeu até à adjudicação da fracção autónoma, em partilha, à autora e, depois, à totalidade do que gastou até à Contestação/Reconvenção, seria ilegítimo o exercício desse suposto direito por manifestamente contrário aos limites impostos pela boa fé. b) No que se refere ao Acórdão de 2 de Novembro: Do artº 3º, n.º 3, ex vi do artº 137º, ambos do C. P. Civil, com a interpretação que lhes foi dada por este Acórdão.”
As normas dos artigos 334º, 1129º, 1137º, 1689º e 2101º do Código Civil seriam inconstitucionais por violação do artigo 2º da Constituição, sendo a norma do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil inconstitucional por violação do artigo 20º da Constituição.
3. O Tribunal Constitucional não pode, porém, conhecer do presente recurso.
Em primeiro lugar, e no que respeita aos artigos 334º, 1129º, 1137º,
1689º e 2101º do Código Civil, porque resulta do modo como o recorrente, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, formula as questões de constitucionalidade, como indissociáveis das circunstâncias do caso concreto, que a acusação de inconstitucionalidade é dirigida, não a quaisquer normas, mas
à decisão recorrida, em si mesma.
Na verdade, o recorrente não indica, relativamente aos diversos preceitos, o sentido com que foram interpretadas as normas nele contidas, e que considera inconstitucionais, de forma a que o Tribunal Constitucional possa apreciar da sua conformidade com a Constituição; diferentemente, antes aponta, em globo, os preceitos que considera terem sido aplicados pelo acórdão recorrido e, descrevendo o conteúdo da decisão, acusa-os de inconstitucionalidade.
Ora, como resulta da Constituição e da lei e o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa destina-se a apreciar a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, e não das próprias decisões que as apliquem (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
4. No que respeita ao “artº 3º, n.º 3, ex vi do artº 137º, ambos do C. P. Civil, com a interpretação que lhes foi dada” pelo acórdão de 2 de Novembro de 2004, poderia o Tribunal Constitucional convidar o recorrente, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, a definir que norma, contida naquele preceito, considera inconstitucional, a fim de ser possível a sua apreciação.
A verdade, todavia, é que o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade dessa mesma norma “durante o processo”, como exige a al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
Com efeito, no requerimento de arguição de nulidade do acórdão de 4 de Maio de 2004, o recorrente afirma que o n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil foi violado, e que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar em determinado sentido sem prévia audição, comprometeu “o direito constitucional do acesso ao direito e aos tribunais”.
Tratando-se, este, de um obstáculo inultrapassável, não se convida o recorrente a indicar a definição já referida.
5. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.».
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária, mas pronunciando-se apenas quanto ao não conhecimento relativo ao “artº 3º, n.º 3, ex vi do artº 137º, ambos do C.P.Civil”.
Em seu entender, e contrariamente ao firmado na decisão reclamada,
“suscitou a inconstitucionalidade, em arguição de nulidade”, não lhe tendo sido possível colocá-la antes, por ter sido surpreendido pela decisão recorrida, “de conteúdo imprevisível”.
Explica depois desenvolvidamente por que razão considera que o Supremo Tribunal de Justiça julgou a causa de forma imprevisível, violando o n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil e provocando uma nulidade enquadrável no n.º 1 do artigo 201º do Código de Processo Civil e,
“simultaneamente, compromete[tendo] o direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artº 20º da C.R.”.
Finalmente, diz que arguiu tal nulidade, que foi indeferida, e que, na altura, invocou a “inconstitucionalidade cometida, pois foi este o primeiro momento em que se teve conhecimento da mesma”. Do acórdão que indeferiu a arguição de nulidade recorreu para o Tribunal Constitucional, “por violação do artº 20º da C.R.P., na interpretação que este Acórdão fez do disposto no artº
3º, n.º 3, do C.P.C., ao concluir que, no processo em questão, a lei dispensa a audição das partes em caso de manifesta desnecessidade, o que seria o caso vertente”.
A recorrida pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
3. Cumpre apreciar a reclamação. E cabe esclarecer que a razão pela qual a decisão reclamada não conheceu do recurso não foi a de que o requerimento de arguição de nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 570 não era em si o meio oportuno de suscitar a inconstitucionalidade. Com efeito, estando em causa um preceito cuja violação é, em abstracto, apta a provocar nulidade, se o requerente invocar a inconstitucionalidade de uma norma nele contida, o tribunal deve conhecer da questão; assim, se for seguidamente interposto recurso para o Tribunal Constitucional para a apreciação da mesma inconstitucionalidade normativa, deve considerar-se oportunamente cumprido o
ónus de suscitar a inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) do n.º 1 do artigo 70º e n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
O fundamento pelo qual a decisão reclamada não conheceu do recurso foi, antes, o de que o ora reclamante não suscitou a inconstitucionalidade de nenhuma norma que o Supremo Tribunal de Justiça tenha extraído do n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil “durante o processo”, como exige a al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
E, na verdade, da leitura do requerimento de arguição de nulidade resulta claramente que o ora reclamante se limitou a acusar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de ter violado tal preceito e de, assim, pôr em causa o artigo 20º da Constituição.
Não cumpriu, assim, o ónus de suscitar a inconstitucionalidade da norma que pretende que que o Tribunal Constitucional aprecie – norma, aliás, que nem no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade define, como também já se apontou.
O sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade apenas permite que o Tribunal Constitucional aprecie normas, e não decisões judiciais acusadas de ser inconstitucionais.
Não merece, pois, censura a decisão reclamada.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 7 de Março de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício