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Processo n.º 174/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A fls. 238 e seguintes, foi proferida decisão sumária no sentido do
não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e
outros, com os seguintes fundamentos:
“[...]
No requerimento de interposição do presente recurso (supra, 7.), não procedem os
recorrentes às especificações a que alude o artigo 75º-A da Lei do Tribunal
Constitucional.
Não se justifica, porém, proferir despacho de aperfeiçoamento ao abrigo do n.º 6
do referido artigo 75º-A, atendendo a que, do teor do requerimento, resulta com
clareza que o recurso concretamente interposto é o previsto no artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional e que os respectivos
pressupostos processuais não se encontram preenchidos.
E não se encontram preenchidos porque é evidente que os recorrentes não
suscitaram, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa – isto é, qualquer questão de inconstitucionalidade de uma norma, ou
de uma norma, numa certa dimensão interpretativa –, o que é exigido pelos
artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Não obstante no texto do despacho que admitiu o presente recurso (a fls. 230) se
poder ler que «está suscitada a inconstitucionalidade da interpretação feita a
respeito do art. 1349º-1 do C.C.», a verdade é que nas alegações para a Relação
(supra, 3.) os ora recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade da norma
contida nesse preceito ou de alguma interpretação desse preceito – nem de resto
a tinham suscitado em momento anterior do processo (ou seja, na contestação,
supra, 1.).
A única inconstitucionalidade que os ora recorrentes suscitaram no processo foi
a do próprio acórdão da Relação que julgou a apelação (supra, 5.). Ora, suscitar
a inconstitucionalidade de uma decisão não significa obviamente suscitar a
inconstitucionalidade de uma norma ou de uma interpretação normativa aplicada
numa decisão. Aliás, o Tribunal Constitucional não tem poderes para apreciar a
inconstitucionalidade de decisões, em si mesmas consideradas (cfr. as várias
alíneas do artigo 70º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional).
Além do mais, os recorrentes só suscitaram tal inconstitucionalidade num momento
em que o poder jurisdicional do tribunal recorrido já se havia extinguido, pois
que o acórdão que julgara a matéria da causa já fora proferido (artigo 666º, n.º
1, do Código de Processo Civil). Portanto, ainda que se admitisse que os
recorrentes suscitaram uma questão de inconstitucionalidade normativa – e não,
como na realidade sucedeu, uma questão de inconstitucionalidade de uma decisão
–, sempre o teriam feito num momento tardio, pelo que o ónus a que se refere o
artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional nunca poderia
ser considerado cumprido (cfr. o artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei).
Não tendo os recorrentes suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa durante o processo, conclui-se que não se mostra preenchido um dos
pressupostos processuais do presente recurso, pelo que não é possível conhecer
do respectivo objecto.
[...].”.
2. Notificados dessa decisão, vieram A. e outros reclamar para a
conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal
(requerimento de fls. 252 e seguintes), invocando, para o que aqui releva, o
seguinte:
“[...]
3 - Uma vez que a Mma Relatora não se considerou satisfeita com o requerimento
de interposição, a primeira questão que se terá de levantar, se bem se pensa, é
da falta de convite para aperfeiçoamento daquele requerimento, nos termos dos
n.ºs 5 e 6 do art.º 75º-A da Lei deste Tribunal Constitucional.
4 - E tanto mais que a Mma Relatora concluiu, sem isso, que os respectivos
pressupostos processuais não se encontram preenchidos, do que se pede licença
para discordar inteiramente.
5 - Além do mais, ter-se-á até cometido um manifesto excesso interpretativo em
prejuízo dos recorrentes.
Vejamos:
6 - Os quais suscitaram, sim, durante o processo, a questão muito concreta da
inconstitucionalidade de uma norma – numa certa dimensão interpretativa.
7 - E fizeram oportunamente, se bem pensam, durante o decorrer do processo, logo
que tal dimensão interpretativa nele surgiu pela primeira vez!
8 - Referimo-nos, concretamente, à inesperada interpretação surgida, ex-novo (só
no Tribunal da Relação do Porto), no acórdão parcialmente revogatário da douta
sentença da 1ª instância, do art.º 1349º n.º 1 do C.C..
Interpretação essa que corresponde à revogação do preceito, como é fácil de ver!
9 - Pois não havia já a possibilidade de recurso ordinário mormente para o STJ;
e apenas restava por isso a possibilidade legal de suscitar a nulidade, a
ilegalidade e a inconstitucionalidade do acórdão na própria Relação.
10 - Logo se tendo indicado, de resto, os vários preceitos constitucionais
violados, na óptica dos ora recorrentes, então recorridos, como dos autos se vê.
11 - Afirmou-se inclusive que a surpreendente interpretação feita na 2ª
instância violava além do mais os art.ºs 161º, c), e 203º da Constituição (este
na parte em que sujeita os Tribunais à Lei).
12 - Pensa-se por tudo isto (além do mais óbvio) que o recurso tem pernas para
andar; e que os ora reclamantes devem no mínimo ser convidados a proceder ao
aperfeiçoamento do seu requerimento de interposição do recurso, aliás já
fundamentadamente admitido na Relação.
13 - No mínimo, deverão poder alegar, enquanto recorrentes; pois, insiste-se, o
inequívoco termo «indispensável» do art.º 1349º, n.º 1 do Cód. Civil não
consente nem pode consentir (enquanto se mantiver) qualquer interpretação
pretensamente redutora!
14 - «Indispensável» é literalmente, o que lhe corresponde, num qualquer
dicionário.
15 - Restringi-lo é revogá-lo, mesmo a pretexto de uma pretendida função social
do direito de propriedade que o art.º 62º da Constituição da República não
indica de resto.
[...].”.
3. Decorrido o prazo, os recorridos José Dias de Sousa e mulher não
responderam à reclamação apresentada (cota de fls. 263).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Os ora reclamantes interpuseram o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, “tendo por objecto as diferentes inconstitucionalidades por si
suscitad[a]s, mormente com a interpretação feita do art.º 1349º n.º 1 do C.C.,
que se julga manifestamente ilegal e contrária aos art.ºs 161º, c, 203º e 30º,
n.º 2 da Constituição da República, entre os mais aplicáveis” (cfr. o respectivo
requerimento de interposição, a fls. 227 dos presentes autos).
Na decisão reclamada, entendeu-se que os recorrentes não suscitaram,
perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa a propósito da disposição que agora pretendem
submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional. Como tal, e sem necessidade
de analisar a verificação dos restantes pressupostos processuais do recurso
interposto, concluiu-se não ser possível conhecer do respectivo objecto e
proferiu-se decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da
LTC, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
5. Na reclamação agora deduzida, os reclamantes pretendem demonstrar que
suscitaram a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado,
pois que, em seu entender, não lhes era exigível o cumprimento do ónus de
suscitar tal questão antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal que
proferiu a decisão recorrida.
Sustentam ainda que “devem no mínimo ser convidados ao
aperfeiçoamento do seu requerimento de interposição do recurso” e que o recurso
foi “fundamentadamente admitido na Relação”.
6. Reafirma-se que os ora reclamantes não suscitaram, durante o
processo, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 1349º, n.º1, do Código
Civil.
Basta, de resto, atentar no texto das contra-alegações produzidas
perante o Tribunal da Relação do Porto (e só essa peça processual importa
considerar, tendo em conta a exigência feita pelo artigo 72º, n.º 2, da Lei do
Tribunal Constitucional), para concluir que os ora reclamantes se limitaram a
manifestar a sua concordância relativamente à decisão proferida pelo Tribunal
Judicial da Comarca de Paredes e a afirmar que “o citado n.º 1 do art.º 1349º do
C.C., faz obstáculo intransponível à pretensão dos AA (inimizados com os RR e
que apenas visam vexá-los com o presente pleito)”.
E mesmo no requerimento em que vieram arguir a nulidade do acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação do Porto (fls. 195 e seguintes), os ora
reclamantes apenas sustentaram a inconstitucionalidade e a ilegalidade do
acórdão (fls. 195 a 197 e 200).
Aliás, até no próprio texto da reclamação deduzida perante o
Tribunal Constitucional os reclamantes afirmam que “apenas restava por isso a
possibilidade legal de suscitar a nulidade, a ilegalidade e a
inconstitucionalidade do acórdão na própria Relação” (itálico aditado agora).
7. Por outro lado, entende-se que, na aferição do preenchimento dos
pressupostos processuais exigidos pelos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º,
n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não é possível considerar os ora
reclamantes desonerados do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade
antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo.
Com efeito, tendo em conta as circunstâncias do processo e,
designadamente, a questão jurídica suscitada nos autos e no recurso de apelação,
verifica-se que eles tiveram oportunidade processual de suscitar tal questão em
momento anterior ao do requerimento de arguição de nulidade do acórdão da
Relação (concretamente, nas contra-alegações apresentadas perante o Tribunal da
Relação do Porto, em resposta às pretensões formuladas pelos autores, então
recorrentes, aqui recorridos, que propugnavam, quanto à norma agora impugnada, a
interpretação que veio a ser acolhida na decisão sob recurso).
Na verdade, a questão jurídica suscitada nos autos e no recurso de
apelação centrava-se no pedido de autorização, ao abrigo do disposto no artigo
1349º do Código Civil, para que os autores (aqui recorridos), ou trabalhadores a
seu mando, acedessem a um prédio dos réus (aqui recorrentes e ora reclamantes),
de modo a permitir a realização de obras num prédio dos autores. Sempre esteve
em causa no presente processo a norma do artigo 1349º do Código Civil. Se a
aplicação que de tal norma se fez na 1ª instância foi favorável aos réus, aqui
recorrentes, nem por isso eles ficaram dispensados do ónus de suscitar uma
eventual questão de inconstitucionalidade quanto a entendimento diferente – o
entendimento perfilhado pelos autores, recorrentes para a Relação –, tendo em
vista a interposição de um recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional.
8. Na reclamação deduzida, os reclamantes sustentam que “devem no mínimo
ser convidados ao aperfeiçoamento do seu requerimento de interposição do
recurso”.
Ora, a este respeito, importa começar por distinguir entre os
pressupostos do recurso de constitucionalidade, tal como se encontram enunciados
nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e
os requisitos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade,
a que se refere o artigo 75º-A da mesma Lei.
No caso sub judice, decidiu-se não tomar conhecimento do recurso por
não estarem verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto
na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a única
alínea susceptível de ser invocada no caso dos autos, muito embora não tenha
sido indicada no respectivo requerimento de interposição –, tal como prevê o
artigo 78º-A, n.º 1, da mesma Lei.
Ainda que os ora reclamantes tivessem indicado no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade a alínea do n.º 1 do artigo 70º
da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual o recurso é interposto, e a
interpretação atribuída à norma que pretendem que o Tribunal aprecie (requisitos
do requerimento de interposição do recurso), o recurso não poderia ser admitido,
por falta de pressupostos processuais.
Com efeito, e como se ponderou na decisão sumária impugnada, os ora
reclamantes não suscitaram, durante o processo – isto é, não suscitaram de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida –,
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse servir de base a
um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Por isso se considerou que seria inútil ordenar a notificação dos
ora reclamantes, nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal
Constitucional, para completarem o requerimento de interposição do recurso. Aos
ora reclamantes seria porventura possível indicar os elementos em falta no
requerimento, mas não lhes seria certamente possível suprir a falta dos
pressupostos processuais típicos do recurso interposto; isto é, no caso, não
lhes seria possível suprir a falta de invocação, durante o processo, da
inconstitucionalidade da norma em que se fundamentou a decisão recorrida.
9. Sublinhe-se, por último, que a decisão do Desembargador Relator que
no Tribunal da Relação do Porto admitiu o recurso para este Tribunal não vincula
o Tribunal Constitucional, conforme expressamente dispõe o artigo 76º, n.º 3, da
LTC.
10. Conclui-se assim que, não tendo sido suscitada pelos ora reclamantes,
de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade reportada
à norma identificada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional, não pode conhecer-se do objecto do presente recurso.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, que não
tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 24 de Maio de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos