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Processo n.º 918/04
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. A., actualmente denominada A. (ora recorrente), interpôs no Supremo Tribunal
Administrativo recurso contencioso do despacho do Secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais (ora recorrido), de 7 de Agosto de 1996, que, no uso de
competência delegada, desatendeu o recurso hierárquico interposto para o
Ministro das Finanças da decisão do Director Geral das Contribuições e Impostos
que considerou dever acrescer à matéria colectável em IRC, relativa ao exercício
de 1991, determinada quantia. Aquele Supremo Tribunal, por acórdão da 2ª Secção
de Contencioso Tributário, de 21 de Janeiro de 2003, negou provimento ao
recurso.
2. Inconformada com esta decisão, a ora recorrente, recorreu para o Pleno da
Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, tendo, na
alegação aí apresentada, concluído, para o que agora releva, o seguinte:
“[...] 6ª. Conjecturando, por via dedutiva, que aquele acto se louvou na
fundamentação constante do Relatório da Inspecção Geral de Finanças (cfr.,
87-supra), está o mesmo inquinado de vício de violação de lei por ofensa aos
arts. 106°, n° 2 da CRP, 3º do CPA e 17º, al. a) do CPT; o art. 57° do IRC é
manifestamente inconstitucional, por isso que a sua aplicação assenta no
preenchimento arbitrário pela Administração de cláusulas gerais indeterminadas
que contraria o princípio da legalidade fiscal.
7ª. A alteração da matéria colectável relativa aos exercícios de 1990 e 1991 foi
efectuada com base no mesmo relatório da Inspecção Geral de Finanças,
alicerçando-se nos mesmos factos, critérios e pressupostos;
8ª. A correcção da matéria colectável referente ao ano de 1990 veio a ser
anulada, na sequência do provimento concedido ao recurso hierárquico interposto
pela ora Recorrente, com o fundamento de “não ter ficado provado que os preços
praticados foram superiores aos que normalmente seriam acordados entre entidades
independentes”
9ª. Por sua vez, o processo de contra-ordenação instaurado pelas infracções
pretensamente cometidas a esse título (prática de preços superiores aos de
mercado ) nos exercícios de 1990 e 1991 foi mandado arquivar pela Administração
com fundamento na conclusão de que “não foi demonstrado na acusação que os
valores mencionados e pagos à sociedade excederam o valor médio apurado para as
empresas prestadoras de serviços”;
10ª. Tendo as duas supracitadas decisões da Administração resultado da
apreciação dos mesmos factos e da aplicação das mesmas regras legais, a
aceitação do valor facturado em 1990 impõe que, mutatis mutandis, seja aceite o
valor facturado (para mais inferior) em 1991;
11ª. O acto administrativo impugnado integra, por conseguinte, uma flagrante
violação dos princípios da boa fé, da certeza e segurança jurídicas, da
igualdade, da justiça e da imparcialidade;
12ª. Viola o princípio da boa fé (art. 6°-A do CPA), que veda à Administração a
assunção de comportamentos contraditórios com uma sua decisão anterior, em
termos de incorrer em venire contra factum proprium;
13ª. Viola o princípio constitucional da protecção da confiança, por isso que,
em face do critério anterior da Administração, a Recorrente foi colocada na
situação objectiva de acreditar que o preço pago pelo contrato de prestação de
serviços celebrado em 1991 seria tido como conforme aos preços normalmente
praticados no mercado; confiança que, à luz da orientação perfilhada pela
Administração relativamente ao preço do contrato outorgado em 1990, se revelava
materialmente justificada;
14ª. Viola o princípio da igualdade (art. 13° da Constituição e art. 5° do CPA)
porquanto consubstancia um comportamento dual e contraditório relativamente à
Recorrente, traduzido na adopção de uma resolução diferente face a elementos de
ponderação fáctico-jurídicos iguais; ora, a Administração está obrigada a
proceder de modo igual em relação a situações iguais; se agiu de uma forma para
uma terá de agir da mesma forma para outra;
15ª.Viola o princípio da justiça e da imparcialidade (art. 266°, no2 do CRP):
adoptada uma determinada orientação, por se entender que ela respondia pela
positiva à exigência da lei, a Administração acha-se vinculada a mantê-la em
circunstâncias iguais e em relação à mesma entidade pelo que o acto impugnado
não podia contrariar na fixação da matéria colectável de 1991 o critério que fez
seu relativamente ao exercício de 1990;
16ª. A aplicação nos autos do art. 57° do CIRC com o entendimento professado, em
clara contradição com o comportamento anterior da Administração Fiscal, viola os
princípios constitucionais enunciados nas conclusões 11º , 12, 13°, 14° e 15°
supra; [...]”
3 – O Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal
Administrativo, por acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, decidiu negar provimento
ao recurso. Na fundamentação dessa decisão, ponderou aquele Tribunal:
“[...] Na conclusão 6ª alega a recorrente ter sido violado o princípio da
legalidade tributária, hoje com assento no art.º 103, n.º 2 do C.R.P., 3º do
C.P.A e 17º al. a) do C.P.P.T., por inconstitucional ser o art. 57º do C.I.R.C.
na versão então em vigor, porquanto “a sua aplicação assenta no preenchimento
arbitrário de cláusulas gerais indeterminadas que contraria o princípio da
legalidade fiscal”.
Certo é, porém, como já considerou o T.C. (Ac. 756/95, in D.R. II, de 27/3/96)
ser legítimo do ponto de vista constitucional a utilização de conceitos
indeterminados em matéria fiscal; isto é o princípio da legalidade tributária,
concretizado no princípio da determinabilidade, não inviabiliza cláusulas
gerais, conceitos jurídicos indeterminados, conceitos tipológicos que atribuam à
Administração uma margem de violação.
E também já afirmou o Tribunal Constitucional “quando a lei usa conceitos
jurídicos indeterminados, embora daí resulte que a Administração vem a
beneficiar de uma certa margem de liberdade de apreciação, não haverá ofensa da
Constituição desde que os dados legais contenham uma densificação tal que possam
ser tidos pelo destinatário da norma como elementos suficientes para determinar
os pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os
tribunais a proceder ao controlo de adequação e proporcionalidade de actividade
administrativa assim desenvolvida”.
Não se afigura que da imposição constitucional constante do princípio da
legalidade tributária decorra que tais pressupostos de aplicação do normativo
impugnado legalmente estabelecidos se mostrem insuficientemente densificados,
atentas as especificidades do domínio fiscal, onde frequentemente e em sede do
exercício dos poderes do controlo se terá de recorrer a conceitos indeterminados
e ao contributo de elementos de carácter técnico para fundar as decisões da
Administração na prossecução do interesse público expresso numa correcta
tributação dos agentes económicos” (v.Ac.T.C. n.º 233/94, de 10/3, in D.R. II,
de 27/8/94).
Ora, como salienta o Exmº Magistrado de M.ºP.º, o art.º 57º do CIRC, na versão
em análise, “exprime uma densificação dos pressupostos legais do exercício de
poderes discricionários conferidos à AT, que impede uma actuação arbitrária de
difícil sindicabilidade”; daí que não seja inconstitucional, não violando o
princípio da legalidade tributária nem, tão pouco, os artºs 3º do C.P.ª e 17º
al. a) do C.P.T., que também o consagram (v. neste sentido o Ac. S.T.A (Pleno)
de 19/3/03, dec. 19858).
Nas conclusões 7ª a 16ª afirma a recorrente que o acto recorrido violou os
princípios da boa fé, da certeza e segurança jurídicos, da igualdade, da justiça
e da imparcialidade.
A este propósito e fazendo apelo aos artºs 713º e 726º do C.P.Civil, concorda-se
com os fundamentos da decisão recorrida e com a respectiva decisão que julgou
não ocorrer a violação dos apontados princípios, assim improcedendo as ditas
conclusões. [...]”
4. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, através de um
requerimento do seguinte teor:
“[...], não se conformando com o douto Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso
Tributário de fls. ... proferido em 4.2.04, e que foi mantido na íntegra em
virtude da decisão de indeferimento prolatada no pedido de reforma suscitado a
fls. ..., dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz ao
abrigo das disposições conjugadas dos arts. 70º, n.º 1, al. b), n.º 2, 69º, 72º,
n.º 1, al. b), n.º 2, 75º e 75.º-A, todos da Lei do Tribunal Constitucional, n.º
28/82, de 15.11, (LTC).
Em cumprimento do disposto no n.º 2 do art. 75º-A da LTC mais se indica
expressamente que o presente recurso tem por base a fiscalização concreta da
constitucionalidade do art. 57º do CIRC (na redacção em vigor à data dos factos
dos autos, aplicável in casu) tendo em conta a sua aplicabilidade na decisão
recorrida:
a. quer porque se trata de uma norma de previsão em branco, contendo conceitos
vagos e imprecisos, sem qualquer definição de critérios de direito positivo para
a sua concretização, sendo que a sua aplicação assenta no preenchimento
arbitrário pela Administração Fiscal de cláusulas gerais indeterminadas, o que
viola os princípios e normas constitucionais da legalidade fiscal (art. 106º,
n.º 2, CRP, na redacção em vigor à data dos factos dos autos, aplicável in
casu), da certeza, da segurança jurídica e da confiança (art. 2º da CRP);
b. quer ainda por a decisão recorrida, na interpretação e aplicação que fez do
citado normativo (art. 57.º do CIRC) ter violado os princípios constitucionais,
da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa fé, da igualdade e da
imparcialidade. consagrados nos arts. 2º, 13º, 266º, nº1 , nº2, da Constituição.
As questões de inconstitucionalidade daquela norma no sentido supra exposto
foram já suscitadas, entre o mais, nas Alegações de Recurso de fls. para o Pleno
da Secção do Contencioso Tributário do STA. [...]”
5. Já neste Tribunal proferiu o relator o seguinte despacho:
“Tendo em atenção que, estando em causa a própria decisão recorrida em si mesma
considerada, não há lugar, como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, ao
recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal, e
que, em rigor, o que a recorrente questiona, no ponto b. do seu requerimento de
interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, não é uma determinada
dimensão normativa do disposto no artigo 57º do Código do Imposto sobre o
Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC) – dimensão que, aliás, de todo em todo,
não identifica -, mas, quando muito, o resultado concreto a que o tribunal
recorrido terá chegado na decisão do caso, limitar-se-á o objecto do presente
recurso apenas à apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 1
do artigo 57º daquele Código, na redacção em vigor à data dos factos dos autos,
cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente nas alegações de
recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal
Administrativo.
Com esta limitação, notifique-se para alegações.”
6. A recorrente alegou, então, tendo concluído da seguinte forma:
“1ª. O art. 57º, n.º 1, do CIRC - na redacção em vigor à data dos factos - é
inconstitucional, por isso que a sua aplicação assenta no preenchimento
arbitrário pela Administração de cláusulas gerais indeterminadas o que contraria
o princípio da legalidade fiscal;
2ª. Do referido normativo, não consta a necessária e imprescindível densificação
dos conceitos indeterminados utilizados na sua redacção, nem sequer dele constam
os critérios que permitam a sua concretização e que, ao mesmo tempo, sirvam de
balizas à actuação da administração fiscal;
3ª. Designadamente, da redacção do art. 57º, n.º 1 do CIRC não se retira o que
deve ser entendido por relações especiais, pessoas independentes ou condições
normalmente acordadas; como não se alcança, entre o mais, quais os critérios,
sucessivos ou cumulativos, para determinar aquelas relações especiais, as
operações comparáveis, o grau de comparabilidade, os métodos e as regras que
permitam determinar os preços de mercado;
4ª. Deste modo, a redacção do art. 57º, n.º 1, do CIRC, ao fazer uso de
conceitos indeterminados e ao não estabelecer, com rigor e precisão, os
elementos acima enunciados, viola o disposto no art. 103º, n.º 2, à época art.
106º, n.º 2, da CRP que estatui que os impostos apenas podem ser criados por lei
a qual deve conter todos os elementos essenciais, designadamente a incidência, a
taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes;
5ª. O art. 57º, n.º 1, em causa porque permite uma correcção da matéria
colectável sem a sujeição da administração fiscal a um procedimento concreto e
definido, sem qualquer margem de discricionariedade ou desvio de uma actuação
uniforme e não assegurando ab initio o cumprimento dos postulados
constitucionais que versam sobre a matéria, viola os princípios constitucionais
da tributação do rendimento real, da proporcionalidade, da proibição do excesso,
da igualdade, da justiça, da segurança e confiança jurídica e é, por isso,
inconstitucional – cfr., arts. 106º, n.º 2 (actual art. 103º, n.º 2 n.º 3) e
107º, n.º 2 (actual art. 104º, n.º 2), 18º, 13º, 2º e 1º da CRP.
6ª. Desde logo, porque os contribuintes, em face da sua redacção deficiente e
insuficiente, estavam impedidos de avaliar, aprioristicamente, se a sua actuação
era, ou não, conforme à lei e era, ou não, susceptível de conferir à
administração fiscal o direito de, ao abrigo daquele normativo, proceder à
correcção da sua matéria colectável, ficando à mercê dos entendimentos
discricionários da administração fiscal – o que consubstancia uma violação do
princípio da segurança e certeza jurídica e protecção da confiança constante do
art. 2º da CRP;
7ª. Depois, porque ao atribuir à própria administração fiscal o poder de,
livremente e sem qualquer limite, efectuar o preenchimento dos conceitos
indeterminados constantes do n.º 1 do art. 57º permitindo-lhe estabelecer e
escolher sem qualquer restrição os critérios que entenda necessários para o
efeito; em face da ampla liberdade que lhe é conferida nesta matéria nada impede
a administração fiscal de tratar de modo diferente situações iguais; sabendo-se
que a repartição dos impostos pelos cidadãos deve obedecer a um critério
idêntico para todos, em face da vacuidade da norma e da ampla liberdade da sua
conformação pela administração fiscal, não fica assegurado o princípio da
igualdade e da proporcionalidade;
8ª. Não assegurando, a pari, que os contribuintes venham a ser tributados pelos
rendimentos efectivamente auferidos;
9ª. As alterações legislativas protagonizadas nesta matéria pela Lei n.º
30-G/00, de 29.12, ao evidenciarem a falta de densificação do n.º 1 do artigo
57º na redacção em vigor à data dos factos, contribuem para reforçar a conclusão
da sua inconstitucionalidade;
10ª. Inconstitucionalidade que sai ainda reforçada pelo facto de a norma em
causa não assegurar o cumprimento dos postulados constitucionais da igualdade,
da segurança e certeza jurídica e da protecção da confiança como resulta da
actuação in casu da administração fiscal e dos Tribunais: perante os mesmos
factos, no âmbito de uma reclamação hierárquica dirigida à correcção à matéria
colectável efectuada pela administração fiscal em relação ao ano de 1990 e no
processo contraordenacional instaurado pelas infracções supostamente cometidas
pela prática de preços superiores ao mercado nos exercícios de 1990 e 1991,
concluiu-se que não ficou demonstrado que os valores pagos pela recorrente à B.
excediam o valor de mercado; ao invés, sem qualquer outro elemento probatório
que não aqueles considerados nas duas decisões acima descritas, em relação às
correcções da matéria colectável referentes ao ano de 1991, considerou-se in
casu preenchido o requisito em causa - existência de preços diferentes dos
preços de mercado!!!
11ª. Em conclusão: o art. 57º, n.º 1, do CIRC, na redacção em vigor à data dos
factos, aplicado na douta decisão recorrida, é inconstitucional por violação dos
princípios e normas constitucionais citadas supra;[...]”
7. Contra-alegou o recorrido, tendo concluído da seguinte forma:
“A) Não se verifica a inconstitucionalidade do artigo 57°, n° 1, do CIRC, na
redacção à data aplicável aos factos e anterior à que lhe foi conferida pela Lei
n° 30-G/00.
B) O referido artigo permitia à AF efectuar as correcções que se mostrassem
necessárias à determinação do lucro tributável sempre que existissem relações
especiais entre o contribuinte e outra pessoa, que por força dessas relações
especiais fossem estabelecidas, entre elas, condições diferentes das que,
normalmente, seriam acordadas entre pessoas independentes conduzindo a que o
lucro apurado fosse diverso daquele que se apuraria na ausência dessas relações.
C) Ora, tais pressupostos são vinculados e não podia, a AF, proceder a
correcções que não respeitassem tais pressupostos, elegendo outros que não
estivessem previstos na lei.
D) Os poderes atribuídos à Administração Fiscal fora da área vinculada que
constituía a pressuposição legal do preceito, não passavam de uma certa margem
de livre apreciação técnica na correcção da matéria colectável, a integrar o
resultado da interpretação dos conceitos moderadamente indeterminados que
compõem aquela pressuposição.
E) O preenchimento de tais pressupostos era efectuado segundo critérios que os
contribuintes não desconheciam - no caso concreto, por ex., a recorrente nunca
contestou a existência de relações especiais entre ela e a B. -, e estava
sujeito a um especial dever de fundamentação, nos termos do anterior art. 80º do
CPT.
F) Por outro lado, no caso em concreto, a interpretação e aplicação do art. 57°,
n° 1, do CIRC, não violou os princípios constitucionais da igualdade, da
justiça, da segurança e da confiança jurídica.
G) Não tendo a recorrente qualquer razão quando aponta como exemplo de tal
violação duas decisões diferentes da AF, relativas aos exercícios de 90 e de 91,
uma vez que escasseiam as identidades de parte, de conteúdo decisório e de forma
procedimental.
H) O art. 57° do CIRC foi entendido e aplicado da mesma maneira pela AF, as
relações especiais existentes entre a recorrente e a B. sempre foram evidentes e
incontestadas pela recorrente, bem como, sempre foi da mesma forma entendido o
critério da determinação do preço de plena concorrência, o que acontece é que
para o exercício de 90 a AF chegou à conclusão que o valor corrigido não
influenciou o resultado daquele exercício e o referido valor foi contabilizado
na rubrica Despesas de Investigação e Desenvolvimento (Imobilizado Incorpóreo)
sem que tenha sido efectuada qualquer reintegração, facto que não foi possível
provar que tenha ocorrido para o exercício de 91.
I) Finalmente, é evidente que as alterações produzidas ao art. 57° do CIRC,
inseridas numa reforma fiscal bem mais lata, vieram a trazer mais justiça,
certeza, segurança e, sobretudo, uma maior eficácia à actuação da AF, mas tal
facto não implica que, anteriormente, o art. 57°, n° 1, do CIRC não tivesse a
densificação para os sujeitos passivos determinarem pressupostos da actuação da
AF e os Tribunais procederem ao controlo da adequação e proporcionalidade da
actividade administrativa.[...]”
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
8. A alegada inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 57º do Código do Imposto
sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas.
Delimitado o objecto do recurso por decisão transitada em julgado, está em causa
a apreciação pelo Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, da constitucionalidade da norma
constante do n.º 1 do artigo 57º do Código do Imposto sobre as Pessoas
Colectivas, na redacção em vigor à data dos factos dos autos. Era, então, o
seguinte o teor de tal preceito:
“Artigo 57º
( Correcções nos casos de relações especiais
ou sujeição a vários regimes de tributação)
1. A Direcção-Geral das Contribuições e Impostos poderá efectuar as correcções
que sejam necessárias para a determinação do lucro tributável sempre que, em
virtude das relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa, sujeita ou
não a IRC, tenham sido estabelecidas condições diferentes das que seriam
normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o lucro
apurado com base na contabilidade seja diverso do que o que se apuraria na
ausência dessas relações.
[...].”
Entende a recorrente que tal norma - hoje substituída, após a revisão operada
pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, pelo artigo 58.º do CIRC, sob a
epígrafe “preços de transferência” -, nomeadamente ao fazer uso de conceitos
indeterminados, viola o disposto no, à época, artigo 106º, n.º 2 da Constituição
- actualmente artigo 103º, n.º 2 -, que estatui a obrigatoriedade de os impostos
serem criados por lei e de esta determinar “a incidência, a taxa, os benefícios
fiscais e as garantias dos contribuintes”. Mais entende que a mesma norma,
nomeadamente porque permite uma correcção da matéria colectável sem a sujeição
da administração fiscal a um procedimento concreto e definido, viola os
princípios constitucionais da tributação do rendimento real, da
proporcionalidade, da proibição do excesso, da igualdade, da justiça, da
segurança e confiança jurídica – (artigos 106º, n.º 2 - actual art. 103º, n.º 2
n.º 3 - e 107º, n.º 2 - actual art. 104º, n.º 2-, 18º, 13º, 2º e 1º da
Constituição).
Antes de proceder à análise da questão convirá fazer uma advertência. De facto,
dada a natureza da intervenção do Tribunal Constitucional no âmbito do processo
de fiscalização concreta, restrita à apreciação da questão de
constitucionalidade da norma aplicada, não está em causa neste recurso, nem
poderia estar, a determinação de qual a “melhor interpretação” da norma
infraconstitucional questionada, nem a questão de saber se foi correcta ou
incorrectamente interpretada e aplicada no caso concreto. É que, como é sabido,
não compete a este Tribunal sindicar a interpretação e aplicação que a decisão
recorrida faz, no caso concreto, do direito ordinário - na perspectiva de saber
se é ou não a melhor interpretação dos preceitos aplicados - mas apenas decidir
se a interpretação normativa desses preceitos pela qual optou a decisão
recorrida é ou não compatível com a Constituição e, designadamente, com
princípios e normas invocados pela recorrente.
Com esta advertência, vejamos então.
8.1. Da alegada violação do princípio da legalidade, ínsito no artigo 103º da
Constituição.
A norma sindicanda, à semelhança, aliás, do que, em casos semelhantes, acontece
em outros ordenamentos jurídicos, utiliza conceitos indeterminados. É, assim,
legítimo, mesmo tratando-se apenas de um problema respeitante à determinação da
matéria tributável, contudo susceptível de conduzir à respectiva correcção, que
se pretenda aferir a legitimidade constitucional de um tal procedimento, face às
exigências inerentes ao princípio da legalidade fiscal e à tutela garantística
que este confere, já que não está em causa, tão somente, a estrita fixação do
iter “processual” que permitirá o estabelecimento do rendimento sujeito a
imposto.
8.1.1. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade, por diversas vezes, de se
pronunciar sobre a utilização de conceitos indeterminados e a alegada violação
do princípio da legalidade, ínsito no artigo actual artigo 103º da Constituição.
Fê-lo, nomeadamente, no acórdão n.º 233/94 (disponível na página Internet do
Tribunal Constitucional no endereço
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), onde, sendo questionada a
constitucionalidade do § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial,
se debruçou sobre a questão de saber “qual o grau de exigência constitucional
quanto à densificação normativa face aos ditames do princípio da legalidade
tributária (artigo 106º, n.º 3, da Constituição), o mesmo é dizer, quais os
limites constitucionalmente consentidos ao preenchimento, pela Administração,
dos conceitos jurídicos indeterminados constantes de uma norma fiscal e ao
âmbito de poderes discricionários da mesma”.
Neste acórdão, o Tribunal, para o que aqui releva, começou por analisar a
doutrina sobre a questão da delimitação entre o conteúdo da lei em matéria
fiscal e a margem de livre decisão da Administração e sobre a questão da
admissibilidade da utilização de conceitos indeterminados em direito fiscal,
para, a final, concluir que a utilização, em certo contexto, de conceitos
indeterminados não envolveria violação da Constituição. Afirmou, então,
nomeadamente, o seguinte:
“[...] 11. Como já vimos, a norma em causa insere-se de pleno no domínio fiscal,
estando, por assim dizer, duplamente vinculada à lei, por um lado por força da
cominação expressa do artigo 106º, n.ºs 2 e 3, da Constituição e, por outro, em
virtude de a matéria em causa se inserir na esfera de competência reservada da
Assembleia da República [artigo 168º, n.º 1, alínea i) – “criação de impostos e
sistema fiscal”].
Ora, o que verdadeiramente a recorrente pretende criticar na norma em causa é a
violação do princípio da legalidade tributária na óptica da insuficiente
densificação legislativa das condições de aplicação do aludido preceito (ou
seja, do insuficiente grau de precisão e determinabilidade das regras legais
atinentes a esta específica situação tributária que poderiam colocar o regime em
crise a descoberto das garantias decorrentes dos aludidos princípios constantes
do artigo 106º, n.ºs 2 e 3, da Constituição).
Dito ainda de outra forma, estando em causa matéria tributária, matéria de
definição dos pressupostos de aplicação de um determinado imposto, a recorrente
parece entender que se mostra incompatível com o aludido princípio da legalidade
tributária a circunstância de a lei, com base em conceitos indeterminados ou só
indirectamente determinados, conferir uma certa margem de livre apreciação à
Administração para efeitos de determinação da substituição de um sistema de
tributação (típico do grupo A) por um outro (o do grupo B), este mais gravoso do
que aquele, em virtude do incumprimento, por parte do contribuinte, de certas
regras atinentes às suas obrigações fiscais.
Recorde-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional já teve ocasião de
dizer que em sede de restrição de direitos, liberdades e garantias, a
Constituição não veda ao legislador a possibilidade de este conferir à
Administração a faculdade de actuar ao abrigo de poderes discricionários, desde
que as balizas de exercício de tais poderes constem de forma suficientemente
densificada na própria lei (cfr. Acórdão n.º 285/92, publicado no Diário da
República, I Série-A, de 17 de Agosto de 1992). Ou seja: em sede de restrições
de direitos, liberdades e garantias, o recurso a conceitos jurídicos
indeterminados, para efeitos de definição dos pressupostos e da amplitude de
exercício de poderes discricionários pela Administração, deve encontrar na letra
da lei um tal grau de densificação normativa que correspondam a um mínimo de
critérios objectivos que balizem essa actuação discricionária da Administração,
em termos tais que permitam aos cidadãos, com um mínimo de segurança, saber com
que quadro normativo contam quanto à possível aplicação dessa lei e que
simultaneamente confiram aos tribunais elementos objectivos suficientes para
apreciação da adequação e proporcionalidade no uso de tais poderes.
E se se chama este lugar paralelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional
para apreciação do caso em análise é apenas para tornar mais evidente que, desde
logo para quem entenda que a actividade normativa de definição do sistema
tributário, à luz do princípio da legalidade tributária, não se traduz numa
verdadeira e própria restrição de direitos, liberdades e garantias, então parece
não constituir obstáculo inultrapassável que a lei acolha na sua formulação
conceitos jurídicos indeterminados e, com base neles, confira à Administração
uma “margem de livre apreciação” para analisar uma dada situação de facto de
incumprimento ou de desvio de um dever fiscal e, consequentemente, decidir da
aplicação do mecanismo de substituição do sistema de tributação (como resulta do
§ 2º do art.º 114º do Código da Contribuição Industrial), desde que tal
habilitação preencha o conteúdo mínimo exigível ao cabal cumprimento do aludido
requisito da legalidade tributária (no sentido de previsão legal do imposto).
Mas mesmo para quem veja na definição normativa do sistema tributário, em
concorrência com os ditames do princípio da legalidade e da tipicidade
tributárias, uma específica forma de restrição de direitos, liberdades e
garantias, ou melhor, de direitos fundamentais de natureza análoga, que
beneficiariam do regime do artigo 18º da Constituição, por força do disposto no
artigo 17º da Lei Fundamental, será também de concluir que, à luz do critério
jurisprudencial atrás referenciado, quando a lei usa conceitos jurídicos
indeterminados, embora daí resulte que a Administração vem a beneficiar de uma
certa margem de liberdade de apreciação, não haverá ofensa da Constituição desde
que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos
destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os
pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os
tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade
administrativa assim desenvolvida.
No caso vertente, constituirá exigência do princípio da legalidade tributária
que os conceitos indeterminados contenham uma densificação normativa que
permitam aos particulares saber em que situações concretas possíveis é que pode
ter lugar a substituição do sistema de tributação em contribuição industrial
segundo o grupo A pelo do grupo B e aos tribunais conhecer da exigibilidade e da
proporcionalidade da conduta da Administração ao determinar essa substituição do
sistema de tributação.
Assim sendo, a norma em apreço torna claro que tal substituição só poderá operar
quando “em face do exame à escrita se verifique a impossibilidade de controlar a
matéria colectável” bem como quando, face ao mesmo exame, resulte que existem
“dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade”.
É bem certo que a delimitação dos pressupostos de aplicação daquele normativo
depende de um juízo valorativo tributário de elementos de carácter técnico -
inexistência de elementos que permitam o controlo da matéria colectável e
fundadas dúvidas de incorrecção ou inexactidão dos elementos constantes da
escrita face à realidade económico-financeira da empresa -, mas não se afigura
que da imposição constitucional constante do princípio da legalidade tributária
decorra que tais pressupostos de aplicação do normativo impugnado legalmente
estabelecidos se mostram insuficientemente densificados, atentas as
especificidades do domínio fiscal, onde frequentemente, e em sede de exercício
dos poderes de controlo, se terá que recorrer a conceitos jurídicos
indeterminados e ao contributo de elementos de carácter técnico para fundar as
decisões da Administração na prossecução do interesse público expresso numa
correcta tributação dos agentes económicos.
Com efeito, o particular sabe, em face do postulado normativo, que não é toda e
qualquer situação que justificará a mudança de sistema de tributação, mas apenas
aquelas que, nos termos da lei, decorram de uma efectiva impossibilidade de
controlo da matéria colectável, com base na escrita da empresa, e de fundadas
dúvidas que a mesma escrita suscite quanto à correspondência entre o resultado
atinente à matéria colectável apurado e declarado pelo contribuinte e a
realidade da empresa, tal como a Administração a aprecia.
[...]
[...] a efectiva observância do princípio da legalidade tributária não se pode
quedar pela análise do grau de densificação normativa na óptica do seu
conhecimento pelos particulares, antes tem que ir mais longe, num sentido de
maior exigência quanto à garantia das posições jurídicas subjectivas dos
administrados e, consequentemente, tem também que ser vista à luz da
possibilidade de controlo jurisdicional da exigibilidade e da proporcionalidade
dos juízos emitidos pela Administração no preenchimento daqueles conceitos
indeterminados e na sua aplicação ao caso concreto. O mesmo é dizer que, nesta
segunda vertente, a observância do próprio princípio da legalidade tributária
vai de par com a garantia de recurso contencioso e com a amplitude dos poderes
de cognição dos tribunais fiscais.
[...]
Neste contexto, e em síntese, pode o juiz, em sede de recurso contencioso de
anulação, e socorrendo-se dos meios técnicos que necessitar, controlar não só a
verificação dos pressupostos constantes da lei como também as operações técnicas
que levaram a Administração a adoptar certa decisão dentro dos limites de uma
verificação da correcção do processo cogniscitivo seguido, reportando-se não
apenas ao fim visado pela norma que o confere, mas também às regras do iter
lógico que conduz à decisão, e que, como já vimos, SÉRVULO CORREIA - op. cit.,
pág. 499 - identifica com os princípios da imparcialidade e da proporcionalidade
consagrados no artigo 266º, n.º 2, da Constituição e, por seu turno, GOMES
CANOTILHO - op. cit., pág. 806 - identifica como os princípios da exigibilidade,
da proporcionalidade e da igualdade, podendo, pois, determinar a invalidade do
acto se este ultrapassar os limites legais do exercício do poder discricionário
(“excesso de poder”) ou assentar num uso insuficiente ou logicamente viciado das
regras técnicas para as quais reenvia a lei (“desvio do poder discricionário ou
utilização viciada”); mas se o controlo assim entendido levar à conclusão da
correcção aplicativa das aludidas regras técnicas, não poderá o juiz sobrepor a
sua própria valoração à que tiver sido feita pela Administração.
[...]
14. Mas definido desta forma o âmbito da garantia constitucional do recurso
contencioso, cumprirá perguntar se é legítimo, à luz da nossa Lei Fundamental,
que se tenha por excluído um controlo “mais profundo” [como o aparentemente
pretendido pela recorrente], ou seja, um controlo que vá mais além do
“apprezzamento técnico”, da verificação da atendibilidade do juízo expresso pelo
órgão administrativo. Isto é, será constitucionalmente legítimo excluir, como
atrás se afirmou, do controlo jurisdicional, ao abrigo da garantia de recurso
contencioso (de anulação), a esfera de livre decisão da Administração criada por
força de uma norma jurídica, quando esta se traduza na emissão de juízos de
prognose ou de probabilidade mediante o recurso a meios técnicos, sem suporte
directo numa norma legal?
[...]
Do exposto resulta que, independentemente do fundamento teórico que se adopte,
questão que em si mesma não releva neste momento, existem argumentos ancorados
em princípios básicos do nosso ordenamento constitucional que se mostram
suficientemente relevantes para poder concluir que a existência de domínios de
discricionariedade e de valoração técnica excluídos de um controlo jurisdicional
pleno (no sentido de “controlo substitutivo”) não constitui, em sede de recurso
contencioso de ilegalidade, atentado à garantia constitucional constante do n.º
3, do artigo 268º, da Constituição. [...]”.
Posteriormente, no Acórdão n.º 756/95 (publicado no Diário da República, II
Série, de 27 de Março de 1996, pgs. 4187 e seguintes), o Tribunal Constitucional
voltou a ser confrontado com a questão da existência de conceitos indeterminados
em matéria fiscal, tendo concluído que a norma então em causa não colocava um
“poder arbitrário de concretização” nas mãos da administração, não podendo “ser
tida como inconstitucionalmente indeterminada”. Afirmou-se, então:
“[...] Será a norma de incidência aqui questionada tão ampla e vaga na sua
formulação, que ponha em causa esse mínimo de precisão exigível às normas
fiscais?
A resposta a esta interrogação pressupõe o caracterizar da articulação -
constitucionalmente viável - entre o emprego, neste tipo de normas, de conceitos
indeterminados e aquilo que a jurisprudência constitucional alemã definiu como
“princípio da determinabilidade” (Bestimmenheitgrunsatz), referindo-se à
exigência destas normas construírem a respectiva previsão “assegurando um mínimo
de clareza e de transparência do tipo” e que “permita a calculabilidade e a
previsibilidade da obrigação fiscal” (J.L: Saldanha Sanches, A Segurança
Jurídica no Estado Social de Direito, Ciência e Técnica Fiscal, nºs 310/312,
pág. 299).
A justificação de qualquer destas realidades (conceitos amplos/exigências de
determinabilidade) não deixa de ser possível face a regras ou princípios
constitucionalmente relevantes: se a determinabilidade se acolhe na defesa dos
contribuintes contra o arbítrio da Administração Fiscal, que subjaz aos artºs
nºs 2 e 3, do art.º 106º, o emprego de conceitos amplos e por vezes
indeterminados - os únicos que garantem a plasticidade que possibilite a
adaptação ao constante aparecimento de novas situações que, substancialmente
iguais a outras já tributadas, não estejam ainda formalmente descritas com
precisão - não deixa, o emprego desse tipo de conceitos, de se poder louvar no
cumprimento do mandato de igualdade em sentido material, não permitindo o
aparecimento constante de refúgios de evitação fiscal.
Só a harmonização entre estas duas realidades, potencialmente conflituantes, é
susceptível de fornecer soluções equilibradas que, sacrificando o menos possível
dos valores subjacentes a cada uma, garanta o essencial desses valores.
Esta harmonização vem sendo prosseguida, nomeadamente no plano das jurisdições
constitucionais, excluindo as cláusulas gerais que operem como que uma
transferência da “criação da obrigação fiscal” para a “discricionariedade da
administração”, mas não inviabilizando liminarmente certas “cláusulas gerais”,
“conceitos jurídicos indeterminados”, “conceitos tipológicos” (Typusbegriffe),
“tipos discricionários” (Ermessentatbestände), e certos conceitos que atribuem à
administração uma margem de valoração, os chamados “preceitos poder”
(Kaan-Vorschrift).
Todas estas figuras, guardadas certas margens de segurança, flexibilizam o
sistema tornando-o apto a abranger, através da interpretação, “circunstâncias
novas, porventura imprevisíveis ao tempo da formulação da lei” (JL Saldanha
Sanches, ob. cit. pág. 297 e 299/300).
Ganha, assim, a tipicidade tributária, concretizada no princípio da
determinabilidade, um valor específico, aquele que (e citamos de novo JL
Saldanha Sanches) “tem o seu núcleo essencial na reserva da competência da lei
para a selecção dos factos da vida social que devem ser objecto de tributação,
na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à determinação dos factos
tributáveis”, mas que não inviabiliza “que este se sirva de uma formulação
suficientemente ampla para abranger factos da mesma natureza e igualmente
indicadores de capacidade tributária, ainda que com características que entre si
os diferenciem” (ob. cit. pág. 299).
Ora, a norma aqui constitucionalmente questionada, como verdadeira norma
residual de um universo que o legislador define com suficiente precisão (a
Secção B do Imposto de Capitais - v. art.º 3º, do CIC); construída em torno de
um conceito - “rendimentos derivados da simples aplicação de capitais” - que
concretizado de acordo com as regras interpretativas possíveis relativamente a
normas de incidência fiscal, está muito longe de colocar nas mãos da
administração um poder arbitrário de concretização; uma norma com estas
características, dizíamos, não pode à partida ser tida como
inconstitucionalmente indeterminada.[...]”
8.1.2. Expostas as linhas gerais da jurisprudência do Tribunal Constitucional,
há agora que confrontar a norma questionada com o princípio da legalidade
tributária, para verificar se a sua formulação tem suficiente densidade
normativa à luz do parâmetro constitucional e se implica a concessão de poderes
à administração fiscal incompatíveis com a tutela dele resultante.
A norma em causa respeita aos denominados “preços de transferência”, matéria
que, recentemente, tem tido, nomeadamente por força de trabalhos da OCDE,
desenvolvido tratamento na doutrina. Analisando o seu teor, verificamos que a
norma apela, na sua previsão, à existência “relações especiais entre o
contribuinte e outra pessoa, sujeita ou não a IRC” que permitam que tenham sido
“estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre
pessoas independentes, conduzindo a que o lucro apurado com base na
contabilidade seja diverso do que o que se apuraria na ausência dessas
relações”.
Ora, sendo utilizada a expressão “relações especiais”, resulta manifesto do
próprio preceito que tais relações se concretizam numa qualquer relação de
dependência que permita o estabelecimento de condições diversas daquelas que
seriam normalmente estabelecidas entre pessoas independentes, isto é que
permita, por exemplo, uma alteração de preços em relação aos preços de
transacções comparáveis efectuadas em situações normais de mercado. É, assim,
evidente que o conceito utilizado pressupõe - e vincula a Administração à
respectiva prova - que existe um especial vínculo de dependência entre os
sujeitos contratantes - ou em relação a terceiros - que pode conduzir ao
estabelecimento de condições negociais anómalas. Existe, por consequência, um
claro pressuposto subjectivo delimitador do âmbito de aplicação da norma que
consiste na já referida relação de dependência, a qual permitirá a “ingerência”
suficiente para que as condições sejam diversas daquelas que se estabelecem
entre pessoas independentes.
Por outro lado, a delimitação do campo de aplicação, tal como é efectuada na
norma aqui questionada, contém igualmente uma incontornável constatação
objectiva – a de que os preços concretamente praticados revelam um desvio em
relação aos preços de mercado, permitindo uma tal distorção que “o lucro apurado
com base na contabilidade seja diverso do que o que se apuraria” na ausência das
referidas relações especiais. Tal pressupõe, igualmente, que os preços
estabelecidos são, por força daquela relação de dependência, diferentes daqueles
que se praticam em mercado livre: ou seja, que, confrontado o valor da
transacção com o preço que seria acordado entre pessoas independentes, se
verifica uma situação “anormal”. E, se é certo que a determinação destes preços
não é ciência exacta, o facto é que do próprio princípio da concorrência plena
resultam elementos e métodos – por exemplo o método do preço comparável de
mercado, o método do preço de revenda minorado, método do custo majorado, o
método do fraccionamento do lucro ou o método da margem líquida da operação -,
que nos podem conduzir à sua determinação, não exigindo o princípio da
legalidade fiscal que tais elementos e métodos tenham de constar,
necessariamente, da norma legal. Estamos, no essencial, perante algo semelhante
aos casos em que a matéria colectável é determinada por recurso a elementos
objectivos, nomeadamente “margens médias de lucro”, “taxas médias de
rentabilidade” ou” valor de mercado dos bens e serviços”, que este Tribunal já
considerou constitucionalmente admissíveis.
Quer isto dizer que as correcções autorizadas pela norma ora questionada só são
possíveis, por um lado, quando exista uma situação de dependência que permita
influenciar, de forma determinante, a autonomia decisória da entidade em causa
e, por outro, quando tal relação tenha sido causa do estabelecimento de um
desvio, de outra forma inexplicável, face aos preços de um mercado a funcionar
em termos concorrenciais normais. E, desse modo, foi interpretado na decisão
recorrida, a qual teve em conta o facto de, no caso concreto, a co-contratante
da recorrente deter 100% do capital desta e de o negócio revelar margens de
lucro sobre os custos de 1068%, muito superiores ao valor médio apurado em
empresas do sector, que é de 115,5%.
Poder-se-á, então, considerar que a norma em causa não satisfaz a exigência do
princípio da legalidade tributária – reconhecida na jurisprudência deste
Tribunal - de que os conceitos indeterminados contenham uma densificação
normativa que permita aos particulares saber em que situações concretas
possíveis é que tem lugar a sua aplicação - neste caso concreto, em que
situações concretas possíveis é que podem ter lugar as correcções “que sejam
necessárias para a determinação do lucro tributável” -, e que habilite os
tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade
administrativa ao determinar essas correcções? Será que a norma questionada vem
“colocar nas mãos da administração um poder arbitrário de concretização”?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
De facto, se bem que a delimitação dos pressupostos de aplicação daquele
normativo dependa de um juízo de interpretação e de valoração de elementos de
carácter técnico - existência de “relações especiais” e de um desvio aos preços
“normais” - e da utilização de máximas de experiência, não se afigura que, tal
como se afirmou no já citado acórdão n.º 233/94, “da imposição constitucional
constante do princípio da legalidade tributária decorra que tais pressupostos de
aplicação do normativo impugnado legalmente estabelecidos se mostr[e]m
insuficientemente densificados, atentas as especificidades do domínio fiscal,
onde frequentemente, e em sede de exercício dos poderes de controlo, se terá que
recorrer a conceitos jurídicos indeterminados e ao contributo de elementos de
carácter técnico para fundar as decisões da Administração na prossecução do
interesse público expresso numa correcta tributação dos agentes económicos”.
Na verdade, neste caso, o particular sabe, em face do postulado normativo, que
não é toda e qualquer situação que justificará a realização das correcções que
sejam necessárias para a determinação do lucro tributável: só assim acontecerá
quando nos encontrarmos perante situações que, nos termos da lei, sejam
decorrentes da existência de relações especiais de dependência, causadoras de
distorção face aos preços de mercado e com influência directa na determinação
daquele lucro. Além disso, sendo o critério adoptado pelo legislador
objectivamente referido ao mercado, fica a administração tributária, a quem
compete determinar a matéria colectável nos termos do artigo 57.º do CIRC,
vinculada ao estabelecimento do preço de plena concorrência, não comportando tal
critério apreciações subjectivas. E se é certo que a norma questionada, à
semelhança do que igualmente sucede noutros ordenamentos jurídicos, não
concretiza o critério de valoração que há-de presidir à determinação do preço de
plena concorrência, o facto é que a referência aos preços estabelecidos entre
entidades independentes acaba por estabelecer os limites objectivos dentro dos
quais pode ser fixado tal critério. Foi isso, aliás, o que a nova regulamentação
dos preços de transferência - artigo 58º do CIRC - veio explicitar, trazendo um
maior grau de certeza, segurança e, sobretudo, uma maior eficácia à actuação da
administração tributária. Mas tal não implica que, anteriormente, o artigo 57°,
n° 1, do CIRC não tivesse a densificação suficiente para os sujeitos passivos
determinarem os pressupostos da actuação da Administração e para os Tribunais
procederem ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade
administrativa.
Assim sendo, há que concluir que a norma questionada permite que o sujeito
passivo conheça e controle integralmente qual a expressão quantitativa do facto
tributário que é tida em conta. Contém uma suficiente densidade normativa
condicionadora da actividade administrativa e vincula a administração à
verificação dos seus pressupostos de aplicação, permitindo que os tribunais
possam sindicar a decisão administrativa que de tal norma faça aplicação.
Acresce que o artigo 80º do Código de Processo Tributário em vigor à data dos
factos dos autos, que continha já exigências acrescidas de fundamentação
(actualmente constantes do artigo 77º, n.º 3, da Lei Geral Tributária) para os
casos em que a Administração procede à realização de correcções motivadas pela
existência de relações especiais, acaba por reforçar as garantias que o
princípio da legalidade, nomeadamente na sua dimensão de tipicidade fiscal,
postula.
Parafraseando o que o Tribunal afirmou no acórdão n.º 756/95, já citado, pode
agora concluir-se que se está, neste caso concreto, muito longe de colocar nas
mãos da administração “um poder arbitrário de concretização”, não podendo a
norma questionada ser tida como inconstitucionalmente indeterminada.
Em suma: a norma constante do n.º 1 do artigo 57º do Código do Imposto sobre as
Pessoas Colectivas, na redacção em vigor à data dos factos dos autos, não viola
o princípio da legalidade tributária constante do disposto no, à época, artigo
106º, n.º 2 da Constituição - actual artigo 103º, n.º 2.
8.2. Da alegada violação de outros princípios e preceitos constitucionais.
Expurgada do conhecimento do recurso, por decisão entretanto transitada, a
apreciação da inconstitucionalidade da decisão recorrida, por violação dos
“princípios constitucionais, da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da
boa fé, da igualdade e da imparcialidade, consagrados nos arts. 2º, 13º, 266º,
nº1 , nº2, da Constituição”, a recorrente, que, no requerimento de interposição
do recurso para este Tribunal, invocara a violação, pela norma questionada - o
art. 57º, n.º 1, do CIRC, na redacção em vigor à data dos factos dos autos -,
dos princípios da certeza, da segurança jurídica e da confiança (art. 2º da
Constituição), veio, nas alegações que entretanto apresentou, imputar a este
mesma norma a violação dos “princípios constitucionais da tributação do
rendimento real, da proporcionalidade, da proibição do excesso, da igualdade, da
justiça, da segurança e confiança jurídica” [“arts. 106º, n.º 2 (actual art.
103º, n.º 2 n.º 3) e 107º, n.º 2 (actual art. 104º, n.º 2), 18º, 13º, 2º e 1º da
CRP”], porque, em seu entender, “permite uma correcção da matéria colectável sem
a sujeição da administração fiscal a um procedimento concreto e definido, sem
qualquer margem de discricionariedade ou desvio de uma actuação uniforme e não
assegurando ab initio o cumprimento dos postulados constitucionais que versam
sobre a matéria”.
Ora, tudo quanto atrás se deixou dito – e que é integralmente transponível para
a discussão em função destes parâmetros constitucionais, quando com eles é
confrontada a norma em causa – permite, sem necessidade de proceder sequer à
fixação do sentido e alcance decisivos dos princípios constitucionais invocados,
enquanto parâmetros constitucionais de controlo da actividade legislativa,
refutar esta argumentação e concluir que não tem razão a recorrente.
Na verdade, como já desenvolvidamente se demonstrou, não só não é correcto
afirmar que a norma sindicanda conceda à administração fiscal os poderes que lhe
são atribuídos pela recorrente, como também não corresponde à realidade que não
assegure ab initio o cumprimento de quaisquer postulados constitucionais. Além
de que se não vislumbra qualquer outro motivo para concluir que a norma em
apreciação viole qualquer um dos múltiplos princípios constitucionais que a
recorrente foi, sucessivamente, invocando ao longo de todo o processo.
Assim sendo, há que concluir que a norma constante do n.º 1 do artigo 57º do
Código do Imposto sobre as Pessoas Colectivas, na redacção em vigor à data dos
factos dos autos, também não viola, ao contrário do que pretende a recorrente,
os princípios da tributação do rendimento real, da proporcionalidade, da
proibição do excesso, da igualdade, da justiça, da segurança e confiança
jurídica, tal como consagrados na Constituição da República Portuguesa.
9. Em conclusão: não é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 57º
do Código do Imposto sobre as Pessoas Colectivas, na redacção originária, em
vigor à data dos factos dos autos. Esta foi, aliás, a conclusão a que, com
desenvolvida fundamentação, igualmente se chegou no acórdão n.º 252/2005, tirado
na 2ª Secção deste Tribunal, em que estava em causa a constitucionalidade da
mesma norma.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, na parte em que dele se
conhece.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 24 de Maio de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício