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Processo n.º 285/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que
é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional do acórdão daquele Tribunal, de 26 de Janeiro de 2005.
Proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), vem
agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3
deste artigo.
2. Em 19 de Abril de 2005, foi proferida decisão sumária no sentido de que não
podia conhecer-se do objecto do recurso em causa, com os seguintes fundamentos:
'(...) do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Janeiro de 2005 – a
decisão recorrida – resulta de forma inequívoca que este Tribunal não aplicou os
artigos 97°, n° 1, e 374°, n° 2, do Código de Processo Penal, na interpretação
cuja constitucionalidade foi questionada pelo recorrente durante o processo
(conclusões do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra) e no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Por outras palavras, do teor daquela decisão (fls. 2564 e ss.) decorre que não
foi feita qualquer interpretação no sentido de que a fundamentação se basta com
a mera indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do
Tribunal. De resto, esta conclusão é extensível quer ao acórdão da Relação de
Coimbra (fls. 2441 e s.) quer à decisão condenatória da Vara Mista do Tribunal
Judicial de Coimbra (fls. 2227 v. e ss.).
Da mesma forma, não resulta daquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – a
decisão recorrida –, nomeadamente da parte transcrita (supra ponto 3.), que este
Tribunal tenha aplicado os artigos 340º, nº 1 e 2, 344º, nº 4, e 345º, nº 1 e 2,
do Código de Processo Penal, quando 'interpretados (...) no sentido de,
reclamada como atenuante da pena a confissão e verificando-se esta, o arguido
podia ter esclarecido tudo o que em seu benefício resultasse de uma melhor
aplicação da justiça (...)'.
Não se verifica, por conseguinte, relativamente às duas questões de
inconstitucionalidade constantes do requerimento de interposição de recurso para
o Tribunal Constitucional, um dos requisitos do recurso de constitucionalidade
previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC'.
3. Desta decisão vem agora o então recorrente reclamar para a conferência,
fazendo-o nos seguintes termos:
'(...) o ora recorrente está convicto que estão preenchidos os requisitos para
este Venerando Tribunal tomar conhecimento do recurso e da questão da
inconstitucionalidade suscitada no mesmo.
No recurso interposto para o Tribunal Constitucional visa o recorrente que seja
declarada a inconstitucionalidade dos arts. 97° n° 1 e 374° n° 2 do Código de
Processo Penal por violação dos arts. 32° n° 1 e 205° n° 1 da Lei Fundamental do
Estado quando interpretados, como fizera o Tribunal de lª Instância e o Tribunal
da Relação de Coimbra, no sentido de que a fundamentação se basta com a mera
indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do Tribunal.
Na Douta Decisão Sumária conclui-se que quer no Acórdão da Relação de Coimbra
quer na decisão condenatória da Vara Mista do Tribunal Judicial de Coimbra não
foi feita qualquer interpretação no sentido de que a fundamentação se basta com
a mera indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do
Tribunal.
Sem desdouro por opinião em contrário, afigura-se-nos que a decisão condenatória
da Vara Mista do Tribunal Judicial de Coimbra não acautelou a imposição legal
que impende sobre o Tribunal na fundamentação das decisões, ou seja, o Tribunal
não só deve dar a conhecer os factos provados e os não provados, para o que os
deve enumerar, mas também explicitar expressamente o porquê da opção (decisão)
tomada, o que se alcança mediante a indicação e exame crítico das provas que
serviram de base para formar a sua convicção.
Ora, do exame e análise da decisão condenatória da Vara Mista do Tribunal
Judicial de Coimbra, poder-se-á verificar, que não foram acauteladas as
exigências legais acabadas de referir, o que motivou, além do mais, recurso para
o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo sido suscitada a inconstitucionalidade
da norma do n° 2 do artº 374° do Código de Processo Penal.
Da aludida decisão condenatória, fica sem se saber, mediante a factologia
apurada, qual a resultante da confissão e a de outros meios de prova.
Aliás o Exmo. Procurador Geral Adjunto do Tribunal da Relação de Coimbra, no seu
Douto Parecer, acolhido praticamente na integra no Acórdão da Relação de
Coimbra, é do entendimento que se deveriam descriminar os factos apurados pela
confissão e os que resultam de outros meios de prova.
O Tribunal da Relação de Coimbra manteve inalterada a decisão recorrida quanto à
questão de inconstitucionalidade suscitada, interpretando, na nossa óptica, a
norma do nº2 do artº 374° do Código de processo Penal no sentido de que a
fundamentação se basta com a mera indicação dos meios de prova que serviram para
formar a convicção do Tribunal.
Na Douta Decisão Sumária refere-se que a intervenção do Tribunal Constitucional
na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se
reflectirá utilmente no processo, sendo assim irrelevante que a norma
questionada seja declarada constitucional.
Na verdade, parece-nos que, a verificar-se a inconstitucionalidade da norma
referenciada segundo a interpretação dada pelo Douto Tribunal (Vara Mista do
Tribunal Judicial de Coimbra e Tribunal da Relação de Coimbra), tal situação
poderá ser relevante para efeitos do processo, porquanto a análise critica das
provas (nomeadamente especificando por que razão se deu crédito a determinados
depoimentos em detrimento de outros e interpretação dada aos documentos juntos
aos autos assim como os factos que resultaram da confissão dos arguidos)
revela-se de primordial importância para o recorrente aquilatar da correcta ou
incorrecta aplicação da pena de 4 anos de prisão ao arguido A..
A decisão recorrida não permaneceria incólume caso o Tribunal Constitucional
viesse a alterar o juízo do Tribunal recorrido quanto à questão de
constitucionalidade, ou seja, a violação dos normativos referidos acarretaria a
anulação do acórdão recorrido.
Também visou o recorrente com o seu recurso para o Tribunal Constitucional que
fosse declarada a inconstitucionalidade dos arts. 340° n° 1 e 2, 344° n° 4 e
345° n° 1 e 2 do Código de Processo Penal, quando interpretados como fizera o
Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de, reclamada como atenuante da pena
a confissão e verificando-se esta, o arguido podia ter esclarecido tudo o que em
seu benefício resultasse de uma melhor aplicação da justiça, a aludida
interpretação é violadora do princípio do acusatório e contraditório
contemplados no artº 32° n° 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Com o devido respeito pela posição sufragada pela Douta Decisão Sumária,
consideramos que o Tribunal da Relação de Coimbra, acolheu uma interpretação ao
preceituado nos artsº. 340° n° 1 e 2, 344° n° 4 e 345° n° 1 e 2 do Código de
Processo Penal, no sentido de, reclamada como atenuante da pena a confissão e
verificando-se esta, o arguido podia ter esclarecido tudo o que em seu benefício
resultasse de uma melhor aplicação da justiça, o que é violadora do princípio do
acusatório e contraditório contemplados no artº 32° n° 1 e 5 da Constituição da
República Portuguesa.
É o que resulta do próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que
passamos a citar: É que, confessando livremente e sem reservas, o arguido podia
ter esclarecido tudo o que, pelo menos, em seu beneficio, contribuisse para uma
melhor aplicação da justiça.
Esta interpretação dada ao sentido da confissão efectuada pelo arguido, ou seja,
a clarificação e concretização de factos deveria ter sido efectuada pelo arguido
na confissão, é claramente violadora dos princípios do acusatório e do
contraditório que norteiam todo o processo penal, plasmados na Constituição da
República Portuguesa no seu artº 32° n° 1 e 5, Constituição essa que constitui o
vértice da ordem jurídica portuguesa.
O ora recorrente ao confessar parcialmente factos, não recai sobre ele o ónus de
concretizar e especificar factos que constituam situações genéricas e vagas,
compete sim a quem acusa e julga procurar indagar e retirar da confissão
efectuada factos concretos.
Não sendo possível, exclusivamente através da confissão, apurar factos
concretos, dever-se-ia, recorrer a outros meios de prova legalmente admissíveis.
Também aqui consideramos, ao invés da Douta Decisão Sumária, que não é de
considerar irrelevante uma eventual declaração de inconstitucionalidade dos
normativos referidos esteada na interpretação acolhida pela Relação de Coimbra,
dado que dessa forma o objecto do processo não terá sido esgotado, como devia,
no julgamento da matéria de facto recolhida, revelando-se assim manifestamente
insuficiente para a decisão a que se chegou.
O objecto do processo, que, quer quanto ao thema probandum quer quanto ao thema
decidendum tem de ser sempre esgotado, ficou assim incompleto, acarretando assim
injustiça na pena concretamente aplicada ao arguido A..
Tanto assim é que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, considerou
determinada matéria de facto que foi provada 1ª Instância como verdadeiras
afirmações genéricas que não foram submetidas ao adequado contraditório,
dificultando assim a defesa do arguido.
Não obstante esta constatação por parte do Venerando Supremo Tribunal de
Justiça, ou seja, que houve violação do princípio do acusatório e do
contraditório, dever-se-ia, na nossa opinião, ter anulado o julgamento,
justificando-se o reenvio do mesmo para novo julgamento para se averiguar até à
exaustão as imputações genéricas ao arguido.
Pelo que, a fiscalização concreta da constitucionalidade requerida deverá ser
desenvolvida dado a mesma poder acarretar implicações com a decisão recorrida,
nomeadamente permitir a anulação do julgamento e o consequente reenvio para novo
julgamento'.
4. Notificado desta reclamação para a conferência, o Ministério Público junto
deste Tribunal respondeu nos termos que se seguem:
'1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Quanto à questão suscitada em sede de motivação da decisão condenatória, é
evidente que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não apelou – ao
pronunciar-se sobre o invocado vício da decisão de facto – ao critério normativo
especificado pelo recorrente.
3°
Quanto à questão suscitada em sede de relevância atenuatória da confissão,
afigura-se que nem sequer é equacionada uma questão de inconstitucionalidade
normativa, limitando-se o recorrente a questionar o concreto e específico
resultado alcançado pela decisão condenatória, quanto à pena concretamente
aplicada'.
II. Fundamentação
Do conteúdo da presente reclamação não resulta nada que possa pôr em causa o
anteriormente decidido, podendo mesmo afirmar-se que o mesmo acaba, isso sim,
por confirmar o entendimento de que não podia conhecer-se do objecto do recurso
de constitucionalidade interposto pelo então recorrente.
Com efeito, o ora reclamante não demonstra que o Supremo Tribunal de Justiça –
instância que proferiu a decisão recorrida – tenha aplicado os artigos 97º, nº
1, e 374º, nº 2, e 340º, nºs 1 e 2, 344º, nº 4, e 345º, nºs 1 e 2, todos do
Código de Processo Penal, na interpretação cuja constitucionalidade foi
questionada pelo recorrente durante o processo. Pelo contrário, a argumentação
que consta da reclamação abona, isso sim, no sentido de terem sido outras as
instâncias que aplicaram aquelas normas – a Vara Mista do Tribunal Judicial de
Coimbra e o Tribunal da Relação de Lisboa:
' (...) a decisão condenatória da Vara Mista do Tribunal Judicial de Coimbra não
acautelou a imposição legal que impende sobre o Tribunal na fundamentação das
decisões, ou seja, o Tribunal não só deve dar a conhecer os factos provados e os
não provados, para o que os deve enumerar, mas também explicitar expressamente o
porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança mediante a indicação e exame
crítico das provas que serviram de base para formar a sua convicção' (itálico
nosso);
'O Tribunal da Relação de Coimbra manteve inalterada a decisão recorrida quanto
à questão de inconstitucionalidade suscitada, interpretando, na nossa óptica, a
norma do nº2 do artº 374° do Código de processo Penal no sentido de que a
fundamentação se basta com a mera indicação dos meios de prova que serviram para
formar a convicção do Tribunal' (itálico nosso);
'Também visou o recorrente com o seu recurso para o Tribunal Constitucional que
fosse declarada a inconstitucionalidade dos arts. 340° n° 1 e 2, 344° n° 4 e
345° n° 1 e 2 do Código de Processo Penal, quando interpretados como fizera o
Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de, reclamada como atenuante da pena
a confissão e verificando-se esta, o arguido podia ter esclarecido tudo o que em
seu benefício resultasse de uma melhor aplicação da justiça, a aludida
interpretação é violadora do principio do acusatório e contraditório
contemplados no artº 32° n° 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa'
(itálico nosso);
'É o que resulta do próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que
passamos a citar: É que, confessando livremente e sem reservas, o arguido podia
ter esclarecido tudo o que, pelo menos, em seu beneficio, contribuisse para uma
melhor aplicação da justiça' (sublinhado nosso).
Independentemente da questão de saber se estes Tribunais aplicaram ou não
aqueles artigos do Código de Processo Penal, na interpretação cuja
constitucionalidade foi questionada durante o processo, a verdade é que o
reclamante não demonstrou – e nem poderia demonstrar – que o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 26 de Janeiro de 2005, os aplicou. Não demonstrou que
esta decisão judicial aplicou normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada
durante o processo, tal como o exige o artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, ao
abrigo do qual pretendeu interpor o recurso para o Tribunal Constitucional. O
reclamante tentou apenas demonstrar que a Vara Mista do Tribunal Judicial de
Coimbra e o Tribunal da Relação de Lisboa aplicaram os mencionados artigos do
Código de Processo Penal na dimensão interpretativa, cuja constitucionalidade
foi suscitada durante o processo.
E não tendo aquele Supremo Tribunal aplicado as normas questionadas, é óbvio que
a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade
constitucional das normas impugnadas não se reflectiria utilmente no processo,
uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma ainda que as normas
questionadas fossem declaradas inconstitucionais. Conclusão constante da decisão
reclamada, por remissão para jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal.
Como o reclamante não contraria o sustentado na decisão sumária, demonstrando
que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou, como ratio decidendi, as normas cuja
constitucionalidade questionou durante do processo, resta concluir pelo
indeferimento da presente reclamação, mantendo a decisão de não conhecimento do
objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 10 de Maio de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício