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Processo n.º 535/03
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
O Ministério Público recorre para este Tribunal ao abrigo da alínea a) do n.º 1
do artigo 70º da Lei 28/82 de 15 de Novembro (LTC) da decisão proferida no 2º
Juízo Criminal da Comarca de Lisboa nos autos de processo comum em que é arguido
A.. Nessa decisão o referido Tribunal recusou a aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade, da norma decorrente dos artigos 339º n.º 4 e 358º n.º 3,
ambos introduzidos pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, quando interpretada no
sentido de que é admissível qualquer alteração desfavorável da qualificação
jurídica da acusação na audiência de julgamento que implique o agravamento da
moldura penal do crime ou dos crimes imputados ao arguido ou a imputação de
novos crimes com base em mera comunicação prévia da alteração ao arguido pelo
tribunal e, quando requerido, a concessão de tempo de defesa.
Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações, concluindo:
1- A norma que decorre das disposições dos artigos 338°, n° 4 e 358°, n° 3,
ambos do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei
n° 59/98, de 25 de Agosto, concilia a liberdade concedida ao tribunal do
julgamento a uma correcta subsunção jurídica dos factos que constam da
acusação, com o exercício das garantias de defesa do arguido, que é previamente
prevenido da nova qualificação, podendo, querendo, contestá-la e contraditá-la.
2 - Mesmo que possa resultar da nova qualificação jurídica uma condenação
criminal mais grave, não há violação de normas ou princípios constitucionais,
sempre que os factos que constavam da acusação permaneçam os mesmos, só se
alterando a sua integração jurídica penal.
3- Termos em que deverá afirmar-se a plena conformidade constitucional da
norma cuja aplicação foi recusada.
Em contra-alegações o recorrido defendeu a manutenção do decidido.
A decisão recorrida apresenta a seguinte fundamentação:
“O arguido cometeu os ilícitos de que vem acusado na acusação na sua versão
inicial.
Com efeito, o arguido injuriou os polícias com os palavrões que lhes dirigiu,
sabendo que se tratava de polícias. Depois empurrou-os, pondo em causa a
integridade física dos mesmos. Não contente com isto, após lhe ter sido dada voz
de detenção, o arguido resistiu à detenção, fugindo e empurrando novamente os
polícias. Como é bom de ver, os empurrões antes e depois da voz de detenção têm
um significado jurídico distinto, que justifica a imputação diferenciada do
crime de ofensas corporais qualificadas em relação aos empurrões anteriores à
voz de detenção e do crime de coacção em relação aos empurrões posteriores à voz
de detenção.
O arguido cometeu até mais crimes do que aqueles que lhe foram formalmente
imputados na acusação na sua versão inicial.
Contudo, destes outros crimes novos, cujo conhecimento o MP pediu na audiência
de julgamento, não pode o Tribunal conhecer.
Os presentes autos colocam uma questão magna do direito processual português,
que implica o conhecimento da inconstitucionalidade da norma decorrente dos
artigos 339º n. 4. e 358º n. 3, ambos introduzidos pela Lei n. 59/98 de 25/8.
Esta questão concreta não foi ainda objecto da decisão do Tribunal
Constitucional, nem do Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que as
anteriores pronúncias destes tribunais sobre a questão da alteração da
qualificação jurídica dos factos da acusação dizem respeito ao CPP na versão de
1987 e de 1995.
A norma, que se retira dos artigos 339º n. 4 e 358º n. 3 do CPP, consiste na
liberdade de alterar a qualificação jurídica da acusação, desde que essa
alteração seja previamente comunicada na audiência ao arguido e lhe seja
concedido tempo para defesa, quando requerido.
Esta norma foi já considerada inconstitucional, ponderando o Professor Germano
Marques da Silva que só observaria o estalão constitucional o preceito segundo o
qual a alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação na fase da
audiência de julgamento que implicasse a condenação em crime diverso ou o
aumento dos limites máximos da pena aplicável fosse equiparada a uma alteração
substancial dos factos, devendo por isso a alteração da qualificação jurídica na
fase da audiência de julgamento que implicasse a condenação em crime diverso ou
o aumento dos limites máximos da pena aplicável ser submetida ao regime do
artigo 359º do CPP e ficando reservada para o regime do artigo 358º n. 3 do CPP
apenas a alteração da qualificação jurídica na fase da audiência de julgamento
que não implicasse a condenação em crime diverso ou o aumento dos limites
máximos da pena aplicável (Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, 1990,
p. 305 e 362, O Direito De Defesa Em Processo Penal, in Direito e Justiça, 1999,
p. 288, e, expressamente sobre a inconstitucionalidade do artigo 358, n. 3 do
CPP, o Curso de Processo Penal, III, 2000, 278, 279 e 283).
Esta tese não está isolada, tendo agora recebido o apoio do Professor Damião da
Cunha, que entende que só respeita o crivo constitucional a alteração da
qualificação jurídica da acusação que seja favorável ao arguido, sendo
inconstitucional qualquer entendimento do artigo 358, n. 3, do CPP, que permita
a imputação de um ou mais crimes novos ou o agravamento dos limites máximos do
crime imputado ao arguido na acusação (Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial,
Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura
Acusatória, 2002, pp. 233, 234, 445,446 e 450).
A bem do esclarecimento desta questão magna do direito processual português,
este Tribunal vai acompanhar a posição crítica destes autores e submeter ao
Tribunal Constitucional a questão.
Assim, o Tribunal não vai julgar procedente a acusação com a alteração nela
introduzida na audiência de julgamento pelo MP, com base na
inconstitucionalidade da norma decorrente dos artigos 339º n. 4 e 358, n. 3 do
CPP, na redacção da Lei n. 59/98, de 25.8, quando interpretada no sentido de
permitir o conhecimento daqueles novos crimes referidos na douta promoção do MP
em audiência de julgamento, e, consequentemente, o Tribunal vai apenas julgar
procedente e condenar o arguido pelos crimes imputados na acusação na sua versão
inicial.
[...]
Pelo exposto, declaro a inconstitucionalidade da norma decorrente dos artigos
339º n. 4. e 358º n. 3. ambos introduzidos pela Lei n. 59/98 de 25/8 quando
interpretada no sentido de que é admissível qualquer alteração desfavorável da
qualificação jurídica da acusação na audiência de julgamento que implique o
agravamento da moldura penal do crime ou dos crimes imputados ao arguido ou a
imputação de novos crimes com base na mera comunicação prévia da alteração ao
arguido pelo tribunal e, quando requerido, a concessão de tempo de defesa, e, em
consequência, julgo improcedente a acusação com a alteração nela introduzida na
audiência de julgamento pelo MP no que tocante a um crime de injúrias
qualificadas e a um crime de ofensas corporais qualificadas.
Mais julgo procedente a acusação na sua versão inicial e condeno o arguido A.
pelo crime de injúrias agravadas p. e p. pelos artigos 181, 184 e 132, n. 2, al.
j) do CP, na pena de dois meses de prisão, pelo crime de ofensas corporais
qualificadas, p. e p. pelos artigos 143, n. 1, 146, e 132, n. 2, al. j) do CP,
na pena de três meses de prisão, e pelo crime de resistência a funcionário, p.
e. p. pelo artigo 347 do CP, na pena de quatro meses de prisão.
Em cúmulo destas penas, condeno o arguido em seis meses de prisão, que converto
na pena de 180 dias de multa, à razão de 3 euros por dia.”
Saliente-se que, conforme consta da acta de fls. 131/132, durante a audiência de
discussão e julgamento o Ministério Público disse verificar que os factos
descritos na acusação consubstanciavam a prática pelo arguido de dois crimes de
injúrias agravadas, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada e de
um crime de resistência a funcionário, tendo requerido que se considerasse
alterada a acusação nestes termos. A defensora do arguido referiu nada ter a
opor à consideração da nova qualificação jurídica da acusação, prescindindo de
prazo para a defesa.
Em seguida, o Juiz proferiu o seguinte despacho: “O Tribunal ponderará em sede
de julgamento a nova qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, em
alternativa à anterior qualificação jurídica.”.
A questão da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da
acusação ou da defesa foi objecto de pronúncia pelo Tribunal Constitucional,
antes das alterações introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei n.º
59/98, de 25 de Agosto, a propósito, designadamente, da doutrina fixada pelo
Supremo Tribunal de Justiça no Assento n.º 2/93, segundo a qual “não constitui
alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples
alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se
traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”.
No seguimento de várias decisões de inconstitucionalidade, o Acórdão n.º 445/97,
publicado no DR, I Série-A, de 5 de Agosto de 1997, declarou inconstitucional,
com força obrigatória geral “por violação do princípio constante do n.º 1 do
artigo 32º da Constituição –, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º
do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1,
303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b) do mesmo Código,
quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo
Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de
«Assento n.º 2/93», na 1ª Série-A do Diário da República de 10 de Março de 1993
- aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão n.º 279/95 do Tribunal
Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos
descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva
qualificação jurídica, mas tão somente na medida em que, conduzindo a diferente
qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não
se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela,
oportunidade de defesa.”
Neste mesmo acórdão, o Tribunal ponderou:
“Como tem sido enfatizado pelas doutrina e jurisprudência constitucionais, as
'garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar
ou contestar todos os elementos carreados pela acusação' (palavras do Acórdão
n.º 54/87 deste Tribunal publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17 de
Março de 1987), sendo um dos significados jurídico-constitucionais do princípio
do contraditório 'o direito do arguido ... de se pronunciar e contraditar ...
argumentos jurídicos trazidos ao processo' (Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 206).
Pois bem:
Sendo facilmente admissível perante a realidade das coisas que diferente pode
ser a estratégia da defesa consoante a qualificação jurídico-criminal dos factos
cujo cometimento é imputado ao arguido, há-de reconhecer-se que -
independentemente da liberdade que deve ser concedida ao tribunal do julgamento
para proceder a uma correcta subsunção jurídica - uma alteração da qualificação
que foi acolhida na acusação ou na pronúncia pode vir a ter, e até por vezes
acentuadamente, repercussão nos objectivos pelos quais aquela estratégia foi
delineada.
Para obstar a um tal inconveniente não é forçoso que a porventura incorrecta
qualificação jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia venha a
subsistir na decisão do julgamento. Bastará que a perspectiva assumida pelo
tribunal do julgamento seja transmitida ao arguido e lhe seja dada oportunidade
de, quanto a ela e caso o deseje, se defender.”
E no Acórdão n.º 518/98, publicado no DR, II Série, de 11 de Novembro de 1998,
foi fixado o sentido e alcance daquela declaração de inconstitucionalidade,
afirmando-se:
“O sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, constante do mencionado acórdão n.º 445/97, é, pois, o
seguinte: o tribunal que proceda a uma diferente qualificação jurídica dos
factos descritos na acusação ou na pronúncia, que importe a condenação do
arguido em pena mais grave, antes de a ela proceder, deve prevenir o arguido da
tal possibilidade, dando-lhe, quanto a ela, oportunidade de defesa.”
O aditamento do n.º 3 ao artigo 358º do Código de Processo Penal efectuado pela
Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto veio expressamente impor, no seguimento daquela
jurisprudência, a audição do arguido quando o tribunal altera a qualificação dos
factos descritos na acusação ou na pronúncia.
No caso concreto em análise, foi comunicada ao arguido a alteração da
qualificação jurídica e foi-lhe dada oportunidade para dela se defender. Assim,
seguindo o entendimento perfilhado nos citados arestos, conclui-se que não foram
postas em causa as garantias de defesa e que nenhuma norma ou princípio
constitucional se mostra violado pelas normas em causa.
Pelo exposto, decide-se dar provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida
ser reformulada em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade agora
formulado.
Lisboa, 6 de Julho de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Artur Maurício