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Processo n.º 717/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. e mulher B. apresentaram, ao abrigo do n.º 4 do
artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), reclamação contra o
despacho do Vice‑Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 5 de Julho
de 2005, de não admissão de recurso de constitucionalidade por eles interposto
contra o despacho da mesma entidade, de 17 de Junho de 2005, que indeferira
reclamação deduzida contra decisão do Desembargador Relator do Tribunal da
Relação do Porto que não admitira recurso de revista dos acórdãos daquela
Relação, de 24 de Janeiro de 2005 e de 4 de Abril de 2005.
Na reclamação endereçada ao Presidente do STJ, os
reclamantes haviam aduzido, além o mais, o seguinte:
“Os ora reclamantes apresentaram o seu requerimento de recurso ao
abrigo do n.º 4 do artigo 678.° do Código de Processo Civil e, desde logo,
fundamentaram como passa a transcrever‑se:
De acordo com aquela norma a admissibilidade deste recurso está
dependente da verificação de dois requisitos, ou seja:
1 – Que o acórdão recorrido esteja em contradição com outro, de
outra ou dessa Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito;
2 – Que do Acórdão recorrido não caiba recurso por razão estranha à
alçada do Tribunal.
Começando por este último por ser, em modesto entendimento, aquele
em relação ao qual verdadeiramente se poderá travar discussão sobre a
admissibilidade deste recurso, dir‑se‑á, desde logo, que não se concebe que a
este caso possa ser aplicada a regra da sucumbência prevista no n.º 1 daquele
artigo 678.° do CPC, porquanto não se crê que, estando preenchido o primeiro dos
alegados requisitos, o legislador tivesse excluído casos em que o que está em
questão não é um valor quantificável, mas um direito fundamental, como o é o
direito a uma habitação em condições necessárias à saúde e ao prolongamento da
vida quando já se tem cerca de 70 anos de idade, portanto, também, o direito à
integridade física das pessoas.
Se espírito contrário se extrair daquela parte do preceito contido
naquele n.º 4 do citado artigo, então colocar‑se‑á a questão da
inconstitucionalidade dessa parte da mesma norma, por violação do princípio da
dignidade e da igualdade dos cidadãos perante a lei consagrados nos artigos 13.°
da nossa Constituição, bem como no n.º 1 do artigo 65.° e até do direito à
integridade pessoal (como neste caso se verifica) tutelado sobretudo pelos
artigos 16.° e 25.º, n.º 1, da mesma CRP, todos emergentes das CEDH e DUDH,
além de ser ofensiva do direito à tutela jurisdicional efectiva, prevista nos
n.ºs 4 e 5 do artigo 20.°, por não assegurar o acesso a um processo justo que
assegure a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em situação de oposição
jurisprudencial dos Tribunais da Relação – preceitos que, por força do artigo
18.° daquela Lei Fundamental, são directamente aplicáveis e vinculativos do
próprio Estado.”
A reclamação foi indeferida por despacho do
Vice‑Presidente do STJ, de 17 de Junho de 2005, do seguinte teor:
“I – Os autores A. e mulher, fundados em oposição de acórdãos,
interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal de dois acórdãos
proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto, um que, nos termos do artigo
713.º, n.º 5, do CPC, julgou improcedente a apelação, e outro que julgou
inverificada a arguida nulidade daquele primeiro acórdão.
O Ex.mo Desembargador Relator proferiu despacho não admitindo o
recurso, por o valor não o permitir e também por não se verificar a invocada
oposição de acórdãos.
Desse despacho reclamam os recorrentes sustentando, além do mais,
que ao caso dos autos não se pode aplicar a regra do n.º 1 do artigo 678.º do
CPC; outra interpretação implica a inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo
678.º do CPC, na parte em que dispõe «… e do qual não caiba recurso ordinário
por razão estranha à alçada do tribunal …», por violação dos artigos 13.º, 16.º,
n.º 1, 20.º, n.ºs 4 e 5, 25.º, n.º 1, e 65.º da CRP. Acrescentam dizendo que
existe oposição de julgados.
II – Cumpre apreciar e decidir.
Os ora reclamantes, após a prolação do acórdão da Relação do Porto
proferido em 24 de Janeiro de 2005, vieram arguir a nulidade do mesmo, a qual
foi indeferida pelo acórdão de 4 de Abril de 2005.
Após a notificação deste segundo acórdão, interpuseram recurso para
o Supremo Tribunal de Justiça de ambos os acórdãos.
Sendo assim as coisas, impõe‑se averiguar se o primeiro acórdão já
transitou ou não em julgado.
No Código de 1939, as partes não podiam servir‑se do recurso para
suprir directamente as nulidades de sentença; tinham que argui‑las perante o
tribunal que as cometera por meio de reclamação e só depois a decisão aí
proferida era passível de recurso.
O Código actual abandonou esse regime, dispondo hoje o artigo 668.º,
n.º 3, do CPC que «as nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) só podem ser
arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso
ordinário; no caso contrário, o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas
nulidades ...».
Pretendeu‑se assim evitar o retardamento do trânsito em julgado;
daí, se a parte tiver arguido a nulidade do acórdão perante o tribunal que o
proferiu já não pode depois impugná‑lo pela via do recurso.
Donde, a impugnação por esta via dever efectuar‑se no prazo de 10
dias a contar da notificação do acórdão a que se assaca uma nulidade.
Prazo esse que, no respeitante ao acórdão proferido em 24 de Janeiro
de 2005, já se encontra ultrapassado.
Assim sendo, o recurso ficou inviabilizado no momento em que os ora
reclamantes arguiram a nulidade do acórdão perante o tribunal que o proferiu.
Vejamos agora se é admissível recurso do acórdão proferido em 4 de
Abril de 2005 ao abrigo do artigo 678.º, n.º 4, do CPC, como também pretendem
os reclamantes.
No caso em apreço, estamos perante uma acção sumária e só as acções
ordinárias, ou seja, aquelas em que o valor da acção é superior à alçada da
Relação, € 14 963,94, permitem o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o
que não é o caso dos presentes autos, face ao disposto no artigo 678.°, n.º 1,
do CPC.
É apenas pela razão do valor da causa, e não por motivo estranho à
alçada do tribunal, que não é permitido o recurso ordinário. Consequentemente,
é inaplicável o disposto no n.º 4 do artigo 678.°, que exige que a
impossibilidade de recurso derive de motivo estranho à alçada do tribunal.
E o acórdão recorrido é insusceptível de recurso ordinário por
motivo respeitante à alçada da Relação.
Refira‑se que em situações semelhantes à constante dos autos é
admissível recurso para o STJ, quando o valor da causa ultrapasse a alçada da
Relação, de harmonia com o disposto no artigo 678.°, n.º 1, do CPC. Se neste
contexto for interposto recurso para o STJ possibilita‑se a este conhecer da
jurisprudência divergente, uniformizando‑a mesmo, se se revelar necessário ou
conveniente, de harmonia com o que se estabelece no artigo 732.º‑A do citado
Código.
Tivesse o legislador outra intenção e seguramente referiria, na
parte inicial do artigo 678.°, n.º 4, do CPC, tal como fez na parte final do
n.º 2 do mesmo artigo, que o recurso era sempre admissível, independentemente do
valor da causa.
Por outras palavras: poderá haver recurso quando a divergência
jurisprudencial surgir em causa semelhante que ultrapasse o valor da alçada da
Relação.
E não se diga que nesta perspectiva não havia necessidade de
consagrar a norma excepcional do n.º 4 do artigo 678.°.
É que há casos em que, pelo tipo ou natureza de processo, o recurso
para o Supremo é sempre inadmissível seja qual for o valor da causa.
É para esses casos, que nunca viriam ao Supremo (e que portanto
nunca poderiam ser objecto de uniformização de jurisprudência), que surgiu, na
versão originária do actual CPC, a norma do anterior artigo 764.°, a que
corresponde, com modificações, o actual n.º 4 do artigo 678.° (vide Lopes
Cardoso, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, pág. 463, e, entre
outros, o Acórdão do STJ, de 11 de Outubro de 1979, Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 290, pág. 309).
Quanto à invocada inconstitucionalidade do artigo 678.º, n.º 4, do
CPC, cabe referir o seguinte: como o Tribunal Constitucional tem sustentado, a
Constituição não impõe que tenha de haver recurso de todos os actos do juiz,
como também não exige que se garanta sempre um segundo grau de jurisdição. Mais:
no âmbito do processo civil, o direito à tutela judicial efectiva, consagrado
no artigo 20.º da CRP, basta‑se, em princípio, com uma instância única (cfr.,
entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 261/2002, de 18 de Junho
de 2002).
Não se julga, assim, inconstitucional a norma do artigo 678.º, n.º
4, do CPC. No mesmo sentido, já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no seu
Acórdão n.º 100/99, de 10 de Fevereiro de 1999.
III – Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.”
Notificados deste despacho, os reclamantes vieram do
mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, “para fiscalização da constitucionalidade da norma
contida naquele citado n.º 4 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, na
parte em que dispõe «e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à
alçada do tribunal»”.
Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho,
datado de 5 de Julho de 2005, do Vice‑Presidente do STJ:
“Recorrem os reclamantes A. e mulher B. para o Tribunal
Constitucional da decisão que indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu
recurso de revista que interpuseram nos termos do artigo 678.°, n.º 4, do CPC.
Conforme decisões anteriores (reclamações 4670‑04‑6, 580‑A/05‑4,
1145‑05‑6, 11452‑05‑7 e 1370‑05‑2), temos entendido que a competência do
presidente do tribunal ad quem conferida pelo artigo 688.° do CPC, tal como
decorre desse dispositivo legal e dos princípios gerais que enformam o nosso
processo civil, limita‑se, e a isso se cinge rigorosamente, às questões da
admissibilidade dos recursos e do seu momento de subida.
Exercendo tal competência, por alguns considerada inconstitucional
por se não tratar, em rigor, de actividade jurisdicional, não deve o presidente
observância a rígidos critérios legais, mas antes, em atitude prudencial,
avaliar, casuisticamente, sobre se a questão da admissibilidade ou da subida
imediata dos recursos deve ser apresentada e decidida pelo tribunal superior.
É que as decisões do Presidente, quando favoráveis ao reclamante,
nunca são definitivas, cabendo, sempre, a última palavra à conferência no
tribunal superior (artigo 689.°, n.º 2, do CPC).
Não tem, pois, cabimento suscitar‑se e pretender que se decidam,
pelo presidente do tribunal ad quem, no âmbito da competência que lhe confere o
referido artigo 688.°, outras questões para além das da admissibilidade ou do
momento de subida dos recursos.
Daí que, uma vez que foi já proferida decisão de indeferimento da
reclamação contra o despacho que não admitiu o recurso do acórdão da Relação
que confirmou a sentença, nenhuma outra questão poderá, neste âmbito,
suscitar‑se, nomeadamente, e sem embargo do disposto na alínea b) do artigo
70.° da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a da admissibilidade de recurso para o
Tribunal Constitucional.
Na verdade, a resposta positiva à questão da admissibilidade ou da
subida imediata só se consolida após a conferência, no tribunal superior, que,
de forma explícita ou implícita, a confirmar.
A resposta negativa tem, por sua vez, o efeito de consolidar a
decisão proferida no tribunal a quo que não admitiu (ou reteve) o recurso.
Assim, a admissibilidade dos recursos agora interpostos para o
Tribunal Constitucional terá que ser apreciada no tribunal a quo e terá de sê‑lo
da decisão aí proferida de inadmissibilidade, pois só a partir do nosso
despacho de indeferimento da reclamação aquela se consolidou.
Nestes termos, não se conhece da questão da interposição do recurso
para o Tribunal Constitucional.”
É contra este despacho que vem deduzida a presente
reclamação, aduzindo os reclamantes o seguinte:
“I – Os ora reclamantes apresentaram o seu requerimento de recurso
para a invocada fiscalização concreta da constitucionalidade da norma contida
naquele citado n.º 4 do artigo 678.° do Código de Processo Civil, na parte em
que dispõe «e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada
do tribunal», como passa a transcrever‑se:
1 – A questão da inconstitucionalidade da norma contida naquela
transcrita parte do n.º 4 do artigo 678.° do Código de Processo Civil foi
expressamente levantada pelos ora recorrentes durante o processo;
2 – Tendo‑o feito no pedido de recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça, apresentado no Tribunal da Relação do Porto, e reiterando‑o na
subsequente reclamação do douto despacho que não admitiu esse recurso;
3 – E a douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, sobre a mesma
reclamação, julgou não ser aquela norma inconstitucional;
4 – Como uma das rationes decidendi foi aplicada a norma jurídica
cuja inconstitucionalidade tinha sido invocada;
5 – No caso sub judice está em questão o acesso à justiça na defesa
de um direito à habitação própria dos recorrentes, quando está judicialmente
assente tal necessidade motivada pela doença de ambos;
6 – Estando em risco, como estão (pela falta de acesso à justiça que
lhe permita habitar a sua própria casa da qual, por razões de doença, tem
necessidade – conforme parte da própria decisão judicial recorrida), a saúde, a
integridade física e até a vida dos recorrentes, não poderá humanamente
colocar-se acima destes valores o valor da alçada de qualquer Tribunal, devendo
imperar o principio da dignidade dos cidadãos perante a lei;
7 – Por outro lado, está em causa a ofensa de um direito à tutela
jurisdicional efectiva e princípios de equidade e de igualdade dos cidadãos
perante a lei por se tratar de recurso – nos termos da primeira parte da norma –
de um acórdão de Tribunal da Relação alegadamente em contradição com outro da
mesma Relação.
8 – Tal como foi invocado no decurso do processo, estes direitos,
valores e princípios encontram‑se constitucionalmente consagrados, mormente,
nos artigos 13.°, 16.°, 18.°, 20.°, n.ºs 4 e 5, 25.°, n.º 1, e 65.°, n.º 1 [da
Constituição], e foram violados pela citada parte da norma contida no n.º 4 do
artigo 678.° do Código de Processo Civil, cuja inconstitucionalidade se
suscitou.
9 – Os recorrentes têm legitimidade para recorrer, nos termos do
preceituado no artigo 72.° da Lei do Tribunal Constitucional.
10 – Verifica-se a exaustão ou esgotamento dos recursos ordinários.
II – A decisão ora reclamada vem na sequência de reclamação para o
Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Presidente do Venerando Supremo Tribunal de
Justiça, por não haver sido admitido recurso da Relação do Porto para o mesmo
Supremo Tribunal de Justiça.
Encontram‑se preenchidos todos os requisitos previstos naquele
artigo 72.°, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional para o
conhecimento e admissibilidade do interposto recurso, cuja apreciação da sua
admissão, nos termos do n.º 1 do artigo 76.° da mesma Lei, competia ao Supremo
Tribunal de Justiça por ter sido quem proferiu a decisão recorrida.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
emitiu o seguinte parecer:
“Nos termos do n.º 1 do artigo 76.º da Lei do Tribunal
Constitucional, compete ao autor da decisão recorrida proferir decisão liminar
sobre a admissibilidade do recurso de fiscalização concreta interposto: no caso
dos autos, a «decisão recorrida» é obviamente a proferida, em processo de
reclamação, pelo Ex.mo Conselheiro Presidente do STJ que julgou improcedente a
questão de constitucionalidade suscitada quanto à norma constante do n.º 4 do
artigo 678.º do CPC, pelo que lhe competia efectivamente apreciar da
admissibilidade do recurso endereçado ao Tribunal Constitucional, valorando da
existência dos respectivos pressupostos de admissibilidade, bem como do seu
carácter eventualmente «manifestamente infundado».
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. As reclamações para o presidente do tribunal que
seria competente para conhecer do recurso, previstas no artigo 688.º do Código
de Processo Civil (CPC) como meios de impugnação dos despachos que não admitam
os recursos de apelação, de revista ou de agravo ou dos despachos que retenham o
recurso (correspondentes ao “recurso de queixa” que o artigo 689.º do CPC de
1939 estabelecia como forma de reacção contra os despachos de não admissão de
recursos e que pela reforma operada pelo Decreto n.º 38 387, de 8 de Agosto de
1951, passou a abarcar também os despachos de retenção dos agravos), quer sejam
estruturalmente qualificáveis como reclamação ou como recurso (cf. Armindo
Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, Lisboa, 1994, p. 134; o
artigo 70.º, n.º 3, da LTC equipara expressamente as reclamações para os
presidentes dos tribunais superiores a recursos ordinários, para efeitos de
verificação do requisito, específico dos recursos de constitucionalidade
previstos nas alínea b) e f) do n.º 1 do mesmo artigo, da prévia exaustão dos
recursos ordinários), culminam com a prolação de uma decisão judicial. Esta
natureza judicial da decisão da reclamação em nada é afectada pela
circunstância de, nos casos em que manda admitir ou subir imediatamente o
recurso, não vincular a formação de julgamento do recurso, que pode vir a
decidir em sentido contrário (n.º 2 do artigo 689.º do CPC).
Nessa decisão, o presidente do tribunal superior aprecia
a correcção jurídica dos fundamentos em que o despacho reclamado baseou a não
admissão ou a retenção do recurso e averigua, designadamente se esses
fundamentos forem julgados insubsistentes, a ocorrência de qualquer outro
fundamento para a não admissão ou a retenção do recurso. No desenvolvimento
dessa actividade jurisdicional, o presidente do tribunal superior deve,
relativamente às normas de direito ordinário susceptíveis de aplicação no caso,
apreciar as arguições de inconstitucionalidade que contra elas tenham sido
dirigidas pelas partes e recusar a aplicação das que considere infringirem o
disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204.º da
Constituição).
Tais decisões judiciais são susceptíveis de recurso para
o Tribunal Constitucional, desde que se verifique alguma das situações
elencadas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, e,
designadamente, se aplicarem, como ratio decidendi, norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada, durante o processo, pelo recorrente,
de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigos 70.º, n.º
1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC).
Interposto recurso para o Tribunal Constitucional da
decisão do presidente do tribunal superior proferida no julgamento da reclamação
a ele endereçada, é a ele, como autor da decisão recorrida, que compete apreciar
a admissão do respectivo recurso, nos termos do n.º 1 do artigo 76.º da LTC.
Como refere Fernando Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil,
5.ª edição, Coimbra, 2004, p. 91): “Registe‑se (...) que a decisão do presidente
é passível de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, a ele
competindo, consequentemente, a apreciação do requerimento em que se
consubstancie a interposição desse recurso”. Comentando a alteração de
redacção do n.º 3 do artigo 689.º do CPC (que originalmente era: “O processo
baixa dentro de quarenta e oito horas, depois de ser proferida a decisão, para
ser incorporado no processo principal. Nesse processo, o juiz ou o relator
lavrará despacho em conformidade com a decisão superior”) operada pelo
Decreto‑Lei n.º 329‑A/95, de 12 de Dezembro (passando a ser seguinte: “As
partes são logo notificadas da decisão proferida na reclamação, baixando o
processo para ser incorporado na causa principal, e lavrando o juiz ou o relator
despacho em conformidade com a decisão superior”, Armindo Ribeiro Mendes (Os
Recursos no Código de Processo Civil Revisto, Lisboa, 1998, p. 41) sublinhou
que, com a explicitação do dever de imediata notificação do despacho que decide
a reclamação logo no tribunal superior se visou “eliminar dúvidas e
dificuldades práticas, nomeadamente quando se queira interpor recurso de
constitucionalidade daquela decisão”, acrescentando Carlos Francisco de Oliveira
Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol. I,
Lisboa, 2004, p. 580) que se teve em vista que “tal decisão poderá ser passível
de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, cujo requerimento
será necessariamente apreciado pelo autor da decisão recorrida: o presidente do
tribunal superior que a proferiu”.
Parece deduzir‑se da parte final do despacho ora
reclamado que o seu autor entendeu que, tendo a reclamação contra a não admissão
do recurso de revista sido indeferida, consolidando a decisão tomada pelo
Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto, a admissibilidade do
recurso interposto para o Tribunal Constitucional tinha que ser apreciada no
Tribunal da Relação, reportada à decisão de não admissão do recurso de revista
aí proferida, decisão essa que se teria consolidado a partir do despacho do
Vice‑Presidente do STJ de indeferimento dessa reclamação. Por isso, o
Vice‑Presidente do STJ decidiu “não conhecer da questão da interposição do
recurso para o Tribunal Constitucional”.
Salvo o devido respeito, não se sufraga este
entendimento.
Desde logo, a decisão que julga a reclamação contra o
despacho de não admissão ou de retenção de recurso – quer a revogue, quer a
altere, quer a confirme – substitui a decisão reclamada e passa a ser a única
juridicamente relevante no processo. Mesmo que a reclamação seja indeferida e,
consequentemente, confirmada a decisão de não admissão ou de retenção do
recurso, essa não admissão ou retenção passa a fundar‑se no despacho do
presidente do tribunal superior, e não no despacho do juiz ou relator do
tribunal a quo, sendo até possível – como, aliás, aconteceu no presente caso –
que, embora conducentes à mesma solução, não exista coincidência entre os
fundamentos daquele e os fundamentos deste.
Mas, independentemente da adesão a esta construção, o
que para o efeito que ora nos ocupa é decisivo é que, no presente caso, os
recorrentes inequivocamente indicaram como objecto do recurso que pretendiam
interpor para o Tribunal Constitucional o despacho do Vice‑Presidente do STJ que
indeferiu a reclamação contra a não admissão do recurso de revista. Logo, era o
Vice‑Presidente do STJ (e não o Desembargador Relator do Tribunal da Relação do
Porto), como autor da decisão recorrida, o competente para apreciar a admissão
do respectivo recurso, como claramente resulta do n.º 1 do artigo 76.º da LTC.
3. A decisão de não conhecer da admissibilidade do
recurso de constitucionalidade, por alegada incompetência, é equivalente a uma
decisão de não admissão desse recurso, para efeitos dos artigos 76.º, n.º 4, e
77.º da LTC.
Resulta do n.º 4 deste artigo 77.º, enquanto determina
que a decisão do Tribunal Constitucional que revogue o despacho de
indeferimento do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade
faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, que o Tribunal
Constitucional, caso julgue insubsistentes os fundamentos invocados nesse
despacho, deverá apurar se não se evidencia a ocorrência de outra causa de
inadmissibilidade.
No presente caso, resulta do precedente relatório que os
reclamantes, na reclamação endereçada ao Presidente do STJ, suscitaram a
questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 678.º do CPC
enquanto impede o recurso do acórdão da Relação por oposição de julgado se o
motivo pelo qual não cabe recurso ordinário desse acórdão for um motivo ligado à
alçada do tribunal. E fizeram‑no de modo processualmente adequado perante o
órgão jurisdicional que proferiu a decisão recorrida, em termos de este ficar
obrigado a dela conhecer, como efectivamente conheceu, embora não acolhendo a
tese dos recorrentes. Por outro lado, relativamente à não admissão do recurso
interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Abril de 2005 (o
recurso interposto do acórdão de 24 de Janeiro de 2005 foi julgado inadmissível
por se entender que tal acórdão já transitara em julgado, e não por razões
ligadas ao valor da causa e à inexistência de oposição de julgados, como aduzira
o relator na Relação), a aplicação da questionada dimensão normativa constituiu
a (única) ratio decidendi do indeferimento da reclamação, já que o despacho do
Vice‑Presidente do STJ não assumiu o segundo fundamento do despacho então
reclamado: a inexistência de oposição de julgados.
Neste contexto, não existiria, à partida, obstáculo à
admissão do recurso de constitucionalidade interposto.
4. Acontece, porém, que o n.º 2 do artigo 76.º da LTC
não apenas determina que o autor da decisão recorrida indefira o requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional nos casos de
inadmissibilidade ou extemporaneidade do recurso, ilegitimidade do recorrente e
falta não suprida dos requisitos legalmente exigidos desse requerimento, mas
também que o faça quando, tratando‑se de recurso previsto nas alíneas b) e f) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, forem manifestamente infundados.
Ora, pelo Acórdão n.º 238/2002, o Tribunal
Constitucional confirmou decisão sumária do relator que julgara improcedente o
recurso por considerar manifestamente infundada a questão de
inconstitucionalidade aí suscitada, que era justamente a da
inconstitucionalidade da norma do artigo 678.º, n.º 4, do CPC, “interpretada no
sentido de que ela não consente o recurso para uniformização de jurisprudência
quando o valor da acção não excede a alçada da relação”, questão essa que já
havia sido apreciada e julgada improcedente no Acórdão n.º 100/99, tal como
acontecera com norma semelhante (artigo 764.º do CPC, na redacção anterior à
reforma de 1995/1996) nos Acórdãos n.ºs 275/94 e 239/97.
No citado Acórdão n.º 100/99 expendeu o Tribunal
Constitucional:
“III – 1 – Comanda a norma sub iudicio:
«4 – É sempre admissível recurso, a processar nos termos dos artigos 732.º‑A e
732.º‑B, do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de
diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não
caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a
orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência já
anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.»
Note‑se que o recurso a que se reporta o transcrito normativo é uma
forma de recurso ordinário (cfr. n.º 2 do art.º 676.º do Código de Processo
Civil) denominado julgamento ampliado da revista e visa assegurar a
uniformidade da jurisprudência, nele intervindo o plenário das secções cíveis
do Supremo Tribunal de Justiça.
Ao tempo da versão do Código de Processo Civil anterior à redacção
emergente dos Decretos‑Leis n.ºs 329‑A/95 e 180/96, o seu artigo 764.º estatuía
que era também admissível recurso para o Supremo, funcionando em tribunal
pleno, se o tribunal da Relação proferisse um acórdão que estivesse em oposição
com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de
direito e dele não fosse admitido recurso de revista ou de agravo por motivo
estranho à alçada do tribunal.
Esse artigo, que surgiu de uma proposta aprovada por maioria pela Comissão
encarregue de rever o Código de Processo Civil de 1939 (cfr., sobre o ponto,
Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, 1972, pp.
413 e 414; Eurico Lopes Cardoso, Código de Processo Civil Anotado, 4.ª edição
1972, pp. 413 e 414; Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência,
ano 116.º, p. 93 e seguintes; e Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo
Civil, 2.ª edição, pp. 288 e 289), pretendeu permitir criar uma forma de se
alcançar a emissão, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de um «assento»,
constitutivo de jurisprudência obrigatória, para os casos em que, quer a
matéria, quer a natureza do processo, nunca admitiam o recurso para o mais
elevado tribunal da ordem dos tribunais judiciais – e, por isso, não seria
possível o acesso ao disposto no artigo 763.º – mas em que se assistia à
prolação, pela mesma ou por diferente Relação, de decisões opostas sobre a mesma
questão fundamental de direito.
Em consequência, pode dizer‑se que a razão de ser do inciso não for admitido
recurso de revista ou de agravo por motivo estranho à alçada do tribunal
constante do artigo 764.º do Código de Processo Civil (redacção anterior à
conferida pelos Decretos‑Leis n.ºs 329‑A/95 e 180/96) e do inciso do qual não
caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal constante do
n.º 4 do artigo 678.º da actual redacção daquele corpo de leis, comporta as
seguintes situações:
– se determinada acção, pela sua natureza ou matéria, pode, em abstracto,
admitir recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça independentemente do valor,
sempre será possível, num determinado caso concreto, a obtenção de uma decisão
desse Alto Tribunal;
– todavia, os recursos ordinários, em princípio, interligam‑se com o valor da
causa e, assim, nestes casos, se uma dada acção apresentar um valor inferior ao
da alçada da relação (o de Esc. 2 000 000$00 ao tempo da decisão ora sob censura
– cfr. artigo 20.º da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, denominada Lei Orgânica
dos Tribunais Judiciais –), porque não é possível o recurso até ao Supremo
Tribunal de Justiça, também não se abrirá a via do recurso para uniformização
de jurisprudência (como identicamente se não mostrava possível, no domínio do
Código de Processo Civil antes das alterações de 1995/1996, obter uma decisão do
Supremo que estivesse em oposição com outra por ele tomada e que, assim,
poderia desencadear o recurso para o tribunal pleno). No entanto, se, nesses
casos, o valor da acção exceder a alçada da relação, claro é que se torna
possível a obtenção de aresto por banda do Supremo Tribunal de Justiça, o qual,
se estiver em contradição com outro anteriormente lavrado sobre a mesma questão
fundamental de direito, pode abrir a via do julgamento alargado da revista (ou
podia abrir a via do recurso para o tribunal pleno na já assinalada versão do
Código de Processo Civil);
– para os casos em que a matéria ou a natureza das causas (e já não a forma de
processo decorrente directamente do respectivo valor) nunca admita recurso até
ao Supremo Tribunal de Justiça, porque não é possível a obtenção por banda deste
de uma decisão e, consequentemente, não se figura que haja oposição entre
arestos deste elevado órgão judiciário sobre a mesma questão fundamental de
direito, o legislador, ponderando que importava, para esses casos, obviar à
subsistência de decisões contraditórias quanto a tal questão tomadas pela mesma
ou por diferente Relação, que funcionavam, nos aludidos casos, como o órgão
judiciário de maior hierarquia, entendeu que se justificava que o mencionado
Supremo Tribunal se debruçasse sobre a questão, vindo a tomar uma decisão
constitutiva de uniformização de jurisprudência (ou, no domínio do Código de
Processo Civil anterior à redacção de 1995/1996, de jurisprudência
obrigatória).
2 – Segundo os recorrentes, a norma do n.º 4 do artigo 678.º da vigente versão
do Código de Processo Civil, no segmento ora em apreciação, seria feridente da
Constituição, pois que ofenderia os princípios que defluem dos seus artigos
13.º, n.º 1, 20.º e 62.º.
Começando pela análise da pretensa ofensa do artigo 20.º da Lei Fundamental,
torna‑se claro que em causa unicamente poderá estar o seu n.º 1, na parte em que
nele se estatui que [a] todos é assegurado o acesso ... aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
2.1. Na óptica deste Tribunal, não se divisa que o segmento normativo em apreço
viole o direito fundamental da tutela jurisdicional efectiva consagrado no n.º
1 do artigo 20.º da Constituição.
Na verdade, tal segmento, de todo em todo, não impede, minimamente que seja, que
os cidadãos exerçam, quer o seu direito de acção, quer o direito ao processo,
quer o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, quer o direito a
um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade (cfr.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª edição, p. 163, sobre aquilo que se inclui no direito de acesso aos
tribunais).
Questão conexionada ainda com o direito de acesso aos tribunais é a de saber se
e em que medida nele se integra o denominado direito a um duplo grau de
jurisdição.
Não estando aqui em causa matéria de índole penal (sobre a qual este Tribunal,
desde há muito, tem defendido que, nos casos das sentenças penais condenatórias,
deverá haver direito ao recurso – não por via do direito de acesso aos
tribunais, mas sim como o asseguramento das garantias de defesa que o processo
criminal deve comportar – cfr., hoje, a redacção consagrada no artigo 32.º, n.º
1, da Constituição, após a Revisão Constitucional operada pela Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, e, a este propósito, os Acórdãos
deste Tribunal n.ºs 299/98 e 300/98, ainda inéditos), há que convir que o
segmento normativo sub iudicio, de todo o modo, nem sequer ele próprio
obstacula ao exercício de um direito à obtenção de uma decisão judicial em
segundo grau.
E, mesmo para quem defenda que, estando em jogo direitos fundamentais ou
análogos (como, verbi gratia, o direito de propriedade privada ou o direito de
livre iniciativa económica privada), do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição
deflui um direito de duplo grau de jurisdição, ainda assim a norma em análise
não é impeditiva do respectivo exercício, como, aliás, sucedeu no caso dos
autos, em que os ora recorrentes puderam censurar a decisão tomada pelo tribunal
de 1.ª instância.
2.2. O Tribunal Constitucional tem, desde sempre, tido uma jurisprudência firme
de harmonia com a qual (e ressalvada a matéria tocante às sentenças penais
condenatórias, nos termos acima aflorados) o legislador ordinário tem liberdade
para alterar as regras sobre a recorribilidade das decisões judiciais, aí se
incluindo a consagração, ou não, da existência dos recursos, conquanto, como
tem sustentado parte da doutrina (cfr. Armindo Ribeiro Mendes, ob. cit., pp. 101
e 102), não suprima em bloco ou limite de tal sorte o direito de recorrer de
modo a, na prática, inviabilizar a totalidade ou grande maioria das impugnações
das decisões judiciais, ou, ainda, que proceda a uma intolerável e arbitrária
redução do direito ao recurso, e isso tendo em conta a previsão da existência,
no Diploma Básico, de tribunais de 1.ª instância e de recurso (cfr., por
exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 287/90, in Diário da República, II
Série, de 20 de Fevereiro de 1991, 502/96, idem, idem, de 27 de Fevereiro de
1997, 237/97, idem, idem, de 14 de Maio de 1997, e 239/97, idem, idem, de 15 de
Maio de 1997; cfr., também, Carlos Lopes do Rego, em Estudos sobre a
Jurisprudência do Tribunal Constitucional, pp. 43 e seguintes, maxime, pp. 80 e
segs.).
Na sequência deste posicionamento, há que concluir no vertente caso que o
segmento da norma in specie, ao determinar a inadmissibilidade do julgamento
alargado da revista quando haja oposição entre dois acórdãos da mesma ou de
diferente relação sobre a mesma questão fundamental de direito nos casos em que
não possa caber recurso ordinário por motivo de alçada, não é ofensivo do
direito (ou da corte de direitos) consagrado(a) no n.º 1 do artigo 20.º da
Constituição.
3. Como se viu, os recorrentes sustentam também que aquele segmento é violador
do artigo 13.º da Lei Fundamental.
Em casos em tudo idênticos ao tratado nos presentes autos, mas reportado à
norma do artigo 764.º do Código de Processo Civil na versão anterior à redacção
emergente dos Decretos‑Leis n.ºs 329‑A/95 e 180/96, teve já este órgão de
fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa ocasião de se
debruçar, na perspectiva de uma eventual contraditoriedade com o princípio da
igualdade.
Fê‑lo nos seus Acórdãos n.ºs 275/94 (ainda inédito) e 239/97 (já acima citado).
Respiga‑se, deste último, o seguinte passo, totalmente aplicável à situação de
que nos ocupamos:
«A existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do
estabelecimento de alçadas (de limites de valor até ao qual um determinado
tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do
sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática,
posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da
esmagadora maioria) das acções aos diversos ‘patamares’ de recurso.
Na situação aqui em causa, do que se trata, essencialmente, é do funcionamento
da regra das alçadas: as acções que nunca chegariam ao Supremo Tribunal, e
consequentemente ao pleno, por não disporem de alçada, são subtraídas – ou dito
de outra forma, não são abrangidas – pela legitimação especial de recurso
contida no artigo 764.º.
Ora, sendo certo que as alçadas, bem como todos os mecanismos de ‘filtragem’ de
recursos, originam desigualdades (partes há que podem recorrer e outras não),
estas não se configuram como discriminatórias, já que todas as acções contidas
no espaço de determinada alçada são, em matéria de recurso, tratadas da mesma
forma.
Significa isto que a regra básica de igualdade, traduzida numa exigência de
tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, proibindo,
designadamente, a chamada ‘discriminação intolerável’..., não é afectada pelo
específico aspecto do recurso para o pleno dos acórdãos da Relação, questionado
pelo recorrente (...).»
E, do segundo, convém transcrever o seguinte:
«Segundo os recorrentes, a norma aqui em causa possibilita a existência de uma
diversidade de soluções jurisprudenciais. Mas, quanto a isto, cabe observar que
tal diversidade não é um aspecto peculiar decorrente do artigo 764.º do CPC,
mas sim uma característica geral de todo o nosso regime de recursos. Em geral,
consoante o valor da causa, nuns casos a decisão pode ser reapreciada, e noutros
não pode. Não haverá, porém, violação do princípio da igualdade, se estas
diferenças de tratamento tiverem justificação, à luz do critério exposto.
E tal justificação existe, quer no regime geral dos recursos, como vimos, quer
no caso particular do recurso deste artigo 764.º. Pois, também aqui, a norma que
condiciona o recurso com fundamento em oposição de julgados trata por igual
todas as partes nos processos cujo valor é igual, sendo certo que a distinção
por ela estabelecida assenta no valor económico do pedido e não na situação
económica do recorrente.»
Adite‑se que, para além das considerações efectuadas nos dois arestos de que
parte se transcreveu, tem justificação bastante e, por isso, se não configura
como arbitrária ou irrazoável, uma prescrição tal como a que é levada a efeito
no segmento normativo em apreciação, se ponderarmos que, em acções em que se
possa levantar questão idêntica à suscitada nos presentes autos e cujo valor
permita o recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça, é perfeitamente possível
a obtenção de acórdão por parte desse órgão de administração de justiça e que,
se porventura vier a estar em oposição com outro, permite, nessa eventualidade,
que se lance mão do julgamento ampliado da revista que, assim, irá criar uma
uniformidade jurisprudencial. Deste modo se alcançará uma racionalização do
sistema judiciário e se evitará que toda e qualquer questão que seja
diversamente decidida pelas relações, em casos em que o valor das causas não
permite o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, se veja submetida a este,
quando é previsível que, numa outra acção, de valor tal que permita o acesso ao
mesmo Supremo, este se venha a pronunciar.
Não se vá ainda sem dizer que, como se pode ler em Armindo Ribeiro Mendes (ob.
cit., p. 100, nota 1), «[a] garantia do duplo grau de jurisdição não se acha,
assim, consagrada na Declaração Universal de 1948 nem para o processo civil, nem
para o processo penal (cfr. artigo 11.º)», que, no Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos de 1976 se estabelece «a garantia do duplo grau de
jurisdição apenas em processo penal, quanto às sentenças condenatórias (artigo
14.º, n.º 5)» e que na Convenção Europeia dos Direitos do Homem «não se prevê
ainda a garantia do duplo grau de jurisdição (cfr. artigo 6.º, n.º 1)», a qual
tão‑só se surpreende no Protocolo n.º 7 a tal Convenção, mas unicamente em
relação a qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal.”
À fundamentação desenvolvida no Acórdão n.º 100/99,
aditou o Acórdão n.º 238/2002 a reiteração do que, a propósito da então alegada
violação do princípio da segurança jurídica, se consignara na decisão sumária
por esse Acórdão confirmada, a saber:
“Quanto à violação do princípio da segurança jurídica:
Considera‑se o princípio da segurança jurídica (ao lado do princípio
da protecção da confiança) como um dos elementos constitutivos do Estado de
direito (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, p. 250).
De acordo com o ensinamento do autor citado, entende‑se com uma das
refracções mais importantes daquele princípio, «relativamente a actos
jurisdicionais», a inalterabilidade do caso julgado (ob. e p. cit.). E diz mais
adiante (p. 257) o mesmo autor: «É diferente falar em segurança jurídica quando
se trata de caso julgado e em segurança jurídica quando está em causa a
uniformidade ou estabilidade da jurisprudência. Sob o ponto de vista do cidadão,
não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais (...)»
(sublinhado nosso).
Não se discute as vantagens de um mecanismo processual (um meio
processual) que permita a uniformização da jurisprudência. E a essa vantagens
foi sensível o legislador ao prever o recurso por oposição de julgados.
Coisa diversa é, porém, a de saber se a Constituição vincula o
legislador a consagrar, para todos os casos, e independentemente do valor
económico dos pedidos, um tal recurso.
Ora, sendo jurisprudência pacífica deste Tribunal que o legislador
ordinário goza de uma considerável margem de liberdade de conformação no
estabelecimento de meios recursórios, não garantindo sequer a Constituição, em
matéria não penal, um duplo grau de jurisdição (e o recorrente, no caso, até
deste usufruiu), só aquela hipotética vinculação constitucional poderia impedir
a limitação do recurso para uniformização de jurisprudência, com fundamento na
irrecorribilidade da decisão por o valor da acção em causa não exceder a alçada
da Relação.
Mas a verdade é que se não vê na Constituição a consagração de um
direito dos cidadãos à manutenção ou permanência da jurisprudência,
funcionando sempre o resultado de um determinado litígio – ainda que haja uma
jurisprudência dominante ou pacífica sobre o caso – como um risco para os
litigantes, acrescido pela limitação, constitucionalmente admissível, dos graus
de recurso em função do valor da acção.
Não se verificam, pois as apontadas inconstitucionalidades.”
Mais recentemente, o Acórdão n.º 93/2005, desta 2.ª
Secção, confirmou decisão sumária do Relator que não julgara inconstitucional a
norma do n.º 4 do artigo 678.º do CPC, na mesma dimensão questionada no presente
recurso.
Refira‑se ainda que, mesmo admitindo estar em causa no
litígio um direito fundamental (designadamente, o direito à habitação), tal
apenas poderia justificar constitucionalmente a previsão de um duplo grau de
jurisdição – direito que, no presente caso, já foi assegurado aos recorrentes
mediante o recurso de apelação que interpuseram para o Tribunal da Relação do
Porto –, mas nunca de um terceiro grau de jurisdição (com a admissão do recurso
de revista).
Neste contexto, a questão de constitucionalidade que os
recorrentes pretendiam ver apreciada surge como manifestamente infundada, o que
constitui fundamento para o indeferimento do requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 2, in fine, da LTC).
5. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação, embora por fundamento diverso do do despacho reclamado.
Custas pelos reclamantes, fixando‑se a taxa de justiça
em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Setembro de 2005
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos