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Processo n.º 579/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC) do
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Junho de 2005, que confirmou os
despachos do Conselheiro relator do processo nesse Supremo Tribunal, proferidos
em 16 e 28 de Março de 2005, mediante os quais foi decidido que o recorrente
fosse colocado em situação de prisão preventiva à ordem do processo de que foi
extraído o presente traslado (P.º n.º 4273/00.0TDPRT – Vara Mista de Coimbra, em
recurso no Supremo Tribunal de Justiça sob o n.º 751/05-3).
Já neste Tribunal, o relator restringiu, sem prejuízo de ulteriores
afinamentos, o objecto do recurso a uma das questões identificadas pelo
recorrente, a saber a inconstitucionalidade das normas ínsitas nos 202.º, 254.º,
257.º e 141.º, n.º 4 do CPP, com a interpretação de que pode ser imposta a
prisão preventiva quando o arguido se encontra condenado a pena de prisão por
decisão ainda sem trânsito em julgado, sem que previamente o arguido seja
sujeito a interrogatório judicial pelo tribunal competente, interrogatório onde
se respeitem as regras previstas no artigo 141.º, n.º 4 do CPP e, após tal
interrogatório, a detenção, desde o início, classificada de prisão preventiva,
seja fundadamente validada.
O recorrente apresentou alegações sustentando que a Constituição
impõe que, ainda que seja um juiz a ordenar a detenção, desde que tal ocorra
antes de transitar em julgado a decisão condenatória, o arguido deve ser
apresentado, no prazo de 48 horas, ao juiz competente, que lhe deve comunicar as
causas da detenção, interrogá-lo e dar‑lhe oportunidade de defesa, concluindo
que devem ser julgadas inconstitucionais as normas ínsitas nos artigos 202.º,
254.º, 257.º e 141.º, n.º 4, todas do CPP, quando interpretadas e aplicadas nos
termos com que o foram na decisão recorrida, isto é, no sentido de que o Supremo
Tribunal de Justiça pode aplicar a medida coactiva da prisão preventiva, em
casos de detenção fora de flagrante delito, após a culpa formada, sem
interrogatório judicial prévio, que obedeça ao formalismo do aludido artigo
141.º, n.º 4 do CPP, mas com interrogatório serôdio de finalidade específica
deprecado a tribunal incompetente, sem que tenha havido validação posterior,
ponderando a verificação dos requisitos daquele primeiro normativo, por violação
dos artigos 28.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 da CRP.
O Ministério Público, alertando para que sobre questão semelhante,
em processo em que figura como recorrente o mesmo arguido, recaiu recentemente o
acórdão n.º 547/05, proferido pelo Tribunal em 4 de Agosto de 2005, sustenta que
o recurso não deve proceder, concluindo que a decisão que determinou a colocação
do arguido na situação de prisão preventiva à ordem de um processo já com
sentença condenatória proferida, ainda que não transitada, não procedeu a
qualquer interpretação normativa e susceptível de violar normas ou princípios
constitucionais, ao não acolher o entendimento de ter que ser cumprido o
dispositivo do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal e de haver que
validar posteriormente tal medida coactiva.
2. Resulta dos autos, com interesse para melhor compreensão da questão de
constitucionalidade que importa resolver, o seguinte:
a) O recorrente fora condenado na pena de 10 anos e 6 meses de prisão, e 45
dias de multa à taxa diária de 250$00, no P.º 946/98.4 TBBRG da Vara Mista de
Braga, pena que se encontrava a cumprir, por último, no Estabelecimento
Prisional de Paços de Ferreira;
b) Foi novamente condenado como autor de um crime de tráfico de
estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º1, e 24.°,
alínea h), do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, no processo n°
4273/00.0TDPRT, da 1ª Vara de Competência Mista de Coimbra, na pena de 10 anos
de prisão, por factos cometidos durante o cumprimento da pena anteriormente
referida;
c) Dessa decisão foi interposto recurso para a Relação de Coimbra, que por
acórdão de 29‑9‑2004, confirmou a condenação imposta;
d) O recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça;
e) Em 16 de Março de 2005, na pendência desse recurso, considerando que em
26 de Março de 2005 se imporia a colocação do recorrente em liberdade
condicional porque nessa data atingiria os 5/6 da pena que cumpria [a referida
em a)], o Relator do processo no Supremo Tribunal proferiu despacho do seguinte
teor:
“O arguido foi condenado como autor material de um crime de tráfico de
estupefacientes agravado, sendo considerado reincidente.
O arguido mesmo em prisão preventiva, digo no EP de Coimbra, em cumprimento de
pena efectiva, dedicou-se ao tráfico de estupefacientes, não oferecendo garantia
de que, em liberdade, se absteria de o fazer.
Aliás a pena de cumpre no EP respeita ao tráfico de estupefacientes, além do
mais.
Por isso se justifica, pelo justo receio de continuação da actividade criminosa,
nos termos dos artºs. 204.º b) e 202.º n.º 1, a), do CPP, que aguarde o
julgamento em prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, interessando a sua
colocação à ordem deste processo.
Notifique-se. Comunique ao EPR e ao TEP/Porto – fls. 584 e 586.”
f) Em 24 de Março de 2005, o Recorrente reagiu a esse despacho, pedindo a
sua imediata libertação a partir das 6h30 do dia 28 de Março, por então se
completarem 48 horas sobre o início da sua detenção à ordem do processo sem que
tivesse sido sujeito a interrogatório judicial prévio (fls. 40);
g) Por despacho de 24 de Março de 2005, durante as férias judiciais da
Páscoa, o Senhor Conselheiro de turno no Supremo Tribunal de Justiça proferiu o
seguinte despacho:
“Solicite ao Tribunal de Marco de Canavezes – por ser o que, no próximo Sábado,
se encontra de turno – que proceda à audição do arguido A. sobre as
circunstâncias que entenda opor à necessidade da decretada medida de coacção de
prisão preventiva. (envie, por fax, cópia do acórdão da Relação de Coimbra, do
despacho de fls. 1593 e do requerimento que antecede).”
h) Em 26 de Março de 2005, o recorrente foi interrogado pelo juiz de turno
no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes, nos termos solicitados pelo Supremo
Tribunal de Justiça, lavrando-se auto nos termos que constam de fls. 59-65 do
presente translado;
i) Em 28 de Março de 2005, o Ex.mo Conselheiro de turno no Supremo
Tribunal de Justiça proferiu o seguinte despacho:
“A fls. 1575, a Direcção Geral dos Serviços Prisionais informou que o arguido
atingiria no dia 26.3.2005, o cumprimento dos 5/6 da pena em que se encontrava
condenado no âmbito do processo 946/98.4 TBBRG da Vara Mista de Braga, cuja
libertação era obrigatória (cfr. Art. 61 n.º 5 do CP) – fls. 1575 e solicitava
informação sobre se interessava a prisão aos presentes autos.
Também o T.E.P. do Porto, solicitou idêntica informação (fls. 1576).
O Exmo. Conselheiro Relator, ouvido o MP, lavrou despacho onde refere
(transcrição):
«…o arguido no E.P. de Coimbra, em cumprimento de pena efectiva, dedicou-se ao
tráfico de estupefacientes, não oferecendo garantia de que, em liberdade, se
absteria de o fazer.
Aliás, a pena que cumpre no EP respeita ao tráfego de estupefacientes além do
mais.
Por isso se justifica, pelo justo receio de continuação criminosa, nos termos do
art. 204 alínea b) e 202.º n.º 1 alínea a) do CPP, que aguarde o julgamento em
prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, interessando a sua colocação à
ordem deste processo.
Notifique-se. Comunique ao EPR e ao TEP/Porto – fls. 1584 e 1586» (fls. 1593
verso)
E em 17.03.2005 foi expedida carta registada ao mandatário do requerente
notificando-o do conteúdo do despacho de fls. 1593 verso, remetendo-lhe cópia.
Na mesma data foram expedidos ofícios via fax ao E.P. de Paços de Ferreira (fls.
1595) e ao TEP do Porto (fls. 1597).
O TEP do Porto – 2º Juízo informou este STJ, por ofício de 18.3.2005 (fls.
1599), que “…nesta data, foi solicitado ao proc. 946/98.4 TBBRG da Vara de
Competência Mista der Braga, o desligamento e ligamento do arguido A. ao
processo n.º 4273/00 TDPRT da 1ª Vara de Competência Mista de Coimbra, a partir
de 26.03.2005, para ficar detido em prisão preventiva…”.
Em resposta à notificação do despacho do Sr. Cons. Relator o arguido veio com o
requerimento de fls.1613, onde alega, que não tendo sido detido em flagrante
delito nos presentes autos e sem que tivesse sido sujeito interrogatório
judicial prévio, teria o relator neste Supremo Tribunal entendido impor-lhe a
prisão preventiva, com o que foram violados os art. 254 n.º 1 alínea a) e n.º 2
e 61 n.º 1 alínea b) do CPP e 28.º n.º 1 e 2 da CRP.
Assim, entende, que a decisão de privação de liberdade – detenção de facto – tem
de ser alterada a partir do momento em que se ultrapassarem as 48 horas sobre o
início da detenção, isto é, a partir das 6.30 horas de 28 de Março, 2ª feira.
Por isso, requer se digne considerar ilegal a sua detenção, logo que
ultrapassadas 48 horas sobre o início da privação da liberdade à ordem dos
presentes autos, ordenando-se a passagem de mandados de libertação.
O Cons. de turno exarou despacho no sentido de ser solicitado ao Tribunal da
comarca de Marco de Canaveses, por ser o que estava de turno, no sábado, que
procedesse à audição do arguido sobre as circunstâncias que entendesse opor à
necessidade da decretada medida de coacção de prisão preventiva.
O arguido foi ouvido.
Em novo requerimento, a fls. 1639, o arguido refere que, o Tribunal da comarca
de Marco de Canaveses, embora incompetente para o efeito, ouviu-o
exclusivamente, sobre a necessidade da prisão preventiva, segundo referiu, em
cumprimento estrito do despacho de fls. 1615, pelo que, novamente, requer se
digne considerar ilegal a sua detenção.
O MP manteve a anterior posição expressa a fls. 1593.
Conforme refere Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, em anotação ao art.
254, «…os conceitos de detenção e prisão preventiva são diferentes. A prisão
preventiva é a que existe antes do trânsito em julgado da decisão condenatória,
mas que foi levada a cabo em virtude de mandato judicial ou já se encontra
validada por despacho judicial.
Detenção é a privação da liberdade levada a cabo nos termos deste capítulo, que
se integra nas disposições gerais das fases preliminares do processo. O Código
reserva, assim, o termo “prisão preventiva” para a privação da liberdade
individual emergente de decisão judicial interlocutória e o termo “detenção”
para todos os casos restantes, em que a privação da liberdade haja que ser
confirmada por subsequente intervenção judicial, isto para acentuar o carácter
precário e condicional da detenção, sujeita à condição resolutiva de homologação
judicial…».
Ora, no caso presente estamos perante um processo em que foi proferido acórdão
condenatório pela 1ª instância, que se mostra confirmado pelo Tribunal da
Relação, embora o mesmo ainda não tenha transitado em julgado, devido ao recurso
interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, e em que o arguido foi condenado
pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado, na pena de 10 anos de prisão,
tendo sido considerado reincidente.
Por outro lado o Exmo. Conselheiro Relator, ouvido o MP, decretou a prisão
preventiva porque:
«…o arguido no E.P. de Coimbra, em cumprimento de pena efectiva, dedicou-se ao
tráfico de estupefacientes, não oferecendo garantia de que, em liberdade, se
absteria do o fazer.
Aliás, a pena de cumpre no EP respeita ao tráfico de estupefacientes além do
mais.
Por isso se justifica, pelo justo receio de continuação criminosa, nos termos do
art. 204 alínea b) e 202 n.º 1 alínea a) do CPP, que aguarde o julgamento em
prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, interessando a sua colocação à
ordem deste processo…».
Se o arguido não concorda com a decisão do relator que ordenou a sua prisão
preventiva neste processo e pretende impugnar essa decisão, deverá requerer que
sobre a matéria do despacho de fls. 1593 verso recaia um acórdão de conferência.
Pelo que não se estando, pois, perante uma situação de “detenção”, não foram
violados os preceitos legais invocados – art. 254 n.º 1 al. a) e n.º 2 e 61, n.º
1 al. b) do CPP e art. 28 n.º 1 e 2 da CRP, pelo que não há que declarar ilegal
a sua prisão, que está a coberto de um despacho judicial, razão pela qual se
indefere o requerido a fls. 1613 e 1639.
Notifique.”
j) Por requerimento de 29 de Março de 2005, o arguido apresentou
requerimento que conclui nos seguintes termos:
“1- Se digne tomar posição sobre o requerimento impetrado na Comarca de Marco de
Canaveses;
2- Recaia acórdão sobre as decisões de fls. 1593 verso e 1641 e seguintes,
decidindo‑se no mesmo, que a sua situação de privação da liberdade é de
detenção, detenção ilegal, desde as 6.30 do dia 28 de Março de 2005, porquanto,
após o início da privação da liberdade, não foi sujeito a interrogatório
judicial nos termos do artigo 141.º do CPP, pelo tribunal competente, nem
validade tal detenção, determinando-se, pois, a sua libertação.
C) Desde já, e por mera cautela de patrocínio, vem arguir a
inconstitucionalidade da interpretação que vem sendo feita nos autos dos artigos
202.º, 254.º e 257.º do CPP, no sentido de que, a prisão preventiva pode ser
aplicada, desde que, por despacho judicial, sem que tenha ocorrido
interrogatório judicial prévio respeitando a previsão do artigo 141.º, n.º 4 do
CPP, por violação dos artigos 28.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 e 2, ambos da CRP.”
k) Por acórdão de 8 de Junho de 2005, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu
o seguinte:
“O interrogatório judicial de arguido detido sobre os factos que lhe são
imputados é um momento fundamental na apreciação da sua situação, diligência
essencial do ponto de vista da sua defesa, inserto na compreensão das garantias
processuais do arguido, da dimensão do acervo factual que lhe respeita, e, por
outro lado, para indagação, ainda que a título indiciário, da verificação dos
pressupostos da medida de coacção aplicável -, podendo aquela importar o
declarações de vários ou até de todos os arguidos - cfr. Ac. do TC, de
15.3.2005, DR, II Série, n.º 81, de 27.4.2005.
A situação processual, prévia ao decretamento de tal medida, em inquérito, não
comporta afinidade com a subsequente, encerrado aquele e alcançada a fase de
julgamento ou de recurso.
Ultrapassada a fase de julgamento, a posição processual inerente ao arguido é a
de alguém a quem foram, em princípio, tomadas declarações, nos termos dos 341.º
a 343.º, do CPP, em audiência de julgamento, com observância do princípio do
contraditório, tanto em relação às questões incidentais como aos meios de prova
- art.º 327.º, do CPP -, num clima de afirmação de um processo “ab initio”
votado à defesa dos interesses do arguido, a quem se explicitou , na sentença,
as razões de facto e de direito, por força do art.º 374.º n.º 2 , do CPP , que
ditaram a sua condenação .
A dedução de acusação, nos termos legais e numa interpretação ao pé da lei -
art.º 57.º, n.º 1, do CPP - adquire automaticamente a condição de arguido,
inconciliável com a condição de simples detido, que a um juiz haja que
apresentar para depois ouvir, dentro de apertado prazo, previsto nos art.ºs
141.º n.º 1 e 254.º n.º 1 a) , do CPP .
E assim, a ter de efectuar-se, frise-se, o seu objecto e utilidade a bem pouco
se reduzirão; a sua dimensão confinar-se -à a limites muitos estritos, só o
podendo ser à adequada e oportuna medida de coacção.
Ao tribunal, em tal hipótese, e momento é vedado firmar novos factos, proceder à
sua reapreciação e requalificá-los jurídico-penalmente, fácil é de ver.
II . O nosso legislador do CPP distinguiu entre prisão preventiva e detenção; na
filosofia e terminologia básica do CPP são distintos os conceitos de prisão
preventiva e detenção; a detenção é a privação da liberdade levada a cabo nos
termos do Cap. III, da Parte Segunda do Código, Livro VI, Título I, a validar
por subsequente decisão judicial, própria das fases preliminares do processo; o
CPP reserva o conceito de prisão preventiva para a privação de liberdade
individual emergente de decisão judicial interlocutória, fundada em mandado
judicial ou validada por despacho judicial, típica de uma fase processual, a
quem falta, apenas, o trânsito em julgado - cfr . Exm.º Cons.º Maia Gonçalves,
in CPP, Anotado, ed. 1998, pág. 492
III. O artº 28.º n.º 1, da CRP, comporta, actualmente, a seguinte redacção
introduzida pela 4ª. Revisão Constitucional:
A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a
apreciação judicial para restituição à liberdade ou imposição de medida de
coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e
comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.
Na anterior redacção figurava a seguinte redacção:
“A prisão sem culpa formada será submetida no prazo máximo de quarenta e oito
horas, a decisão judicial de validação ou manutenção, devendo o juiz conhecer
das causas de detenção e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe
oportunidade de defesa”.
O uso, no despacho de fls. 16.3.2005, que tanto hipersensibilizou o arguido, da
locução de que se mostrava formada a culpa, quis significar, com plena
actualidade, que a prisão decretada tinha ocorrido após o despacho designativo
de dia para julgamento (cfr. A Tramitação do Processo Penal, do Dr. João Castro
e Sousa, pág.75) e fora ordenada judicialmente.
A retirada do texto do art.º 28.º n.º 1, da CRP, da locução “sem culpa formada”,
em nada concorre para a resolução da questão nuclear do fim da conferência; a
lei constitucional alude à detenção do arguido, à manutenção dele no âmbito da
competência de uma autoridade integrada no poder administrativo, que importa
fazer cessar para interrogatório judicial e cumprimento do direito de defesa.
Não resolve a questão de saber se é obrigatório o omitido interrogatório.
Tenha-se mesmo presente que é perfeita a harmonia entre a lei constitucional e a
lei ordinária, pois se ali se alude a arguido detido, em todos os textos legais
do cpp , referentes ao arguido, seus direitos e interrogatório, se fazendo
referência sempre ao seu estatuto de detido, tendo de entender-se que tanto o
legislador da Constituição como da lei ordinária, não desconheciam o seu alcance
em termos de lhe atribuírem dissemelhança de conteúdo, precisamente com o
significado antecedente ,
Mas também não deriva, em caso algum, dos art.ºs 57.º, 58.º, 59.º, 60.º, 61.º
(este elencando os seus deveres e direitos processuais), 64.º, 140.º, 141.º n.º
1 (referente ao interrogatório de arguido detido, pelo juiz de instrução), 254.º
n.º 1 a) e b) (referente à finalidade da detenção), 257.º, (alusivo à detenção
fora de flagrante delito, nos casos em que é detido), 258.º a 261.º, todos do
CPP, o dever da sua apresentação e interrogatório judicial do arguido, a quem
seja imposta prisão preventiva, atingida uma fase derradeira do processo,
particularmente uma fase recursiva e em esgotamento dos recursos ordinários.
É que a situação processual não é de detenção no sentido técnico-jurídico, mas
de decretamento, por uma autoridade judicial da prisão preventiva, num quadro já
densificado de culpa e responsabilidade penal, com uma probabilidade menor de
ofensa gravosa, irreparável e clamorosa -pelo menos disso se está seguramente
convicto -aos direitos, liberdades e garantias do cidadão.
Essa medida de coacção, de prisão preventiva, em rigor técnico-jurídico, após a
entrada do processo na órbita judicial, é contenciosamente impugnável, como o
foi no caso vertente, pelo recurso à indeferida providência excepcional “de
habeas corpus”, como pela via da submissão à conferência, nos termos do art.º
700.º, n.º 3, do CPC, aplicável “ex vi” do art.º 4.º, do CPP.
Ao ser-lhe imposta neste processo, em recurso, em pendência neste STJ, antes de
cumprir 5/6 da pena antes imposta no Tribunal Judicial de Braga, o arguido foi
notificado da imposição da prisão preventiva e da obrigação de colocação
oportuna à ordem destes autos, e, por deprecada ao Tribunal Judicial de Marco de
Canavezes, foi solicitado, em defesa sua, interrogatório sobre as circunstâncias
que entendesse opôr à necessidade da decretada medida de coacção, a fim de poder
contrariar aquela decisão.
Moveu-se o arguido, ao longo da diligência, no uso daquele direito, dizendo da
forma seguinte:
- cumpriu 9 anos e 3 meses de prisão no processo que pendeu no Tribunal Judicial
de Braga ;
- a filha mostra-se afectada pela reclusão da arguido, com prejuízo para o seu
aproveitamento escolar ;
- o facto de se ter envolvido no tráfico de droga e sancionado nos processos por
que foi condenado, em pena unitária, em Braga , foi o consumir droga ;
- se restituído à liberdade projecta “recolocar” em funcionamento uma oficina de
automóveis que possuía antes de preso em Ferreiros - Braga ;
-projecta ir viver com a mulher;
-Um senhor, de apelido B., já prometeu ao pai do arguido, que, mal abrisse a
oficina, lhe daria trabalho.
Nenhum risco de fuga se perfila.
A mulher do arguido vive em Viana do Castelo, com a filha, sendo o seu pai que
paga a renda da casa, auferindo aquela 80.000 $00 de salário, mensalmente.
Essa alegação, resumida, de resto sem qualquer comprovação, não passando de
meras conjecturas, não oferece qualquer virtualidade para destruir o fundamento
de fuga à acção justiça, na iminência de cumprimento de pesada pena, por crime
da maior gravidade, de tráfico agravado de estupefacientes, sendo reincidente.
Crime grave, dos mais repugnantes à consciência comunitária, através dos quais
obteve somas pecuniárias avultadas e se propunha alcançar mais, a sua
restituição à liberdade causaria, ainda, profundo alarme social e descrença na
força e eficácia da lei.
Identificam-se com toda a clareza e nitidez as condições materiais da prisão
(art.º 202.º n.º 1, a), do CPP, pela configuração de “índices racionais de
culpabilidade”, na forma de prática de grave crime doloso (cfr. J. Tavares de
Almeida, citado in nota 60, pág. 70, op. cit., seu estudo “A Precaridade da
Prisão Preventiva e os Delitos Incaucionáveis”, ROA, Ano 42, 1982, 732), além de
riscos de manutenção em liberdade, nos termos do art.º 204.º a) e c), do CPP,
bem longe de satisfazer a função cautelar da prisão preventiva, sem dúvida
impeditiva do direito de cada a viver em liberdade e a realizar incólume a sua
personalidade.
IV. A interpretação segundo a qual das normas dos art.ºs 202.º, 254.º e 257.º,
do CPP, referindo-se à prisão subsequente à detenção do arguido e não já à
prisão (preventiva) imposta em execução de uma prisão, figurando numa
condenação, ainda não transitada, não carece de validação em interrogatório
judicial, só após ele podendo ser decretada, não viola a CRP, particularmente os
preceitos citados, garantidos como estão sobejos e possíveis meios de defesa do
arguido.”
3. Está em causa a constitucionalidade da norma que se extrai dos
artigos 202.º, 254.º e 257.º do Código de Processo Penal, quando interpretados
no sentido de que a decisão judicial, proferida em fase de recurso da decisão
condenatória, que coloca o arguido já condenado (a pena de prisão superior a 3
anos, pela prática de crime doloso) em situação de prisão preventiva não tem de
ser precedida de interrogatório judicial do arguido, a realizar com as
formalidades previstas no n.º 4 do artigo 141.º do mesmo Código e no prazo de 48
horas a contar do momento em que é posto à ordem do processo em que tal prisão
foi ordenada.
A apreciação desta questão – em que, como é sabido, não compete ao
Tribunal Constitucional averiguar se a decisão recorrida fez-se a melhor
interpretação e aplicação do direito ordinário – exige o exame sucessivo dos
seguintes aspectos problemáticos:
- Se a hipótese (colocação em prisão preventiva, por despacho judicial,
de arguido já condenado) cabe no campo específico de previsão do n.º 1 do artigo
28.º da Constituição;
- Se (perante resposta negativa à questão anterior) a norma extraída dos
referidos preceitos legais e tal como foi aplicada infringe as garantias de
defesa em processo criminal, asseguradas pelo artigo 32.º da Constituição.
4. O n.º 1 do artigo 28º da Constituição tem, actualmente, a seguinte redacção:
“A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a
apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de
coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e
comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.”
Esta redacção resultou de alteração introduzida no preceito pela Lei
Constitucional n.º 1/97 (IV Revisão Constitucional). Antes disso, o preceito
proclamava o seguinte:
A prisão sem culpa formada será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito
horas, a decisão judicial de validação ou manutenção, devendo o juiz conhecer
das causas da detenção e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe
oportunidade de defesa.
Sobretudo neste preceito e no imediatamente anterior, a revisão
constitucional de 1997 procedeu à alteração da terminologia no domínio da
“constituição processual‑penal”, transpondo ou adoptando aquela que fora
antecipada em sede infra‑constitucional (pelo Código de Processo Penal de 1987),
e distinguiu entre prisão preventiva e detenção. Essa intenção de ajustamento e
distinção conceptual por parte do legislador constituinte decorre claramente dos
trabalhos preparatórios, designadamente da discussão no seio da Comissão
Eventual para a IV Revisão Constitucional (Diário da Assembleia da República,
VII Legislatura, II Série, n.º 78, p. 2252 e segs).
Sobre a finalidade do regime especialmente exigente do n.º 1 do
artigo 28.º da Constituição disse-se no acórdão n.º 607/2003 (Diário da
República, II série, de 8 de Abril de 2004):
“A apresentação do detido, no prazo de quarenta e oito horas, à autoridade
judicial competente visa, na própria economia da nossa Lei Fundamental, que os
riscos de uma privação ilegal de liberdade sejam reduzidos ao mínimo possível e
tem por funcionalidade constitucional, segundo decorre do próprio texto do n.º 1
do art. 28º da CRP, a obtenção de um juízo judicial sobre a
legalidade/ilegalidade da detenção e a definição da situação processual futura
do arguido. Isso mesmo acentua o preceito, logo no seu início, ao dizer que a
apresentação é para “restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção
adequada”.
Mas se esse é o fim da apresentação do detido, segundo os próprios termos da
Constituição, não deixa esta de impor ao juiz o cumprimento anterior de certos
deveres e de reconhecer ao detido certos direitos autónomos, a exercer antes de
tomada a decisão judicial que defina a sua situação processual futura. Estão
naquele caso o dever do juiz de conhecer das causas que determinam a detenção da
pessoa apresentada e de lhas comunicar. Situa-se no campo de um e outro desses
lados o interrogatório que o juiz deve fazer ao arguido: ao mesmo tempo que é um
dever para o juiz constitui um direito autónomo do arguido.
Por fim, a Constituição reconhece ao detido o direito de se defender durante o
interrogatório feito pelo juiz das razões que determinam a sua detenção. Sendo
assim, o interrogatório está predestinado essencialmente para o arguido
apresentar, de viva voz ou por escrito, a sua defesa.
Como é evidente, a comunicação das razões de detenção ao apresentado terá de ser
feita pelo juiz com observância do princípio de presunção de inocência
consagrado no art. 32º, n.º 2 - primeira parte - da CRP, de acordo com o qual
“todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação”.
A intervenção do juiz que se encontra desenhada no art. 28º, n.º 1, da CRP
encontra-se toda ela orientada para a salvaguarda do direito fundamental do
arguido à liberdade, intentando obviar à manutenção de qualquer situação de
detenção ilegal.”
Deste modo, ainda que se entenda que a exigência de validação judicial da
detenção “não é ou, pelo menos, essencialmente não é um corolário ou aspecto da
reserva de jurisdição em matéria de privação da liberdade, por forma a limitar
uma privação da liberdade administrativa, maxime policial” e que relativamente à
detenção que tenha sido ordenada pelo juiz se mantém a exigência constitucional
de validação, ainda que já para execução de prisão preventiva (Jorge Miranda e
Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, p. 317), tal garantia
constitucional específica termina com o julgamento e condenação.
Com efeito a estrita regulação estabelecida pelo n.º 1 do artigo 28.º não faria
sentido quando a prisão preventiva é decretada judicialmente após a condenação
do arguido. Não há aí uma exposição ao periculum libertatis inerente à privação
da liberdade por via não judicial que leva a impor o prazo de 48 horas para
apresentação ao juiz (cf. acórdão n.º 565/03, publicado no Diário da República,
II Série, de 30 de Janeiro de 2004). E, nessa fase, não há lugar a confrontar o
arguido com os factos que lhe são imputados e a dar-lhe oportunidade de defesa,
de viva voz, perante tal imputação. Ainda que sem trânsito em julgado, os factos
e a qualificação jurídica respectiva que resultaram do julgamento, não poderiam
nesse acto ser modificados.
Como se disse no acórdão n.º 547/05 – em que esta mesma questão foi apreciada,
em recurso interposto pelo ora recorrente, embora recaindo sobre decisão de
indeferimento de pedido de habeas corpus que também apresentou –, sem prejuízo
de “poder tomar-se, também, como tal a audiência de julgamento ocorrida no
recurso interposto para a Relação, desfrutou de um momento soberano para exercer
esse direito em toda a extensão – a audiência de discussão e julgamento”.
Exigir-se hoje a audição do arguido sobre tais factos “corresponderia a
irrelevar juridicamente todo o processo, desenrolado a montante, desconhecendo
que o mesmo dispôs dessa oportunidade de exercer o direito de contraditório ou
de defesa em vários momentos processuais”.
Assim, o dispositivo do n.º 1 do artigo 28.º não é o parâmetro
constitucional directo – embora, numa leitura integrada da Constituição, o aí
estabelecido se projecte na densificação do conceito de “todas as garantias de
defesa” relativamente ao incidente ou (sub)procedimento conducente à aplicação
da prisão preventiva fora do contexto nele directamente contemplado – da
privação da liberdade em execução de medida de coacção judicialmente ordenada
após a condenação.
5. Deste modo, o que interessa é confrontar a norma em causa com a
exigência de que o processo penal assegure “todas as garantias de defesa” (n.º 1
do artigo 32.º da Constituição). Tarefa que, embora confinado o objecto
admissível neste meio processual à averiguação da conformidade constitucional de
normas e não de decisões ou procedimentos judiciais concretos, tratando-se de um
recurso em processo de fiscalização concreta, resulta facilitada se pusermos em
evidência o seguinte:
- O recorrente foi julgado e condenado, em 1ª instância, pela prática de crime
doloso (tráfico de estupefacientes agravado) na pena de 10 anos de prisão,
confirmada em recurso pela Relação, de cujo acórdão interpôs recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça;
- Já na fase deste último recurso, foi determinado pelo relator no Supremo
Tribunal de Justiça que o arguido passasse à situação de prisão preventiva, à
ordem do processo, a partir de 26 de Março de 2005. Mas, embora em despacho
posterior, foi igualmente deprecado que o arguido fosse presente ao juiz de
turno do tribunal com jurisdição na circunscrição a que pertencia o
estabelecimento prisional onde se encontrava, sendo ouvido, no próprio dia em
que passou a essa situação (que recaiu num Sábado), “sobre as circunstâncias que
entenda opor à necessidade da decretada medida de coacção de prisão preventiva”;
- Tendo, em 28 de Março de 2005 (Segunda-feira) sido proferido despacho pelo
relator (de turno) no Supremo Tribunal de Justiça, a apreciar as questões de
legalidade da prisão a que se encontrava sujeito;
- Vindo, após isso, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão recorrido,
apreciando reclamação dos despachos do relator, a ponderar as razões aduzidas
pelo recorrente quanto à não justificação da prisão preventiva e a confirmar o
despacho do relator que aplicou a medida de coacção.
É por referência a esta situação processual final que a norma questionada é
aplicada pela decisão recorrida e é com o sentido normativo que essa aplicação
lhe empresta que cabe fazer o confronto com o referido parâmetro constitucional,
isto é, com a exigência de que “o processo assegur[e] todas as garantias de
defesa”, tendo presente que aqui a necessidade de defesa se coloca relativamente
a um aspecto tão gravoso como é a aplicação da medida de coacção de prisão
preventiva.
Assim sendo, resta ponderar se tem cobertura no n.º 1 do artigo 32.º da
Constituição a censura que o recorrente faz à interpretação normativa em causa
que consiste na violação dos seus direitos de audiência e defesa por não se
poder considerar assegurado tal direito constitucional com “um interrogatório
serôdio de finalidade específica” em que o arguido seja ouvido apenas sobre as
circunstâncias que tenha a opor à necessidade das medidas de coacção e não
também sobre os factos que lhe são imputados.
Ora, também nesta parte o recorrente não tem razão.
Com a interpretação normativa questionada foi assegurada ao recorrente a
oportunidade de contraditar a verificação dos requisitos gerais de aplicação de
medidas de coacção (artigo 204.º do Código de Processo Penal) e do requisito
específico de aplicação da prisão preventiva que se traduz na inadequação ou
insuficiência das restantes medidas admissíveis (corpo do n.º 1 do artigo 202.º
do mesmo Código). Pode até fazê-lo de viva voz perante um juiz e pode ver
reapreciada a decisão do relator pela conferência, nos termos do n.º 3 do artigo
700.º do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.º do Código de Processo
Penal. O mais que pretende não teria sentido que tivesse lugar nesta fase.
Quando a prisão foi ordenada há muito se encontravam ultrapassadas as fases de
inquérito e instrução e, mesmo com as necessárias adaptações, não se vislumbra
qualquer função útil à defesa do arguido na observância das formalidades do n.º
4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal (“Seguidamente, o juiz informa o
arguido dos direitos referidos no artigo 61.º, n.º 1, explicando-lhos se isso
parecer necessário, conhece dos motivos da detenção, comunica-lhos e expõe-lhe
os factos que lhe são imputados”).
Nestes termos – afastada que ficou a directa submissão da hipótese ao n.º 1 do
artigo 28.º da Constituição – tem também de concluir-se que a interpretação
segundo a qual o arguido já julgado e condenado em 1ª e 2ª instâncias não tem de
ser presente a interrogatório, em que se observem as formalidades do n.º 4 do
artigo 141.º do Código de Processo Penal, antes de lhe ser aplicada a medida de
prisão preventiva, não afronta a garantia constitucional constante do n.º 1 do
artigo 32.º da Constituição.
6. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 4 de Outubro de 2005
Vítor Gomes
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício