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Processo n.º 530/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. e B. reclamaram para o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ) contra o despacho do Desembargador Relator do
Tribunal da Relação de Évora, que não admitira – com expressa invocação da
alínea a) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe
não ser admissível recurso “de despachos de mero expediente” – recurso por eles
interposto de acórdão desse Tribunal, de 12 de Outubro de 2004, que anulara o
julgamento e determinara o reenvio do processo, nos termos previstos nos artigos
426.º e 426.º-A do CPP, para novo julgamento. Nessa reclamação sustentaram não
poder o acórdão da Relação ser considerado despacho de mero expediente, pelo
que o recurso devia ser admitido, uma vez que não se vislumbrava qualquer outra
razão que impedisse a sua admissibilidade.
Por despacho de 25 de Fevereiro de 2005, o Presidente do
STJ indeferiu a reclamação, com a seguinte fundamentação:
“Para a decisão da presente reclamação impõe-se desde logo fazer
apelo à alínea b) do artigo 432.º, onde se determina que se recorre para o STJ
«de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso,
nos termos do artigo 400.º». E deste preceito destaca-se a alínea c) do seu n.º
1, que estabelece serem irrecorríveis os «acórdãos proferidos, em recurso, pelas
relações, que não ponham termo à causa».
Vejamos se a decisão da Relação que anulou o julgamento e ordenou o
reenvio do processo, nos termos previstos nos artigos 426.° e 426.°-A do CPP,
para novo julgamento, pôs termo à causa.
Entende-se que não, porquanto o processo continua a seguir os seus
trâmites com a repetição do julgamento em 1.ª instância, para o apuramento dos
factos constantes do artigo 55.° da matéria de facto provada e outros que se
considerem relevantes.
Acresce que, a admitir-se o recurso para este Supremo Tribunal, este
teria que conhecer da matéria de facto, estranha à sua competência, uma vez que
nos seus poderes de sindicância apenas conhece da matéria de direito, nos
termos do artigo 434.º do CPP, a menos que oficiosamente, e não sob recurso das
partes, entenda pronunciar-se nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do mesmo
Código.”
Notificados deste despacho, os reclamantes vieram arguir
a sua nulidade, nos seguintes termos:
“1 – O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça interposto do
Acórdão da Relação não foi admitido nos termos do disposto no artigo 400.º, n.º
1, alínea a), do CPP.
2 – A decisão de que agora se argui a nulidade indefere a reclamação
com fundamento no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
3 – Considerando que a decisão da Relação de Évora que determinou o
reenvio não põe termo à causa.
4 – Ora, da análise da referida disposição legal, alínea c) do n.º 1
do artigo 400.º do CPP, parecer resultar a irrecorribilidade de acórdãos
interlocutórios e não de acórdãos finais, como é o caso do autos.
5 – Aliás, interpretação diversa, como a que é feita na decisão ora
impugnada, redunda, salvo melhor entendimento, numa ofensa das garantias de
defesa e do direito ao recurso, consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa.
6 – Já que impossibilitar o recurso de uma decisão nova, que ofende
de forma grave os direitos dos arguidos, não é consentânea com os princípios
constitucionais supra referidos, inconstitucionalidade que desde já se invoca.
Termos em que, face ao exposto, deve ser declarada a nulidade da
decisão, interpretando a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP de
acordo com os princípios constitucionais das garantias de defesa e do direito ao
recurso, admitindo o recurso interposto.”
Essa arguição foi indeferida por despacho do Presidente
do STJ, de 10 de Maio de 2005, porquanto:
“As causas de nulidade de sentença, aplicáveis igualmente aos
despachos, ex vi artigo 666.º, n.º 3, do CPC, encontram-se previstas nos
artigos 379.º do CPP e 668.º do CPC.
E a situação agora delineada não cabe em nenhuma das alíneas dos
referidos artigos.
Com efeito, a discordância com a interpretação feita de uma
determinada norma jurídica não consubstancia uma nulidade, mas antes, a ser
considerada, um erro de julgamento.
Acresce que, em oposição ao defendido pelos reclamantes, o acórdão
proferido pela Relação, ao ordenar o reenvio do processo à 1.ª instância para
novo julgamento, é um acórdão interlocutório, e não final.
E ainda, diversamente do sustentado pelos arguentes, as garantias de
defesa do arguido em processo penal não incluem o terceiro grau de jurisdição,
por a Constituição, no seu artigo 32.°, se bastar com um segundo grau.
Termos em que se indefere a arguição de nulidade.”
Vieram então os reclamantes interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a
inconstitucionalidade, por violação do princípio constitucional das garantias
de defesa e do recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, da
interpretação feita, pela decisão recorrida, da norma do artigo 400.º, n.º 1,
alínea c), do CPP.
O recurso não foi admitido por despacho do Presidente do
STJ, de 1 de Junho de 2005, nos seguintes termos:
“Não se admite o recurso para o Tribunal Constitucional por a
inconstitucionalidade da norma do artigo 400.°, n.º 1, alínea c), do CPP não
ter sido suscitada de modo processualmente adequado perante quem foi chamado a
decidir a reclamação de fls. 2 e segs., nos termos do artigo 405.º do CPP.
E isto por, atento o que se dispõe na parte final do n.º 2 do artigo
72.º da LTC, não termos sido solicitados a conhecer da questão da
constitucionalidade ora levantada no despacho de fls. 90 e seg., em que
conhecemos da reclamação.
Irreleva a invocação da inconstitucionalidade da norma do artigo
400.°, n.º 1, alínea c), do CPP no requerimento de fls. 97 e 98 por neste, como
se salienta no despacho de fls. 107, sob a arguição de uma nulidade, somente se
pretendeu atacar a nossa decisão de fls. 90 e seg. por erro de julgamento. E,
sem possibilidade de alterar essa decisão com esse fundamento, também a ela fica
vedada a pronúncia sobre a inconstitucionalidade da norma citada do artigo
400.°, n.º 1, alínea c), do CPP.
Em sentido diverso, não pode argumentar-se com o que se diz no final
do despacho de fls. 107, na parte em que se refere que «as garantias de defesa
do arguido em processo penal não incluem o terceiro grau de jurisdição, por a
Constituição, no seu artigo 32.°, se bastar com um segundo grau». Isto por o ora
transcrito se configurar, no contexto do despacho, como um obiter dictum.”
É contra este despacho que vem deduzida a presente
reclamação, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da LTC, com a seguinte
fundamentação:
“Salvo melhor opinião, o despacho em causa é ilegal, causa agravo
aos reclamantes e, por isso, deve ser revogado.
Vejamos os factos:
1) – Do acórdão proferido pelo Colectivo do 2.° Juízo do Tribunal da
Comarca de Portimão que absolveu os ora reclamantes dos crimes de que vinham
acusados, interpuseram recurso o Ministério Público e os assistentes.
2 – Por acórdão de 12 de Outubro de 2004, o Tribunal da Relação de
Évora deliberou determinar a elaboração de novo acórdão por parte da 1.ª
instância e, em simultâneo, a anulação do julgamento e reenvio do processo para
novo julgamento, restrito a questões concretas.
3 – Desse Acórdão interpuseram os ora reclamantes recurso ordinário
para o Supremo Tribunal de Justiça.
4 – Em 9 de Novembro de 2004, o Sr. Juiz Desembargador Relator
proferiu o seguinte despacho: «Atento o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea
a), do Código de Processo Penal, não admito o recurso interposto pelos arguidos
para o Supremo Tribunal de Justiça».
5 – Desse despacho foi apresentada reclamação para o Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela admissão do recurso, uma vez que não
se estava, claramente, perante um acto de mero expediente.
6 – Por despacho de fls. 92 a 93, de 25 de Fevereiro de 2005, o Sr.
Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça vem indeferir a reclamação,
considerando que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora é irrecorrível, não
com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP, mas nos termos da
alínea c) do mesmo preceito legal.
7 – Tratando-se de decisão nova e com uma interpretação, a nosso
ver, contrária aos princípios constitucionais, foi arguida a nulidade de tal
decisão, suscitando, além do mais, a questão da inconstitucionalidade da
interpretação da norma que se extrai da alínea c) do n.º l do artigo 400.° do
CPP.
8 – Parece evidente, salvo o devido respeito, que não tendo sido
admitido o recurso do acórdão da Relação de Évora com fundamento exclusivo na
alínea a) do n.° 1 do artigo 400.º do CPP, em circunstância alguma os ora
reclamantes poderiam, ou deveriam, suscitar a questão da inconstitucionalidade
da alínea c) do mesmo preceito legal, na reclamação do despacho que
interpuseram para o Supremo Tribunal de Justiça.
9 – Assim, a análise dos factos e o não recebimento do recurso para
o Tribunal Constitucional, por parte do Sr. Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça, tratar-se-á, porventura, de algum equívoco.
10 – A invocação da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP para
não admitir o recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Évora feita pelo
despacho do Sr. Juiz Conselheiro Presidente do STJ constituiu decisão nova, uma
vez que o despacho do Sr. Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora,
do qual se havia apresentado a reclamação, tinha determinado a
irrecorribilidade do acórdão com fundamento apenas na alínea a) do mesmo
artigo.
11 – Daí que se tivesse suscitado a questão da interpretação da
norma e da constitucionalidade da interpretação no requerimento de arguição de
nulidade.
Termos em que, face ao exposto, quer por a decisão proferida pelo
Presidente do STJ sobre a reclamação ter constituído decisão nova, quer por ter
sido suscitada e apreciada a questão da constitucionalidade da interpretação da
norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP, deve o despacho reclamado
ser revogado e o recurso admitido, com as legais consequências.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional emitiu parecer no sentido de que “a presente reclamação é
manifestamente improcedente, já que o reclamante não suscitou – podendo
perfeitamente tê-lo feito – durante o processo e em termos processualmente
adequados, a questão de inconstitucionalidade normativa a que vem reportado o
recurso de fiscalização concreta interposto”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O recurso que o reclamante pretendeu interpor
baseava-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
A admissibilidade deste tipo de recurso depende, além do
mais, de o recorrente haver suscitado uma questão de inconstitucionalidade
normativa perante o tribunal recorrido, em regra antes de ele proferir a
decisão recorrida, e de essa suscitação ser feita “de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de ele
estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal
Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a
questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal
recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se
esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido
uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua
nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já
meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual
aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa
de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
“lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na
qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do
processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da
proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de
suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas
respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por
força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a
prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou
anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para
suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão
recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse
então a questão de constitucionalidade.
3. No presente caso, contrariamente ao que os
reclamantes sustentam, não se verifica nenhuma destas situações anómalas em
que, pelo carácter insólito e imprevisível das interpretação e aplicação
normativas feitas pela decisão judicial impugnada, se deva considerar o
recorrente dispensado do cumprimento do ónus de suscitar a questão de
inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida.
Na decisão de reclamação dos despachos de não admissão
de recurso, o presidente do tribunal superior não está limitado à apreciação da
correcção do concreto motivo invocado na decisão reclamada, podendo basear a
inadmissibilidade do recurso em fundamento diverso. Aliás, os ora reclamantes,
na reclamação apresentada perante o Presidente do STJ, após sustentarem a
inaplicabilidade da alínea a) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, não deixaram de
acrescentar: “Acresce que não se vislumbra qualquer outra razão que justifique a
não admissão do recurso”.
Era, assim, previsível, designadamente para os
reclamantes, que a admissibilidade do recurso penal dependia também da não
verificação de nenhuma das situações previstas nas restantes alíneas do n.º 1
do artigo 400.º do CPP, para além da previsão da alínea a), invocada no
despacho então reclamado. E, neste contexto, para além de não representar
qualquer comportamento inesperado (nem qualquer excesso de pronúncia), por
parte do autor da decisão da reclamação, o apuramento da verificação dessas
situações, também nada tem de inesperado ou insólito o entendimento de que um
acórdão da Relação que anulou o julgamento e ordenou o reenvio do processo, nos
termos previstos nos artigos 426.° e 426.°-A do CPP, para novo julgamento,
enquadra-se na categoria dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações,
que não ponham termo à causa”, que a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP
engloba nos casos de inadmissibilidade de recurso.
Não se trata, pois, de nenhuma das situações
excepcionais em que, por traduzirem uma aplicação anómala ou insólita de normas
legais, de todo inesperada para o recorrente, a jurisprudência deste Tribunal
tem considerado dispensável a suscitação da questão de inconstitucionalidade
antes de proferida a decisão recorrida.
Por falta deste requisito, o recurso de
constitucionalidade era, no caso, inadmissível, como bem decidiu o despacho ora
reclamado.
4. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça
em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Julho de 2005
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos