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Processo n.º 369/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. e B., ora reclamantes, interpuseram no Tribunal Judicial da Comarca de
Alenquer, ao abrigo do disposto no artigo 449º do Código de Processo Penal,
recurso extraordinário de revisão de uma anterior decisão, já transitada em
julgado, que os havia condenado pela prática de um crime de violação de normas
sobre o movimento das empresas.
2. Junta a resposta do Ministério Público, o juiz, em cumprimento do disposto no
artigo 454º do Código de Processo Penal, remeteu o processo ao Supremo Tribunal
de Justiça, acompanhado da seguinte informação, sendo ambas as peças notificadas
aos recorrentes:
“[...] Na perspectiva do tribunal de 1ª instância o pedido de revisão intentado
nos autos não merece provimento.
Efectivamente, crê-se que a circunstância de um eventual responsável pelo
cometimento de um crime não ter sido objecto de procedimento criminal, nem poder
já vir a sê-lo, designadamente por efeito da prescrição do respectivo
procedimento, não obsta à condenação dos demais agentes do crime, ainda que
respondam por actuação em nome de outrem nos termos do artº.12 CP ou que sejam
pessoas colectivas.
É, o que se colhe da previsão do art.º 29° CP.
Por outro lado, é nossa convicção que o fundamento de revisão plasmado no
Artº.449, nº.1, al. d) CPP se refere a factos novos no sentido de eventos de
ordem física e material e não de ordem jurídica.
Daí que, segundo cremos, a invocação da prescrição do procedimento criminal de
um suposto corresponsável pelo crime não possa fundar uma revisão extraordinária
de sentença.
Por fim, e mais uma vez segundo a perspectiva deste tribunal, crê-se que a
circunstância invocada pelos recorrentes relativa à identificação do colaborador
que terá assinado a declaração de existências que o tribunal valorou para
efeitos de demonstração dos factos que suportam a condenação, não sendo nova
para o processo, não pode servir de fundamento à revisão daquela decisão que pôs
termos ao processo.
- Acresce que tal facto de per si não é idóneo a pôr em crise a conclusão
judiciária a que se chegou no processo principal.”
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28 de Fevereiro de 2005,
decidiu negar a requerida revisão, decisão que fundamentou nos seguintes termos:
“ [...] -4- Tudo visto e considerado:
De harmonia com o estatuído no art.º 449°, n.º 1, alínea d), do Código de
Processo Penal, a revisão de sentença transitada em julgado é admissível, quando
“se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com
os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da
condenação”.
Tem entendido a doutrina e a jurisprudência que são novos factos ou novos meios
de prova aqueles que não tenham sido apreciados no processo que levou à
condenação, embora não fossem ignorados pelo arguido na ocasião em que tem lugar
o julgamento. [...]
-5- Sustentam os recorrentes que quem preencheu e assinou a declaração de
existências (fls. 7) apresentada pela recorrente foi o seu empregado [...], que
nunca foi acusado, julgado ou condenado por esse facto, e que, relativamente a
essa conduta, se verificou a extinção do procedimento criminal por prescrição,
que ocorreu em 6-9-2002,
E, ainda que, essa extinção, por prescrição, do procedimento criminal
relativamente ao seu dito empregado, constitui o “facto novo”, com base no qual
pretende ver deferida a revisão.
Ora, a declaração de existências de fls. 7 do processo principal, foi apreciada
nesse processo que levou à condenação dos recorrentes, não constituindo um
“facto novo”, e muito menos a afirmada prescrição do procedimento criminal, que
só existe como afirmação dos recorrentes.
-6- Aquilo que os recorrentes designam por facto novo agora trazido aos autos,
na realidade não o é, uma vez que de per si ou combinado com os que foram
apreciados no processo, não permite suscitar “graves dúvidas sobre a justiça da
condenação”.[...]”
4. Desta decisão foi interposto recurso para este Tribunal, através de um
requerimento em que se afirmava simplesmente que os recorrentes, “[...]
interpõem recurso para o Tribunal Constitucional em conformidade com o disposto
no artigo 75º-A da Lei 28/82, na redacção da Lei n.º 13-A/98”. Tendo um tal
recurso sido admitido no Supremo Tribunal de Justiça e remetidos os autos ao
Tribunal Constitucional, proferiu o Relator o seguinte despacho: “Convido os
recorrentes a darem cabal e integral cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da
Lei n.º 28/82 (Lei do Tribunal Constitucional)”.
5. Os recorrentes responderam assim ao convite:
“[...], em obediência ao despacho de V.Exa. datado de 20.04.05, indicam:
Alínea do n.º 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto: alínea
b) .
Norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o tribunal aprecie: O disposto
no art. 449°, no1, al. d) do Código de Processo Penal (A revisão de sentença
transitada em julgado é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios
de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo,
suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação), na dimensão normativa
encontrada pelo acórdão recorrido - segundo a qual não constitui facto novo,
susceptível de fundamentar a autorização do pedido de revisão de sentença de
condenação de pessoa colectiva e administrador condenados em via subsidiária, a
extinção da responsabilidade criminal por efeito de prescrição relativamente ao
agente/pessoa física que levou a cabo a prática da infracção.
Norma ou princípio constitucional que se considera violado: O disposto nos
artigos. 29°, n.º 6, da CRP (Aplicação da lei criminal - Os cidadãos
injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, a
revisão da sentença), e 30º, n.º 3, da CRP (Limites das penas e das medidas de
segurança A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão).
Peça processual em que o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade:
motivação de recurso apresentada via telecópia em 21.01.2004.[...]”
6. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte agora relevante, o seu teor:
“6. Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do recurso,
uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr.
artigo 76º, n.º 3, da LTC).
Nos termos do requerimento de resposta ao convite do relator, os recorrentes
pretendem ver apreciada a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação
normativa do artigo 449º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, por
alegada violação dos artigos 29º, n.º 6, e 30º, n.º 3 da Constituição; a saber:
a “dimensão normativa encontrada pelo acórdão recorrido - segundo a qual não
constitui facto novo, susceptível de fundamentar a autorização do pedido de
revisão de sentença de condenação de pessoa colectiva e administrador condenados
em via subsidiária, a extinção da responsabilidade criminal por efeito de
prescrição relativamente ao agente/pessoa física que levou a cabo a prática da
infracção”.
Acontece, porém, que o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional pressupõe, nomeadamente, que o recorrente tenha
suscitado, de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a
decisão recorrida, a inconstitucionalidade da norma jurídica – ou, se for o
caso, da interpretação normativa - cuja conformidade com a Constituição pretende
ver apreciada por este Tribunal (art. 72º, n.º 2 da LTC).
Ora, os recorrentes afirmam, na citada resposta ao convite do relator, que
suscitaram a questão de inconstitucionalidade na “motivação de recurso
apresentada via telecópia em 21.01.2004”. Vejamos, então.
6.1. Na motivação do recurso extraordinário de revisão de sentença (peça
processual apresentada via telecópia em 21.01.2004, os recorrentes transcrevem
preceitos da Constituição a que justapõem preceitos do ordenamento
infraconstitucional. Não formulam, contudo, qualquer juízo sobre a
compatibilidade ou incompatibilidade de tais preceitos do direito ordinário com
a Lei Fundamental, sendo, assim, manifesto que, ao contrário do que afirmam, não
suscitaram, aí, qualquer questão de inconstitucionalidade, podendo obviamente
fazê-lo, o que impede o conhecimento do objecto do recurso.
6.2. Verifica-se, além disso, que os recorrentes pretendem ver apreciada a
inconstitucionalidade de uma determinada interpretação normativa do artigo 449º,
n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal. Ora é igualmente pacífico que, ao
contrário do que afirmam na resposta ao convite do relator, nunca suscitaram, em
termos processualmente adequados, perante o Supremo Tribunal de Justiça, a
inconstitucionalidade desta – ou de qualquer outra - interpretação normativa do
artigo 449º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal. Com efeito, como já
se referiu supra, os recorrentes limitam-se, naquela motivação, nomeadamente nos
pontos transcritos – únicos em que se refere a Constituição -, a citar preceitos
constitucionais, sem qualquer esforço de ligação com uma determinada
interpretação daquela alínea d), o que, manifestamente, não é suficiente para
que se possa considerar suscitada em termos processualmente adequados qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, ainda mais quando reportada a uma
determinada interpretação desse preceito.
Ora, como o Tribunal Constitucional tem afirmado, repetidamente, nada obsta a
que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um
determinado preceito. Porém, nesses casos, recai sobre o recorrente o ónus de
indicar (durante o processo e no requerimento de interposição do recurso), de
forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera
inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de
constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre
outros, o Acórdão n.º 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de
1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de
determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos
que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa
enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que
houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os
operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não
pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”. Não o tendo
feito, não se pode conhecer do objecto do recurso
6.3. Em face do exposto, torna-se claro que não pode conhecer-se do objecto do
recurso, por manifesta falta de, pelo menos, um dos seus pressupostos legais de
admissibilidade, a saber: terem os recorrentes suscitado, perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, a questão de constitucionalidade que pretendem ver
apreciada.
Aliás, em rigor, como o recurso de constitucionalidade tem uma função
instrumental (cfr., v.g., os Acórdãos n.ºs 283/97, 556/98, 490/99 - disponíveis
na página Internet, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/),
sempre seria quiçá inútil conhecer do presente recurso, uma vez que,
questionando os recorrentes uma interpretação em que, alegadamente, não
constituiria “facto novo [...] a extinção da responsabilidade criminal por
efeito de prescrição”, a decisão recorrida parece claramente entender que tal
“prescrição” não ocorre, uma vez que nela expressamente se consigna que “a
afirmada prescrição do procedimento criminal, [] só existe como afirmação dos
recorrentes.”
7. É desta decisão que vem interposta, nos termos do n.º 3 do art. 78 - A da Lei
do Tribunal Constitucional a presente reclamação para a Conferência, que os
reclamantes concluem da seguinte forma:
“1) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada antecipadamente durante o
processo.
2) Porventura mais imperfeitamente durante as alegações, mas certamente mais
adequadamente no requerimento de interposição de recurso; em qualquer caso, de
modo exigível dadas as respectivas circunstâncias.
3) O recurso deverá, por isso, vir admitido.
Por outro lado,
4) A afirmada prescrição do procedimento criminal é de conhecimento oficioso.
5) A mesma foi invocada por quem dela se aproveita e não poderá, por isso,
deixar de ser apreciada.
6) Na invocada prescrição reside o «facto novo» fundamentador da
inconstitucionalidade relativa à questão da extinção do procedimento criminal
que os recorrentes pretendem ver apreciada. [...]”
8. Notificado para responder, querendo, à reclamação do recorrente, o Ministério
Público recorrido sustentou que:
“1. A presente reclamação é manifestamente infundada.
2. Na verdade, a argumentação dos reclamantes em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso interposto.”
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
III – Fundamentação
9. Na decisão sumária ora reclamada decidiu-se não ser possível conhecer do
objecto do recurso, “por manifesta falta de, pelo menos, um dos seus
pressupostos legais de admissibilidade, a saber: terem os recorrentes suscitado,
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão de
constitucionalidade que pretendem ver apreciada”. Acrescentou-se, ainda, que, em
rigor, como o recurso de constitucionalidade tem uma função instrumental,
“sempre seria quiçá inútil conhecer do presente recurso, uma vez que,
questionando os recorrentes uma interpretação em que, alegadamente, não
constituiria «facto novo [...] a extinção da responsabilidade criminal por
efeito de prescrição», a decisão recorrida parece claramente entender que tal
«prescrição» não ocorre, uma vez que nela expressamente se consigna que «a
afirmada prescrição do procedimento criminal, [] só existe como afirmação dos
recorrentes.»”
Os recorrentes vêm reclamar daquela decisão, limitando-se, contudo, no
essencial, a dela discordar, alegando que “a questão da inconstitucionalidade
foi suscitada antecipadamente durante o processo”, embora “porventura mais
imperfeitamente durante as alegações, mas certamente mais adequadamente no
requerimento de interposição de recurso”. Invocam ainda que “a afirmada
prescrição do procedimento criminal é de conhecimento oficioso” e que “a mesma
foi invocada por quem dela se aproveita e não poderá, por isso, deixar de ser
apreciada”.
Não têm, porém, razão. De facto, ao contrário do que sustentam, a questão de
inconstitucionalidade, não foi suscitada de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Na verdade, perante esse
tribunal, os recorrentes limitaram-se a invocar o seguinte, nas pontos em que
referem a Constituição ou princípios constitucionais:
“1) Nos termos do disposto no art. 29°, n.º 6 da Constituição da República
Portuguesa «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a
lei prescrever, a revisão da sentença e a indemnização pelos danos sofridos».
2) Dispondo o art. 449°, n.º l, al. d) do CPP que «A revisão de sentença
transitada em julgado é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios
de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo,
suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação».
3) A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena
prescrita ou cumprida (art. 449°, n.º 4, do CPP).
[...]
22) Na justa medida em que a Constituição (artigo 2°) comete ao Estado de
direito democrático em que se consubstancia a República Portuguesa o respeito e
a garantia de efectivação dos direitos fundamentais, também garante que a
responsabilidade penal é insusceptível de transmissão (artigo 30º, n.º3 da
Constituição).
23) Verificando-se, no nosso ordenamento jurídico, a consagração legal da
responsabilidade individual ao lado da responsabilidade do ente colectivo pelos
mesmos factos.
24) A preservação da confiança implica, porém, o respeito pela extinção da
responsabilidade criminal.
25) A prescrição do procedimento criminal traduz-se na renúncia do Estado ao jus
puniendi e tem o mesmo significado da extinção do crime, pois a lei ao dizer que
o procedimento acaba com a prescrição, quer dizer que o crime se extingue com
ela (por todos, cfr. o Ac. da Rel. do Porto de 28-3-1984, Col. de Jur., 1984, 2,
253 e Bol. do Min. da Just., 335, 340) .
26) Extinto o crime para a pessoa física que o praticou, pelo qual não mais virá
a ser punida, subsiste a injustiça da condenação do titular do órgão da pessoa
colectiva e desta própria, em ambos os casos, a título subsidiário de um crime,
afinal, inexistente.”
Ora, tal modo de proceder não pode ser considerado um modo processualmente
adequado de formular uma questão de constitucionalidade normativa, improcedendo,
assim, os fundamentos da reclamação e não cabendo a este Tribunal pronunciar-se
sobre qualquer outra questão que não a da inconstitucionalidade.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se desatender a presente reclamação, confirmando-se a
decisão reclamada de não conhecimento do recurso;
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta, por cada um.
Lisboa, 28 de Junho de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício