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Processo n.º 582/04
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. requereu a abertura de instrução na sequência da acusação contra si deduzida
pelo Ministério Público no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e, depois,
arguiu a irregularidade processual resultante da omissão da notificação do seu
mandatário para estar presente e poder intervir na inquirição das testemunhas
por si arroladas; inconformado com a decisão que indeferiu esse pedido, recorreu
para a Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 18 de Março de 2004,
decidiu, no que agora interessa:
'[...] Entende o recorrente que não tendo sido notificado para estar presente
nas diligências realizadas pelo Mmo JIC e que se traduziram em as testemunhas
arroladas terem sido inquiridas sem a presença do seu mandatário, ocorreu uma
irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa e que
determinaria a repetição das diligências.
O MºPº e o assistente pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
Cumpre decidir:
Não tem razão o recorrente porquanto em sede de instrução as diligências são
realizadas pelo Juiz de Instrução e a presença do mandatário do arguido em nada
influiria no exame e decisão da causa já que lhe não assiste o direito de
formular quaisquer perguntas.
Não foi assim, violado o princípio do contraditório pois a única diligência em
que tal princípio tem aplicação é o debate instrutório.
Termos em que decidem negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.'
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), com o fundamento
assim exposto nas conclusões da alegação do recorrente:
A) Está em causa nos presentes autos a interpretação normativa dada ao art. 289°
n° 2 do C.P.P. devidamente conjugado com o art. 61º- a) do mesmo Código no
sentido de que o mandatário do arguido não tem o direito a estar presente - e a
intervir, solicitando os esclarecimentos que repute necessários - nas
inquirições das testemunhas por si arroladas durante a fase da instrução.
B) Na óptica do Recorrente, tal interpretação normativa é inconstitucional
porque viola o núcleo fundamental das garantias de defesa do arguido e o
princípio do contraditório, tal como resulta do art. 32° n.ºs 1, 5 e 6 da CRP ,
bem como do art. 5°da CEDH.
C) Funda-se o acórdão recorrido na seguinte argumentação:
Não tem razão o recorrente porquanto em sede de instrução as diligências são
realizadas pelo Juiz de Instrução e a presença do mandatário do arguido em nada
influiria no exame e decisão da causa já que lhe não assiste o direito de
formular quaisquer perguntas.
Não foi assim, violado o princípio do contraditório pois a única diligência em
que tal principio tem aplicação é o debate instrutório.
D) Nenhuma dúvida se coloca, pois, quanto à circunstância de que o acórdão
recorrido efectua implicitamente a interpretação normativa acima referida na
conclusão A).
E) Tal interpretação normativa resulta de uma sobrevalorização do elemento
literal constante do art. 289° n° 2 do C.P.P., que esquece a natureza da
instrução, as garantias de defesa e o papel do advogado.
F) O art. 61º n° 1 -a) do C.P.P. estatui o princípio de que o arguido tem
direito - por si ou pelo seu mandatário - a estar presente em todos os actos
processuais que lhe digam respeito, salvas as excepções da lei (maxime os actos
praticados durante o inquérito). Donde decorre - a fim de assegurar a sua plena
utilidade - o direito a intervir nesses actos processuais, colocando as questões
e pedindo os esclarecimentos pertinentes.
Tal princípio consubstancia uma garantia essencial da defesa e assegura o mais
importante e antigo valor de qualquer processo: o contraditório.
Aquela garantia e este valor têm protecção constitucional, particularmente no
art. 32° n.s 1, 5 e 6 da CRP.
G) Teria de haver - e não há - uma razão atendível e razoável para fazer excluir
o advogado do arguido das diligências instrutórias por si requeridas, sob pena
de a interpretação normativa em pauta não incorporar os valores constitucionais
em referência, que têm de estar presentes no processo penal.
H) Assim sendo, o art. 289° n° 2 do C.P.P., na sua conjugação com o art. 61º -
a) do mesmo Código, interpretado no sentido de que o mandatário do arguido não
tem o direito a estar presente - e a intervir, solicitando os esclarecimentos
que repute necessários -, por violar o núcleo fundamental das garantias de
defesa do arguido e o princípio do contraditório, tal como resulta do art. 32°
ns 1, 5 e 6 da CRP.
O Ministério Público contra-alegou e disse a concluir:
1° - Pelas razões constantes dos acórdãos nos 372/00 e 59/01, não é
inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 61º, n.º1, alínea
a) e 285°, n° 2, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que as
diligências de instrução, prévias ao debate instrutório, são realizadas sem a
presença dos mandatários dos sujeitos processuais, incluindo o defensor do
arguido.
2° - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Também o assistente apresentou contra-alegação, manifestando-se pela não
inconstitucionalidade da interpretação das referidas normas do Código de
Processo Penal.
Pretende o recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante
dos artigos 289º n.º 2 e 61º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal, no
sentido de o mandatário do arguido não ter direito a estar presente – e a
intervir, solicitando os esclarecimentos que entender – nas inquirições das
testemunhas por si arroladas durante a fase da instrução. No essencial, a norma
assim delineada pelo recorrente é a esta: as diligências de instrução, prévias
ao debate instrutório, são realizadas sem a presença dos mandatários dos
sujeitos processuais, incluindo o defensor do arguido.
Ora esta questão é semelhante à que foi apreciada por este Tribunal nos
acórdãos n.º 372/00 (publicado no DR, II Série, de 13 de Novembro de 2000) e n.º
59/01 (publicado no DR, II Série, de 12 de Abril de 2001).
No primeiro daqueles arestos, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido
da não inconstitucionalidade do artigo 61º n.º 1 alíneas a) e f) do Código de
Processo Penal, nos seguintes termos:
«8.1. Sustentam as recorrentes que as alíneas a) e f) do nº 1 do artigo 61º do
Código de Processo Penal, quando interpretadas em termos de considerar que não
conferem ao arguido e ao seu defensor o direito de estar presente e intervir nos
actos de inquirição de testemunhas por si arroladas, a realizar na fase de
instrução, que hajam sido delegados pelo juiz nos órgãos de polícia criminal,
são inconstitucionais, designadamente por violação do princípio do contraditório
consagrado no artigo 32º, nº 5, da Constituição.
Vejamos.
Acerca do conteúdo essencial do princípio do contraditório escreveu-se logo no
parecer da Comissão Constitucional nº 18/81 (Pareceres da Comissão
Constitucional, 17º vol., pp. 14 e ss.) e, mais tarde, em vários acórdãos deste
Tribunal (cfr., designadamente os acórdãos nºs 434/87 e 172/92, in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 10º vol. pp. 502 e 503, 22º vol., p. 350 e 351,
respectivamente) que ele está, “em que nenhuma prova deve ser aceite na
audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz,
sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito
processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a
valorar”.
Já sobre a extensão processual do princípio do contraditório dispõe o nº 5 do
artigo 32º da Constituição que a ele está subordinada a audiência de julgamento,
bem como os actos instrutórios que a lei determinar.
A Constituição remete assim para a lei ordinária a tarefa de concretização dos
actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão nº 434/87 (já citado) “Na determinação
dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do
contraditório goza, assim, o legislador de grande liberdade. Ele só não pode
esquecer que o arguido tem de ser sempre respeitado na sua dignidade de pessoa,
o que implica ser tratado como sujeito do processo, e não como simples objecto
da decisão judicial. Ou seja, tem sempre de ter presente que o processo criminal
há-de ser a due processo of law, a fair process, onde o arguido tenha efectiva
possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o
Ministério Público. É que, como adverte Eduardo Correia, in Revista de
Legislação e Jurisprudência, ano 114º, p. 365, o princípio do contraditório se
traduz «ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido».
8.2. Pois bem, em face do que antecede, a pergunta relevante é então a de saber
se a interpretação normativa que a decisão recorrida fez das alíneas a) e f) do
nº 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal - considerando não ser
obrigatória a presença do arguido e do seu defensor nos actos de inquirição de
testemunhas por si arroladas, a realizar na fase de instrução, que hajam sido
delegados pelo juiz nos órgãos de polícia criminal - obsta ou não a que o
processo criminal se mantenha como um due processo of law, a fair process, (para
utilizar-mos as palavras do Acórdão nº 434/87), onde o arguido tenha efectiva
possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o
Ministério Público, num momento prévio a qualquer decisão que o possa afectar.
Cremos, efectivamente, que não.
Sublinhe-se, neste momento, que ao Tribunal Constitucional não compete decidir
se estamos ou não em face de uma boa solução legislativa (solução que, aliás, já
foi em parte alterada, uma vez que o artigo 290º, nº 2 do Código de processo
Penal proíbe hoje expressamente ao juiz de instrução a delegação nos órgãos de
polícia criminal dos actos de inquirição de testemunhas) mas, apenas, decidir se
essa solução legislativa está ou não de acordo com a Constituição e, no caso
concreto, se se situa ou não ainda dentro dos limites impostos pelo
contraditório.
O núcleo essencial do princípio do contraditório, tal como vem sendo definido
pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, não será, in casu, afectado, na
medida em que ao arguido e ao seu defensor seja garantido o direito de, num
momento prévio à decisão instrutória, se pronunciar e contraditar os depoimentos
em causa.
É o que acontece. Na situação que agora é objecto dos autos, tal direito (ao
contraditório), encontra-se efectivamente garantido no seu núcleo essencial,
sendo apenas – como, bem, nota o Ministério Público – diferido o momento do seu
exercido.
Efectivamente, o respeito pelo contraditório é aqui garantido não apenas pelo
facto de o arguido e o seu defensor puderem ter acesso integral aos depoimentos
prestados, que são obrigatoriamente reduzidos a escrito, mas, fundamentalmente,
pelo facto de, nos termos do artigo 302º, nº 2, do Código de Processo Penal, o
defensor do arguido poder, no início do debate instrutório, contraditar o teor
das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas ouvidas pela GNR,
podendo inclusivamente requerer a produção de prova indiciária suplementar
(incluindo mesmo, se necessário, uma nova inquirição daquelas testemunhas) que
considere pertinente.»
E no acórdão n.º 59/01, a propósito da conformidade constitucional da norma
constante do n.º 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal, quando
interpretada no sentido de que as diligências de instrução prévias ao debate
instrutório, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a
notificação e sem a presença do mandatário do assistente, o Tribunal
Constitucional ponderou:
“E, acolhendo os argumentos expendidos naquele acórdão, também agora se entende
que, na determinação dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao
princípio do contraditório, goza o legislador de grande liberdade (tal como,
aliás, decorre do próprio teor literal do artigo 32º, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa, na parte em que determina que estão subordinados ao
princípio do contraditório os actos instrutórios que a lei determinar) e que o
respeito pelo contraditório é garantido não apenas pelo facto de o mandatário do
assistente poder ter acesso integral aos depoimentos prestados, que são
obrigatoriamente reduzidos a escrito, mas, fundamentalmente, pelo facto de, nos
termos do artigo 302º, n.º 2, do Código de Processo Penal, esse mandatário
poder, no início do debate instrutório, contraditar o teor das declarações
anteriormente prestadas pelas testemunhas ouvidas durante a fase da instrução,
podendo requerer a produção de prova indiciária suplementar (incluindo mesmo, se
necessário, uma nova inquirição daquelas testemunhas) que considere pertinente.
Assim, nenhuma censura merece a interpretação normativa ora em causa, à luz do
n.º 5 do artigo 32º da Constituição.”
As mesmas razões valem relativamente à alegada violação do n.º 6 do artigo 32º
da Constituição – a lei define os casos em que, assegurados os direitos de
defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos
processuais, incluindo a audiência de julgamento – pois a liberdade que a
Constituição atribui ao legislador na concretização dos casos em que a presença
do arguido pode ser dispensada em actos processuais, permite uma tal solução que
não põe em causa os direitos da defesa.
Por último, no que respeita à invocada violação do n.º 1 do artigo 32º da
Constituição, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido, acerca
do princípio consagrado neste artigo, que devendo o processo penal configurar-se
como um processo justo e leal, serão ilegítimas as regras processuais, ou os
seus procedimentos aplicativos, que impliquem um encurtamento inadmissível dos
direitos de defesa do arguido (cfr. Acórdãos n.ºs 61/88, publicado no DR, II
série, de 20 de Agosto de 1988, 322/93, publicado no DR, II Série, de 29 de
Outubro de 1993, 382/98, publicado no DR, II Série, de 11 de Dezembro de 1998,
entre muitos outros). Todavia, não se verifica que a interpretação normativa
levada a cabo na decisão recorrida implique um encurtamento inadmissível dos
direitos de defesa do arguido. Como já se disse, o mandatário do arguido pode
ter acesso integral aos depoimentos prestados e, no início do debate
instrutório, contraditar o teor das declarações prestadas durante a fase de
instrução e requerer a produção de prova indiciária suplementar (cfr. n.º 2 do
artigo 302º do Código de Processo).
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 14 de Outubro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Artur Maurício