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Processo n.º 784/05
2ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 18 de Setembro de 2003, A. foi submetida a julgamento no Tribunal Criminal
da Comarca do Porto e condenada, por um crime de ofensas corporais simples,
previsto e punido pelo artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na pena de
120 dias de multa, à taxa diária de 4€ (quatro euros), num total de 480€
(quatrocentos e oitenta euros), uma vez que o crime de ameaças pelo qual também
fora acusada foi amnistiado pela Lei n.º 29/99, de 12 de Maio. Foi também
condenada no pagamento à ofendida de €583,59 (quinhentos e oitenta e três euros
e cinquenta e nove cêntimos) a título de danos patrimoniais, e de €7.500,00
(sete mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais.
A arguida recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, concluindo as alegações
que apresentou aduzindo, entre o mais, o seguinte:
“(…)
11.ª A fundamentação da sentença produzida é insuficiente, porquanto esta
deveria espelhar o teor e o sentido dos depoimentos que a arguida e as
testemunhas de defesa fizeram em audiência, valorando-os, positiva ou
negativamente, mas nunca deixando de os referir e de os examinar, ou de, pelo
menos, afirmar que nenhuma relevância tiveram, sem o que a sentença recorrida
não fez um exame crítico da prova produzida em audiência (art. 374.°, n.º 2, do
Código de Processo Penal), o que a torna nula nos termos do disposto no art.
379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.
12.ª Aliás, o entendimento que se possa retirar do vertido nos artigos supra
citados no sentido de que o depoimento da arguida e das testemunhas não devem
ser referidos na sentença nem dos mesmos ser feita uma análise crítica é
violador do direito ao recurso e das garantias de defesa do arguido, violando
tal entendimento o vertido no art. 32.°, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.”
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 16 de Março de 2005, confirmou a
decisão recorrida, dizendo, para o que agora interessa, o seguinte:
«(…)
No nosso caso a decisão foi pródiga na fundamentação, aprofundando as razões que
determinaram a formação da convicção do tribunal acerca do acervo fáctico que
acolheu como assente. A motivação não se limita a enunciar e elencar os meios de
prova relevantes e decisivos, antes procedeu a uma análise crítica dessas
provas, de modo que possibilita, agora, um olhar retrospectivo, que reconstitua
o iter percorrido na decisão recorrida. Assim, estando em causa, no essencial,
conforme refere a recorrente no pórtico do recurso da decisão final, a acção
delituosa e o nexo de causalidade, temos que a decisão recorrida analisou e
reputou relevantes os depoimentos da assistente e das múltiplas testemunhas
interrogadas, pessoas das suas relações de amizade e vizinhas, o teor das 11
cassetes áudio juntas aos autos e que foram escutadas em audiência de
julgamento, bem como o teor dos documentos de fls. 40 a 44, 87 a 106, 305 e 306,
remetendo-se no mais para a pormenorizada motivação.
Da motivação resulta, e por aí fica a recorrente a saber, quais os factos
provados, as razões pelas quais o tribunal os deu como provados, permitindo à
arguida todos os meios de defesa.
O exame crítico basta-se com o fornecimento das informações suficientes a
permitir perceber o processo lógico que subjaz à formulação da convicção do
julgador, deixando ver a razão do apreço que cada um desses meios de prova
mereceu. No caso, o Ex.mº juiz motivou a sua decisão ao longo de três páginas,
retirando-se no essencial que determinante para o seu convencimento foi a
audição das cassetes contendo as gravações das chamadas, o depoimento da
ofendida, os depoimentos das testemunhas, sendo que estas disseram que a arguida
foi a autora dos telefonemas, pois conhecem a sua voz e algumas até atenderam o
telefone, que eram vizinhas e pessoas das relações da assistente e que a
ofendida ficou nervosa e ansiosa, o seu estado de saúde piorou, em consequência
da conduta da arguida.
Este exame crítico é suficiente para se concluir que a decisão recorrida
assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade,
arbitrariedade ou de uma leitura caprichosa da prova por parte do julgador. Se
esse fosse o caso, o seu defensor, por certo, teria deitado mão de outro modo de
impugnação.»
2.A arguida apresentou então um requerimento dizendo que:
«(…) vem, nos termos dos artigos 69.º, 70.º, n.º 1, alínea b), n.ºs 2 e 3, 75.º,
n.º 2, e 76.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para
o Tribunal Constitucional.
Com efeito, mostrando-se esgotados os recursos ordinários – o recurso é
admissível e tem a tramitação própria do recurso de apelação previsto pelo
Código de Processo Civil, por força do art. 69º citado.»
Admitido o recurso no Tribunal a quo, foi proferido o despacho de
aperfeiçoamento previsto no n.º 6 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal
Constitucional. A recorrente respondeu nos seguintes termos:
«O recurso de constitucionalidade vem interposto da interpretação que se extraiu
do disposto no art.° 374.°, n.° 2, e 379.°, n.° 1, al. a), do Código de Processo
Penal no sentido de que não é necessária a menção na sentença do teor do
depoimento da arguida e das testemunhas de defesa e, como tal, também não é
necessário o exame crítico dessa mesma prova.
Tal entendimento, no ver da recorrente, é inconstitucional por violação do
direito ao recurso e das garantias de defesa (cfr. o art.° 32.°, n.° 1, da
Constituição).
A invocação da inconstitucionalidade da interpretação de tais normas consta das
alegações de recurso da sentença e das conclusões 12.ª e 13.ª.»
No Tribunal Constitucional, foi determinada a produção de alegações,
“ficando o objecto do recurso circunscrito à apreciação da constitucionalidade
dos artigos 374.º, n.º 2, e 379º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal,
interpretados no sentido de que não é necessária a menção na sentença do teor do
depoimento da arguida e das testemunhas de defesa.”
A recorrente produziu alegações, onde concluiu:
«1.ª O acórdão recorrido não faz alusão expressa ao art.º 32.°, n.º 1, da
Constituição, que se acusa de violado pela interpretação que se fez do art.º
374.°, n.º 2, e 379.°, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, mas ainda que
se considere que o tribunal recorrido não conheceu explicitamente da questão da
constitucionalidade da interpretação de tais normas – o que não se concede –, o
Tribunal Constitucional não está impedido de dela conhecer, porquanto “A
aplicação da norma tanto pode ser expressa com implícita (Acs. 88/86, 47/90,
253/93)”, sendo certo que “o não conhecimento por parte de um Tribunal da
inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê-lo, equivale a
aplicação implícita da mesma (Ac. 318/90)” – cfr. Breviário de Direito
Processual Constitucional, de Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, 2.ª edição,
pág. 44 (nota 38) e 45.
2.ª A Constituição impõe que as sentenças sejam fundamentadas na forma prevista
na lei, mas a liberdade que desse modo é dada ao legislador ordinário não é
discricionária, uma vez que “um sistema de processo penal inspirado nos valores
democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão
da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz.” – cfr.
Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, tomo III, Editorial Verbo,
2000, pág. 293.
3.ª A sentença deve conter uma concisa exposição dos motivos de facto e de
direito em que se baseia, com a indicação das provas que fundamentam a decisão e
a enunciação das razões pelas quais o tribunal não considera atendíveis as
provas contrárias, e a doutrina é unânime no sentido de que não basta a mera
indicação dos meios de prova. – cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de
Processo Penal, tomo III, Editorial Verbo, 2000, pág. 293.
4.ª A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com
finalidades várias: Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte,
e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua
correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para
obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da
sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.
5.ª Além disso, “No actual sistema processual penal português, os tribunais de
recurso não podem substituir-se ao tribunal de julgamento em 1.ª instância na
apreciação directa da prova, mas podem e devem apreciar, nos termos do art.º
410.º, n.º 2, se o tribunal de 1.ª instância fez correcta aplicação dos
princípios jurídicos em matéria de prova; devem poder julgar em recurso se houve
ou não erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável na
fundamentação. Para tanto, necessário se torna que a sentença indique a
motivação dos juízos em matéria de facto, para que o tribunal de recurso possa
apreciar da legalidade da decisão”, pois “A não se entender assim, teríamos que
o CPP frustraria o disposto no art.º 32.°, n.º 1, da Constituição, porque, no
rigor dos princípios, é «tão importante (...) reconhecer-se ao arguido o direito
de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto como da
solução que haja sido dada à questão de direito». – cfr. o ac. do Tribunal
Constitucional n.º 243/93, in DR, II série, de 2 de Junho de 1993, e ainda neste
mesmo sentido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito do
Proc. 3668/04, da 4.ª Secção, o acórdão do STJ, de 17 de Março de 2004,
proferido no âmbito do Proc. 4026/03, da 3.ª Secção, publicado in Maia
Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 15.ª edição, 2005, pág. 744, e
ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Julho de 2003,
proferido no âmbito do proc. n.º 2881/03, da 5.ª Secção, publicado in SASTJ, n.º
73, 154, todos supra transcritos.
6.ª “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a
convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o
porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas se as houver,
os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou
na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado
fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua
convicção” – cfr. o acórdão do STJ de 30/1/02, proferido no âmbito do Proc. n.º
3063/01, 3.ª Secção, in SASTJ, n.º 57, 69, e Maia Gonçalves, in Código de
Processo Penal anotado, 15.ª edição, 2005, pág. 743.
7.ª Não pode colher a tese do acórdão recorrido de que é praticamente
insindicável por via do recurso, tendo em conta a falta de imediação, a matéria
de facto assente, dado que o juiz do julgamento recolhe um sem número de
impressões que não ficam registadas em acta, mas apenas na sua mente, uma vez
que a fase de recurso é dominada pelo princípio da escrita, e é difícil, para
não dizer impossível, avaliar da credibilidade de um depoimento em contraponto
com outro diverso, sendo assim a matéria de facto torna-se, assim,
verdadeiramente intangível, se o depoimento das testemunhas de defesa e da
arguida não constarem da fundamentação da sentença.
8.ª A convicção do tribunal é formada dialecticamente, querendo com isto
dizer-se que se “busca a verdade por meio de oposição e reconciliação de
contradições (lógicas ou históricas)” – cfr. “Moderno Dicionário da Língua
Portuguesa” – Círculo de Leitores, pág. 808.
9.ª Com efeito, já Hegel, ao afirmar que a dialéctica era o motor da história,
defendia que a verdade surgiria do confronto da “tese” com a “antítese” que iria
resultar numa “síntese”, pelo que se na fundamentação de uma sentença apenas
vemos espelhada a “tese”, mas já não a “antítese”, não se conseguirá discernir
qual o raciocínio lógico que serviu de base à conclusão (ou à síntese) a que se
chegou.
10.ª Nem se diga que o recorrente podia ter impugnado a decisão sobre a matéria
de facto nos termos do artigo 412.° do Código de Processo Penal, uma vez que
ocorreu a gravação da prova e que o defensor do recorrente deveria ter lançado
mão desse modo de impugnação se entendesse que a prova produzida seria fruto da
discricionariedade, arbitrariedade ou de uma leitura caprichosa da prova por
parte do julgador, desde logo porque é jurisprudência unânime dos Tribunais da
Relação que o direito ao segundo grau de recurso em matéria de facto não
corresponde a um segundo julgamento.
11.ª A faculdade que é atribuída às partes no processo penal de sindicar a
matéria de facto conforme o disposto no art.º 412.° do Código de Processo Penal,
em nada afecta o dever de fundamentar a sentença conforme o disposto no art.º
374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e 205.°, n.º 1, da Constituição.
12.ª No âmbito do Acórdão n.º 680/98 julgou-se inconstitucional a norma do n.º 2
do art.º 374.° do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a
qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples
enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a
explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal por violação do
dever de fundamentação das decisões dos Tribunais previsto no n.º 1 do art.º
205.° da Constituição, bem como quando conjugada com a norma das al.s b) e c) do
n.º 2 do art.º 410.° do mesmo Código, por violação do direito ao recurso
consagrado no art.º 32.° também da Constituição, sendo certo que o caso dos
autos em tudo se enquadra na decisão supra mencionada deste Tribunal.
13.ª É que não se mencionando na sentença sucintamente o teor do depoimento do
arguido e das testemunhas de defesa e, além disso, se não se fizer o seu exame
crítico, torna-se, do mesmo passo, impossível sindicar “o processo de formação
da convicção do Tribunal” e, por consequência, é comprimido o direito ao recurso
e das garantias de defesa.
14.ª Acresce que, como se expende nesse mesmo acórdão, “a fundamentação das
sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão
que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve
ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos
factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria
de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador (...)”, pelo
que através da fundamentação da sentença deverá poder-se aquilatar do porquê que
se tiveram por credíveis determinados meios de prova, mas também se deverá poder
aquilatar do que levou o Tribunal a descredibilizar ou a não atribuir relevância
a outros.
15.ª Assim, deve julgar-se inconstitucional a norma do art.º 374.°, n.º 2, e
379.°, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de
que não é necessária a menção na sentença do teor do depoimento do arguido e das
testemunhas de defesa e o seu exame crítico, por violação do dever de
fundamentação das decisões dos Tribunais, do direito ao recurso e das garantias
de defesa, insertos nos art.ºs 32.°, n.º 1, e 205.°, n.º 1, da Constituição.»
O Ministério Público contra-alegou concluindo do seguinte modo:
«Na ausência de um dos pressupostos para o conhecimento do mérito do recurso,
consistente em ter ocorrido uma interpretação e aplicação normativa alegadamente
desconforme à Constituição, tal como o recorrente as recorta, não deverá o
Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre o mesmo.»
B., assistente nos presentes autos, apresentou também contra-alegações, nas
quais sustentou, a final, que não deve «ser declarada inconstitucional a
interpretação dos art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do C.P.P., no
sentido de que, no caso dos autos, não é necessária a menção do teor do
depoimento da arguida e das testemunhas de defesa, por tal interpretação não
violar o dever de fundamentar as decisões dos tribunais nem colocar em causa os
direitos ao recurso e às garantias de defesa.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.O Ministério Público suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso,
por a interpretação impugnada pela recorrente não ter sido aplicada pela decisão
recorrida.
Verifica-se, porém, que a decisão recorrida, apesar de ter analisado em pormenor
a forma como na decisão de primeira instância se motivara a decisão em matéria
de facto, efectivamente não mencionou especificamente o teor ou conteúdo dos
depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa (mas apenas que estes
existiram e que foram considerados), o mesmo se verificando na decisão da
primeira instância. Esta conclusão resulta da leitura da respectiva
fundamentação (designadamente de fls. 376 a 379) e da própria transcrição do
acórdão de que se recorre, no ponto em que este se deteve sobre essa particular
questão, em que se lê:
«(…) No caso o Ex.mo juiz motivou a sua decisão ao longo de três páginas,
retirando-se no essencial que determinante para o seu convencimento foi a
audição das cassetes contendo as gravações das chamadas, o depoimento da
ofendida, os depoimentos das testemunhas, sendo que estas disseram que a arguida
foi a autora dos telefonemas, pois conhecem a sua voz e algumas até atenderam o
telefone, que eram vizinhas e pessoas das relações da assistente e que a
ofendida ficou nervosa e ansiosa, o seu estado de saúde piorou, em consequência
da conduta da arguida.»
A dimensão normativa impugnada foi, pois, aplicada pela decisão recorrida. Pelo
que improcede, portanto, a questão prévia suscitada, passando a tomar-se
conhecimento do presente recurso.
4.Está em causa a conformidade constitucional da norma extraída dos artigos
374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de não impor menção específica na sentença (não só da
existência, mas) do teor ou conteúdo do depoimento da arguida e das testemunhas
de defesa – e não a segunda parte do artigo 374.º, n.º 2, do mesmo Código, norma
que versa sobre a valoração da prova produzida em julgamento ou a expressão
suficiente do seu exame crítico na fundamentação da decisão.
Em particular, a dimensão normativa em causa é confrontada com o dever
constitucional de fundamentação das decisões judiciais, constante do artigo
205.º, n.º 1, da Constituição.
Deste dever de fundamentação das decisões judiciais decorre que, nas decisões
sobre matéria de facto, é obrigatória a indicação das provas que serviram para
formar a convicção do tribunal. A imposição constitucional referida só fica
satisfeita com a explicitação das razões dessa decisão, feita pelo seu próprio
autor, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se
conformar com a decisão ou impugná-la de forma consciente e eficiente. O exame
crítico das provas credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar
«o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão», como foi
sublinhado já na Conferência Parlamentar sobre a Revisão do Código de Processo
Penal, em 7 de Maio de 1998 (cfr. intervenções de Luís Nunes de Almeida, Germano
Marques da Silva e Eduardo Maia Costa, entre outros, em Código de Processo Penal
– Processo Legislativo, vol. 2, tomo 2, ed. da Assembleia da República, 1999,
págs. 68, 85, 86, 90 e 95 e segs.).
Ocupando essa garantia de fundamentação das decisões judiciais um lugar central
no sistema de valores nos quais se deve inspirar a administração da justiça no
Estado democrático moderno (cfr. Michele Taruffo, “Notte sulla Garanzia
Costitutionale della Motivazione”, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra,
vol. 55, 1979, págs. 29 e segs.). Ela deve ser susceptível, como se escreveu já
em Acórdão deste Tribunal, “de revelar os motivos que levaram a dar como
provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio
geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador,
devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão
concretamente proferida” (cfr. o Acórdão n.º 680/98, publicado no Diário da
República, II Série, de 5 de Março de 1999).
A respeito da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais,
pode ler-se também no Acórdão n.º 61/2006 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt):
«[…]
Foi a primeira revisão constitucional (1982) que, com a inserção do novo n.º 1
do então artigo 210.º da CRP, veio proclamar que “As decisões dos tribunais são
fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei”, formulação que, sem
alteração de redacção, transitou, com a segunda revisão constitucional (1989)
para o n.º 2 do artigo 208.º. A remissão para a lei, não apenas da modulação
dos termos, mas também da definição dos casos em que a fundamentação das
decisões dos tribunais era devida (muito embora sempre se entendesse que “a
discricionariedade legislativa nesta matéria não [era total], visto o dever de
fundamentação [ser] uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de
direito democrático (cfr. art. 2.º), ao menos quanto às decisões judiciais que
tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e
legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso”),
representando “a falta de consagração constitucional de um dever geral de
fundamentação das decisões judiciais”, surgia como “pouco congruente com o
princípio do Estado de direito”, para além de não se compreender que “a garantia
de fundamentação seja constitucionalmente menos exigente quanto às decisões
judiciais do que quanto aos actos administrativos (artigo 268.º, n.º 3)” (J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª edição, Coimbra, 1993, pp. 798‑799) – preceito este último que impunha a
“fundamentação expressa” dos “actos administrativos (...) quando afectem
direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.
Foi a revisão constitucional de 1997 que deu à norma em causa a sua localização
(artigo 205.º, n.º 1) e formulação (“As decisões dos tribunais que não sejam de
mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”) actuais.
Estabeleceu‑se, assim, com dignidade constitucional, a regra geral do dever de
fundamentação de todas as decisões judiciais, com a única excepção das de mero
expediente, remetendo‑se para a lei ordinária a definição, já não dos casos em
que a fundamentação é devida, mas tão‑só da forma de que se pode revestir.
O alcance desta alteração foi salientado por este Tribunal, no Acórdão n.º
680/98, nos seguintes termos:
“7. Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205.º, que «as decisões dos
tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista
na lei». Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio
substituir o n.º 1 do artigo 208.º, que determinava que «as decisões dos
tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei». A
Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da
obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais,
que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões
que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já
que as decisões deixam de ser fundamentadas «nos termos previstos na lei» para
o serem «na forma prevista na lei». A alteração inculca, manifestamente, uma
menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de
fundamentação.”
Também o Acórdão n.º 147/2000 salientou que a “actual redacção do artigo 205.º,
n.º 1, imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde a
Constituição remetia para a lei os «casos» em que a fundamentação era exigível,
passou a concretizar‑se que ela se impõe em todas as decisões «que não sejam de
mero expediente», mantendo‑se apenas a remissão para a lei quanto à «forma» que
ela deve revestir”, acrescentando:
“Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os
direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor
ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite
um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente,
à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem
adequadas.
De todo o modo, a persistência daquela remessa para a lei faz com que o mandado
constitucional de fundamentação continue a ser um mandado aberto à actuação
constitutiva do legislador, a quem incumbirá definir a «forma» em que a
fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido
útil daquele mandado (cfr. Acórdão nº 59/97, in Diário da República, II Série,
n.º 65, de 18 de Março de 1997) – qualquer que seja essa forma, ela terá sempre
que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.
[…]
Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável
como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela
assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de
defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer
norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judiciais
naquele domínio.”
A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais tem uma
função não apenas endoprocessual, mas também dirigida ao exterior do processo:
ela visa explicitar a ponderação que integrou o juízo decisório e permitir às
partes – no caso, ao arguido – o perfeito conhecimento das razões de facto e de
direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a
possibilidade de optar pela reacção (impugnatória ou não) que entendam mais
adequada à defesa dos seus direitos (e por esta via, a obrigação de
fundamentação possibilita também, mediatamente, o exercício do direito ao
recurso que possa caber no caso). Mas a exigência de fundamentação visa também
possibilitar o próprio conhecimento pela comunidade das razões que levaram a uma
determinada decisão, e, pela via da exigência de lógica ou racionalidade da
fundamentação (contida na exigência de fundamentação), contribui também para a
própria legitimação da actividade decisória dos Tribunais.
5.O tribunal do julgamento tem, pois, que explicitar as razões que o levaram a
convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados.
Importa, porém, notar que, como este Tribunal também já afirmou, “a
fundamentação não tem que ser uma espécie de assentada, em que o tribunal
reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma
sintética” (Acórdão n.º 258/2001, com texto integral disponível em
www.tribunalconstitucional.pt). Nem, por outro lado, a fundamentação tem de
obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de
acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a
convicção do tribunal.
Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Constituição não impõe,
na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição ou, ainda mais,
transcrição, de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do
conteúdo de cada um deles. Estes depoimentos, mesmo quando são depoimentos da
arguida e das testemunhas de defesa, podem, com efeito, não ter sido decisivos
para a formação da convicção do tribunal, podendo então bastar que o tribunal
indique aqueles que o foram. Isto, sendo certo que, por um lado, o que está em
causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de
consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos
processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que
este se baseou, e que, por outro lado, não compete ao Tribunal Constitucional
controlar a forma como concretamente o tribunal formou a sua convicção. Como se
referiu, não está, aliás, em causa no presente recurso o controlo do exame
crítico das provas feito na decisão em causa, nem uma admissão da mera elencagem
“tabelar” das provas produzidas.
O que resulta da transcrição acima feita do teor da decisão recorrida, é, antes,
no que ora interessa, que o tribunal do julgamento se socorreu, para formar a
sua convicção, fundamentalmente da audição das cassetes contendo as gravações
das chamadas, do depoimento da ofendida e dos depoimentos das testemunhas,
remetendo‑se para a decisão da primeira instância: “o Ex.m.º juiz motivou a sua
decisão ao longo de três páginas, retirando-se no essencial que determinante
para o seu convencimento foi a audição das cassetes contendo as gravações das
chamadas, o depoimento da ofendida, os depoimentos das testemunhas”, dizendo-se
também aquilo que estas depuseram. Pelo que se entendeu que na sentença foram
efectivamente mencionadas as provas em que o tribunal se baseou, com indicação
da respectiva intervenção e teor do depoimento, apenas não se fazendo menção
específica do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.
Tal entendimento não pode, porém, só por si, considerar-se violador da exigência
de fundamentação das decisões judiciais (ou, mediatamente, das garantias de
defesa do arguido, incluindo o seu direito ao recurso).
Conclui-se, deste modo, que a dimensão normativa dos artigos 374.º, n.º 2, e
379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal impugnada nos presentes
autos não viola os artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição, pelo
que há que negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2,
e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido
de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos
depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa;
b) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida,
no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) Consequentemente, condenar a recorrente em custas, sendo a
taxa de justiça fixada em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos