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Processo n.º 993/04
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. apresentou-se perante o Tribunal Judicial da Comarca de Braga,
requerendo a adopção de uma das medidas adequadas previstas no processo especial
de recuperação de empresa e de falência (fls. 2 e seguintes).
2. Tendo em vista a realização da assembleia de credores, o Ministério
das Finanças, através da Direcção-Geral do Tesouro e da Direcção-Geral das
Contribuições e Impostos, dirigiu ao Magistrado do Ministério Público junto do
Tribunal Judicial da Comarca de Braga dois ofícios, comunicando a orientação
superior de votar favoravelmente a medida de reestruturação financeira, com
determinados limites e condições.
No ofício n.º 3292, de 27 de Outubro de 2003, da Direcção-Geral do
Tesouro (fls. 541 e seguinte), enunciavam-se as seguintes condições:
“[...]
1. Regularização da dívida ao Tesouro:
a) Amortização da dívida, acrescida dos juros que resultarem da aplicação das
taxas fixadas na alínea seguinte, num prazo até 150 meses, em prestações
mensais, iguais e sucessivas, tendo como redução as primeiras 24 (vinte e
quatro) prestações para metade do valor das restantes, vencendo-se a primeira
prestação no mês seguinte à data da sentença homologatória da deliberação da
Assembleia Definitiva de Credores;
b) Redução da taxa anual de juros de mora vencidos para 2,5% e aplicação de uma
taxa anual de juros de mora vincendos de 2,5%.
2. A empresa não poderá distribuir dividendos durante 10 anos, na parte
correspondente ao capital subscrito no momento da aprovação do meio de
recuperação, sendo os lucros afectos a uma conta à margem que será rateada entre
os vários credores na proporção das suas renúncias de créditos;
3. As condições excepcionais de regularização da dívida ficam sujeitas à
condição resolutiva do cumprimento integral das disposições estabelecidas no
presente despacho.
[...].”.
No ofício n.º 7616, de 28 de Outubro de 2003, da Direcção-Geral das
Contribuições e Impostos (Direcção dos Serviços de Justiça Tributária) (fls. 543
e seguinte), indicava-se:
“[...]
Deverá mostrar-se regularizada toda a situação tributária, posterior à
apresentação da devedora à recuperação;
Fica autorizada, nos termos do disposto no art. 196º/3 e 5, do CPPT, a
regularização das dívidas fiscais, em sessenta prestações mensais, sucessivas e
iguais, mediante a concretização dos requisitos de previsão de substituição da
gerência e da prestação de garantia nos termos consagrados no art. 199º/1, 2, 5
e 6, do citado CPPT;
Deverá ser dado início à regularização autorizada no mês seguinte ao da
assembleia que deliberar a aprovação da medida;
Para a regularização autorizada, deverá ser presente ao competente Serviço Local
de Finanças, nos termos do art. 199°/1, 2, 5 e 6, a garantia a prestar através
do penhor referido na proposta do sr. gestor judicial, com a observância do
prazo estabelecido para o efeito no n.° 6 do citado normativo e que na
eventualidade de, no parecer desses serviços, se mostrar insuficiente, deverá
ser complementado por outras garantias de idêntica idoneidade (hipoteca, penhor
ou garantia bancária) até se completar, nos termos da lei, o valor necessário;
No tocante à dispensa de juros de mora, será de se aceitar o cálculo de
renúncias efectuado pela Direcção-Geral do Tesouro, sendo liquidados à taxa daí
resultante, nos termos do disposto no art. 3°/5 do D.L. n.º 73/99, de 16/03, sem
prejuízo do disposto do n.º 3 da mesma norma, se aplicável;
As condições de regularização dos créditos dos restantes credores não poderão
mostrar-se mais favoráveis do que aquelas que se encontram estabelecidas para a
regularização dos créditos da Fazenda Nacional.
[...].”.
3. Na Assembleia de Credores definitiva, o Magistrado do Ministério
Público requereu a junção aos autos dos documentos comprovativos das instruções
recebidas do Ministério das Finanças e o Gestor Judicial pediu um prazo
adicional para apresentar novo relatório adaptado às propostas formuladas pelo
Ministério das Finanças (e pelo Instituto da Segurança Social).
O Juiz do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Braga
concedeu o prazo requerido pelo Gestor Judicial e proferiu despacho do seguinte
teor (fls. 558):
“Face à posição assumida pelo credor Ministério das Finanças, nos termos do artº
62 do C.P.E.R.E.F., a deliberação da assembleia não incidirá sobre este
crédito.”.
4. Na proposta de recuperação apresentada pelo Gestor Judicial
concluía-se, para o que agora releva (fls. 561 e seguintes):
“Face a todos os condicionalismos, propõe-se como meio mais adequado de
recuperação a providência de reestruturação financeira, regulada nos artigos 87º
e seguintes do CPEREF.
1. Quanto ao passivo
a) Os pagamentos à Segurança Social serão efectuados da seguinte forma:
[...]
b) Os pagamentos à Direcção-Geral do Tesouro serão efectuados da seguinte forma:
- Os juros vencidos e os vincendos serão calculados à taxa de 2,5%:
- O pagamento do capital em dívida, acrescido dos juros que resultem da
aplicação das taxas anuais de juros vencidos e vincendos a 2,5%, será efectuado
em 150 prestações mensais e iguais, vencendo-se a primeira no mês seguinte à
data da sentença homologatória da Assembleia Definitiva de Credores, tendo como
redução as primeiras 24 prestações para metade do valor das restantes;
- A empresa não poderá distribuir dividendos durante 10 anos, na parte
correspondente ao capital subscrito no momento de aprovação do meio de
recuperação, sendo os lucros afectos a uma conta margem que será rateada entre
os vários credores na proporção da sua renúncia de créditos;
- Estas condições de regularização da dívida ficam sujeitas à condição
resolutiva do cumprimento integral das presentes disposições;
c) O pagamento à Fazenda Nacional do capital em dívida será efectuado da
seguinte forma:
- Pagamento em sessenta (60) prestações mensais e iguais, vencendo-se a primeira
no final do mês seguinte à data de realização da assembleia definitiva de
credores que aprovar a viabilização;
- Os gerentes responsáveis pela não entrega das prestações tributárias serão
substituídos nos termos e para os efeitos do art. 196° e seguintes do Código de
Procedimento e Processo Tributário;
- Para garantia do pagamento da dívida serão dados em penhor os equipamentos que
constituem o parque de máquinas da empresa, cuja relação individualizada aqui se
junta e que, segundo avaliação de alguns peritos do sector, tem um valor que
ascende a cerca de € 750.000 (setecentos e cinquenta mil euros);
d) O pagamento aos credores gerais será efectuado da seguinte forma:
- Perdão de juros vencidos e vincendos;
- Pagamento de 10% do capital em 10 prestações semestrais, com um período de
carência de dois anos, vencendo-se a primeira prestação dois anos e seis meses
após o trânsito em julgado da sentença homologatória da deliberação da
assembleia definitiva de credores.
[...].”.
5. O credor B. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães
da sentença homologatória da deliberação da assembleia de credores que aprovou a
medida de recuperação da empresa apresentante (fls. 581), tendo nas alegações
respectivas (fls. 606 e seguintes) formulado as seguintes conclusões:
“1 – O credor Ministério das Finanças autoexclui-se do processo, levando o MMº
Juiz a proferir o Douto Despacho de fls. 558 no qual afirma que
«face à posição assumida pelo credor Ministério das Finanças, nos termos do art.
62º CPEREF, a deliberação da assembleia não incidirá sobre este crédito»
e, na mesma assembleia de credores, o credor Instituto de Gestão Financeira da
Segurança Social acaba por impor, ao arrepio do que estava convencionado e
assumido por esse credor, condições financeiras que são totalmente
insustentáveis para a empresa apresentante.
2 – A autoexclusão do credor Ministério das Finanças não poderia ter sido
decretada, e muito menos da forma como o foi, uma vez que deveriam os credores
ter sido notificados para se pronunciarem sobre tal atitude e o apelante, apesar
de ser indicado pela empresa apresentante como credor nem sequer foi notificado
para qualquer assembleia de credores.
3 – Não o tendo sido, verifica-se nulidade processual e mostram-se violados os
princípios do contraditório, da igualdade e da legalidade.
4 – O art. 62º CPEREF é manifestamente inconstitucional, dado que privilegia
credores, abre a porta a atitudes como aquela que o credor Ministério das
Finanças adoptou, prejudica os interesses dos demais credores como o apelante e
constitui um desrespeito claro do princípio da igualdade de tratamento dos
credores (que não é mais do que uma manifestação do princípio constitucional da
igualdade).
5 – A Douta Sentença fez aplicação de um preceito claramente inconstitucional e
ela própria acabou por adoptar um entendimento de igual modo inconstitucional ao
admitir tal comportamento processual do credor Ministério das Finanças e, sem
qualquer possibilidade de contraditório, ao perfilhar esse comportamento,
sancionando-o e permitindo na prática que um credor possa automarginalizar-se de
um processo tão vital para uma empresa como o processo de recuperação.
6 – O comportamento do credor Ministério das Finanças e a sua aceitação na Douta
Sentença apelada configuram uma situação clara de fraude à Lei.
7 – Visando como visa o processo de recuperação a viabilização de empresas em
situação económica difícil, não está, nem alguma vez esteve, no espírito do
legislador e no escopo que presidiu à criação desse tipo de processo, a
possibilidade de um credor, sem perda de direitos nem de privilégios, se manter
à margem do processo, para, subsequentemente, poder agir como se o mesmo não
tivesse existido.
8 – Ainda relativamente ao credor Ministério das Finanças, o que consta dos
autos é um ofício de fls. 543 (o ofício n.° 7616 de 28/10/2003) que é reafirmado
a fls. 555, mas que, no entendimento do apelante, não sustentam a conclusão do
Douto Despacho de fls. 558 da exclusão do crédito do Ministério das Finanças, o
que o apelante teria suscitado se tivesse sido notificado para esse efeito.
9 – A Douta Sentença apelada viola o disposto designadamente nos arts. 13º, 80º,
81º, 87º, 102º e 103º CRP e 62º CPREF.
[...].”.
O Ministério Público contra-alegou (fls. 630 e seguintes).
6. Por acórdão de 20 de Setembro de 2004 (fls. 660 e seguintes), o
Tribunal da Relação de Guimarães negou provimento ao recurso. Pode ler-se no
texto respectivo, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...]
I. Dispõe o n.º 2 do art. 62º do CPEREF que «o Estado, os institutos públicos
sem a natureza de empresas públicas e as instituições da segurança social
titulares de créditos privilegiados sobre a empresa podem dar o seu acordo à
adopção das providências referidas no número anterior, desde que o membro do
Governo competente o autorize».
Na sequência do regime estatuído no seu n.º 1 que estabelece o princípio da
igualdade entre todos credores – as providências que envolvam a extinção ou
modificação dos créditos sobre a empresa são apenas aplicáveis aos créditos
comuns e aos créditos com garantia prestada por terceiro, diz a lei – mas que se
não aplica aos credores detentores de garantia real salvo se a esta prerrogativa
renunciarem, estabelece este normativo legal a disciplina a observar no caso de,
apresentando-se o Estado e/ou as demais instituições nele identificadas com a
qualidade de credores privilegiados – não abrange a hipótese de serem titulares
de créditos comuns – quem é que tem competência para dar a necessária anuência
ou rejeitar a medida de extinção ou modificação dos créditos do Estado,
facultando este poder ao competente membro do Governo.
Quer isto dizer que, podendo qualquer um dos credores privilegiados
(hipotecário, por exemplo) renunciar à garantia real que usufrua perante o seu
devedor para, deste modo, tornar mais difícil a aprovação de determinada medida
de recuperação da empresa, o Estado, se estiver investido na mesma categoria de
credor privilegiado, tem igualmente a faculdade de facilitar a adopção de
determinada medida destinada à recuperação da empresa, para tanto bastando que o
competente membro do Governo o assinale de forma inequívoca.
Quando o credor titular de garantia real sobre bens da empresa a ela renuncie,
passa a ser credor comum e, por isso, natural é que a medida de extinção ou
modificação dos créditos o atinja também; e, compreendendo-se, por outro lado,
que o credor beneficiário de garantia que não renunciou ao seu privilégio fique
imune à medida, pois que só assim é assegurada, na sua plenitude, a eficácia da
garantia, também se afigurou razoável ao legislador que o Estado, apesar de ser
um credor privilegiado possa, mesmo assim, autorizar a adopção de uma medida que
envolva a extinção ou modificação do seu crédito sobre a empresa e sem que o seu
crédito seja desvirtuado da sua primordial imunidade.
Argumenta o recorrente no sentido de que este preceito legal – n.º 2 do art. 62º
do CPEREF – enferma de inconstitucionalidade pois que privilegia credores, abre
a porta a atitudes como aquela que o credor Ministério das Finanças adoptou,
prejudica os interesses dos demais credores como o apelante e constitui um
desrespeito claro do princípio da igualdade de tratamento dos credores.
Mas esta afirmação não tem qualquer fundamento.
O princípio da igualdade estatuído no art. 13º da nossa Lei Fundamental, ao
consignar que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais
perante a lei», não impõe que a lei seja aplicada de modo igual,
generalizadamente, a todo o cidadão; o que esta máxima exige é que a situações
iguais se aplique tratamento semelhante, deste modo possibilitando que
relativamente a casos diferentes sejam utilizadas regras diversas, desde que
diferenciadamente justificadas.
Este princípio, entendido como um modo de controlar o legislador ordinário, não
impede que este estabeleça uma pontual diversificação de procedimento, se este
se mostrar ponderadamente conforme à razão, objectivamente fundado e com o
intuito de obstar à prepotência legislativa.
É esta a «opinio communis» advogada consensualmente pela hodierna doutrina que
se pronuncia no sentido de que a igualdade constitucional engloba a proibição de
arbítrio, proibição de discriminação e privilégio, obrigação de diferenciação
(tratamento igual de situações iguais ou semelhantes e tratamento desigual
[assim, no original]), especificando que a proibição de arbítrio se traduz na
exigência de fundamento racional e a proibição de discriminação e privilégio
obsta, v. g., ao que modernamente sob influência germânica e em detrimento da
nomenclatura tradicional bem mais clarificadora, se vem chamando
«lei-providência» [...], ou seja, a norma personalizada, individualizada,
excepcional por não conter uma regra geral, maximamente se se puder detectar
nela «uma intenção discriminatória, injustificada», para usar uma fórmula de
Vieira de Andrade (in Direitos Fundamentais, pág. 199) e que, também
unanimemente, é seguida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional que vem
entendendo que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça
distinções; proíbe, isso sim, o arbítrio, ou seja, proíbe as diferenciações de
tratamento sem fundamento material bastante, isto é, sem qualquer justificação
razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes.
Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais e
proíbe ainda a discriminação, ou seja, as diferenciações de tratamento fundadas
em categorias meramente subjectivas.
Ao permitir que o Estado possa dar o seu acordo à adopção de providências que
envolvam a extinção ou modificação dos créditos sobre a empresa recuperanda sem
perder o seu privilégio de credor com garantia real, esta especificidade
legislativa tem o seu fundamento na particular natureza da figura do Estado –
uma comunidade que em determinado território prossegue com independência e
através de órgãos constituídos por sua vontade, a realização de ideais e
interesses próprios, constituindo uma pessoa colectiva de direito internacional
(acepção lata) ou seja, a pessoa colectiva de direito público interno que no
seio da comunidade e para efeitos internos tem o Governo por órgão (acepção
restrita) e que se não pode confundir com o vulgar cidadão que integra aquela
figura.
Salientemos, porém, que no caso sub judice, por que o Estado nem sequer usou
esta pretensa infundada prerrogativa – sendo credor privilegiado não fez uso da
oportunidade que o n.º 2 do art. 62º do CPEREF lhe conferia – e, por isso,
manteve-se equiparado aos restantes credores titulares de créditos com garantia
real, jamais se podendo falar na violação do princípio da igualdade
constitucionalmente garantido.
[...].”.
7. B. interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(fls. 682).
O recurso foi admitido, com efeito devolutivo, por despacho de fls.
686.
8. Ordenada a notificação do recorrente, ao abrigo do disposto no artigo
75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, para explicitar qual a norma –
e qual o sentido perfilhado na decisão recorrida quanto a tal norma – que
considera inconstitucional e que pretende submeter ao julgamento do Tribunal
Constitucional (cfr. despacho de fls. 719), veio o recorrente dizer, em síntese,
o seguinte (fls. 721 e seguintes):
“[...]
O art. 62 CPEREF é manifestamente inconstitucional,
dado que privilegia credores,
abre a porta a atitudes como aquela que o credor Ministério das Finanças
adoptou,
prejudica os interesses dos demais credores como o recorrente
e constitui um desrespeito claro do princípio da igualdade de tratamento dos
credores (que não é mais do que uma manifestação do princípio constitucional da
igualdade).
[...]
Compulsados os autos, verifica-se que, à socapa e à última da hora, o credor
Ministério das Finanças autoexclui-se do processo,
[...]
Ora, entende o recorrente que a autoexclusão do credor Ministério das Finanças
não poderia ter sido decretada,
E muito menos da forma como o foi,
Uma vez que deveriam os credores ter sido notificados para se pronunciarem sobre
tal atitude.
Não o tendo sido (o recorrente, apesar de ser indicado pela empresa apresentante
como credor nem sequer foi notificado para qualquer assembleia de credores),
Mostram-se violados os princípios do contraditório,
Da igualdade,
E da legalidade.
[...].”.
9. Notificado para produzir alegações, concluiu-as assim o recorrente
(fls. 726 e seguintes):
“1 - O presente recurso deve ter efeito suspensivo, em face do disposto no art.
78º, n.° 3 e n.° 4 da Lei 28/82 e do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 56º do
CPEREF, e para ter efeito útil.
2 - A sustentação do Douto Acórdão recorrido por equiparação do credor Estado
aos credores com garantia real carece de sentido, tanto mais que a fonte das
respectivas obrigações é totalmente distinta.
3 - O tribunal a quo confundiu o recorrente com outra pessoa, ao referir
erradamente a fls. 6 do dito Acórdão que o recorrente «propôs um plano de
viabilização da empresa, como se alcança de fls. 535».
4 - Nunca o recorrente apresentou qualquer plano de viabilização, sendo falsa
essa afirmação.
5 - A fls. 535 constará, segundo o recorrente pensa, uma proposta de
viabilização apresentada por B., pelo que o Douto Acórdão afirma a sua posição e
sustenta e sua decisão com uma base totalmente errada, ao confundir o recorrente
com terceiros que terão tido eventualmente uma participação e uma intervenção no
processo que o recorrente não pôde ter em face da violação dos normativos já
invocados em sede de recurso para a Veneranda Relação recorrida, o que só por si
já é suficiente para dar provimento ao presente recurso.
6 - O recorrente não foi notificado, nem esteve presente em qualquer diligência
ou acto do processo de recuperação supra-identificado, pelo que não teve
qualquer possibilidade de ter conhecimento do processado, de exercer o
contraditório, de poder exercer os seus direitos, apesar de constar dos autos
como um credor reclamante e de os seus créditos terem sido reconhecidos.
7 - O credor Ministério das Finanças autoexclui-se do processo, levando o MMº
Juiz a proferir o Douto Despacho de fls. 558 no qual afirma que
«face à posição assumida pelo credor Ministério das Finanças, nos termos do art.
62º CPEREF, a deliberação da assembleia não incidirá sobre este crédito»
e, na mesma assembleia de credores, o credor Instituto de Gestão Financeira da
Segurança Social acaba por impor, ao arrepio do que estava convencionado e
assumido por esse credor, condições financeiras que são totalmente
insustentáveis para a empresa apresentante.
8 - A autoexclusão do credor Ministério das Finanças não poderia ter sido
decretada, e muito menos da forma como o foi, uma vez que deveriam os credores
ter sido notificados para se pronunciarem sobre tal atitude e o recorrente,
apesar de ser indicado pela empresa apresentante como credor, nem sequer foi
notificado para qualquer assembleia de credores.
9 - Não o tendo sido, verifica-se nulidade processual e mostram-se violados os
princípios do contraditório, da igualdade e da legalidade.
10 - O art. 62 CPEREF é manifestamente inconstitucional, dado que privilegia
credores, abre a porta a atitudes como aquela que o credor Ministério das
Finanças adoptou, prejudica os interesses dos demais credores como o recorrente
e constitui um desrespeito claro do princípio da igualdade de tratamento dos
credores (que não é mais do que uma manifestação do princípio constitucional da
igualdade).
11 - A Douta Sentença fez aplicação de um preceito claramente inconstitucional e
ela própria acabou por adoptar um entendimento de igual modo inconstitucional ao
admitir tal comportamento processual do credor [...] Ministério das Finanças e,
sem qualquer possibilidade de contraditório, ao perfilhar esse comportamento,
sancionando-o e permitindo na prática que um credor possa automarginalizar-se de
um processo tão vital para uma empresa como o processo de recuperação.
12 - O comportamento do credor Ministério das Finanças e a sua aceitação na
Douta Sentença apelada configuram uma situação clara de fraude à Lei.
13 - Visando como visa o processo de recuperação a viabilização de empresas em
situação económica difícil, não está, nem alguma vez esteve, no espírito do
legislador e no escopo que presidiu à criação desse tipo de processo, a
possibilidade de um credor, sem perda de direitos nem de privilégios, se manter
à margem do processo, para, subsequentemente, poder agir como se o mesmo não
tivesse existido.
14 - Ainda relativamente ao credor Ministério das Finanças, o que consta dos
autos é um ofício de fls. 543 (o ofício n.° 7616 de 28/10/2003) que é reafirmado
a fl. 555, mas que, no entendimento do recorrente, não sustentam a conclusão do
Douto Despacho de fls. 558 da exclusão do crédito do Ministério das Finanças, o
que o recorrente teria suscitado se tivesse sido notificado para esse efeito.
15 - A Douta Sentença apelada viola o disposto designadamente nos arts. 13º,
80º, 81º, 87º, 102º e 103º CRP e 62º CPEREF.
Nestes termos e no mais que for Doutamente suprido por V.Exas, deve ser fixado o
efeito suspensivo ao presente recurso e o mesmo ser julgado procedente e, em
consequência, ser o Douto Acórdão recorrido e a Douta Sentença de 1ª Instância
substituídos por Douto Acórdão que vincule o credor Ministério das Finanças à
medida proposta para esse credor ou, caso assim não se entenda (o que só por
mera hipótese académica se admite), que ordene a notificação dos credores para
se pronunciarem sobre a pretensão de autoexclusão do Ministério das Finanças,
seguindo-se os demais termos do processo de recuperação, sempre com a declaração
de inconstitucionalidade do art. 62º n.° 2, CPEREF e da sua aplicação ao caso
vertente por evidente violação dos preceitos constitucionais supracitados e
nomeadamente do princípio da igualdade.”.
10. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
contra-alegou (fls. 743 e seguinte), tendo sustentado que o recorrente tinha
razão quanto à questão prévia do efeito do recurso e formulando a seguinte
conclusão:
“1 – A norma constante do nº 2 do artigo 62º do CPEREF, ao condicionar a prática
de acto de disposição do crédito dotado de garantia real de que sejam titulares
pessoas colectivas públicas a autorização do ministro competente, é mero
afloramento da regra segundo a qual a legitimidade processual do representante
judiciário de entidades colectivas para outorgar em negócios jurídicos
processuais é limitada, podendo depender de autorização de quem tiver tal poder
de disposição da relação material controvertida.
2 – Termos em que deverá improceder manifestamente o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
11. Sustenta o recorrente que o presente recurso, ao qual foi fixado
efeito meramente devolutivo pelo despacho de admissão de fls. 686, deve ter
efeito suspensivo. O Ministério Público perfilha a mesma orientação.
De acordo com o artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, “a decisão que admita o recurso [para o Tribunal Constitucional]
ou lhe determine o efeito não vincula o Tribunal Constitucional e as partes só
podem impugná-la nas suas alegações”.
Entende-se, tal como o recorrente e o Ministério Público, que o
efeito fixado ao presente recurso deve ser alterado.
Na verdade, segundo o artigo 78º, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, “o recurso interposto [para o Tribunal Constitucional] de
decisão proferida já em fase de recurso mantém os efeitos e o regime de subida
do recurso anterior, salvo no caso de ser aplicável o disposto no número
anterior” [que estabelece que “o recurso interposto de decisão da qual coubesse
recurso ordinário, não interposto ou declarado extinto, tem os efeitos e o
regime de subida deste recurso”].
O presente recurso foi interposto de decisão proferida já em fase de
recurso (concretamente, de decisão proferida em recurso de apelação: supra, 6.).
A esse recurso havia sido fixado o efeito suspensivo, por despachos de fls. 588
e 656.
Assim sendo, e nos termos do artigo 78º, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, deve manter-se, no presente recurso de constitucionalidade, esse
efeito suspensivo.
12. Passemos agora à questão de fundo.
O artigo 62º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da
Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de
Abril – e entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março –,
determinava o seguinte (na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 315/98, de 20
de Outubro):
“Artigo 62.°
Igualdade entre os credores
1 - As providências que envolvam a extinção ou modificação dos créditos sobre a
empresa são apenas aplicáveis aos créditos comuns e aos créditos com garantia
prestada por terceiro, devendo incidir proporcionalmente sobre todos eles, salvo
acordo expresso dos credores afectados, e podem estender-se ainda aos créditos
com garantia real sobre bens da empresa devedora, nos termos em que o credor
beneficiário de garantia real vier a acordar.
2 - O Estado, os institutos públicos sem a natureza de empresas públicas e as
instituições da segurança social titulares de créditos privilegiados sobre a
empresa podem dar o seu acordo à adopção das providências referidas no número
anterior, desde que o membro do Governo competente o autorize.
3 - Qualquer redução do valor dos créditos dos trabalhadores deverá ter como
limite a medida da sua penhorabilidade e depender do acordo expresso deles.”
Sublinhe-se que não está em causa no presente processo a norma
contida no n.º 3, que não foi aplicada nos autos e em relação à qual não foi
suscitada especificamente qualquer questão de constitucionalidade.
13. A norma do artigo 62º do CPEREF integra-se nas disposições que definem
os “princípios gerais” aplicáveis no âmbito das “providências de recuperação”.
No n.º 1 do artigo 62º estabelece-se, antes de mais, que as
providências que envolvam a extinção ou modificação dos créditos sobre a empresa
são apenas aplicáveis aos créditos comuns e aos créditos com garantia prestada
por terceiro. Determina-se depois que tais providências devem incidir
proporcionalmente sobre todos os créditos, salvo acordo expresso dos credores
afectados. Admite-se, por último, que essas providências se estendam ainda aos
créditos com garantia real sobre bens da empresa devedora, nos termos em que o
credor beneficiário de garantia real vier a acordar.
O regime que aqui se contém e as exigências para a sua aplicação têm
em vista garantir a “igualdade entre os credores”, como de resto está expresso
na própria epígrafe do preceito.
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 62º permite a certos credores (o
Estado, os institutos públicos sem a natureza de empresas públicas e as
instituições da segurança social), titulares de créditos privilegiados sobre a
empresa, dar o seu acordo quanto a providências que envolvam a extinção ou
modificação de créditos sobre a empresa desde que o membro do Governo competente
o autorize.
Como refere o Ministério Público nas suas contra-alegações, (supra,
10.), a norma do n.º 2 limita-se a espelhar a regra geral segundo a qual “a
legitimidade processual do representante judiciário de entidades colectivas para
outorgar em negócios jurídicos processuais é limitada”. Ou, dito de outro modo,
se certo acto de disposição de um bem carece, segundo o direito material, de
autorização, não deve admitir-se a prática, no processo, desse acto de
disposição desacompanhado da correspondente autorização.
14. Segundo o recorrente (supra, 9.), e em síntese, o artigo 62º do CPEREF
seria inconstitucional, pois que a autoexclusão, sem contraditório, do processo
de recuperação de empresa por parte de um credor, por esse preceito consentida,
privilegia credores e prejudica os interesses dos demais credores, constituindo
um desrespeito claro do princípio da igualdade de tratamento dos credores.
Este é o objecto do recurso.
O recorrente levanta depois outras questões que o Tribunal
Constitucional não pode apreciar, por tal extravasar manifestamente a sua
competência (que se cinge à apreciação da conformidade constitucional de normas
aplicadas na decisão recorrida: cfr. o artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional): assim, a questão da confusão do recorrente com outra
pessoa (3ª conclusão); a questão da apresentação pelo recorrente de plano de
viabilização (4ª e 5ª conclusões); a questão da presença do recorrente em certos
actos processuais (6ª conclusão); a questão da imposição, por certo credor, de
condições financeiras insustentáveis (7ª conclusão); a questão do cometimento de
nulidade processual (9ª conclusão); a questão da fraude à lei (conclusões 12ª e
13ª); a questão da suficiência de certo ofício para sustentar a conclusão de
certo despacho (conclusão 14ª).
Portanto, ir-se-á apreciar somente a questão da
inconstitucionalidade do artigo 62º do CPEREF, tal como ficou delineada.
15. E quanto a essa questão, não tem razão o recorrente.
15.1. Invoca o recorrente, antes de mais, a violação do princípio do
contraditório.
Relativamente a este aspecto, dir-se-á apenas que consta das actas
das assembleias de credores que os documentos onde se encontra expressa a
posição do Ministério das Finanças foram juntos ao processo e deles foi dado
conhecimento aos credores presentes e representados. Todos estes credores
tiveram desse modo a oportunidade de sobre os mesmos se pronunciarem. Se o ora
recorrente não esteve presente nessas assembleias ou não quis pronunciar-se
sobre a posição assumida pelo credor Ministério das Finanças, não faz sentido
vir agora invocar a inconstitucionalidade com fundamento em violação do
princípio do contraditório.
15.2. Se bem se entende o raciocínio do recorrente, a inconstitucionalidade
do regime estabelecido no artigo 62º do CPEREF residiria depois na circunstância
de a providência de recuperação decretada (que envolve a extinção ou modificação
de créditos) poder não abranger certos créditos, que ficariam “de fora” do
processo de recuperação. Seria por este motivo violado o princípio da igualdade.
Tal argumento não procede manifestamente.
A questão colocada relaciona-se com a possibilidade de sujeição do
Estado e de outros entes públicos a uma providência de recuperação que envolva a
extinção ou modificação dos créditos sobre a empresa quando esses créditos gozem
de garantia real, designadamente, de privilégio creditório – como acontece, no
caso, com os créditos de impostos.
A providência de recuperação aprovada pela assembleia de credores no
processo que deu origem ao presente recurso – a reestruturação financeira –
implicava alteração das condições de amortização e das taxas de juros. Essa
providência não pode em princípio estender-se aos créditos de impostos porque
tal envolveria a modificação dos créditos sobre a empresa e a verdade é que o
Estado não renunciou à garantia real de que beneficiam os créditos em causa.
Por outras palavras, a providência de reestruturação financeira
aprovada pela assembleia de credores seria ineficaz relativamente aos créditos
do Estado que beneficiam de garantia real, pois o beneficiário da garantia real
não consentiu na extensão dos efeitos da providência aos créditos de que é
titular, conforme previsto no artigo 62º do CPEREF. É essa a razão que justifica
que a assembleia de credores tenha deliberado que a providência de recuperação
aprovada não engloba os créditos do Estado.
Ora, a homologação judicial de tal deliberação, ao abrigo do artigo
62º do CPEREF, não viola o princípio da igualdade entre os credores.
Como se afirma, a concluir, no acórdão recorrido, a norma impugnada
no presente recurso, “ao permitir que o Estado possa dar o seu acordo à adopção
de providências que envolvam a extinção ou modificação dos créditos sobre a
empresa recuperanda sem perder o seu privilégio de credor com garantia real”,
“tem o seu fundamento na particular natureza da figura do Estado”.
Acrescente-se, aliás, que a necessidade de autorização a que se
refere o n.º 2 do artigo 62º do CPEREF de nenhum modo privilegia ou prejudica
credores: é uma mera manifestação do poder de disposição de um bem, que não se
justifica ser mais ou menos amplo consoante seja ou não exercido no processo.
15.3. Uma última referência para afastar a alegação de violação dos artigos
80º, 81º, 87º, 102º e 103º da Constituição da República Portuguesa.
Não se vê – nem de resto o recorrente fundamenta claramente tal
alegação –como pode a norma impugnada no presente recurso contrariar as normas
da Constituição que definem, respectivamente, os princípios em que assenta a
organização económico-social do Estado (artigo 80º) e as incumbências
prioritárias do Estado (artigo 81º), ou a norma que remete para a lei a
disciplina da actividade económica e dos investimentos estrangeiros (artigo
87º), ou ainda aquelas que se referem às funções do Banco de Portugal (artigo
102º) e ao sistema fiscal (artigo 103º).
15.4. Conclui-se, assim, que improcede o pedido do recorrente.
Concretamente, e em resumo, não se mostra ofendido o princípio da
igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição – o princípio a que o
recorrente afinal reconduz os vícios de inconstitucionalidade imputados à norma
em apreciação (cfr. conclusão final das alegações produzidas perante este
Tribunal, supra, 9.).
III
16. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Fixar o efeito suspensivo ao presente recurso;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 62º do Código dos
Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril (na redacção emergente do Decreto-Lei n.º
315/98, de 20 de Outubro), negando consequentemente provimento ao presente
recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício