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Processo n.º 671/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
I – Relatório
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 5 de Setembro de 2005, que decidiu,
no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do
objecto do presente recurso.
2. Como se referiu nessa decisão sumária, o ora
reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo
70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11
de Agosto de 2005, que negou provimento ao recurso por ele deduzido contra o
acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28 de Junho de 2005, que autorizou a
sua extradição para a República Federativa do Brasil, a fim de aí cumprir o
remanescente da pena de prisão em que foi condenado, por acórdão de 15 de Abril
de 1996 do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região do Pará, pela prática dos
crimes de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos
12.º e 18.º, I e III, da Lei Brasileira n.º 6368/76 (Lei Anti‑Tóxicos) (oito
anos) e de fraude de lei sobre estrangeiro, previsto e punido no artigo 309.º do
Código Penal brasileiro (um ano).
Segundo o respectivo requerimento de interposição, “o
presente recurso visa a fiscalização concreta da constitucionalidade da
aplicação das normas dos artigos 715.° e 664.° do Código de Processo Civil, em
conjugação com o artigo 3.° da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, bem como da
aplicação do artigo 127.° do Código de Processo Penal, e também da
inconstitucionalidade interpretativa das normas dos artigos 6.°, alínea c),
23.º, 45.° e 55.° da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (Lei de Cooperação
Judiciária Internacional) e, finalmente, dos artigos 123.°, n.º 2, 283.°, n.º
3, 374.°, n.º 2, e 379.° n.º 1, alíneas a) e c), todos do Código de Processo
Penal (ex vi artigos 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de
Agosto)”, questões de inconstitucionalidade que teriam sido suscitadas “aquando
da interposição e motivação do seu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”,
havendo ainda “inconstitucionalidades que o recorrente pretende ver declaradas
que foram originadas pela aplicação de algumas normas no próprio acórdão
proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que não foi possível ao
extraditando prevenir tal questão, nem lhe é possível suscitá‑la perante
qualquer outro Tribunal, que não o Tribunal Constitucional”, já que,
“efectivamente, o recorrente não possui qualquer outra instância de recurso,
pois o direito de recorrer foi‑lhe vedado pelo Supremo Tribunal de Justiça que
aqui funcionou como tribunal de instância, como infra se explanará”. De
seguida, o recorrente enuncia seis questões de inconstitucionalidade, em
termos que foram expostos nos n.ºs 4 a 9 da decisão sumária, que serão
transcritos infra, no n.º 5 deste acórdão.
3. De seguida, a decisão sumária ora reclamada recordou
que no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas (como acontece com o recurso de amparo espanhol ou a queixa
constitucional alemã), ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre
os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa
daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na
primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério
normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter
de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações,
enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios
normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente
caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos
de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2
do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua
ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo
excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal
Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a
questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal
recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se
esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido
uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua
nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já
meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual
aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa
de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
“lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na
qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do
processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da
proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de
suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas
respectivas alegações.
Acresce que, quando o recorrente questiona a
conformidade constitucional de uma interpretação acolhida, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como “na interpretação dada pela decisão recorrida” ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal que, para
usar a formulação do Acórdão n.º 367/94: “Ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) esse sentido (essa
dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso de
vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão
em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do
direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o
preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.”
4. Recordados estes critérios e antes de entrar na
apreciação da admissibilidade do recurso quanto a cada uma das seis questões de
constitucionalidade suscitadas, entendeu‑se na decisão sumária ora reclamada que
era útil reproduzir – pese embora a sua extensão – a fundamentação integral do
acórdão recorrido, dada a conexão que aproxima aquelas questões e para assim se
dispor de uma visão global do caso, que facilitaria a aferição da efectiva
aplicação, ou não, como rationes decidendi desse acórdão, das dimensões
normativas arguidas de inconstitucionais.
É a seguinte a fundamentação do acórdão recorrido:
“2. Decidindo.
2.1. O Tribunal da Relação de Évora proferiu a seguinte decisão
sobre a matéria de facto:
«2.1. A matéria de facto provada com interesse para a decisão é a
seguinte:
1.º – Ao abrigo do Tratado de Extradição entre o Governo da
República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil (aprovado
para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.° 5/94, de 3 de
Fevereiro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.° 3/94, de 3
de Fevereiro – cf. ainda Aviso n.° 330/94, de 24 de Novembro), as autoridades
brasileiras solicitaram ao Estado Português a extradição do cidadão A., acima
identificado, para efeitos de cumprimento do remanescente da pena.
2.º – O requerido foi condenado no âmbito do processo n.° 94.3896-8
– Acção Criminal – Classe VI, pela 4.ª Vara Federal da Secção Judiciária do
Pará (Justiça Federal de 1.ª Instância) na pena de 13 (treze) anos e 6 (seis)
meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado
previsto e punido pelos artigos 12.° e 18.º, I e III, da Lei Brasileira n°
6368/76 (Lei Anti‑Tóxicos) e na pena de dois anos de prisão em regime
semi‑aberto e em 185 (cento e oitenta e cinco) dias de multa à metade do salário
mínimo, pela prática de um crime de fraude de lei sobre estrangeiro previsto e
punido no artigo 309.° do Código Penal Brasileiro.
3.º – Em cúmulo jurídico das referidas penas, foi o requerido
condenado na pena única de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de prisão.
4.º – O requerido interpôs recurso desta sentença para o Tribunal
Regional Federal da 1.ª Região do Pará, que foi parcialmente provido, por
Acórdão de 15 de Abril de 1996, tendo, em consequência, reduzido a pena em que
havia sido condenado pela prática do aludido crime de tráfico de estupefacientes
agravado para 8 (oito) anos de prisão e a pena em que havia sido condenado pela
prática do crime de fraude de lei sobre estrangeiro para 1 (um) ano de prisão e
sofrendo a pena de multa uma redução proporcional, acórdão que transitou em
julgado em 5 de Junho de 1996.
5.º – O requerido esteve preso desde 4 de Julho de 1994, à ordem do
processo acima identificado, da 4.ª Vara Federal da Secção Judiciária do Pará,
pôs‑se em fuga para parte incerta em 24 de Setembro de 1996.
6.º – Os factos que deram origem à sua condenação resumem‑se no
seguinte:
Nos dias 27 e 28 de Maio de 1994, o requerido deslocou‑se a Belém,
tendo em vista a aquisição de estupefacientes, tendo‑se hospedado no Hotel B.,
onde manteve contactos, através do telefone, com o C..
No dia 3 de Julho de 1994, voltou a Belém no voo 250 da D. e trazia
consigo a quantia de USS 88 362,00 (oitenta e oito mil e trezentos e sessenta e
dois dólares norte‑americanos) para a aquisição de 31 (trinta e um) kg de
cocaína, que se encontravam na residência de uma irmã de C., situada perto do
Aeroporto de Belém. Tal droga era para ser transportada para Amsterdão.
Foi detido quando se encontrava no interior do veículo Parati,
pertencente ao acusado E., conduzido pelo réu F. e demais acusados após ter sido
recepcionado no aeroporto por C., que já era seu conhecido.
O requerido inseriu a sua fotografia no passaporte pertencente a
terceiro para assumir identidade diversa e pretendia regressar a S. Paulo no dia
4 de Julho e à Holanda no dia 11 de Julho de 1994.
7.º – O pedido formal de extradição foi apresentado às autoridades
portuguesas, tendo o Ministro da Justiça de Portugal, através do seu despacho de
7 de Janeiro de 2005, considerado admissível e autorizado o seu prosseguimento.
8.º – Os factos pelos quais o requerido foi condenado no Brasil são
igualmente puníveis em Portugal nos termos dos artigos 21.° e 24.° alíneas f) e
j), do Decreto‑Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, e pelo artigo 256.°, n.°s 1,
alínea a), e 3, do Código Penal, a que correspondem as penas em abstracto de 5 a
16 anos de prisão [quis seguramente escrever‑se 5 a 15 anos de prisão, como
sendo a pena correspondente ao crime do artigo 24.° do Decreto‑Lei n.º 15/93] e
de 6 meses a 5 anos de prisão ou pena de multa de 60 a 600 dias.
9.º – Não corre contra o requerido, nos tribunais portugueses,
qualquer processo pelos mesmos factos que fundamentam a extradição.
10.º – À data em que se pôs em fuga, o requerido encontrava‑se em
cumprimento das penas em que foi condenado, tendo sido emitido contra si pelo
M.mo Juiz Federal substituto da 3.ª Vara Federal do Pará, no exercício
cumulativo de funções com a 4.ª Vara, mandados de captura que não foram
cumpridos por virtude de o requerido se ter ausentado para parte incerta,
residindo actualmente em Vilamoura, Quarteira, Portugal.
11.º – Nas prisões de alguns Estados Brasileiros, alguns dos
reclusos são sujeitos a maus tratos.
12.º – As prisões brasileiras estão em geral sobrelotadas e algumas
não têm condições de higiene e de sanidade.
13.º – O extraditando encontrava‑se, em 24 de Setembro de 1996, data
em que se pôs em fuga, internado no Hospital ------, em Belém do Pará.
Matéria de facto não provada
a) O extraditando durante os dois anos em que esteve nas prisões de
Belém do Pará foi vítima de violações à sua integridade física e psicológica,
quer por parte de outros reclusos, quer por parte dos guardas prisionais.
b) A sua condição de recluso estrangeiro e de raça negra levava a
que os colegas de cadeia o marginalizassem, infligindo‑lhe frequentemente maus
tratos físicos.
c) O extraditando era frequentemente espancado, umas vezes por não
ter dinheiro para dar aos “líderes” dos gangs da prisão conhecidos pelos
“chefes dos presos”, outras por não ter tabaco ou comida para eles.
d) O extraditando assistiu enquanto esteve preso no Brasil a duas
rebeliões dentro da prisão, durante a qual ocorreram inúmeras execuções
sumárias, numa das quais assassinaram cinco guardas prisionais, aos quais os
presos cortaram as cabeças e jogaram à bola com as mesmas.
e) Na ocasião das rebeliões o extraditando manteve‑se vivo porque
na altura pagou o que lhe pediram para não o executarem.
f) Tanto os guardas prisionais como os outros reclusos torturavam o
extraditando da seguinte forma: queimavam pontas de cigarros, por vezes, no seu
corpo, espancavam‑no aos murros e pontapés sempre na proporção de cinco ou seis
para um, era vítima de abusos sexuais, enfiavam paus de vassoura no seu ânus,
bem como material inflamável, acto que os reclusos apelidavam de
“churrasquinho”, obrigavam‑no a masturbá‑los e a praticar sexo oral com eles.
g) Os guardas prisionais, quando os maus tratos e torturas eram
levados a cabo, assistiam impavidamente ao que os outros reclusos lhe faziam,
sem fazer o que quer que fosse para o evitar.
h) Os guardas prisionais, quando o extraditando não tinha dinheiro
para lhes pagar a sua protecção, enfiavam‑lhe sacos de lixo na cabeça e
desferiam‑lhe socos e pontapés, outras vezes não lhe entregavam a alimentação
que familiares e amigos lhe levavam.
i) Os guardas prisionais obrigavam o extraditando a passar fome, não
lhe entregando a alimentação que familiares e amigos lhe levavam.
j) O extraditando partilhava uma cela com 14 metros quadrados com 16
reclusos, sem que estivessem disponíveis colchões para todos.
l) O extraditando foi reiteradamente, enquanto esteve detido no
Brasil, vítima de maus tratos psicológicos, bem como de tortura.»
E fundamentou esta decisão nos seguintes termos:
«O tribunal baseou a sua convicção, relativamente aos factos
provados, nos documentos juntos aos autos e no depoimento da Dr.ª G., que exerce
as funções de Directora da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional, e
demonstrou ter um conhecimento genérico sobre a forma como funciona uma parte
significativa das prisões do Brasil e as condições de higiene destas.
Quanto aos factos não provados, não foi feita prova que permitisse
concluir pela sua verificação. A Dr.ª G. não tem conhecimento dos mesmos, nunca
esteve em contacto com o extraditando, enquanto ele esteve detido no Brasil, nem
com as prisões brasileiras. As declarações da esposa do arguido não se nos
afiguram credíveis, face ao interesse que manifesta nos presentes autos.»
2.2. São as seguintes as questões que constituem o objecto do
presente recurso, de acordo com as conclusões da motivação:
1.ª – A irregularidade formal do processo;
2.ª – A nulidade do pedido de extradição;
3.ª – A violação das garantias de defesa e do princípio do
contraditório;
4.ª – O erro notório na apreciação da prova;
5.ª – A nulidade do acórdão recorrido;
6.ª – A violação do artigo 6.°, n.° 1, alínea a), da LCJ.
2.3. Apreciemo‑las:
2.3.1. Da irregularidade formal do processo.
O recorrente insiste na alegação já feita em sede de oposição, a
título de «questão prévia», de que o processo enferma de irregularidade formal,
porquanto são contraditórias as datas constantes dos autos sobre: a) a data da
sua detenção (no Brasil); b) a data do trânsito em julgado da decisão que aí o
condenou.
Assim, diz:
a) enquanto o pedido de extradição (a promoção do Ministério Público
para cumprimento do pedido, quer ele dizer) refere que foi preso em 4 de Abril
de 1994, a «Guia de Recolhimento da Secção Judiciária do Pará» (fls. 206)
define, como data da sua prisão, o dia 4 de Julho de 1994 e, como data do termo
do cumprimento da pena, o dia 3 de Julho de 2003;
b) por outro lado, quanto à data do trânsito em julgado do acórdão
da 3.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região do Pará, enquanto o
pedido de extradição refere que essa decisão condenatória transitou em julgado
em 2 de Dezembro de 1996, data que é corroborada pela certidão do respectivo
trânsito em julgado, fls. 96 e 97, o despacho do Juiz Federal H. (fls. 12), bem
como a já referida «Guia de Recolhimento» de fls. 206, referem que a mesma
decisão condenatória transitou em julgado em 5 de Junho de 1996.
Tais irregularidades, em sua opinião, «suscitam dúvidas acerca do
tempo de cumprimento de pena do extraditando, ou sequer se o mesmo ainda se
encontraria em prisão preventiva, ou já a cumprir pena efectiva, aquando da sua
evasão, não sendo possível, face às contradições constantes dos autos,
determinar o momento do término do cumprimento da pena», razão por que entende
que, nos termos do artigo 23.°, n.° 3, e 45.° da LCJ, «a autoridade competente
deveria ter completado o pedido, procedendo assim à sua regularização e que,
como não o fez, o processo deveria ter sido arquivado ao abrigo do disposto no
n.° 2 do artigo 45.° da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto, o que requereu em sede
de oposição».
E, continua, se o acórdão recorrido decidiu bem quanto à primeira
das apontadas irregularidades, considerando‑a sanada, «na medida em que o
Ministério Público admitiu tratar‑se de um lapso de escrita, e com a
apresentação da sua resposta à oposição o extraditando tomou conhecimento da
data de detenção a considerar»,
«no que respeita à segunda irregularidade invocada – divergência
entre a data do trânsito em julgado da decisão condenatória em vários documentos
dos autos – o Ministério Público não invocou qualquer lapso de escrita a este
respeito, admitindo que existe divergência entre a data do trânsito em julgado
da decisão condenatória, embora considerando esta divergência irrelevante, mas
não assume qualquer posição em relação à data que deve ser tida em conta para
efeitos de defesa do extraditando». Deste modo, tendo o acórdão recorrido sanado
a irregularidade, definindo que a decisão condenatória brasileira transitou em
julgado em 5 de Julho de 1996, impediu o recorrente de exercer o contraditório.
Deveria, pois, o acórdão recorrido ter mandado reparar a
irregularidade ao abrigo do artigo 123.°, n.° 3, do CPP, de modo a que o
recorrente pudesse ter tido em conta a data correcta do trânsito em julgado
daquela sentença, para efeitos de organizar a sua defesa.
Não o tendo feito, conclui, violou o n.° 2 do citado artigo 123.°,
bem como o princípio do contraditório, fazendo daquela norma uma interpretação
inconstitucional, por desrespeito dos princípios consagrados nos n.°s 1 e 5 do
artigo 32.° da CRP.
Sobre a matéria, o acórdão recorrido considerou e decidiu o
seguinte:
«Perante a oposição deduzida pelo extraditando, importa, antes de
mais, apreciar as duas irregularidades formais invocadas. A primeira diz
respeito à data da prisão do extraditando no Brasil e a segunda à data do
trânsito em julgado do acórdão, que fixou a pena a cumprir.
Quanto à primeira, o extraditando alega que, do requerimento inicial
apresentado pelo Ministério Público consta como data da sua prisão no Brasil o
dia 4 de Abril de 1994; no entanto, do auto de prisão em flagrante delito de
fls. 16 e segs. e da “Guia de Recolhimento” de fls. 206 consta que a detenção no
Brasil ocorreu no dia 4 de Julho de 1994.
Quanto à data do trânsito do acórdão proferido pela 3.ª Turma do
Tribunal Regional Federal da 1.ª Região do Pará, do requerimento apresentado
pelo Ministério Público consta que tal ocorreu no dia 2 de Dezembro de 1996
(artigo 5.º, fls. 3 dos autos); no entanto, do despacho do Juiz Federal H.
consta que o trânsito ocorreu no dia 5 de Junho de 1996 (fls. 12 dos autos), bem
como da “Guia de Recolhimento” de fls. 206.
Perante estas irregularidades conclui o extraditando que não é
possível determinar o término do cumprimento da pena, não se sabendo qual o
tempo de pena que tinha ainda a cumprir ou sequer se o mesmo, aquando da evasão,
ainda se encontrava em prisão preventiva ou a cumprir pena efectiva e, por isso,
nos termos do artigo 23.°, n.° 3, da Lei n.° 144/99, ex vi artigo 45.° da mesma
lei, a autoridade competente deveria ter completado o pedido, procedendo à sua
regularização e, dado que tal não foi feito, o processo deverá ser arquivado.
Não assiste razão ao recorrente.
O n.° 3 do artigo 23.º da Lei n.° 144/99 dispõe que “a autoridade
competente pode exigir que um pedido formalmente irregular ou incompleto seja
modificado ou completado, sem prejuízo da adopção de medidas provisórias quando
estas não possam esperar pela regularização”, e o n.° 2 do artigo 45.° do mesmo
diploma que “a falta dos elementos solicitados nos termos do número anterior
poderá determinar o arquivamento do processo no fim do prazo fixado, sem embargo
de poder prosseguir quando esses elementos forem apresentados”.
Analisemos, então, as irregularidades invocadas.
Quanto à data da prisão do extraditando no Brasil, do documento de
fls. 16 e seguintes e da “Guia de Recolhimento” de fls. 206 resulta que ela
ocorreu no dia 4 de Julho de 1994 e. por isso, a data indicada pelo Ministério
Público no artigo 5.° do requerimento inicial é um mero lapso de escrita.
No que respeita à data do trânsito em julgado do acórdão proferido
pela 3.ª Turma do Tribunal Regional da 1.ª Região do Pará, tal ocorreu no dia 5
de Junho de 1996, como se infere do documento de fls. 12 e da “Guia de
Recolhimento” de fls. 206.
Perante os documentos referidos, as irregularidades invocadas são
facilmente supríveis, motivo pelo qual se considerou como provado que a data da
detenção no Brasil do extraditando ocorreu no dia 4 de Julho de 1994 e que o
acórdão mencionado transitou em julgado no dia 5 de Junho de 1996.
O extraditando foi condenado na pena de 8 (oito) anos de reclusão
em regime fechado pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado e 1 (um)
ano de detenção em regime semi‑aberto pela prática do crime de fraude de lei
sobre estrangeiro.
Esteve preso desde 4 de Julho de 1994 a 24 de Setembro de 1996, data
em que se pôs em fuga; logo, é possível determinar o término da pena, bem como
o tempo da pena que lhe falta cumprir.
À data em que se pôs em fuga estava em cumprimento de pena.
A duração da pena ainda por cumprir é superior a nove meses, pelo
que está preenchido o requisito a que se refere o artigo 2.°, n.° 2, do Tratado
de Extradição entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República
Federativa do Brasil.
As irregularidades formais invocadas são supríveis, como resulta da
matéria de facto provada, pelo que não tem razão o extraditando ao alegar que,
face às mesmas, o processo deve ser arquivado nos termos do n.° 2 do artigo 45.°
da Lei n.° 144/99.
Mas, mesmo que se considerasse, como alega o extraditando, que o
pedido de cooperação não estava acompanhado dos elementos suficientes para se
decidir sobre a extradição, a consequência não seria o arquivamento imediato do
processo, com a restituição do extraditando à liberdade, nos termos do n.° 2 do
artigo 45.° da Lei n.° 144/99, mas observar‑se‑ia a tramitação do n.° 1 daquele
preceito, o que não foi necessário pelas razões mencionadas.»
Adiantamos, desde já, que o decidido merece a nossa concordância substancial e
que, por isso, falece razão ao recorrente.
Vejamos:
A «irregularidade» relativa à data da detenção do recorrente está
agora ultrapassada, porquanto o recorrente afirma na conclusão 7.ª da sua
motivação que o acórdão recorrido decidiu bem (cf. artigo 401.°, n.° 1, alínea
b), do CPP).
Quanto à data do trânsito em julgado da decisão condenatória:
Do contexto da motivação do recurso, bem como da oposição e das
alegações escritas, resulta claro que esta tese da irregularidade formal parte
da ideia de que o pedido da sua extradição não obedece aos requisitos dos
artigos 23.° e 45.° da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto (de ora em diante LCJ).
A tese será sugestiva mas, salvo o devido respeito, não tem qualquer
viabilidade.
Previamente, porém, duas precisões se impõem: por um lado, o pedido
de extradição é o formulado pelo Estado requerente, no caso, o Brasil, e não a
promoção do Ministério Público do tribunal competente para o seu cumprimento,
nos termos do artigo 50.°, n.° 2, da LCJ; por outro, havendo Tratado de
Extradição entre Portugal e o Brasil (Resolução da Assembleia da República n.°
5/94 e Decreto do Presidente da República n.° 3/94, no Diário da República, I
Série‑A, de 3 de Fevereiro de 1994), as respectivas normas prevalecem sobre as
da LCJ, nos termos do n.° 1 do artigo 3.° desta.
Vejamos, então.
O que a este respeito verdadeiramente se constata é que o
recorrente, afinal, não aponta nem ao pedido nem à promoção do Ministério
Público a falta de qualquer dos requisitos estabelecidos quer nos artigos 11.° e
12.° do Tratado quer no artigo 23.° da LCJ ou a de qualquer elemento necessário
à decisão da causa que, nos termos dos artigos 14.° do primeiro e 45.° e 51.°,
n.° 4, da segunda, devessem ser requisitados ao Estado requerente.
Com efeito, mesmo quando a indicação da data do trânsito em julgado
da decisão condenatória deva considerar‑se incluída naquelas disposições, pela
relevância que assume no domínio da prescrição da pena aplicada (cf. os artigos
3.°, n.° 1, alínea d), do Tratado, 8.°, n.° 1, alínea b), e 23.°, n.° 1, alínea
g), da LCJ e 122.°, n.° 2, do Código Penal), a verdade é que esse elemento
consta efectivamente do pedido e da promoção do Ministério Público, embora
baseado em documentos com datas não coincidentes ou em desconformidade com
alguns dos documentos que instruíram o pedido, o que é realidade distinta da sua
omissão.
Tanto consta do pedido esse elemento que o recorrente o impugnou na
oposição, face à apontada discrepância (cf. n.°s 1 e seguintes desse articulado,
fls. 311 e seguintes).
O ponto tornou‑se, por isso, controverso. E o Tribunal, depois de o
recorrente ter discordado da data indicada no requerimento do Ministério
Público e de ter manifestado a sua posição sobre a questão, decidiu qual era,
para efeitos da apreciação do pedido (e apenas para esse efeito), a data do
trânsito em julgado da decisão condenatória da 3.ª Turma do Tribunal Regional do
Pará. O Tribunal da Relação não tinha, pois, que requisitar elementos que já
constavam do processo nem de notificar o Ministério Público para corrigir a sua
promoção. O que tinha era que decidir a questão tal como lhe fora apresentada,
em face dos elementos probatórios proporcionados pelos autos, como
efectivamente aconteceu.
Quer dizer, nem o pedido em causa nem a subsequente promoção do
Ministério Público enfermam de qualquer omissão ou irregularidade, sem embargo
de poder não ser correcto o facto (data) indicado no segundo. Mas isto não
traduz irregularidade com o sentido técnico‑processual dado ao termo pelo artigo
123.° do CPP. Tem a ver com a (im)procedência, ainda que meramente parcial, da
matéria de facto ali alegada, com a questão de fundo – ficar porventura provado
facto (data) diferente do alegado –, mas já não com os requisitos externos,
formais, do pedido ou da promoção.
Consequentemente, é totalmente descabida a invocação da doutrina de
qualquer das normas do artigo 123.° do CPP. Repete‑se: o Ministério Público
alegou determinada data; o recorrente controverteu‑a; o Tribunal, como era seu
dever, decidiu o litígio. Tudo em total conformidade com as regras processuais.
Se decidiu bem ou mal, é outra questão, a apreciar mais à frente.
2.3.2. Da nulidade do pedido de extradição.
O recorrente argumenta, a este propósito, que o pedido de extradição
«consubstancia, no fundo, uma acusação». Assim, como esta é nula quando não
contenha os requisitos exigidos pelo artigo 283.°, n.° 3, do CPP, nulo será o
pedido que não preencha os requisitos do artigo 23.° da LCJ.
Também aqui volta a estar em causa o problema da data do trânsito em
julgado da decisão condenatória do Tribunal do Pará, agora expressamente
subsumido à alínea e) do n.° 1 do artigo 23.° da LCJ, e a circunstância de o
Tribunal não ter dado cumprimento ao comando do n.° 3 do artigo 45.° da LCJ (as
normas directamente aplicáveis são, no entanto, as dos artigos 12.°, alínea e),
e 14.° do Tratado, de conteúdo semelhante ao das primeiras), impedindo‑o, assim,
de «conhecer a data efectiva do trânsito em julgado da decisão condenatória
para efeitos de defesa».
Também este fundamento se revela manifestamente improcedente.
Desde logo, pelas razões aduzidas a propósito da questão anterior,
perfeitamente transponíveis para aqui, por a argumentação ser repetida, tendo
apenas mudado a designação do vício.
A pretendida nulidade não tem, além disso, cobertura legal.
Com efeito, segundo o artigo 118.°, n.° 1, do CPP – diploma cuja
aplicação subsidiária é reclamada a este propósito – a violação ou a
inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade
do acto quando esta for expressamente cominada na lei. É a consagração do
princípio da legalidade em matéria de nulidades processuais. Ora, nem o artigo
23.°, designadamente o seu n.° 3, nem o artigo 45.°, designadamente o seu n.°
2, nem o artigo 51.°, designadamente o seu n.° 4, da LCJ, nem qualquer outra
disposição legal cominam com a apetecida nulidade a falta de qualquer dos
requisitos do pedido ou de elementos necessários para a decisão.
O artigo 14.°, n.° 2, do Tratado estipula até que o não envio pela
Parte requerente dos elementos solicitados não obsta a que o pedido de
extradição seja concedido, à luz dos elementos disponíveis – o que afasta a
possibilidade de verificação da nulidade. E, como veremos, no caso concreto, a
decisão sobre o pedido é possível face aos elementos probatórios disponíveis.
É certo que o recorrente construiu a tese da nulidade a partir da
analogia que estabeleceu entre o pedido de extradição e a acusação em processo
penal, invocando o regime do artigo 283.°, n.° 3, do CPP. Mas o recurso à
aplicação subsidiária das normas do CPP é, na hipótese, inviável. Em primeiro
lugar, porque não estamos perante qualquer lacuna legal que haja de ser suprida,
porquanto tanto o Tratado como a LCJ, concretamente os preceitos acima
referidos, definem expressamente as consequências da inobservância dos
requisitos ou da falta dos elementos que prevêem. Em segundo lugar, porque a
aplicação subsidiária do artigo 283.° do CPP ao caso sempre esbarraria com a
absoluta ausência de analogia entre a acusação em processo penal e o pedido de
extradição, dada a diferente natureza (ali, um instituto do direito processual
penal interno; aqui, um instrumento da cooperação internacional em matéria
penal) e os diferentes regimes legais que disciplinam uma e outra.
Finalmente, a nulidade claudica porque, repetindo o que já ficou
antes dito, nem o pedido nem o requerimento são falhos de qualquer requisito
legal ou de qualquer elemento indispensável à justa decisão.
2.3.3. Da violação das garantias de defesa e do princípio do
contraditório.
A propósito das duas questões anteriores, o recorrente alegou que o
Tribunal a quo, ao «entender que podia reparar, em sede de acórdão, a
irregularidade invocada» e que «tendo o processo de extradição sido baseado num
pedido formalmente irregular, cuja irregularidade nunca foi sanada a fim de
permitir ao extraditando exercer o contraditório ...», violou o princípio do
contraditório e que o impediu de exercer cabalmente o seu direito de defesa.
Por isso, concluiu, fez uma interpretação inconstitucional das normas dos
artigos 123.°, n.° 2, e 283.°, n.° 3, do CPP e 23.° e 45.° da LCJ, por violação
das directivas traçadas pelos n.°s 1 e 5 do artigo 32.° da CRP (cf. conclusões
12.ª, 18.ª e 21.ª).
Há contradição no que vem alegado: se a propósito da irregularidade
formal do pedido se refere que o Tribunal reparou a irregularidade «em sede de
acórdão», embora não o devesse ter feito (cf. conclusão 12.ª), já depois, na
conclusão 20.ª, se diz que «tal irregularidade nunca foi sanada».
Tal não obsta naturalmente à apreciação da questão.
Reiterando tudo o que antes foi dito sobre as pretensas
irregularidade e nulidade do pedido de extradição aqui em causa, realça‑se o
seguinte:
Face ao teor do requerimento/promoção inicial do Ministério Público,
o recorrente, como também deixámos dito, impugnou a data ali apontada como sendo
a do trânsito em julgado da decisão condenatória do Brasil, baseando‑se nos
documentos e mais elementos fornecidos pelo processo. Fê‑lo, é certo, a título
de «questão prévia», mas já vimos que não ocorreu qualquer irregularidade
processual impeditiva do conhecimento do objecto do pedido.
Seja como for, o Tribunal, no uso dos poderes que legalmente lhe são
conferidos, procedeu ao enquadramento jurídico da questão, sem vinculação ao
direito traçado pelo recorrente ou por qualquer outro sujeito processual, e
decidiu em conformidade (artigo 664.° do CPC).
Quer dizer: o Ministério Público alegou um facto concreto, o
recorrente impugnou‑o, o Tribunal, em face da prova produzida, decidiu de acordo
com o direito que entendeu aplicável.
Tudo, portanto, em total conformidade com a doutrina do artigo 3.°,
n.° 3, do CPC e 320.º, n.° 5, da CRP.
Por outro lado, o recorrente teve oportuno acesso aos autos, foi‑lhe
facultado prazo para deduzir oposição ao pedido, produziu alegações escritas e,
proferida a decisão, exerceu o direito ao recurso. Sabia, pois, qual o pedido
feito pelas autoridades brasileiras e os respectivos fundamentos e conhecia a
prova em que o sustentavam. E rebateu livremente esses fundamentos e indicou,
por sua vez, a prova que, no seu entender, interessava à defesa dos seus
interesses.
Não lhe foi, pois, colocado qualquer entrave ou limitação ao seu
direito de defesa, que exerceu no momento processual adequado e de forma
inteiramente livre, com pleno acesso aos autos.
Termos em que, uma vez mais, improcedem, de novo manifestamente,
estes fundamentos do recurso.
2.3.4. Do erro notório na apreciação da prova.
2.3.4.1. Trata‑se de questão em parte ainda relacionada com a
alegada irregularidade formal do pedido.
Segundo o recorrente, no caso foi cometido erro notório na
apreciação da prova porque o Tribunal a quo deu como provado que a decisão
condenatória brasileira transitou em julgado em 5 de Junho de 1996 (parte final
do facto do n.° 4), quando é certo que não indicou quais os documentos que
serviram de suporte à sua convicção, que os apresentados divergem sobre essa
data e que um deles, a certidão de fls. 96/97, «sempre seria merecedor de mais
credibilidade por se tratar de uma certidão acerca do trânsito do citado
acórdão».
Não pode dizer‑se, como diz o recorrente, que o acórdão recorrido
não tenha indicado os documentos em que firmou a sua convicção quanto ao facto
em análise. Não o fez, reconhece‑se, da forma mais canónica, individualizando
esse(s) documento(s) no capítulo «fundamentação de facto». Mas revelou‑o na
altura em que abordou e decidiu a «questão prévia», fls. 742, quando disse que
«Quanto à data do trânsito do acórdão proferido pela 3.ª Turma do Tribunal
Regional Federal da 1.ª Região do Pará, do requerimento apresentado pelo
Ministério Público consta que tal ocorreu no dia 2 de Dezembro de 1996 (artigo
5.º, fls. 3 dos autos); no entanto, do despacho do Juiz Federal H. consta que o
trânsito ocorreu no dia 5 de Junho de 1996 (fls. 12 dos autos), bem como da
“Guia de Recolhimento” de fls. 206» (sublinhado nosso).
Por outro lado, do que vem alegado parece dever depreender‑se que
este erro notório na apreciação da prova é fruto de o Tribunal a quo ter julgado
contra o teor da mencionada certidão, documento que o recorrente entende
«merecedor de mais credibilidade».
Como se viu, o Tribunal a quo privilegiou o despacho judicial de
fls. 12.
A nosso ver, bem.
A dita certidão, assinada por um «Técnico Judiciário» do Tribunal
Regional Federal da 1.ª Região, atesta, além do mais e no que para aqui
interessa, que o «acórdão de fls. 750 transitou em julgado na data de 2 de
Dezembro de 1996».
O trânsito em julgado de uma sentença condenatória pressupõe, desde
logo, que dela não tenha sido interposto recurso ordinário ou que se tenha
esgotado o respectivo prazo. E, envolvendo ou podendo envolver a resolução de
questões de direito, exige ou pode exigir a intervenção do juiz em ordem a
definir a data em que o trânsito em julgado se verificou.
Ora, a dita certidão nem sequer refere se foi ou não interposto
recurso do acórdão (a anterior referência à não interposição de recurso de
«agravo de instrumento» do despacho de fls. 813 a 816 não se refere ao acórdão
que aí é situado a fls. 750). Limita‑se a afirmar o trânsito em julgado naquela
data.
Como não se trata de facto praticado pelo dito Oficial de Justiça
nem de facto que, pela sua natureza, possa ter sido por ele percepcionado, tem o
valor de mero juízo pessoal, sujeito, como tal, à livre apreciação do julgador,
nos termos do n.° 1 do artigo 371.° do Código Civil.
Por outro lado, o despacho de fls. 12 é o despacho em que o Juiz
Federal se dirige ao Ministro da Justiça do Brasil para manifestar o interesse
no pedido de extradição do ora recorrente, onde afirma, além do mais, que o
«acórdão da Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, de 15 de
Abril de 1996, ... transitou em julgado em 5 de Junho de 1996 ...».
Também não passa de uma afirmação, sem evidência da respectiva
fundamentação. Todavia, a maior autoridade da entidade que a proferiu e a
circunstância de se tratar de um elemento destinado a instruir o próprio pedido
de extradição, justificam que, em termos de apreciação livre do valor probatório
dos dois documentos, se dê prevalência ao despacho.
Não ocorreu, portanto, erro na apreciação da prova e, muito menos,
erro notório.
Bem andou, pois, o Tribunal da Relação em dar prevalência probatória
ao despacho judicial, em detrimento da certidão, e em julgar provado, para
efeitos de apreciação do pedido de extradição (e, repete‑se, só para este
efeito), que a sentença condenatória da 3.ª Turma do Tribunal Regional Federal
do Pará transitou em julgado em 5 de Junho de 1996.
De qualquer maneira, transitada em julgado nessa data ou em 2 de
Dezembro de 1996, como refere a certidão, isso nenhuma influência poderia ter
no sentido da decisão final, porquanto a consideração de uma ou de outra nunca
levaria à declaração da prescrição da pena para cujo cumprimento é reclamado
pela República do Brasil (cf. artigo 125.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal –
a prescrição segundo a lei brasileira nem sequer vem alegada). Quando muito, a
consideração da data mais recente viria prejudicar os interesses do recorrente,
na medida em que atiraria para data mais longínqua o momento dessa prescrição.
Por outro lado, estando definidas, sem controvérsia, as datas da
detenção e da evasão, o tempo de prisão que falta cumprir ao recorrente, porque
não influenciável pelo momento do trânsito em julgado, é, em qualquer das
hipóteses, superior ao mínimo previsto no artigo 2.°, n.° 2, do Tratado.
Aliás, mesmo que se verificasse o apontado vício, como o processo
fornece todos os elementos necessários à decisão, como o Supremo Tribunal de
Justiça conhece, aqui, também da matéria de facto e como o facto não é
susceptível de influenciar a decisão final, nunca seria caso de reenvio, atento
o disposto no n.° 1 do artigo 426.° do CPP.
2.3.4.2. Erro notório na apreciação da prova teria ainda sido
cometido quando o acórdão recorrido julgou não provados os factos das alíneas a)
a l), que, na opinião do recorrente, deveriam ter sido julgados provados se o
Tribunal a quo não tivesse ignorado e tivesse valorado devidamente os
depoimentos da Directora da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional e de I.,
esposa do recorrente, e os 30 documentos que juntou (conclusões 22.ª a 33.ª).
A verdade é que o acórdão recorrido não ignorou os referidos meios
probatórios. Tanto assim que os arrolou em sede de fundamentação da decisão
sobre a matéria de facto e os factos provados sobre as condições de algumas
prisões brasileiras só podem ter tido como suporte probatório esses mesmos
documentos (relatórios, estudos, pareceres) e o primeiro daqueles depoimentos.
Os factos não provados, porque específicos da alegada vivência do
recorrente numa prisão brasileira, esses não têm ali qualquer eco.
Por outro lado, não se tratando de documentos com força probatória
plena ou excluídos da livre apreciação por parte do tribunal, apesar da sua
proveniência e autoria, a decisão de facto deles divergente não pode ser
arvorada em erro notório da apreciação da prova.
Poderiam, sim, fundamentar alteração dessa decisão, nos termos do
artigo 412.°, n.° 3, e 431.°, ambos do CPP. Todavia, nem esses documentos nem
os depoimentos registados em acta justificam ou autorizam qualquer alteração da
decisão sobre a matéria de facto: os primeiros porque, como se disse, não se
reportam à alegada experiência prisional do recorrente, o mesmo sucedendo com o
depoimento da testemunha J.; o depoimento da testemunha I., esposa do
recorrente, não mereceu credibilidade ao Tribunal recorrido e os autos não
fornecem indicações para que esse juízo possa ser censurado.
Voltou, assim, a não haver erro notório na apreciação da prova.
E também não encontramos razões que justifiquem a alteração da
decisão sobre a matéria de facto.
De resto, maus tratos como os alegados, dada a sua natureza,
violência e duração, teriam certamente deixado sequelas no corpo do recorrente.
O certo é que nenhuma foi invocada e também nenhum exame ou relatório médico foi
apresentado ou solicitado.
2.3.5. Da nulidade do acórdão recorrido.
2.3.5.1. O primeiro fundamento da nulidade do acórdão recorrido
baseia‑o o recorrente na circunstância de o Tribunal a quo não ter fundamentado
a razão por que, relativamente ao trânsito em julgado da sentença brasileira,
deu prevalência a alguns dos documentos juntos aos autos em detrimento de outros
e por não ter mesmo dito em quais deles formou a sua convicção.
Tal procedimento, além do alegado erro notório na apreciação da
prova, consubstanciaria a nulidade do artigo 379.°, n.° 1, alínea a), com
referência ao artigo 374.°, n.° 2, ambos do CPP, por falta do exigido exame
crítico das provas.
Já atrás (cf. 6.2.1., supra) nos pronunciámos sobre o pretenso erro
na apreciação da prova.
O recorrente, porém, acrescenta agora que «perante a existência de
documentos com datas divergentes nos presentes autos, era exigível ao Tribunal
a quo que fizesse o exame crítico das provas, explicando, nomeadamente, porque
valorou os documentos de fls. 16 e 206 em detrimento do alegado no pedido de
extradição e no documento de fls. 96 e 97 dos autos».
E a verdade é que o acórdão recorrido não revela, pelo menos de
forma expressa, essa ponderação e opção.
A nulidade foi, pois, cometida e como tal é reconhecida.
Todavia, uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça funciona aqui como 1.ª
instância de recurso, o regime aplicável é o do artigo 715.º do CPC, de
substituição ao tribunal recorrido (regime substancialmente diferente do
recurso de revista, quando está em causa nulidade desse tipo, como se vê do
confronto deste preceito com o n.º 2 do artigo 731.º, por referência à alínea
b) do artigo 668.º do mesmo Código).
O Tribunal ad quem declara, como declarou, a nulidade do acórdão, mas vai
conhecer do objecto final do recurso e das restantes questões que vêm
suscitadas.
E como o Supremo Tribunal de Justiça conhece também da matéria de facto e os
autos fornecem o conteúdo de todos os elementos probatórios relevantes para a
decisão, independentemente de o Tribunal da Relação não ter proferido acórdão em
conformidade com o modelo formal desenhado pelo n.º 2 do artigo 374.º do CPP,
estamos em condições de ratificar ou corrigir o que foi decidido, sem
necessidade de remeter o processo ao Tribunal da Relação para suprir a nulidade.
Ora, como já vimos anteriormente, a matéria de facto aqui em discussão foi
correctamente julgada, em função do superior valor probatório do despacho
judicial junto aos autos, nos termos que foram exarados.
2.3.5.2. O acórdão seria ainda nulo por falta de fundamentação e por
omissão de pronúncia, decorrente «da não referência aos documentos juntos aos
autos».
Mas já vimos que os documentos foram apreciados e considerados,
embora lhes tivesse sido atribuído valor probatório diferente do que o
pretendido pelo recorrente.
2.3.5.3. Teria ainda ocorrido nulidade do acórdão, por omissão de
pronúncia, por nele se não fazer qualquer alusão, como provados ou não
provados, aos factos dos n.ºs 40, 44 e 45 da oposição.
Desse modo, teria sido vedado ao recorrente o exercício do seu
direito de defesa – o que torna a decisão inconstitucional (conclusões 34.ª a
53.ª).
A arguição volta a ser manifestamente infundamentada.
O rol dos factos não provados abrange as situações descritas
naqueles passos da oposição, designadamente aos maus tratos físicos e
psicológicos que diz ter sofrido enquanto preso no Brasil. E, não se tendo
provado esses factos, perde todo o interesse para a decisão saber a razão por
que terá sido transferido para um Hospital Psiquiátrico ou para uma unidade de
maternidade, porque associada pelo recorrente aos invocados maus tratos.
Relativamente às alegadas condições das prisões brasileiras, ficou
apenas provado o que consta dos n.ºs 11 e 12 da decisão sobre a matéria de
facto. Não com a extensão pretendida pelo recorrente, mas decididamente sem
omissão de pronúncia sobre factos relevantes ou com insuficiente fundamentação.
2.3.6. Da violação do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), da LCJ.
Neste particular o recorrente remete‑se para os motivos substantivos
da oposição que entende deviam ter sido julgado provados e invoca a
interpretação inconstitucional que o Tribunal fez desse preceito «por
considerar tolerável a extradição de um cidadão para a União Federativa do
Brasil quando existem elementos nos autos que afirmam a existência de um risco
de o mesmo, uma vez chegado àquele país, ser sujeito a actos de tortura na
prisão onde já cumpriu parte da pena, e tal interpretação é claramente
inconstitucional, violando os artigos 24.º e 25.º da Constituição Portuguesa
...».
Só que, como vimos, nenhum dos aludidos factos, suporte da recusa da
extradição, ficou provado.
Como assim, cai pela base a argumentação.
3. Nesta conformidade, acordam na Secção Criminal do Supremo
Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em
confirmar o acórdão recorrido.”
5. Concluída a reprodução da fundamentação do acórdão
recorrido, a decisão sumária ora reclamada entrou na apreciação da
admissibilidade do conhecimento das seis questões de inconstitucionalidade
suscitadas, desenvolvendo a seguinte argumentação:
“4. A primeira questão de inconstitucionalidade é exposta no
requerimento de interposição de recurso nos seguintes termos:
«6. O extraditando pretende ver apreciada a constitucionalidade da
aplicação do artigo 715.° do Código de Processo Civil no douto acórdão
recorrido. Com base nesta norma o Supremo Tribunal de Justiça entendeu poder
substituir‑se ao Tribunal recorrido e, embora declare a nulidade do acórdão do
Tribunal da Relação de Évora, entende poder conhecer do objecto final do
recurso e das restantes questões que vêm suscitadas.
Ora, desde logo a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, por força dos
seus artigos 3.°, n.º 2, e 25.°, n.º 2, dispõe que o regime subsidiário
aplicável ao processo de extradição é o do Código de Processo Penal. Assim,
existindo no Código de Processo Penal um regime específico para os recursos, não
se justifica a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao caso sub
judice, pois não estamos perante a verificação de qualquer lacuna.
De qualquer modo, e ainda que assim não se entendesse, a aplicação
da norma do artigo 715.° do CPC ao caso em apreço é inconstitucional, pois
viola directamente o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP e também o disposto
no artigo 210.º, n.º 5, da Lei Fundamental. Na verdade, tendo o acórdão do
Tribunal da Relação de Évora sido declarado nulo, as questões suscitadas pelo
recorrente acabam por ser decididas em 1.ª instância pelo Supremo Tribunal de
Justiça, decisão da qual não cabe qualquer recurso ordinário. Ora, o artigo
32.°, n.º 1, da Lei Fundamental dispõe que o processo criminal assegura todas
as garantias de defesa, incluindo o recurso. No processo de extradição –
processo de estrutura criminal por força do disposto no artigo 3.º, n.º 2, da
Lei n.º 144/99 – está assegurada ao extraditando uma instância de recurso (vide
artigo 58.º da Lei n.º 144/99). Ora, com a aplicação da norma do artigo 715.° do
CPC, foi vedada ao extraditando a possibilidade de recorrer de um acórdão que
decidiu em 1.ª instância sobre as questões por si suscitadas, o que é
claramente inconstitucional por violação do direito ao recurso que vem
plasmado no artigo 32.°, n.º 1, da CRP. Assim, ao declarar nulo o acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, o Supremo Tribunal de Justiça
teria que proceder ao reenvio do processo para aquele Tribunal, tal como dispõe
o artigo 426.º do CPP, pois não podia decidir da causa, nomeadamente decidir das
questões de facto e de direito, para não vedar ao extraditando o direito ao
recurso e por lhe estar expressamente vedada a possibilidade de funcionar como
Tribunal de instância. Para além de que o regime dos recursos no Código de
Processo Penal (que é aplicável ao processo de extradição por via do artigo
3.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto) apenas permite ao Supremo
Tribunal de Justiça decidir sobre questões de direito ou sobre os vícios
constantes do artigo 410.º do CPP, e não sobre matéria de facto.
No entanto, mesmo que se considere que é permitido ao STJ decidir
sobre questões de facto e de direito, por aquele Tribunal ser a única instância
de recurso prevista no processo de extradição, ainda assim, a decisão do STJ
(que declara o acórdão do Tribunal da Relação de Évora nulo) é a primeira
decisão válida que se pronuncia sobre as questões de facto e de direito,
suscitadas pelo extraditando, e desta não cabe qualquer recurso ordinário. Fica,
por esta forma, o extraditando impedido de exercer todas as garantias de defesa,
nomeadamente o recurso, que é um direito expressamente previsto na CRP.
Por outro lado, tendo declarado nulo o Acórdão da Relação, o Supremo
Tribunal de Justiça nunca poderia decidir da causa pois nessa medida estaria a
funcionar como Tribunal de Instância, em clara violação do disposto no n.º 5 do
artigo 210.º da CRP (que dispõe que o STJ apenas pode funcionar como Tribunal de
Instância nos casos em que a lei determinar). Ora, no caso sub judice, o STJ
apenas pode funcionar como instância de recurso, já que o artigo 58.º da Lei n.º
144/99, de 31 de Agosto, dispõe que o Supremo Tribunal de Justiça é a instância
da qual cabe recurso da decisão proferida pelos Tribunais da Relação, tribunais
estes que funcionam como tribunais de instância neste tipo de processos – tal
como se encontra legalmente previsto na Lei de Cooperação Judiciária
Internacional.
Em suma, ao considerar o acórdão da Relação nulo, o STJ teria
obrigatoriamente que ter procedido ao reenvio do processo para o Tribunal da
Relação de Évora, por forma a não violar o direito de recurso do extraditando,
assim como a regra da competência do Supremo Tribunal de Justiça prevista no
artigo 210.º da Constituição. Não o tendo feito, e aplicando o disposto no
artigo 715.° do CPC para justificar a sua substituição ao tribunal recorrido
(norma que nem é aplicável ao caso em apreço, pois o regime subsidiário é o do
Código de Processo Penal face ao disposto no artigo 3.° da Lei n.º 144/99, de
31 de Agosto), e existindo um regime especifico de recursos no Código de
Processo Penal, o STJ fez uma interpretação claramente inconstitucional
daquela norma, já que a sua aplicação viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1,
e 210.º, n.º 5, da CRP.
Inconstitucionalidade que, como já foi referido, se verifica a
partir do momento em que é proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e
que só pode ser suscitada perante o Tribunal Constitucional exactamente pelo
facto de o extraditando não possuir qualquer instância de recurso ordinário.»
Esta questão de constitucionalidade prende‑se com o decidido no
ponto 2.3.5.1. do acórdão recorrido. Aí se entendeu que, não revelando o acórdão
da Relação, pelo menos de forma expressa, o «exame crítico das provas», referido
no n.º 2 do artigo 374.º do CPP, se verificava a nulidade prevista no artigo
379.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, mas que, no caso, funcionando o
Supremo Tribunal de Justiça como 1.ª instância de recurso, era aplicável a
regra da substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, consagrada
no artigo 715.º do CPC, competindo ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer da
questão, já que os autos forneciam o conteúdo de todos os elementos probatórios
relevantes para a decisão, sem necessidade de remeter o processo ao Tribunal da
Relação para suprir a nulidade.
Ora, independentemente da correcção da invocação do artigo 715.º do
CPC, o certo é que a solução jurídica perfilhada não se pode, de modo algum,
considerar inesperada ou insólita, em termos de dispensar o recorrente do ónus
da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade. A aludida regra da
substituição é a que resulta do n.º 2 do artigo 379.º do CPP, que consente ao
tribunal de recurso suprir as nulidades da sentença, e do n.º 1 do artigo 426.º
do mesmo Código, que, mesmo nos caso de existência dos vícios referidos nas
alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, só consente o reenvio do processo quando não
seja possível ao tribunal de recurso decidir da causa.
Mas mesmo que fosse considerado admissível o recurso de
constitucionalidade quanto a esta questão, sempre esta seria de considerar
manifestamente infundada. Na verdade, o direito ao recurso, designadamente em
processo criminal, tal como está constitucionalmente consagrado, não implica
que, relativamente a cada questão que se suscite num processo, haja sempre duas
decisões de tribunais hierarquicamente distintos. O direito ao recurso foi
assegurado, no presente caso, através da possibilidade – efectivamente
exercitada pelo recorrente – de impugnar perante o Supremo Tribunal de Justiça o
decidido pela Relação. Ao recorrente foi assegurado o direito de acesso a
tribunal superior, perante o qual expôs as suas razões. Quando, após reconhecer
a existência da aludida nulidade por não explicitação do exame crítico das
provas, o Supremo Tribunal de Justiça procede, ele mesmo, a essa explicitação,
uma vez que dispunha de todos os elementos necessários para o efeito, não está a
actuar como tribunal de 1.ª instância – contrariamente ao que o recorrente
alega –, mas antes e justamente como tribunal de recurso, no exercício do seu
aludido poder de substituição ao tribunal recorrido.
Impõe‑se, assim, a rejeição do recurso, quanto a esta primeira
questão.
5. A segunda questão de inconstitucionalidade é exposta no
requerimento de interposição de recurso nos seguintes termos:
«7. O extraditando/recorrente pretende ver apreciada a
constitucionalidade dos normativos ínsitos nos artigos 664.º do CPC e 3.º, n.º
2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (Lei de Cooperação Judiciária
Internacional em Matéria Penal) em conjugação com o artigo 123.º, n.º 2, do
Código de Processo Penal, na interpretação que lhes é dada pelo Tribunal a quo,
nomeada e concretamente, porque a decisão recorrida, ao considerar que ao
abrigo do normativo constante do Código de Processo Civil podia decidir a
questão da irregularidade formal do processo levantada em sede de “questão
prévia” no articulado de oposição à extradição, coarcta e limita de forma ilegal
e constitucionalmente inadmissível as garantias de defesa asseguradas ao
extraditando. É que, desta forma, o extraditando nunca tomou conhecimento, na
fase de oposição à extradição, de qual a data do trânsito em julgado da decisão
condenatória que deveria tomar em conta para efeitos de instruir a sua defesa e
fazer uso do contraditório. Sendo certo que ao processo de extradição são
aplicáveis subsidiariamente as normas do processo penal, processo este
orientado por princípios de verdade material em que, à partida, não há ónus da
prova, em virtude do princípio da oficialidade, e não do princípio do
dispositivo, corolário do processo civil, não devendo o Supremo Tribunal de
Justiça ser alheio à observância ou não dos direitos de defesa que assistem
aos arguidos (no presente caso, ao extraditando).
Assim, não tendo sido ordenada a reparação da irregularidade formal
do processo no momento em que o Tribunal pôde conhecer da mesma – ou seja,
quando a questão foi colocada como questão prévia no articulado de oposição à
extradição –, momento em que cabia ao Tribunal da Relação de Évora aplicar o
disposto na norma do artigo 123.°, n.º 2, do CPP, e entendendo o Tribunal
recorrido resolver a questão em sede de acórdão, a coberto do disposto no
artigo 664.º do CPC, este Tribunal faz uma interpretação da norma que é
inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.°, n.ºs 1 e 5, da CRP.»
Quanto a esta segunda questão, pode, desde logo, afirmar‑se que, em
rigor, o recorrente não suscita nenhuma questão de inconstitucionalidade
normativa, imputando antes a violação da Constituição à própria decisão
judicial recorrida, em si mesma considerada, em termos que surgem como
inseparáveis das particularidades específicas do caso concreto. O recorrente,
aliás, não identifica, com o mínimo de precisão e clareza, qual a interpretação
normativa que reputa inconstitucional, em termos de possibilitar a emissão de um
juízo de inconstitucionalidade dotado de generalidade e abstracção.
Para além de, por essa razão, ser de julgar inadmissível o recurso,
nesta parte, é igualmente manifestamente infundada a questão de
inconstitucionalidade suscitada. Como o acórdão recorrido proficientemente
demonstrou, no seu ponto 2.3.1., o recorrente, discordando da data indicada
pelo Ministério Público como sendo a do trânsito em julgado da decisão
condenatória, impugnou-a na oposição e a Relação decidiu o litígio, com base
nos elementos constantes dos autos e que considerou suficientes, sem que desta
actuação – que constitui a actuação normal em caso de dissídios entre
intervenientes processuais – tenha resultado qualquer limitação das garantias
de defesa do recorrente.
6. A terceira questão de inconstitucionalidade é exposta no
requerimento de interposição de recurso nos seguintes termos:
«8. O extraditando/recorrente pretende ainda ver declarada a
constitucionalidade da aplicação do artigo 664.º do CPC, em conjugação com a
interpretação dos artigos. 23.º e 45.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto,
acolhida no acórdão recorrido. Na verdade, o pedido de extradição deu origem
aos presentes autos, e a todos os seus termos, como se estivesse formalmente
correcto, quando não preenchia a alínea e) do artigo 23.° da Lei de Cooperação
Judiciária Internacional.
Assim, o Tribunal recorrido, ao entender que a questão da
irregularidade formal do processo (levantada em sede de questão prévia no
articulado de oposição à extradição) podia ser resolvida em sede de acórdão –
aplicando o disposto no artigo 664.º do CPC – violou o preceituado nos artigos
23.° e 45.° da Lei de Cooperação Judiciária Internacional, por concordar com o
Tribunal da Relação de Évora quando este não deu cumprimento ao que nesses
normativos se dispõe para as situações em que um pedido não está formalmente
correcto, ou seja, a modificação ou completação do pedido, violando, também por
esta via, o princípio do contraditório.
Isto porque, ao concordar com o Tribunal da Relação de Évora, que
não respeitou o disposto nestes normativos legais, o Tribunal recorrido também
impediu o extraditando de conhecer a data efectiva de trânsito em julgado da
decisão condenatória para efeitos de defesa, pelo que a interpretação que o
Tribunal recorrido faz de não obedecer ao imposto pelos citados preceitos,
viola também o disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, e ofende também o
principio da legalidade (artigo 29.º da CRP). Tanto mais que estas normas são
de aplicação directa ao processo de extradição, que apenas prevê a aplicação
subsidiária do processo penal, no artigo 3.°, n.° 2, da Lei n.º 144/99, de 31
de Agosto, e não do processo civil, dada a estrutura dos processos ser
intrinsecamente diferente.»
Neste ponto, o recorrente, no fundo, recoloca a mesma questão do
ponto anterior, apenas com referência a outros preceitos.
Ora, a decisão recorrida não adoptou, como sua ratio decidendi, o
entendimento que lhe vem atribuído. O que no ponto 2.3.2. do acórdão recorrido
se refere é que a referida incorrecção da data do trânsito em julgado da
condenação do recorrente, constante da promoção inicial do Ministério Público,
não constitui causa de nulidade por como tal não estar prevista no artigo
118.º, n.º 1, do CPP, e, aliás, essa indicação nem sequer é requisito legal
dessa promoção.
Não tendo a interpretação normativa arguida de inconstitucional sido
aplicada pelo acórdão recorrido e não tendo o recorrente arguido a
inconstitucionalidade das normas efectivamente aplicadas, como rationes
decidendi, por esse acórdão, o recurso surge, quanto a este ponto, como
inadmissível.
7. A quarta questão de inconstitucionalidade é exposta no
requerimento de interposição de recurso nos seguintes termos:
«9. O extraditando/recorrente pretende também ver declarada a
inconstitucionalidade da aplicação do artigo 664.° do CPC e da interpretação
acolhida na decisão recorrida quanto aos normativos previsto nos artigo 23.°
da Lei n.º 144/99, em conjugação com o disposto no artigo 283.°, n.° 3, do CPP
(aplicáveis ao presente caso por força dos artigos 3.°, n.° 2, e 25.°, n.° 2,
da Lei n.° 144/99). Assim, tendo o processo de extradição sido baseado num
pedido formalmente irregular, cuja irregularidade nunca foi sanada a fim de
permitir ao extraditando exercer o contraditório, deve o pedido ser considerado
nulo, por violação do disposto no art. 23.° da Lei de Cooperação Judiciária
Internacional e no artigo 283.°, n.° 3, do CPP, aplicável por força do disposto
no artigo 3.°, n.° 2, da mesma Lei de Cooperação. A decisão de não interpretar
desta forma o disposto nos supra citados artigos, tal como é acolhida no
Acórdão recorrido, é inconstitucional por violação do artigo 32.°, n.°s 1 e 5,
da Constituição da República Portuguesa.»
A questão suscitada no presente ponto é substancialmente idêntica à
do ponto precedente, sendo para aqui transponíveis as razões que conduzem à
conclusão da inadmissibilidade do recurso, por falta de coincidência entre a
dimensão normativa impugnada e a dimensão normativa efectivamente aplicada
pelo acórdão recorrido.
8. A quinta questão de inconstitucionalidade é exposta no
requerimento de interposição de recurso nos seguintes termos:
«10. Pretende, também, o recorrente, ver apreciada a constitucionalidade da
aplicação do princípio da livre apreciação da prova constante da norma do artigo
127.° do CPP e da interpretação acolhida no Acórdão recorrido quanto aos
normativos previstos nos artigos 55.° da Lei n.º 144/99, 374.°, n.° 2, e 379.º,
n.° 1, alíneas a) e c), do CPP, aplicáveis por força dos artigos 3.°, n.° 2, e
25.°, n.° 2, da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto.
O acórdão recorrido, tal como o Acórdão da Relação de Évora – que
foi declarado nulo – não faz qualquer referência à prova documental junta aos
autos pelo extraditando com o articulado de oposição (19 documentos) nem aos
factos constantes dos artigos 44.º e 45.º do articulado de oposição à
extradição, nomeadamente à existência de tortura nas prisões brasileiras que os
mesmos documentos comprovavam. Ora, embora sujeita à livre apreciação do
julgador, a prova tem que ser apreciada e não pode ser ignorada, e o Tribunal
recorrido entende que os mesmos foram considerados ao abrigo do princípio da
livre apreciação da prova, pese embora o Tribunal da Relação de Évora nunca os
mencione, tal como o acórdão recorrido também não se refere ao teor de tais
documentos.
A apreciação do teor de tais documentos afigura‑se fundamental para
a boa decisão da causa, na medida em que corrobora os factos que o extraditando
denunciara aquando da dedução da sua oposição, os quais foram também ignorados,
e atesta, com ênfase e de forma impressionante, o clima de tensão e de
violações constantes aos direitos humanos que se vive nas prisões brasileiras,
nomeadamente da prática reiterada de tortura, que só por si obviaria a uma
decisão de extradição tal como tem sido entendido pelo Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem.
Foi por esta via vedado ao extraditando o exercício do seu direito
de defesa, com a amplitude prevista no artigo 55.º, n.º 1, da Lei de Cooperação
Judiciária Internacional em Matéria Penal, com tutela constitucional nos termos
do artigo 32.° da Lei Fundamental.
Ora, a omissão de pronúncia em todo o Acórdão recorrido (que
funcionou como Tribunal de instância) sobre os factos alegados nos artigos
44.º e 45.º do articulado de oposição à extradição e sobre os documentos que os
corroboram, gera nulidade nos termos do disposto nos artigos 374.°, n.° 2, e
379.°, n.° 1, alíneas a) e c), do CPP, todos aplicáveis por força do artigos
3.°, n.° 2, da Lei n.° 144/99).
Ora, conformando a violação do disposto no artigo 55.°, n.° 1, da
Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, bem como a violação dos artigos 374.°, n.° 2, e
379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPP, em conjugação com o disposto nos artigos
32.°, n.° l, e 205.°, n.° 1, da CRP, esta interpretação de ignorar factos
alegados pelo extraditando e documentos que permitiriam comprovar esses factos,
a coberto da norma do artigo 127.° do CPP, só pode ser considerada
inconstitucional.»
Neste ponto, é manifesto que o recorrente questiona a
constitucionalidade do acórdão recorrido, em si mesmo considerado, e não de
qualquer interpretação normativa, o que basta para ser inadmissível esta parte
do recurso. Na verdade, a questão suscitada está indissociavelmente ligada às
especificidades do caso concreto.
Acresce que basta ler o ponto 2.3.4.2. do acórdão recorrido, atrás
transcrito, para se concluir que ele não adoptou o comportamento processual que
o recorrente lhe imputa. Aí se demonstrou não ter o acórdão da Relação ignorado
os meios probatórios apresentados, designadamente os relatórios, estudos e
pareceres referidos pelo recorrente.
9. A sexta questão de inconstitucionalidade é exposta no
requerimento de interposição de recurso nos seguintes termos:
«11. Pretende ainda o extraditando/recorrente ver apreciada a
inconstitucionalidade da interpretação do disposto no artigo 6.°, alínea a), da
Lei de Cooperação, que considera não se verificar esse requisito negativo. Com
efeito, tal decisão é reveladora de uma interpretação da alínea a) do artigo
6.° da Lei de Cooperação que considera tolerável a extradição de um cidadão para
a União Federativa do Brasil, quando existem nos autos elementos que afirmam a
existência de um risco de o mesmo, uma vez chegado àquele país, ser sujeito a
actos de tortura na prisão onde já cumpriu parte da pena.
E existindo elementos probatórios – cf. documentos 1 a 15, juntos
com a oposição e depoimento da Dr.ª G. – sérios e irrefutáveis da existência
de riscos de o extraditando ser torturado e até morto, caso seja extraditado
para a União Federativa do Brasil, uma decisão que considere não se verificar
o requisito negativo de cooperação previsto na alínea a) do artigo 6.° da Lei de
Cooperação só pode ser considerada inconstitucional, por violação dos artigos
24.° e 25.° da Lei Fundamental, que consagram, respectivamente, a
inviolabilidade da vida humana e a proibição da tortura, bem como do artigo 8.°
do mesmo diploma, do qual decorre que as normas da Convenção Europeia para a
Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro
de 1950, vigoram na nossa ordem interna e têm de ser respeitadas. Assim, o
Tribunal recorrido, a coberto da aplicação do princípio da livre apreciação da
prova previsto no artigo 127.° do CPP, ignora toda a prova que foi junta aos
autos, não constando sequer do acórdão recorrido a apreciação do teor dos
documentos juntos.»
Mais uma vez o recorrente não suscita nenhuma questão de
inconstitucionalidade normativa, dirigindo a sua crítica directamente à
decisão judicial recorrida e nem sequer referindo com exactidão o que nesta se
consignou. Na verdade, o acórdão recorrido, no ponto 2.3.6., assentou a sua
decisão na constatação de não terem sido julgados provados nenhum dos factos,
alegados na oposição do extraditando, que comprovariam a existência de um risco
de o mesmo, uma vez chegado ao Brasil, ser sujeito a actos de tortura.
Por isso, também quanto a esta última questão, o recurso surge como
inadmissível.”
Por estes fundamentos, na decisão sumária ora reclamada
decidiu‑se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC, não conhecer
do objecto do recurso.
6. A reclamação apresentada pelo recorrente apresenta a
seguinte fundamentação:
“I – INTRODUÇÃO
1. O ora reclamante interpôs recurso para este Tribunal da decisão
final proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito dos autos de recurso
n.º 2794/05 que correu os seus termos na 3.ª Secção.
2. No dia 5 de Setembro de 2005 foi proferida decisão sumária de
rejeição do recurso interposto pelo recorrente, nos termos e para os efeitos
constantes do artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC.
3. Essa decisão sumária, no que respeita à primeira questão invocada
pelo requerente no seu requerimento de interposição do recurso, a qual é o
objecto da presente reclamação, decidiu o seguinte:
«Na verdade, o direito ao recurso, designadamente em processo
criminal, tal como está constitucionalmente consagrado, não implica que,
relativamente a cada questão que se suscite num processo, haja sempre duas
decisões de tribunais hierarquicamente distintos. O direito ao recurso foi
assegurado, no presente caso, através da possibilidade – efectivamente exercida
pelo recorrente – de impugnar perante o Supremo Tribunal de Justiça o decidido
pela Relação. Ao recorrente foi assegurado o direito de acesso a tribunal
superior, perante o qual expôs as suas razões. Quando, após reconhecer a
existência da aludida nulidade por não explicitação do exame crítico das provas,
o Supremo Tribunal de Justiça procede, ele mesmo, a essa explicitação, uma vez
que dispunha de todos os meios necessários para o efeito, não está a actuar como
tribunal de 1.ª instância – contrariamente ao que o recorrente alega –, mas
antes e justamente como tribunal de recurso, no exercício do seu aludido poder
de substituição ao tribunal recorrido.” – sublinhado nosso.
4. Atenta a fundamentação da decisão sumária, a qual, contra todas
as legítimas expectativas do ora reclamante, decidiu não conhecer do objecto do
recurso, e por não se conformar manifestamente com o teor de tal decisão,
apresenta o recorrente a seguinte reclamação:
II – DA RECLAMAÇÃO
5. A decisão sumária proferida nos presentes autos e ora em apreço,
na parte relevante para apreciação da presente reclamação, avança, em primeiro
lugar, com a aplicação da regra da substituição pelo Supremo Tribunal de
Justiça, explicitando que este Tribunal se substituiu ao Tribunal da Relação,
que houvera proferido uma decisão nula, e a reparou.
6. Afirma‑se, naquela decisão, que o direito ao recurso, tal como
está constitucionalmente consagrado, não implica que hajam sempre duas decisões
de tribunais hierarquicamente distintos relativamente a cada questão que se
suscite num processo.
7. No entanto, o princípio segundo o qual o pleito deve passar pelo
exame sucessivo de dois tribunais a fim de ser assegurada, quanto possível, a
justiça da decisão, predomina em todos os sistemas de direito comparado.
8. É posição generalizada, por aceite, que deve existir a
possibilidade de a decisão de um tribunal ser submetida à apreciação ou ao
reexame de um tribunal superior, sendo desta maneira melhor salvaguardado o
escopo do direito e da justiça e defendidos os direitos do cidadão.
9. É o próprio «Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos» (Lei n.º 29/78, de 12 de Junho) a consignar a necessidade de haver um
duplo grau de jurisdição em matéria penal, como se constata do disposto no seu
artigo 14.º, n.º 5, que refere que:
«Qualquer pessoa declarada culpada de um crime, terá o direito de
fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a
sentença, em conformidade com a lei.»
10. Em Portugal, não se encontrando o duplo grau de jurisdição elevado à
categoria de princípio constitucional, não deixa contudo de ser reconhecido pela
lei fundamental uma espécie de triplo grau de jurisdição, por força do disposto
no artigo 210.º da CRP.
11. Ora, se é certo que a segunda instância não é uma fase
necessária de todo o processo, mas se tal conclusão possa fazer algum sentido em
processo civil, dúvidas se colocam no âmbito do processo criminal, nomeadamente
no âmbito de um processo de extradição, onde os graus de recurso são
inequivocamente limitados.
12. Ora, sucede que, no tocante ao processo criminal, o princípio
constitucional das garantias de defesa impõe a faculdade de os arguidos poderem
recorrer das sentenças condenatórias, e bem assim de quaisquer actos judiciais
que, no decurso do processo, afectem direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente garantidos.
13. No caso em apreço o recorrente nem sequer teve a possibilidade
de exercer o seu direito ao recurso por uma única vez relativamente à questão
suscitada e tida como nula.
14. Efectivamente, o Supremo Tribunal de Justiça veio, no seu ponto
2.3.5.1., anular o acórdão do Tribunal da Relação e, de facto, substitui‑se a
este Tribunal, proferindo a sua decisão.
15. Ora, se a decisão do Tribunal da Relação de Évora é nula, não
produziu quaisquer efeitos jurídicos, pois, nos termos do disposto no artigo
122.º, n.º 1, do CPP, a nulidade torna inválido o acto em que se verificou, bem
como os que dele dependerem e aqueles que puder afectar.
16. Unanimemente, a doutrina considera que o acto nulo é‑o desde o
momento da sua prática, pois a declaração de nulidade tem efeitos ex tunc,
eliminando o acto nulo e os seus efeitos jurídicos desde o momento da prática
do acto ferido de nulidade (vide Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão,
Introdução ao Estudo do Direito, 4.ª edição, revista e aumentada com base na
Revisão Constitucional de 1997, Publicações Europa‑América).
17. Assim sendo, a declaração de nulidade tem como efeito uma
regressão do processo a uma fase anterior àquela em que se encontrava, na
medida em que os actos afectados devem ser repetidos, tudo se passando como se o
acto nulo nunca tivesse sido praticado.
18. Ora, assim sendo, não tendo a decisão do Tribunal de Relação
produzido quaisquer efeitos, por ser nula, então o Supremo Tribunal de Justiça
não se estará a substituir àquele Tribunal, mas tão‑somente a tomar posição
sobre a questão, proferindo uma primeira decisão válida sobre aquela questão.
19. E se a primeira decisão sobre a questão submetida pertence ao
Supremo Tribunal de Justiça, e não sendo o Tribunal Constitucional um Tribunal
de recurso ordinário, então o recorrente viu coarctado o seu direito
constitucional ao recurso, pois não tinha qualquer instância de controlo para a
qual recorrer daquela decisão.
20. Razão pela qual o Supremo Tribunal de Justiça não poderia ter‑se
substituído ao Tribunal da Relação, suprindo a nulidade daquela decisão e
reparando‑a, devendo antes ter procedido ao reenvio do processo para aquele
Tribunal, para que este reparasse a sua própria decisão, e assim o recorrente
tivesse, pelo menos, uma instância de recurso sobre a questão decidida pelo
Supremo Tribunal de Justiça.
21. Ou seja, a questão de controlo da constitucionalidade suscitada
e que se pretende ver apreciada não é, ao contrário do que vem referido na
decisão sumária ora reclamada, a do duplo grau de recurso.
22. A questão que se pretende ver apreciada prende‑se com o facto de
o recorrente não ter tido ao seu dispor nem sequer uma instância de recurso
sobre a questão ferida de nulidade, já que a primeira decisão válida sobre a
questão que colocou foi proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
23. Ao admitir a existência de uma nulidade cometida pelo Tribunal
da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça toma posição e actua como Tribunal de
1.ª instância, impedindo qualquer possibilidade de recurso em relação à questão
sobre a qual se pronunciou.
24. Pois a intervenção substitutiva do Supremo Tribunal de Justiça,
embora tivesse o condão de alcançar eventuais ganhos em termos de celeridade na
apreciação das questões controvertidas e na resolução do próprio processo, não
pode pôr em causa o direito ao recurso do extraditando ora reclamante.
25. Assim, o recorrente pretende efectivamente ver apreciada a
constitucionalidade da interpretação das normas processuais constantes nos
artigos 715.º do CPC e 58.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, quando
interpretadas no sentido acolhido pelo acórdão recorrido, nos termos devidamente
suscitados por estar em causa o controlo judicial legalmente e
constitucionalmente imposto.
Porquanto,
26. A interpretação realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao
não decretar o reenvio do processo para a Relação proceder a novo julgamento da
questão, impede o reclamante de exercer o seu direito ao recurso quanto à
primeira questão julgada nula e sobre a qual apenas terá sido tomada uma única
decisão válida.
27. Tal interpretação, que concede prevalência à celeridade
processual, não pode ser exacerbada ao ponto de tornar letra morta o n.º 1 do
artigo 426.º do CPP e sacrificar nas aras dessa mesma celeridade as garantias de
defesa constantes da Constituição da República Portuguesa.
28. A interpretação normativa realizada pelo Supremo Tribunal de
Justiça aos preceitos supra referidos não deixa de afectar o princípio
constitucional das garantias de defesa, na medida em que o ora reclamante fica
totalmente desprovido da possibilidade de exercer o seu direito ao recurso sobre
a questão em análise.
29. Acresce que o Supremo Tribunal de Justiça, quando se substitui
ao Tribunal da Relação de Évora e entende poder conhecer do objecto final do
recurso e das restantes questões que vêm suscitadas (não obstante ter declarado
a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação), fá‑lo com base na aplicação do
artigo 715.º do CPC.
30. Ora, a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, dispõe no seu artigo 3.º
que o regime subsidiariamente aplicável ao processo de extradição é o do Código
de Processo Penal. E como existe no Código de Processo Penal um regime
específico para os recursos, o STJ não podia aplicar subsidiariamente o CPC,
por não estarmos, no caso sub judice, perante a existência de qualquer lacuna.
31. Ou seja, ao declarar nulo o acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação de Évora, o Supremo Tribunal de Justiça teria que ter procedido ao
reenvio dos autos para aquele Tribunal, tal como dispõe o artigo 426.º do CPP,
pois não podia decidir da causa (nomeadamente decidir das questões de facto e de
direito), pois se o fizesse estaria a vedar ao extraditando a possibilidade de
exercer o seu direito ao recurso.
32. Acresce que o regime dos recursos no Código de Processo Penal
apenas permite ao Supremo Tribunal de Justiça decidir sobre questões de direito
ou sobre os vícios constantes do artigo 410.º do CPP, e já não sobre matéria de
facto.
33. Não obstante, mesmo considerando que o Supremo Tribunal de
Justiça também possa conhecer da matéria de facto, por ser a única instância de
recurso prevista no processo de extradição, ainda assim, a decisão que declara o
acórdão da Relação nulo é a primeira decisão válida que se pronuncia sobre as
questões de facto e de direito suscitadas pelo extraditando. E desta decisão não
cabe qualquer recurso ordinário.
34. Pelo que, desta forma, o extraditando fica impedido de exercer
um direito constitucionalmente previsto e que faz parte das suas garantias de
defesa, o direito ao recurso.
35. Assim sendo, o recorrente entende que as dúvidas acerca da
constitucionalidade da interpretação do Supremo Tribunal de Justiça foram
suscitadas de acordo com a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e gostaria
de ter a oportunidade de explicar em sede de alegações os princípios
constitucionais violados, visto ser esta a sede própria para o fazer após o
recurso ser admitido.”
7. Notificado desta reclamação, o representante do
Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou a seguinte resposta:
“1 – A reclamação deduzida circunscreve‑se à primeira questão de
constitucionalidade suscitada pelo recorrente – e atinente à aplicabilidade, em
processo de extradição, da regra da substituição ao tribunal recorrido, prevista
no artigo 715.° do Código de Processo Civil.
2 – Note-se que a decisão impugnada assenta num duplo fundamento
alternativo: a não suscitação, durante o processo, de tal questão de
constitucionalidade pelo recorrente, por se não considerar a solução jurídica
adoptada pelo Supremo como «decisão-surpresa», susceptível de o dispensar de tal
ónus; e o carácter manifestamente infundado de tal questão, face ao entendimento
jurisprudencial sobre o âmbito do direito ao recurso – sendo certo que o
reclamante não impugnou o primeiro fundamento, atinente aos pressupostos do
recurso, centrando‑se no segundo.
3 – Como nota a decisão reclamada, não compete a este Tribunal
Constitucional sindicar da correcção e adequação da interpretação feita pelo
Supremo Tribunal de Justiça do direito ordinário, nomeadamente da
aplicabilidade, em processo de extradição, do artigo 715.° do Código de
Processo Civil – sendo, porém, inquestionável, quer em processo civil, quer em
processo penal, que o Tribunal ad quem, ao exercer o segundo grau de
jurisdição, pode suprir as nulidades da decisão recorrida.
4 – Ora, como nota a decisão reclamada, não parece que do princípio
constitucional do direito ao recurso possa inferir-se que de uma decisão,
proferida pelo Supremo, caiba sempre recurso – parecendo-nos, aliás, que a
questão suscitada pelo recorrente não se mostra correctamente estruturada: na
verdade, a entender‑se que das decisões proferidas, em 1.ª instância, pelo
Supremo, em sede de extradição, tinha sempre de haver recurso, a conclusão não
seria (como pretende o recorrente) a necessária devolução dos autos à Relação,
para se pronunciar sobre as nulidades arguidas, mas a existência de um novo
grau de recurso para o Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de
Justiça da decisão que tivesse sido proferida, pela Secção e em 1.ª instância,
pelo Supremo sobre o pleito (cfr. artigo 35.°, n.º 1, alínea b), da Lei n.º
3/99).
5 – Termos em que deverá improceder a presente reclamação.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
8. Como resulta do teor da reclamação apresentada, o
recorrente conformou‑se com a decisão sumária enquanto entendeu ser inadmissível
o recurso na parte relativa às denominadas segunda a sexta questões de
inconstitucionalidade.
A presente reclamação cinge‑se expressamente à
contestação da decisão sumária na parte em que julgou inadmissível o recurso
reportado à denominada “primeira questão de inconstitucionalidade”.
Nessa parte, a decisão sumária alicerça‑se num duplo
fundamento: (i) falta de suscitação da questão de inconstitucionalidade; e (ii)
carácter manifestamente infundado desta questão. Na verdade, tendo o recorrente
expressamente reconhecido, no requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, que, relativamente a algumas das questões de
inconstitucionalidade – entre as quais a agora em causa –, não as havia
suscitado perante o tribunal recorrido antes de proferida a decisão impugnada
por tais questões terem sido “originadas pela aplicação de algumas normas no
próprio acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que não foi
possível ao extraditando prevenir tal questão”, a decisão sumária ora reclamada
entendeu que o caso não era susceptível de ser incluído naquelas hipóteses
excepcionais em que se tem considerado o recorrente dispensado do ónus da prévia
suscitação da questão de inconstitucionalidade, atenta o carácter inesperado ou
insólito da interpretação e aplicação das normas feitas pela decisão judicial
recorrida.
Repete‑se o teor da passagem pertinente da decisão
sumária reclamada:
“Esta questão de constitucionalidade prende‑se com o decidido no
ponto 2.3.5.1. do acórdão recorrido. Aí se entendeu que, não revelando o
acórdão da Relação, pelo menos de forma expressa, o «exame crítico das provas»,
referido no n.º 2 do artigo 374.º do CPP, se verificava a nulidade prevista no
artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, mas que, no caso, funcionando o
Supremo Tribunal de Justiça como 1.ª instância de recurso, era aplicável a
regra da substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, consagrada
no artigo 715.º do CPC, competindo ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer da
questão, já que os autos forneciam o conteúdo de todos os elementos
probatórios relevantes para a decisão, sem necessidade de remeter o processo
ao Tribunal da Relação para suprir a nulidade.
Ora, independentemente da correcção da invocação do artigo 715.º do
CPC, o certo é que a solução jurídica perfilhada não se pode, de modo algum,
considerar inesperada ou insólita, em termos de dispensar o recorrente do ónus
da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade. A aludida regra da
substituição é a que resulta do n.º 2 do artigo 379.º do CPP, que consente ao
tribunal de recurso suprir as nulidades da sentença, e do n.º 1 do artigo 426.º
do mesmo Código, que, mesmo nos caso de existência dos vícios referidos nas
alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, só consente o reenvio do processo quando não
seja possível ao tribunal de recurso decidir da causa.”
Logo por este fundamento se entendeu ser inadmissível o
recurso quanto a esta questão, acrescentando‑se, de seguida, como fundamento
adicional, que sempre o recurso seria de rejeitar, nesta parte, por ser de
considerar manifestamente infundada a questão suscitada, aduzindo‑se:
“Na verdade, o direito ao recurso, designadamente em processo
criminal, tal como está constitucionalmente consagrado, não implica que,
relativamente a cada questão que se suscite num processo, haja sempre duas
decisões de tribunais hierarquicamente distintos. O direito ao recurso foi
assegurado, no presente caso, através da possibilidade – efectivamente
exercitada pelo recorrente – de impugnar perante o Supremo Tribunal de Justiça
o decidido pela Relação. Ao recorrente foi assegurado o direito de acesso a
tribunal superior, perante o qual expôs as suas razões. Quando, após reconhecer
a existência da aludida nulidade por não explicitação do exame crítico das
provas, o Supremo Tribunal de Justiça procede, ele mesmo, a essa explicitação,
uma vez que dispunha de todos os elementos necessários para o efeito, não está
a actuar como tribunal de 1.ª instância – contrariamente ao que o recorrente
alega –, mas antes e justamente como tribunal de recurso, no exercício do seu
aludido poder de substituição ao tribunal recorrido.”
Na presente reclamação, o recorrente nada aduz contra o
primeiro fundamento da rejeição do recurso, só podendo relevar as considerações
nela tecidas em termos de contestar a qualificação da questão como
manifestamente infundada. Mas, assim sendo, é óbvio que a presente reclamação
está votada ao insucesso. Na verdade, mesmo que a conferência viesse a
considerar não manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade
suscitada, sempre a decisão de não conhecimento do recurso se manteria, embora
reduzida ao primeiro fundamento (não suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido antes de proferida a decisão
impugnada), fundamento esse com o qual – repete‑se – o recorrente se conformou.
III – Decisão
9. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Setembro de 2005
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos