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Processo n.º 660/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da
decisão do relator de não conhecimento do recurso interposto para o Tribunal
Constitucional do acórdão da Relação de Coimbra, de 13 de Julho de 2005, que
negou provimento ao recurso interposto do despacho proferido pelo Juiz de
Instrução do Tribunal Judicial de Águeda, nos autos de Inquérito n.º
345/05.3GBAGD da Secção de Processos do Ministério Público, que lhe aplicou a
medida de coacção de prisão preventiva.
2 – Fundamentando a sua reclamação, o reclamante aduz o seguinte
discurso argumentativo:
«[…] não se conformando com a douta decisão de não conhecimento do objecto do
seu recurso, contra ela vem reclamar, nos seguintes termos:
1º
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70º, da Lei do
Tribunal Constitucional e do art. 280º, n.º 1, al. b) da Constituição da
República Portuguesa, e a questão das inconstitucionalidades foi suscitada nos
autos de recurso para a Relação de Coimbra, em especial, nas alegações 21ª a 24ª
e respectivas conclusões X e XI, sobre elas tendo recaído o douto acórdão
recorrido.
2º
Continua-se a pretender que seja declarada ilegal e inconstitucional, por violar
o princípio da presunção de inocência previsto pelo art. 32º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa:
a interpretação e/ou aplicação da alínea c) do art. 204º do Código de Processo
Penal, por referência ao princípio da adequação previsto pelo art. 193º, n.º 1,
1ª parte, do C.P.P. - como fez a douta decisão recorrida - para satisfação de
exigências gerais de alarme social, no sentido de não ser necessária a
existência e invocação de factos, relativos a existência concreta de exigências
cautelares intra-processuais de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade
públicas na comunidade do arguido. É abusiva essa prisão preventiva, pois não se
pode interpretar a referência à paz jurídica, à luz da alínea c) do art. 204º do
C.P.P., no sentido de uma ideia de prevenção geral, sendo a prisão preventiva
ilegítima para prosseguir finalidades de direito penal.
3º
A dimensão normativa do preceito constitucionalmente impugnada foi efectivamente
ratio decidendi da decisão recorrida.
4º
O que se questiona é a necessidade constitucional de invocação de factos
concretos relativos ao perigo de perturbação na comunidade do arguido, e não
(apenas) de factos relativos ao crime imputado ou à personalidade do arguido.
Factos concretos relativos ao perigo de perturbação na comunidade do arguido.
5º
O douto despacho de aplicação da prisão preventiva não se dignou sequer a
invocar qualquer facto com vista a fundamentar tal requisito, e veja-se a
fundamentação da prisão preventiva do douto acórdão recorrido:
«É que o recorrente parece querer esquecer que a violência doméstica é um
problema preocupante no mundo actual.
Será que está de tal modo alheio à magnitude do fenómeno que tem levado à
proliferação de inúmeras associações que lutam contra a violência doméstica
deste género a nível de todo mundo ocidental?
Será que as campanhas feitas a nível da comunicação social não chegam aos
ouvidos e aos olhos do recorrente?
O combate a um tal tipo de violência é uma das grandes preocupações actuais da
nossa sociedade, e o tribunal não o ignorou.
Por essa razão ninguém entenderia que depois de ter morto a companheira, como
ele próprio reconhece ‘com a porrada que lhe deu’, o mesmo fosse colocado a
aguardar julgamento mediante outra medida coactiva. É pois por demais evidente à
luz do cidadão médio que a sua libertação geraria forte alarme social.»
6º
Bem pode a Constituição bastar-se com estas doutas considerações, mas não se
diga que essas considerações constituem: «(...) a existência e invocação de
factos, relativos a existência concreta de exigências cautelares
intra-processuais de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas na
comunidade do arguido.»
7º
É certo que a decisão recorrida conclui existirem esses factos concretos, mas a
dimensão constitucionalmente impugnada não tem a ver com a sua referência a uma
conclusão judicial, tem a ver com a necessidade de sua fundamentação.
8º
Trata-se de um problema de interpretação, sendo que, caso se entenda que essas
considerações não constituem: «(...) a existência e invocação de factos,
relativos a existência concreta de exigências cautelares intra-processuais de
perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas na comunidade do
arguido.», então a dimensão normativa do preceito constitucionalmente impugnada
foi efectivamente ratio decidendi da decisão recorrida.
9º
Pretende-se ainda que seja declarada ilegal e inconstitucional, por ofensa aos
princípios da subsidiariedade da prisão preventiva e da fundamentação de actos
decisórios, previstos pelos arts. 28º, n.º 2, e 205º, n.º 1, ambos da
Constituição da República Portuguesa:
a interpretação e/ou aplicação dos arts. 202º, n.º 1, 193º, nº 2, e 97º, nº 4,
todos do C.P.P., fundamentando o cumprimento daquele primeiro princípio - como
fez a douta decisão recorrida - referindo a subsidiariedade à gravidade dos
crimes imputados, e não à capacidade de medida de coacção menos gravosa cumprir
em os interesses cautelares invocados, e no sentido de não exigirem aquelas
normas que se especifiquem as razões da inadequação ou insuficiência das outras
medidas.
10º
Quanto a esta parte do recurso é gritante a sua admissibilidade: não foram
cumpridos os requisitos de fundamentação expressa dos preceitos invocados,
quanto à inadequação das restantes medidas de coacção.
11º
Fundamentou-se a adequação da prisão preventiva, ou seja, a sua capacidade para
cumprir as exigências de prevenção (seria de espantar que o não pudesse), mas
não os fundamentos da inadequação das restantes medidas, planos perfeitamente
diversos - cf., neste sentido, Maria João Antunes, «Liber Discipulorum para
Jorge de Figueiredo Dias», pg.1255.
12º
Essa fundamentação é constitucionalmente exigida nos termos invocados, não tendo
sido cumprida, e o entendimento contrário pode não ter sido ratio concluendi,
mas foi certamente ratio decidendi. Até porque a aplicação da norma, ou de uma
sua interpretação, pode ser implícita (Acs. do T.C. nºs 88/86, 47/90, 235/93).
Nestes termos
e nos melhores de direito, requer V.s Excia.s se dignem, conhecer do recurso».
3 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional respondeu
dizendo que “pelas razões que constam da decisão sumária proferida no processo –
que não foram postas em crise pela reclamação – é manifesto não ser possível
conhecer do objecto do recurso”.
4 – A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do acórdão da Relação de Coimbra, de 13 de Julho de 2005,
que negou provimento ao recurso interposto do despacho proferido pelo Juiz de
Instrução do Tribunal Judicial de Águeda, nos autos de Inquérito n.º
345/05.3GBAGD da Secção de Processos do Ministério Público, que lhe aplicou a
medida de coacção de prisão preventiva.
2 – Pretende o recorrente que seja declarada ilegal e inconstitucional:
- “[…] por violar o princípio de presunção de inocência previsto pelo art.
32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa:
a interpretação e/ou aplicação da alínea c) do art. 204º do Código de Processo
Penal, por referência ao princípio da adequação previsto pelo art. 193º, n.º 1,
1ª parte, do C.P.P. – como fez a douta decisão recorrida - para satisfação de
exigências gerais de alarme social, no sentido de não ser necessária a
existência e invocação de factos, relativos a existência concreta de exigências
cautelares intra-processuais de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade
públicas na comunidade do arguido. É abusiva essa prisão preventiva, pois não se
pode interpretar a referência à paz jurídica, à luz da alínea c) do art. 204º do
C.P.P., no sentido de uma ideia de prevenção geral, sendo a prisão preventiva
ilegítima para finalidades de direito penal”.
e
“[…] por ofensa aos princípios da subsidiariedade da prisão preventiva e da
fundamentação de actos decisórios, previstos pelos arts. 28º, n.º 2, e 205º, n.º
1, ambos da Constituição da República Portuguesa:
a interpretação e/ou aplicação dos arts. 202º, nº 1, 193º, nº 2, e 97º, n.º 4,
todos do C.P.P., fundamentando o cumprimento daquele primeiro princípio - como
fez o douta decisão recorrida - referindo a subsidiariedade à gravidade dos
crimes Imputados, e não, capacidade de medida de coacção menos gravosa cumprir
os interesses cautelares invocados, e no sentido de não exigirem aquelas normas
que se especifiquem as razões da inadequação ou insuficiência das outras
medidas”.
3 – Porque a situação recortada pelo recorrente não satisfaz os requisitos
específicos do recurso de constitucionalidade tal como o mesmo está configurado
no nosso sistema constitucional – recurso de inconstitucionalidade normativa,
que não de recurso de amparo – passa a decidir-se imediatamente.
4.1 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposição esta que
se limita a reproduzir o comando constitucional, consubstancia-se numa questão
de (in)constitucionalidade da norma(s) de que a decisão recorrida haja feito
efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí
decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade que é exigido pela natureza instrumental (e incidental) do
recurso de constitucionalidade tal como o mesmo se encontra desenhado no nosso
sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas
jurídicas pelos vários tribunais, bem como pela natureza da própria função
jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa, «A jurisdição constitucional
em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues
Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss., e,
entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no Diário da República, II
Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no mesmo jornal oficial,
de 10 de Janeiro de 1995, e, ainda na mesma linha de pensamento, o Acórdão n.º
155/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995, e,
aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000,
publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).
Neste domínio, há que acentuar que, nos processos de fiscalização
concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou
reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou
ou devesse ter apreciado.
Na verdade, o conhecimento da questão de constitucionalidade há-de
poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua
reforma, no caso de o recurso obter provimento.
Tal só é possível quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal
Constitucional aprecie tenha constituído a ratio decidendi da decisão recorrida,
ou seja, o fundamento normativo da decisão recorrida.
4.2 – Por outro lado, cumpre acentuar que, sendo o objecto do
recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas
jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode
sindicar-se no recurso de constitucionalidade a decisão judicial em sim mesma,
mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios
constitucionais, ou o modo como a mesma determinou o direito infraconstitucional
e o aplicou às circunstâncias concretas do caso.
Como já se afirmou, é sempre forçoso que no âmbito dos recursos
interpostos para o Tribunal Constitucional se questione a
(in)constitucionalidade de normas, não sendo, deste modo, admissíveis os
recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo
espanhol, sindiquem sub species constitutionis a concreta aplicação do direito
efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de
“aplicação” a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais.
Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o
mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo – a intervenção
do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto
julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas
pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse, nos recursos
interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o
problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88,
publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º
618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para
jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos n.ºs 178/95 - publicado no
Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9,
inéditos e o Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República, II Série, de
18 de Junho de 1994)].
5 – O recorrente pretende a apreciação de inconstitucionalidade da
“alínea c) do art.º 204º do Código de Processo Penal, por referência ao
princípio da adequação previsto pelo art.º 193º, n.º 1, 1ª parte, do CPP”,
quando interpretada no sentido de [para satisfação de exigências gerais de
alarme social] não ser necessária a existência e invocação de factos, relativos
à existência concreta de exigências cautelares intra-processuais de perigo de
perturbação da ordem e tranquilidade públicas na comunidade do arguido. É
abusiva essa prisão preventiva, pois, não se pode interpretar a referência à paz
jurídica, à luz da alínea c) do art.º 204º do CPP, no sentido de uma ideia de
prevenção geral, sendo a prisão preventiva ilegítima para prosseguir finalidades
de direito penal”.
Antes de mais importa notar que o recorrente se apresenta a
controverter, conforme resulta do modo como enuncia o problema de
constitucionalidade, o resultado da interpretação da norma constante da aliena
c) do art.º 204º do CPP a que o tribunal a quo chegou, segundo o seu ponto de
vista, contestando a sua correcção, quer em face do princípio da adequação das
medidas de coacção que se acha consagrado no art.º 193º, n.º 1, do mesmo
compêndio processual penal, quer em face da falta de correspondência entre a paz
jurídica, que subjaz à conformação do regime constante daquela alínea c), e a
ideia de prevenção geral prosseguida pelo direito penal.
Porém, como já se disse, não cabe nos poderes do Tribunal
Constitucional apreciar se a decisão recorrida almejou alcançar o melhor direito
que, de acordo com as regras de hermenêutica, seria possível ao aplicador do
direito determinar, mas tão-só se o direito, tal como foi fixado, é não direito
sub specie constitutionis.
Por outro lado, não lhe compete ainda sindicar se, uma vez
determinado o direito, a decisão recorrida se afasta, no juízo de subsunção da
realidade juridicamente relevante, do quadro normativo pré-definido.
Se o tribunal a quo definiu porventura correctamente o critério
normativo definido pelo legislador mas veio depois a errar no apuramento da
relevância ou dos efeitos jurídicos que, no confronto com esse critério, os
factos apurados devem consequenciar, não pode o Tribunal Constitucional refazer
esse juízo subsuntivo-normativo e reconduzi-lo ao racionalmente correcto.
Nesta perspectiva não tem o Tribunal Constitucional de ajuizar se
“não se pode interpretar a referência à paz jurídica, à luz da alínea c) do art.
204º do CPP, no sentido de uma ideia de prevenção geral, sendo a prisão
preventiva ilegítima para prosseguir finalidades de direito penal” ou se “por
referência ao princípio da adequação previsto pelo art. 193º, nº 1, 1ª parte, do
CPP, para satisfação de exigências gerais de alarme social, não ser [é]
necessária a existência e invocação de factos, relativos a existência concreta
de exigências cautelares intra-processuais de perigo de perturbação da ordem e
tranquilidade públicas na comunidade do arguido”.
Mas ao contrário do que o recorrente pretexta no seu requerimento de
interposição de recurso, constata-se que a decisão recorrida não interpretou o
preceito da alínea c) do art. 204º do CPP no sentido de “para satisfação de
exigências gerais de alarme social […] não ser necessária a existência e
invocação de factos relativos a existência concreta de diligências cautelares
intra-processuais de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas na
comunidade do arguido”.
O seu discurso, por adesão ao ensinamento que transcreve de Germano
Marques da Silva (Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 278), é, aliás, bem
claro no sentido de não dever ser aplicada a medida da prisão preventiva “desde
que qualquer das outras medidas seja adequada para acautelar os fins processuais
que se pretendem alcançar com a imposição de uma medida de coacção” e que “deve
ser sempre aplicada a menos gravosa”, sendo que a “prisão preventiva é a mais
gravosa de todas”. E a decisão recorrida continua, repetindo essa posição: “É
que não pode nunca olvidar-se que o princípio da presunção de inocência é uma
garantia fundamental e, por isso, a imposição de limitações à liberdade só pode
ser de admitir na medida da sua estrita necessidade para a realização dos fins
do processo”.
É sobre este prisma que a decisão recorrida interpreta o art. 204º
do CPP e, especificamente, a sua alínea c).
Não pode, pois, o recorrente sustentar que o acórdão recorrido se
abonou no entendimento de “não ser necessária a existência e invocação de factos
relativos a existência concreta de diligências cautelares intra-processuais de
perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas na comunidade do
arguido”.
Não foi, pois, esse o sentido do preceito que foi expressamente
afirmado, como, igualmente, não foi por ele que foi determinada a medida de
coacção aplicada ao arguido.
A decisão recorrida sopesou não só os factos concretos imputados ao
arguido, indiciariamente provados nos autos – agressões e maus tratos à sua
mulher – como a frequência dos mesmos (“quase todos os dias”) e as
circunstâncias em que os mesmos ocorreram (“na presença dos filhos do casal” –
susceptíveis de integrar a prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art.
152º, nº 5, alínea b), do Cód. Penal (ou até eventualmente um crime de homicídio
qualificado, p. e p. pelo art. 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do mesmo código),
como, ainda, “existir, em concreto, perigo, em razão da natureza e das
circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e
da tranquilidade pública”, no futuro.
O acórdão recorrido constrói o seu juízo sobre a medida de coacção
cuja aplicação se afigura adequada para prosseguir os fins do processo – não
sendo a correcção dessa avaliação sindicável por este Tribunal – sobre uma
ponderação valorativa diversificada em que o perigo de perturbação da
tranquilidade pública (o acórdão fala de “alarme e revolta social”) é, como se
vê, apenas um dos elementos de facto tomados em conta. E se é verdade que o
aresto em causa se detém numa análise mais alargada deste perigo, tal só se deve
ao seu propósito de concretizar a base fáctica de que infere a sua conclusão.
É por demais evidente que o acórdão recorrido apenas releva o perigo
futuro de perturbação da tranquilidade pública na medida e enquanto o mesmo se
mostra associado directamente aos factos concretos tidos indiciariamente como
praticados pelo arguido, à sua personalidade, à gravidade do crime e à sanção
que previsivelmente lhe pode ser aplicada ou seja segundo uma visão cautelar da
aplicação da medida de coacção para a prossecução do fim do processo e não por
tal corresponder a qualquer fim ou ideia de prevenção geral ou especial que a
conformação do tipo legal procura também realizar.
Temos, portanto, de concluir que, independentemente de o recorrente
controverter a correcção da interpretação levada a cabo pelo tribunal a quo
relativa ao art.º 204º, alínea c), do CPP, a dimensão normativa deste preceito
que vem constitucionalmente impugnada não constituiu ratio decidendi da decisão
recorrida.
6 – E o mesmo se diga mutatis mutandis relativamente à dimensão
normativa enunciada em segundo lugar pelo recorrente e referida aos art. 202º,
n.º 1, 193º, n.º 2, e 97º, n.º 4, todos do CPP.
Na verdade, a decisão recorrida, em ponto algum do seu discurso
fundamentador, afirma o entendimento de que o princípio da subsidiariedade das
medidas de coacção deva ser perspectivado (apenas) em função da gravidade dos
crimes e não da capacidade da medida de coacção menos gravosa poder cumprir os
interesses cautelares evidenciados no concreto processo e muito menos, ainda,
que os referidos preceitos não exijam que se especifiquem as razões da
inadequação ou insuficiência das outras medidas.
O recorrente pretende a apreciação de constitucionalidade de uma
norma, cuja determinação por via interpretativa dos referidos preceitos imputa
ao acórdão recorrido, diferente daquela que constituiu o fundamento normativo da
decisão nele proferida. O acórdão recorrido é bem explícito na afirmação do
princípio da subsidiariedade entre as diversas medidas de coacção.
A este propósito basta atentar no que se afirma no seguinte excerto
da sua fundamentação:
«A prisão preventiva é uma medida de coacção prevista no art. 202º do CPP.
Diz este artigo, no seu n.º 1, que:
'Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos
artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão
de máximo superior a três anos; ou
b)...'
O carácter excepcional da prisão preventiva resulta expressamente da própria
Constituição que, no seu art. 28º, n.º 2, estabelece:
'A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida
sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na
lei'.
E resulta, igualmente, do art. 193º do CPP (que estabelece o princípio da
adequação e proporcionalidade das medidas de coacção), em cujo n.º 2 se estatui:
'A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida
sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na
lei'.
E resulta, igualmente, do art. 193º do CPP (que estabelece o princípio da
adequação e proporcionalidade das medidas de coacção), em cujo n.º 2 se estatui:
'A prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou
insuficientes as outras medidas de coacção'.
Como refere, a dado passo, Germano Marques da Silva(1)' O não dever a prisão
preventiva ser decretada sempre que possa ser aplicada outra medida de coacção,
significa que desde que qualquer das outras medidas seja adequada para acautelar
os fins processuais que se pretendem alcançar com a imposição de uma medida de
coacção, deve ser sempre aplicada a menos gravosa e a prisão preventiva é a mais
gravosa de todas.
É que não pode nunca olvidar-se que o princípio da presunção de inocência é uma
garantia fundamental e, por isso, a imposição de limitações à liberdade só pode
ser de admitir na medida da sua estrita necessidade para a realização dos fins
do processo'.
Além da existência de 'fortes indícios da prática de crime doloso punível com
pena de prisão de máximo superior a três anos”, a aplicação da prisão preventiva
- como aliás, de qualquer outra medida de coacção, à excepção do termo de
identidade e residência, pressupõe a ocorrência, em concreto, de alguma das
circunstâncias ('pericula libertatis') referidas nas várias alíneas do art. 204º
do CPP.».
Se o acórdão recorrido, ponderando as circunstâncias de facto que
evidenciou e a existência de diversas medidas de coacção aplicáveis em
abstracto, concluiu no sentido de, na situação concreta dos autos, ser a medida
de prisão preventiva a única medida de coacção adequada para cumprir os
interesses cautelares do processo, isso significa que formulou, explicitamente,
um juízo de inadequação para satisfazer esses interesses cautelares
intra-processuais de todas as restantes medidas de coacção menos gravosas para a
liberdade do arguido.
Tal leitura da decisão recorrida é a única que se compagina com o
critério normativo que antes expressamente deixou afirmado, representando a
subsunção normativa do caso.
Deste modo, o que o recorrente controverte acaba por ser o modo como
a decisão recorrida efectuou a aplicação em concreto do critério normativo antes
enunciado. Mas esta dimensão do juízo judicial escapa à apreciação do Tribunal
Constitucional por respeitar à correcção, em concreto, da aplicação aos factos
juridicamente relevantes do critério normativo pelo qual o caso deve ser
decidido.
Temos, portanto, de concluir que o recorrente não sindica
constitucionalmente a norma que constituiu o fundamento normativo da decisão
recorrida, mas uma outra diferente, bem como a correcção em concreto da decisão
judicial.
Deste modo, não se verificam os referidos pressupostos específicos
do recurso de constitucionalidade, pelo que não pode tomar-se conhecimento do
mesmo.
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 8 UCs.».
B – Fundamentação
5 – Como decorre do confronto entre o discurso fundamentador da
reclamação e a decisão sumária, constata-se que, nele, o reclamante não
controverte, em ponto algum, as razões em que se abonou a decisão do relator
para vir a concluir, como veio a concluir, pelo não conhecimento do recurso de
constitucionalidade.
O reclamante não afronta, em qualquer ponto, a correcção do juízo
feito pelo relator quanto à não verificação dos analisados pressupostos do
recurso de constitucionalidade, limitando-se a repetir a definição, já antes
feita, quer das normas que constituíram, segundo a sua anterior afirmação, o
fundamento normativo da decisão recorrida, quer das questões de
inconstitucionalidade cuja apreciação pretende ver apreciadas, relativas às
dimensões normativas tidas por aplicadas.
Ora, não se vêem razões para não acolher a fundamentação expendida
na decisão sumária para não conhecer do recurso de constitucionalidade, pelo
que, atenta a sua bondade, aqui se renova, dispensando-se a sua reprodução.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 28 de Setembro de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma (vencida quanto à questão do conhecimento nos termos da
declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto à questão do conhecimento por entender que o recorrente
impugna efectivamente uma dimensão normativa aplicada pela decisão – a de que é
dispensável a necessidade de invocar factos concretos relativos ao perigo de
perturbação na comunidade do arguido. Em conformidade com tal critério, a
decisão teria reduzindo o critério normativo justificativo do alarme social aos
factos relativos ao crime imputado ou à personalidade do arguido.
É para mim claro que a perspectiva do tribunal recorrido foi a de dispensar
considerações factuais relativas à relação do arguido com a comunidade em que se
inseria e ao alarme suscitado pelo facto criminoso de que era suspeito. E de que
essa perspectiva, naquilo de que prescinde, é efectivamente um critério
normativo apreciável pelo Tribunal Constitucional. Penso, assim, que o Tribunal
deveria ter conhecido da dimensão normativa impugnada efectivamente aplicada na
decisão recorrida. Não se pode sustentar (com rigor lógico) que o problema que o
recorrente invoca tem a ver com a decisão, com a subsunção, e não comporta uma
dimensão normativa.
Penso, consequentemente, que o Tribunal deveria ter revogado a Decisão Sumária.
Maria Fernanda Palma
(1) Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 278