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Processo n.º 571/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. Ao arguido A. foi aplicada a medida de coacção de
prisão preventiva, por despacho do Juiz de Instrução Criminal do Funchal, de 12
de Outubro de 2004 (cf. fls. 42 a 44 dos presentes autos), do seguinte teor:
“Apesar de o arguido «mostrar» ignorar os factos fortemente indiciados terem
sido praticados por si e que lhe foram exaustivamente comunicados, o que é certo
é que os elementos de prova até este momento colhidos indiciam fortemente que o
mesmo, conjuntamente com outros dois arguidos já ouvidos em sede de primeiro
interrogatório judicial, pelo menos por duas vezes procuraram que promotores de
projectos devidamente identificados nos autos entregassem quantias elevadas em
dinheiro «vivo» em «troca» de uma futura aprovação de projectos mesmo contra o
Plano Director Municipal da Câmara Municipal de X..
Indiciado está fortemente e igualmente que o dinheiro a receber seria para ser
entregue ao ora arguido, que depois o repartiria com pelo menos o co‑arguido B.,
funcionário da referida Câmara.
Igualmente está fortemente indiciado que, usando da sua qualidade de Presidente
da Câmara, terá «forçado» um dos aludidos promotores de projectos a entregar a
elaboração do mesmo à co‑arguida C., a quem teria que pagar o preço da sua
execução para que se «facilitasse» a aprovação do projecto em causa.
Dos autos resulta, por parte do mesmo, a prática já fortemente indiciada de
vários ilícitos cometidos no âmbito da alínea i) do artigo 3.° da Lei n.º 34/87,
de 16 de Julho, a saber:
– Dois crimes de prevaricação, previstos e punidos nos termos do artigo 11.° do
Decreto‑Lei supra citado, e punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
– Dois crimes de corrupção passiva para acto ilícito, previstos e punidos nos
termos do artigo 16.°, n.° 1, do citado diploma com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, punido com pena de prisão de 2 a 8
anos;
– Dois crimes de corrupção activa, previstos e punidos nos termos do n.° 3 do
artigo 18.° da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, punido com pena de prisão de 2 a 8
anos.
A prova já carreada aos autos, quer documental, quer testemunhal, entre outras,
conseguida em tão pouco tempo de investigação e com bases já tão sólidas, é
fortemente elucidativa da actividade ilícita do arguido na sua qualidade de
Presidente da Câmara de X..
Face às funções que o mesmo arguido exerce à frente da Câmara Municipal de X. e
tendo em atenção que está compreendido no âmbito das suas funções proferir
despachos sobre projectos de licenciamento de obras, bem como tem o mesmo acesso
a todos os documentos existentes em tal Câmara, bem como a influência que
exercerá sobre alguns dos seus colaboradores mais próximos, leva a concluir pela
existência de perigo de continuação da actividade criminosa e de perigo de
perturbação do decurso do inquérito, bem como grande perigo para a aquisição,
conservação ou veracidade da prova.
Perigo esse de perturbação do inquérito e aquisição, conservação ou veracidade
da prova que maior é ainda sabendo‑se que o mesmo reside na área da Câmara de
que é Presidente, podendo «destruir» ou «calar» a prova.
É, pois, por demais evidente que existe perigo de continuação da actividade
criminosa.
Perigo igualmente existe e grande quer, por um lado, face ao extracto
socio‑económico em que o arguido está inserido, de o mesmo se ausentar da RAM.
Por outro lado, a natureza dos ilícitos que já se encontram fortemente
indiciados e imputáveis ao arguido, de extrema gravidade dada a confiança que
lhe foi depositada ao ser eleito para um cargo de Presidência de Câmara pelos
seus conterrâneos, são veementemente repudiados e fortemente condenados pela
opinião pública, a que acresce, no caso concreto, a já referida posição do
arguido no seio da autarquia de X..
Ilícitos esses a condenar ainda mais sabendo‑se que para se obterem ganhos
ilícitos através da prática de actos ilícitos contrariando a mais elementar das
regras: não violação do PDM.
Assim sem sombra de dúvidas estão reunidas todas as condições para se aplicar
qualquer das medidas de coacção previstas na lei processual penal para além da
medida de coacção termo de identidade e residência.
É certo que a medida de coacção prisão preventiva apenas é de aplicar, face aos
princípios da adequação e proporcionalidade, em último caso, quando se revelarem
inadequadas ou insuficientes qualquer outra das medidas de coacção.
Do que até agora se disse resulta ser a única medida capaz e adequada às
exigências cautelares que este caso requer, bem como é proporcional à gravidade
do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Assim, e tendo em atenção essencialmente a natureza dos ilícitos, a
personalidade e funções do arguido, a existência de perigo de continuação da
actividade criminosa, o perigo de fuga e a necessidade de assegurar a
tranquilidade e a paz pública, determino que, e ao abrigo do disposto nos
artigos 191.º, 192.º, 193.º, 195.°, 202.°, n.° 1, alínea a), e 204.°, nas suas
diversas alíneas (a), b) e c)), todos do Código de Processo Penal, que o arguido
aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de
coacção:
a) termo de identidade e residência, já prestado a fls. 275; e
b) prisão preventiva.”
2. O arguido interpôs recurso deste despacho para o
Tribunal da Relação de Lisboa, terminando a respectiva motivação (cf. fls. 45 a
63 destes autos) com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – De harmonia com o disposto no artigo 193.º, n.º 2, do CPP, a prisão
preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou
insuficientes as outras medidas de coacção;
2.ª – E o artigo 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa dispõe que
a prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida
sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na
lei;
3.ª – Ao aplicar a medida de prisão preventiva, no caso vertente, o Senhor Juiz
não equacionou nem ponderou a suficiência de adequação da imposição ao arguido
da obrigação de permanência na sua casa de habitação, cumulativamente com a
proibição de entrar no edifício onde estão instalados os serviços da Câmara
Municipal de X., de não contactar com os funcionários e membros dos órgãos
autárquicos daquela autarquia nem com quaisquer promotores imobiliários com
interesses imobiliários na área do concelho de X. e ainda cumulativamente com a
suspensão do exercício das funções de Presidente da dita Câmara – previstas nos
artigos 201.º, 200.° e 199.º do CPP;
4.ª – Medidas estas que seriam inquestionavelmente suficientes para evitar a
fuga ou perigo de fuga, o perigo de perturbação do decurso do inquérito e o
perigo da perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da
actividade criminosa;
5.ª – Não foi, assim, respeitado o princípio da subsidiariedade da prisão
preventiva, pois a aplicação desta terá de ser considerada excessiva, atendendo
ao seu carácter provisório e subsidiário;
6.ª – Ao decidir pela aplicação da medida máxima de coacção foram violados os
artigos 28.º, n.º 2, da Constituição e os artigos 193.°, 202.° e 204.° do CPP.
Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e,
consequentemente, decretar‑se a revogação da prisão preventiva aplicada ao ora
recorrente e, em sua substituição, ser‑lhe aplicada a medida de obrigação de
permanência na habitação, prevista no artigo 201.º do CPP, cumulativamente ou
não com a proibição de entrar no edifício onde estão instalados os serviços da
Câmara Municipal de X., de não contactar com os funcionários e membros dos
órgãos autárquicos daquela autarquia nem com quaisquer promotores imobiliários
com interesses na área do concelho de X. e ainda cumulativamente com a suspensão
do exercício das funções de presidente da Câmara Municipal de X., medidas estas
previstas nos artigos 201.º, 200.º e 199.º do citado Código.”
Ao recurso foi negado provimento pelo acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Dezembro de 2004 (cf. fls. 68 a 80 dos
presentes autos).
Nesse acórdão, após se transcrever o despacho recorrido,
consignou‑se:
“(...) da análise dos elementos probatórios já carreados para os autos,
designadamente os depoimentos dos também arguidos C. e B., reproduzidos a fls.
132 a 146, e que prestam, igualmente, serviço na Câmara Municipal de X. [a
primeira como arquitecta e o segundo como fiscal de obras], resulta claramente
indiciada a prática, pelo recorrente, dos imputados crimes.
Aqueles são peremptórios na imputação factual que fazem ao recorrente,
imputação essa que se reforça com o depoimento prestado pelo denunciante D., e
com a apreensão dos 15 000 euros feita pelo mesmo à referida C., logo após os
ter recebido daquele, como forma de ver aprovado um projecto de construção, há
muito apresentado na Câmara de X., mas que também não respeitava as imposições
do PDM e do RGEU.
Assim sendo, e na suficiência dos indícios nesta fase processual, as imputações
criminosas feitas ao recorrente mostram‑se claramente sustentadas, sendo também
as respectivas molduras penais aquelas que foram indicadas no despacho
recorrido.”
De seguida, o Tribunal da Relação de Lisboa passou a
apreciar a necessidade e adequação da medida de coacção aplicada, concluindo
que, no caso, a obrigação de permanência na habitação não seria suficiente
para, designadamente, assegurar o objectivo de evitar perturbação na aquisição e
conservação da prova, pelo que negou provimento ao recurso.
3. Por despacho do Juiz de Instrução Criminal do
Funchal, de 10 de Janeiro de 2005 (cf. fls. 111 a 115 destes autos), na
sequência do reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, foi
mantida a aplicação desta medida. Lê‑se nesse despacho:
«Dado que ao arguido A. lhe foi aplicada a medida de coacção prisão preventiva
em primeiro interrogatório judicial de fls. 280 e seguintes, iniciado em 11 de
Outubro de 2004 e terminado com a notificação do despacho proferido, pelas
24,15 horas de 12 de Outubro de 2004, há que proceder oficiosamente ao reexame
de subsistência dos pressupostos daquela medida, decidindo se é de manter ou se
deve ser substituída ou revogada, nos termos do n.º 1 do artigo 213.° do Código
de Processo Penal.
O Ministério Público, a fls. 1120 a 1121 (cujos termos dou aqui por
integralmente reproduzidos), promove se mantenha tal medida de coacção.
O arguido A. veio a fls. 1077 requerer a sua audição por entender que a decisão
ora a proferir pessoalmente o afecta, foi notificado para se pronunciar por
escrito quanto à subsistência dos pressupostos de tal medida de coacção.
Pronuncia‑se nos termos constantes de fls. 1108 a 1119 – original a fls. 1176 a
1185 (cujo teor dou por integralmente reproduzido), onde requer a final a
substituição da medida de coacção prisão preventiva pela medida de coacção
obrigação de permanência na habitação (frisa‑se que o arguido conhece o teor de
alegado acórdão que terá sido proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que
terá mantido o despacho a aplicar a medida de coacção em causa – cfr. ponto XVI
do requerimento – acórdão esse ainda não conhecido por este tribunal).
E a fls. 1218 a 1227 vem, notificado do despacho a conceder‑lhe a faculdade de
se pronunciar por escrito, a «dizer que, no seu entendimento, não subsiste
nenhum dos pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi
aplicada (...)» e requer a final se conclua pela insubsistência actual dos
pressupostos e se revogue a medida aplicada ou se substitua a mesma por outra
menos gravosa, mais adequada e proporcional, sugerindo a substituição pela
medida de obrigação de permanência na habitação.
Requerimento esse que tenho aqui por integralmente reproduzido.
Decidindo:
O artigo 204.° do Código de Processo Penal enuncia os requisitos que têm de se
mostrar, em concreto, verificados para que possa ser aplicada qualquer medida
da coacção, à excepção da prevista no artigo 196.° do mesmo diploma legal:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e,
nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza ou das circunstâncias do crime ou da
personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou
de continuação da actividade criminosa.
Dos autos resultam inalterados os pressupostos de facto e de direito que
determinaram a sujeição do arguido à medida de coacção prisão preventiva.
Na verdade, a gravidade dos factos imputados ao arguido, a ressonância social da
sua comissão, o modo de execução dos mesmos, inculcam, ipso facto, a convicção
da existência de perigo de fuga, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade
públicas e perigo de continuação da actividade criminosa e grande perigo para a
perturbação do decurso do inquérito, principalmente para a aquisição,
conservação ou veracidade da prova.
Na verdade, basta reler os fundamentos e normas invocadas no despacho proferido
em primeiro interrogatório:
[segue a transcrição integral do despacho de 12 de Outubro de 2004, já
reproduzido supra, 1.]
Todos os fundamentos mantém actualidade e, neste momento, se encontram ainda
mais fortalecidos com a prova entretanto carreada aos autos.
Sopesado o acervo factual carreado para os presentes autos, e, agora, ainda mais
fortalecido apenas e tão‑só a privação da liberdade do arguido satisfaz as
exigências cautelares pressupostas in casu.
Assim sendo, mostram‑se preenchidos os requisitos previstos nos artigos 202.°,
n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e 204.°, alíneas a) a c), do mesmo
diploma legal, atentos os critérios de necessidade, adequação e
proporcionalidade, conservando‑se inalterados os pressupostos que determinaram
a sujeição do arguido a prisão preventiva.
Por outro lado, ainda não decorreu o prazo de duração da medida nos termos do
artigo 215.° do Código de Processo Penal.
Assim sendo, mantenho a medida de coacção prisão preventiva imposta ao arguido
A. por subsistirem os pressupostos da mesma, nos termos do n.º 1 do artigo 213.°
do Código de Processo Penal.”
O arguido interpôs recurso deste despacho para o
Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 11 de Maio de 2005, lhe negou
provimento.
Deste acórdão interpôs o arguido recurso para o Tribunal
Constitucional, que, porém, pelo Acórdão n.º 420/2005 (que indeferiu reclamação
de Decisão Sumária do Relator), não tomou conhecimento do recurso, por falta de
coincidência entre as cinco dimensões normativas arguidas de inconstitucionais
pelo recorrente (as mesmas que voltaria a suscitar no presente recurso) e as
correspondentes dimensões normativas efectivamente aplicadas, como rationes
decidendi, pelo acórdão então recorrido.
4. Por despacho do Juiz de Instrução Criminal do
Funchal, de 8 de Abril de 2005 (cf. fls. 153 a 157 destes autos), na sequência
de segundo reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, foi
mantida a aplicação desta medida, constando desse despacho:
“Dado que ao arguido A. lhe foi aplicada a medida de coacção prisão preventiva
em primeiro interrogatório judicial de fls. 280 e seguintes, iniciado em 11 de
Outubro de 2004 e terminado com a notificação do despacho proferido, pelas
24,15 horas de 12 de Outubro de 2004, e foi mantida tal medida de coacção em
reexame oficioso conforme despacho proferido a 10 de Janeiro do presente ano
(cfr. fls. 1228 a 1232), há novamente que reexaminar oficiosamente a
subsistência ou não dos pressupostos subjacentes à sujeição do arguido àquela
medida de coacção, decidindo se é de manter, ser substituída ou ser revogada,
nos termos do n.º 1 do artigo 213.º do Código de Processo Penal.
O Ministério Público, a fls. 1689 a 1690 (cujos termos dou aqui por
integralmente reproduzidos), promove se mantenha tal medida de coacção.
Decidindo:
O artigo 204.º do Código de Processo Penal enuncia os requisitos que têm de se
mostrar, em concreto, verificados para que possa ser aplicada qualquer medida
de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º do mesmo diploma legal:
a) Fuga ou perigo de fuga
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e,
nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza ou das circunstâncias do crime ou da
personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou
de continuação da actividade criminosa.
Dos autos resultam inalterados os pressupostos de facto e de direito que
determinaram a sujeição do arguido à medida de coacção prisão preventiva.
Na verdade, a gravidade dos factos imputados ao arguido, a ressonância social da
sua comissão, o modo de execução dos mesmos, inculcam, ipso facto, a convicção
da existência de perigo de fuga, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade
públicas e perigo de continuação da actividade criminosa e grande perigo para a
perturbação do decurso do inquérito, principalmente para a aquisição,
conservação ou veracidade da prova.
Na verdade, basta reler os fundamentos e normas invocadas no despacho proferido
em primeiro interrogatório:
«Apesar de o arguido “mostrar” ignorar os factos fortemente indiciados terem
sido praticados por si e que lhe foram exaustivamente comunicados, o que é certo
é que os elementos de prova até este momento colhidos indiciam fortemente que o
mesmo, conjuntamente com outros dois arguidos já ouvidos em sede de 1.º
interrogatório judicial, pelo menos por duas vezes procuraram que promotores de
projectos devidamente identificados nos autos entregassem quantias elevadas em
dinheiro “vivo” em “troca” de uma futura aprovação de projectos mesmo contra o
Plano Director Municipal da Câmara Municipal de X..
Indiciado está fortemente e igualmente que o dinheiro a receber seria para ser
entregue ao ora arguido, que depois o repartiria com pelo menos o co‑arguido B.,
funcionário da referida Câmara.
Igualmente está fortemente indiciado que, usando da sua qualidade de Presidente
da Câmara, terá “forçado” um dos aludidos promotores de projectos a entregar a
elaboração do mesmo à co‑arguida C., a quem teria que pagar o preço da sua
execução para que se “facilitasse” a aprovação do projecto em causa.
Dos autos resulta, por parte do mesmo, a prática já fortemente indiciada de
vários ilícitos cometidos no âmbito da alínea i) do artigo 3.º da Lei n.º 34/87,
de 16 de Julho, a saber:
– Dois crimes de prevaricação, previstos e punidos nos termos do artigo 11.º do
Decreto‑Lei supra citado, e punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
– Dois crimes de corrupção passiva para acto ilícito, previstos e punidos nos
termos do artigo 16.º, n.º 1, do citado diploma com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, punido com pena de prisão de 2 a 8
anos;
– Dois crimes de corrupção activa, previstos e punidos nos termos do n.º 3 do
artigo 18.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, punido com pena de prisão de 2 a 8
anos.
A prova já carreada aos autos, quer documental, quer testemunhal, entre outras,
conseguida em tão pouco tempo de investigação e com bases já tão sólidas é
fortemente elucidativa da actividade ilícita do arguido na sua qualidade de
Presidente da Câmara de X..
Face às funções que o mesmo arguido exerce à frente da Câmara Municipal de X. e
tendo em atenção que está compreendido no âmbito das suas funções proferir
despachos sobre projectos de licenciamento de obras, bem como tem o mesmo acesso
a todos os documentos existentes em tal Câmara, bem como a influência que
exercerá sobre alguns dos seus colaboradores mais próximos, leva a concluir
pela existência de perigo de continuação da actividade criminosa e de perigo de
perturbação do decurso do inquérito, bem como grande perigo para a aquisição,
conservação ou veracidade da prova.
Perigo esse de perturbação do inquérito e aquisição, conservação ou veracidade
da prova que maior é ainda sabendo‑se que o mesmo reside na área da Câmara de
que é Presidente, podendo “destruir” ou “calar” a prova.
É, pois, por demais evidente que existe perigo de continuação da actividade
criminosa.
Perigo igualmente existe e grande, quer, por um lado, face ao extracto
sócio‑económico em que o arguido está inserido, de o mesmo se ausentar da RAM.
Por outro lado, a natureza dos ilícitos que já se encontram fortemente
indiciados e imputáveis ao arguido, de extrema gravidade, dada a confiança que
lhe foi depositada ao ser eleito para um cargo de Presidência de Câmara pelos
seus conterrâneos, são veementemente repudiados e fortemente condenados pela
opinião pública, a que acresce, no caso concreto, a já referida posição do
arguido no seio da autarquia de X..
Ilícitos esses a condenar ainda mais sabendo‑se que para se obterem ganhos
ilícitos através da prática de actos ilícitos contrariando a mais elementar das
regras: não violação do PDM.
Assim, sem sombra de dúvidas, estão reunidos todas as condições para se aplicar
qualquer das medidas de coacção previstas na lei processual penal para além da
medida de coacção termo de identidade e residência.
É certo que a medida de coacção prisão preventiva apenas é de aplicar face aos
princípios da adequação e proporcionalidade, em último caso, quando se revelarem
inadequadas ou insuficientes qualquer outra das medidas de coacção.
Do que até agora se disse resulta ser a única medida capaz e adequada às
exigências cautelares que este caso requer, bem como é proporcional à gravidade
do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Assim, e tendo em atenção essencialmente a natureza dos ilícitos, a
personalidade e funções do arguido, a existência de perigo de continuação da
actividade criminosa, o perigo de fuga e a necessidade de assegurar a
tranquilidade e a paz públicas determino que, e ao abrigo do disposto nos
artigos 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 202.º, n.º 1, alínea a), e 204.º, nas suas
diversas alíneas (a), b) e c)), todos do Código de Processo Penal, que o
arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito ás seguintes medidas de
coacção:
a) termo de identidade e residência, já prestado a fls. 275; e
b) prisão preventiva.»
Todos os fundamentos mantém actualidade e, neste momento, se encontram ainda
mais fortalecidos com a prova testemunhal, documental e pericial entretanto
carreada aos autos.
Sopesado o acervo factual carreado para os presentes autos, e, agora, ainda mais
fortalecido apenas e tão‑só a privação da liberdade do arguido satisfaz as
exigências cautelares pressupostas in casu.
Assim sendo, mostram‑se preenchidos os requisitos previstos no artigo 202.º, n.º
1, alínea a), e 204.º, alíneas a) a c), ambos do Código de Processo Penal,
atentos os critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade,
conservando‑se inalterados os pressupostos que determinaram a sujeição do
arguido a prisão preventiva.
Por outro lado, ainda não decorreu o prazo de duração da medida, nos termos do
artigo 215.º do Código de Processo Penal.
Assim sendo, mantenho a medida de coacção prisão preventiva imposta ao arguido
A. por subsistirem os pressupostos da mesma, nos termos do n.º 1 do artigo 213.º
do Código de Processo Penal.”
5. O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação
de Lisboa deste despacho de manutenção da prisão preventiva, concluindo a
respectiva motivação (fls. 1 a 40 destes autos) com a apresentação das seguintes
conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto do despacho que, reexaminando, ao abrigo
do n.º 1 do artigo 213.° do CPP, a subsistência dos pressupostos da prisão
preventiva aplicada ao arguido em sede de primeiro interrogatório judicial,
decidiu manter aquela medida.
2. Contudo, tanto o despacho que aplicou ao arguido a medida de coacção de
prisão preventiva como o despacho que agora a manteve ocultam claramente ao
recorrente a enunciação dos motivos de facto das duas decisões tomadas.
3. Assim, a questão crucial é esta: o recorrente, Presidente da Câmara Municipal
da X. na Região Autónoma da Madeira, está recluído no Estabelecimento Prisional
Regional do Funchal vai para quatro meses, em execução da medida de coacção de
prisão preventiva, imposta e mantida sem que até hoje saiba os motivos concretos
por que está preso.
4. É certo que o Ministério Público e o Juiz de Instrução imputaram ao
recorrente a prática de múltiplos ilícitos criminais, alegadamente cometidos no
âmbito da alínea i) do artigo 3.° da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, e,
designadamente, dois crimes de prevaricação, dois crimes de corrupção passiva
para actos ilícitos e dois crimes de corrupção activa.
5. Mas a verdade é que o Juiz de Instrução nunca enunciou, nem no despacho que
impôs a prisão preventiva nem no despacho que a manteve, os factos concretos,
com suas circunstâncias de tempo, modo e lugar, porventura imputáveis ao arguido
e que justificassem ou permitissem, de perto ou de longe, indiciar a prática
daqueles crimes.
6. O caso é tanto mais estranho quanto é certo que o Juiz de Instrução, muito
embora tenha comunicado ao arguido a medida de coacção que lhe tinha sido
aplicada, nunca notificou do despacho, com entrega da necessária cópia, nem o
arguido, nem o defensor, nem nenhum familiar do preso preventivo.
7. Ao arguido foi sempre vedada a oportunidade de uma defesa eficaz.
8. Acontece que o despacho aqui sob recurso, emitido ao abrigo do n.º 1 do
artigo 213.° do CPP, carece em absoluto de fundamentação.
9. Com efeito, o Juiz de Instrução limitou‑se, por um lado, a reproduzir no
corpo do despacho agora sindicado o texto integral do despacho pelo qual, em
sede de primeiro interrogatório judicial, aplicou ao aqui recorrente a medida
de prisão preventiva e, por outro lado, a considerar que todos os fundamentos
do despacho transcrito manteriam actualidade e se encontrariam ainda mais
fortalecidos com a prova entretanto carreada para os autos, mas sem enunciar uma
única dessas pretensas novas provas.
10. Por outro lado, só a exposição dos factos que justifiquem a manutenção da
medida de prisão preventiva é susceptível de dar ao arguido a oportunidade de
defesa a que se reporta o artigo 28.°, n.º 1, da CRP.
11. Assim, o despacho impugnado viola as disposições conjugadas dos artigos
28.°, n.º 1, 32.°, n.º 1, e 205.°, n.º 1, da CRP e 97.°, n.ºs 1 e 4, e 213.°,
n.º 1, estes últimos do CPP.
12. E se for para interpretar a norma do n.º 1 do artigo 213.° do Código de
Processo Penal no sentido em que a interpreta e com que a aplica o despacho
recorrido, ou seja, no sentido de que, para o reexame da subsistência dos
pressupostos da prisão preventiva e para decidir da sua manutenção, bastaria a
transcrição do despacho que determinou a aplicação da medida e uma indicação
genérica ao arguido de que «todos os fundamentos mantêm actualidade e, neste
momento, se encontram ainda mais fortalecida a prova entretanto carreada aos
autos», e de que «dos autos resultam inalterados os pressupostos de facto e de
direito que determinaram a sujeição do arguido à medida de coacção prisão
preventiva», sem enunciar em concreto quais os novos meios de prova entretanto
carreados para os autos nem os motivos por que resultariam inalterados os
pressupostos, então tal interpretação é materialmente inconstitucional, por
violação do disposto nos artigos 28.°, n.ºs 1 e 2, e 32.°, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já se
deixa arguida para todos os devidos e legais efeitos, incluindo os de recorrer
para o Tribunal Constitucional.
13. Acontece que o despacho que aplicou ao arguido a medida de prisão
preventiva, proferido ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 141.° e nos n.ºs
1 e 3 do artigo 194.°, ambos do CPP, foi integralmente vertido, como sua
fundamentação substancial, senão mesmo exclusiva, no despacho que, ao abrigo do
n.º 1 do artigo 213.° do mesmo Código, decidiu manter aquela medida.
14. A impugnação do segundo despacho obriga‑nos a impugnar aqui o conteúdo do
primeiro, de outro modo estaria encontrado o processo fraudulento de impedir o
recurso de todos os despachos proferidos ao abrigo do n.º 1 do artigo 213.° do
CPP, bastando para tal que o juiz do caso se limitasse a transcrever no
segundo despacho o conteúdo do primeiro despacho.
15. Ora, na parte em apreço, o despacho recorrido não enuncia factos, com as
correlativas circunstâncias de tempo, modo e lugar, que justifiquem a aplicação
ao arguido de qualquer medida de coacção, e, muito menos, a medida de prisão
preventiva.
16. Assim, e na parte em que transcreve o primeiro despacho, a decisão agora sob
recurso viola o disposto no n.º 1 do artigo 205.° da CRP e nos n.ºs 1 e 4 do
artigo 94.°, no n.º 4 do artigo 141.°, no n.º 3 do artigo 194.°, no n.º 2 do
artigo 374.° e no n.º 1, alínea a), do artigo 379.°, estes todos do CPP.
17. De qualquer modo, se for para interpretar a norma do n.º 3 do artigo 194.°
do Código de Processo Penal no sentido segundo o qual a enunciação dos motivos
de facto da decisão de aplicação da medida de prisão preventiva pode consistir
em formulações gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de
tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática dos crimes
imputados, como a interpreta o despacho recorrido, então tal norma é
materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 28.°, n.ºs
1 e 2, e 32.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa,
inconstitucionalidade que desde já fica arguida, para todos os devidos e legais
efeitos, incluindo os de recorrer para o Tribunal Constitucional.
18. Sucede ainda que a falta absoluta de fundamentação do despacho recorrido se
revela também na ausência total da enumeração de factos ou indícios de factos
concretos que preencham os requisitos gerais e especiais, exigidos por lei,
para a aplicação da medida de prisão preventiva e para a decisão sobre a sua
manutenção.
19. Ora, nenhum reexame contém o despacho sob recurso quanto à adequação da
manutenção da prisão preventiva às exigências cautelares, naturalmente com base
em critérios rigorosos e ponderando factos concretos e não hipóteses teóricas.
20. Nesta parte, o despacho em apreço viola as disposições conjugadas dos n.ºs 1
e 2 do artigo 193.° e do n.º 1 do artigo 213.°, ambos do CPP.
21. E se for para interpretar e aplicar as normas extraídas da conjugação dos
artigos 193.°, n.ºs 1 e 2, e 213.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, no
sentido com que as interpretou e aplicou o despacho impugnado, ou seja,
interpretadas e aplicadas no sentido de que, ao reexaminar a subsistência dos
pressupostos da prisão preventiva, não terá o juiz de analisar em concreto a
adequação e proporcionalidade dessa medida coactiva às exigências cautelares
que o caso em concreto requer e que nem terá também, em sede de reexame, de
averiguar se todas as medidas, com excepção da prisão preventiva, se revelam
concretamente inadequadas ou insuficientes, então tais normas serão
materialmente inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 28.°,
n.ºs 1 e 2, e 32.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa,
inconstitucionalidade que se deixa arguida para todos os devidos e legais
efeitos, incluindo os de recorrer para o Tribunal Constitucional.
22. A manutenção da medida de coacção de prisão preventiva, tal como a sua
aplicação, exige, além do mais, que existam fortes indícios, e não apenas
indícios, da prática de crime doloso especialmente grave.
23. Porém, no despacho aqui em apreço, é mantida a prisão preventiva sem se
reexaminar da subsistência ou não desses fortes indícios.
24. Violou pois o despacho sindicado as disposições conjugadas dos artigos
194.°, n.º 3, 202.°, n.º 1, alínea a), e 213.°, n.º 1, todos do CPP.
25. E também aqui, se for para interpretar a norma extraída da conjugação dos
artigos 202.°, n.º 1, alínea a), e 213.°, n.º 1, do Código de Processo Penal,
no sentido de que, no despacho que decide manter a prisão preventiva, não têm
que ser reexaminados em concreto os factos que porventura indiciem fortemente a
prática de crime doloso punível com pena da prisão de máximo superior a três
anos, como a interpreta o despacho recorrido, então tal norma é materialmente
inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 28.°, n.ºs 1 e 2, e 32.º,
n.º 1, da CRP, inconstitucionalidade que fica desde já arguida para todos os
devidos e legais efeitos, incluindo os de recorrer para o Tribunal
Constitucional.
26. É, finalmente, absoluta, total a falta de fundamentação do despacho
recorrido quanto à necessária enunciação dos factos ou indícios de factos que
preencham os requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção, previstos no
artigo 204.° do CPP.
27. O despacho viola, assim, o disposto no artigo 204.° do CPP, conjugado com o
disposto nos artigos 205.°, n.º 1, da CRP e 97.°, n.ºs 1 e 4, e 213.°, n.º 1,
estes daquele Código.
28. Aliás, o despacho em exame insiste na subsistência de dois pressupostos que
o Tribunal da Relação de Lisboa, no douto acórdão tirado nos autos do recurso
interposto do despacho que decidiu aplicar a prisão preventiva (Recurso n.º
9715/04‑9), considerou não se verificarem ou não merecerem relevância, violando
assim, e nessa parte, aquele aresto.
29. Em todo o caso, se for para interpretar a norma extraída das disposições
conjugadas dos artigos 204.° e 213.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, no
sentido em que a interpreta e com que a aplica o despacho recorrido, ou seja, no
sentido segundo o qual o reexame da subsistência dos pressupostos gerais de
perigo, que permite decidir da manutenção da prisão preventiva, se bastaria com
a mera transcrição dos requisitos legais tal como constam do artigo 204.° do
CPP, sem curar de enunciar os factos ou indícios de facto que preencheriam esses
pressupostos, então tal norma é materialmente inconstitucional, por violação
das disposições conjugadas dos artigo 28.°, n.ºs 1 e 2, 32.°, n.º 1, e 205.°,
n.º 1, da CRP, inconstitucionalidade que fica desde já arguida para todos os
devidos e legais efeitos, incluindo os de recorrer para o Tribunal
Constitucional.”
6. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 2 de
Junho de 2005 (fls. 198 a 204 destes autos), negou provimento ao recurso,
expendendo o seguinte:
“2. Ao contrário do que alega o recorrente, indiciam fortemente os autos que o
mesmo, conjuntamente com outros dois arguidos, já ouvidos em sede de 1.°
interrogatório judicial, pelo menos por duas vezes, procuraram que promotores
de projectos devidamente identificados nos autos entregassem quantias elevadas
em dinheiro «vivo» em «troca» de uma futura aprovação de projectos mesmo contra
o Plano Director Municipal da Câmara Municipal de X..
Indiciado está fortemente e igualmente que o dinheiro a receber seria para ser
entregue ao ora arguido, que depois o repartiria com pelo menos o co‑arguido B.,
funcionário da referida Câmara.
Igualmente está fortemente indiciado que, usando da sua qualidade de Presidente
da Câmara, terá «forçado» um dos aludidos promotores de projectos a entregar a
elaboração do mesmo à co‑arguida C., a quem teria de pagar o preço da sua
execução para que se «facilitasse» a aprovação do projecto em causa.
Indicia‑se, pois, a prática de vários ilícitos cometidos no âmbito da alínea i)
do artigo 3.° da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, a saber:
– Dois crimes de prevaricação, previstos e punidos nos termos do artigo 11.° do
Decreto‑Lei supra citado, e punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
– Dois crimes de corrupção passiva para acto ilícito, previstos e punidos nos
termos do artigo 16.°, n.° 1, do citado diploma, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, punido com pena de prisão de 2 a 8
anos;
– Dois crimes de corrupção activa, previstos e punidos nos termos do n.° 3 do
artigo 18.° da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, punido com pena de prisão de 2 a 8
anos.
Improcede, pois, desde já e manifestamente, a argumentação do recorrente quando
defende que o juiz de Instrução nunca enunciou, nem no despacho que impôs a
prisão preventiva nem no despacho que a manteve, os factos concretos imputáveis
ao arguido e que justificassem indiciar a prática de tais crimes.
Por outro lado, e como bem salienta o despacho recorrido, «Face às funções que o
mesmo arguido exerce à frente da Câmara Municipal de X. e tendo em atenção que
está compreendido no âmbito das suas funções proferir despachos sobre projectos
de licenciamento de obras, bem como tem o mesmo acesso a todos os documentos
existentes em tal Câmara, bem como a influência que exercerá sobre alguns dos
seus colaboradores mais próximos leva a concluir pela existência de perigo de
continuação da actividade criminosa e de perigo de perturbação do decurso do
inquérito bem como grande perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da
prova. Perigo esse de perturbação do inquérito e aquisição, conservação ou
veracidade da prova que maior é ainda sabendo‑se que o mesmo reside na área da
Comarca de que é Presidente, podendo ‘destruir’ ou ‘calar’ a prova»..
Por outro lado, «... a natureza dos ilícitos que já se encontram fortemente
indiciados e imputáveis ao arguido, de extrema gravidade, dada a confiança que
lhe foi depositada ao ser eleito para um cargo de Presidente de Câmara pelos
seus conterrâneos, são veementemente repudiados e fortemente condenados pela
opinião pública, a que acresce, no caso concreto, a já referida posição do
arguido no seio da autarquia de X.. Ilícitos esses a condenar ainda mais
sabendo‑se que para se obterem ganhos ilícitos através da prática de actos
ilícitos contrariando a mais elementar das regras: não violação do PDM».
Estão pois verificadas as circunstâncias previstas nas alíneas a), b) e c) do
artigo 204.º do Código de Processo Penal.
Os artigos 213.°, 193.°, 202.°, n.° 1, alínea a), e 204.°, todos do CPP, no
sentido que interpretou e aplicou o despacho recorrido, não enfermam de
qualquer inconstitucionalidade porque o seu conteúdo encontra‑se correcta e
devidamente fundamentado.
O despacho recorrido não violou os artigos 28.°, n.ºs 1 e 2, 32.°, n.° 1, e
205.°, n.° 1, estes da Constituição da República Portuguesa, nem os artigos
97.°, n.ºs 1 e 4, 141.°, n.° 4, 193.°, n.ºs 1 e 2, 194.°, n.° 3, 202.°, n.° 1,
alínea a), 213.°, n.° 1, 374.°, n.° 2, e 379.°, n.° 1, alínea a), estes do
Código de Processo Penal.
Por outro lado, o arguido, ao recorrer da decisão que determinou a manutenção
da sua prisão preventiva, sem invocar qualquer facto de carácter excepcional
que determine a alteração da medida imposta, nem apresentando fundamentos que
relevem para a diminuição das exigências cautelares que justificaram a
aplicação da prisão preventiva, não pode pretender demonstrar que esta medida de
coacção não se mostra adequada e proporcional às circunstâncias do caso, tanto
mais que a esta conclusão se continuou a chegar no decurso da investigação.
É certo que o pedido de apreciação da legalidade da manutenção da prisão do
recorrente pode ocorrer a todo o tempo e nenhuma decisão anteriormente
proferida faz caso julgado sobre a matéria.
Com efeito, a revogação e a substituição podem ter lugar oficiosamente ou a
requerimento do Ministério Público ou do arguido (artigo 212.°, n.º 4, do CPP),
devendo o Juiz, durante a execução da prisão preventiva, proceder, de três em
três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos daquela, decidindo‑se
se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada (artigo 213.°, n.º 1, do
CPP).
Porém, «enquanto não ocorrerem alterações fundamentais ou significativas da
situação existente à data em que foi decidido aplicar a prisão preventiva (...),
não pode o tribunal reformar essa decisão, sob pena de, fazendo‑o, provocar a
instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios, com inevitáveis
reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores de certeza ou
segurança jurídica que constituem os verdadeiros fundamentos do caso julgado.
Podendo a decisão não ser definitiva, porém ela é intocável e imodificável
enquanto não sobrevierem motivos que justifiquem legalmente nova tomada de
posição, isto é, enquanto subsistirem os pressupostos que a ditaram». – Acórdão
da Relação do Porto, de 3 de Fevereiro de 1993, Colectânea de Jurisprudência,
ano XVIII, 1993, tomo I, pág. 248.
Com efeito, o arguido não invoca qualquer facto de carácter excepcional que
determine a alteração da medida imposta, nem apresenta fundamentos que relevem
para a diminuição das exigências cautelares que justificaram a aplicação da
prisão preventiva.
Temos, assim, que os argumentos invocados pelo arguido se coadunam mal com a
possibilidade de ter havido uma significativa alteração das circunstâncias que
aconselhasse a revisão da medida e a verdade é que não foram trazidos novos
elementos que fundadamente levem a concluir terem deixado de subsistir as
circunstâncias que justificaram a imposição da medida de prisão preventiva.”
7. Notificado deste acórdão, o recorrente dele interpôs
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Dezembro – LTC), referindo no respectivo requerimento
de interposição (fls. 207 a 210) que:
“As normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada são:
1. – a norma do n.º 1 do artigo 213.° do Código de Processo Penal, interpretada
como o foi no despacho judicial e no acórdão recorridos, ou seja, no sentido de
que, para o reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva e
para decidir da sua manutenção, bastará a transcrição do despacho que determinou
a aplicação da medida coactiva e uma indicação genérica ao arguido de que «todos
os fundamentos mantêm actualidade e, neste momento, se encontra ainda mais
fortalecida a prova entretanto carreada aos autos», e de que «dos autos resultam
inalterados os pressupostos de facto e de direito que determinaram a sujeição do
arguido à medida de coacção de prisão preventiva», sem enunciar em concreto
quais os novos meios de prova entretanto carreados para os autos nem os motivos
por que resultariam inalterados os pressupostos;
2. – a norma do n.º 3 do artigo 194.° do Código de Processo Penal, interpretada
como o foi no despacho judicial e no acórdão recorridos, ou seja, no sentido
segundo o qual a enunciação dos motivos de facto da decisão de aplicação da
medida de prisão preventiva pode consistir apenas em formulações gerais e
abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que
ocorreram os factos que integram a prática dos crimes imputados;
3. – a norma extraída da conjugação dos artigos 193.°, n.ºs 1 e 2, e 213.°, n.º
1, do Código de Processo Penal, interpretada e aplicada como o foi no despacho
judicial e no acórdão recorridos, no sentido de que, ao reexaminar a
subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, não terá o juiz de analisar
em concreto a adequação e proporcionalidade dessa medida coactiva às exigências
cautelares que o caso em concreto requer e que nem terá também, em sede de
reexame, de averiguar se todas as medidas, com excepção da prisão preventiva, se
revelam concretamente inadequadas ou insuficientes;
4. – a norma extraída da conjugação dos artigos 202.°, n.º 1, alínea a), e
213.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada como o foi no despacho
judicial e no acórdão recorridos, no sentido de que, no despacho que decide
manter a prisão preventiva, não têm que ser reexaminados em concreto os factos
que porventura indiciam fortemente a prática de crime doloso punível com pena de
prisão máxima superior a três anos, com suas circunstâncias de tempo, modo e
lugar;
5. – a norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 204.° e 213.°, n.º
1, do Código de Processo Penal, interpretada como o foi no despacho judicial e
no acórdão recorridos, no sentido segundo o qual o reexame da subsistência dos
pressupostos gerais de perigo, que permite decidir da manutenção da prisão
preventiva, se bastaria com a mera transcrição dos requisitos legais tal como
constam do artigo 204.° do CPP, sem curar de enunciar os factos ou indícios que
preencheriam esses pressupostos.
E os preceitos e princípios constitucionais que se entende terem sido, e
gravemente, violados são, relativamente a cada uma das inconstitucionalidades
arguidas, o disposto nos artigos 28.°, n.ºs 1 e 2, e 32.° da Constituição da
República Portuguesa.
A peça processual onde foram arguidas aquelas inconstitucionalidades foi a da
motivação e conclusões do recurso ordinário para o Venerando Tribunal da
Relação de Lisboa – recurso em epígrafe –, interposto pelo arguido e recorrente
do despacho do juiz de instrução no Círculo Judicial do Funchal, proferido nos
termos e para os efeitos do dispostos no n.º 1 do artigo 213.° do CPP.”
8. No Tribunal Constitucional, a primitiva Relatora
proferiu, em 13 de Julho de 2005, o despacho de fls. 215 a 219, no qual, após
transcrever o requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade,
consignou o seguinte:
“2. O recorrente identifica a primeira questão que pretende ver apreciada pelo
Tribunal Constitucional do seguinte modo: «a norma do n.º 1 do artigo 213.° do
Código de Processo Penal, interpretada como o foi no despacho judicial e no
acórdão recorridos, ou seja, no sentido de que, para o reexame da subsistência
dos pressupostos da prisão preventiva e para decidir da sua manutenção, bastará
a transcrição do despacho que determinou a aplicação da medida coactiva e uma
indicação genérica ao arguido de que “todos os fundamentos mantêm actualidade e,
neste momento, se encontra ainda mais fortalecida a prova entretanto carreada
aos autos”, e de que “dos autos resultam inalterados os pressupostos de facto e
de direito que determinaram a sujeição do arguido à medida de coacção de prisão
preventiva”, sem enunciar em concreto quais os novos meios de prova entretanto
carreados para os autos nem os motivos por que resultariam inalterados os
pressupostos».
O recorrente impugna uma dada dimensão normativa, segundo a qual bastará, para
manter a prisão preventiva, a transcrição do despacho que a aplicou e a
formulação de afirmações genéricas de que se mantêm os pressupostos da medida de
coacção.
No entanto, o Tribunal da Relação de Lisboa, quando confirmou o despacho então
recorrido, confirmando assim a manutenção da prisão preventiva, invocou ainda a
circunstância de o arguido não ter invocado «qualquer facto de carácter
excepcional que determine a alteração da medida imposta, nem apresentado
fundamentos que relevem para a diminuição das exigências cautelares que
justificaram a aplicação da prisão preventiva».
Assim, verifica‑se que os fundamentos da decisão de manter a prisão preventiva
abrangem decisivamente a não invocação pelo arguido de novos factos que pudessem
justificar a revogação da prisão preventiva, na situação em que o tribunal
corrobore os fundamentos da decisão que aplicou a medida de coacção (o que não
se confunde, logicamente, com a transcrição).
Deste modo, a questão identificada pelo recorrente não se reporta à globalidade
do fundamento normativo da decisão impugnada, pelo que qualquer juízo que o
Tribunal Constitucional formulasse não teria a virtualidade de alterar a
decisão recorrida.
Não tem, portanto, utilidade o conhecimento de tal questão.
3. A terceira questão identificada pelo recorrente tem o seguinte conteúdo: «a
norma extraída da conjugação dos artigos 193.°, n.ºs 1 e 2, e 213.°, n.º 1, do
Código de Processo Penal, interpretada e aplicada como o foi no despacho
judicial e no acórdão recorridos, no sentido de que, ao reexaminar a
subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, não terá o juiz de analisar
em concreto a adequação e proporcionalidade dessa medida coactiva às exigências
cautelares que o caso em concreto requer e que nem terá também, em sede de
reexame, de averiguar se todas as medidas, com excepção da prisão preventiva, se
revelam concretamente inadequadas ou insuficientes».
Ora, o tribunal a quo, no acórdão recorrido, apreciou, segundo o seu critério,
as exigências cautelares do caso concreto, bem como a adequação ao caso da
medida escolhida. Disso é particularmente elucidativo a passagem do acórdão
recorrido de fls. 202 que, ao confirmar e acolher os fundamentos do despacho
então recorrido, aceita os fundamentos constantes de fls. 171 e ss., onde se
procede a uma apreciação das exigências do caso, bem como da adequação e da
necessidade da medida escolhida. Neste sentido não se poderia encontrar
coincidência entre a questão suscitada e a ratio decidendi que justificasse a
tomada de conhecimento de uma eventual questão de constitucionalidade.
Por outro lado, não questionando o recorrente os próprios critérios normativos
segundo os quais o tribunal realizou o seu juízo de necessidade e de adequação
da medida de coacção aplicada, subsistiria apenas uma divergência relativamente
à decisão, o que, decisivamente, implica a não tomada de conhecimento da
questão agora considerada.
4. A quarta questão que o recorrente pretende ver apreciada é identificada do
seguinte modo: «a norma extraída da conjugação dos artigos 202.°, n.º 1, alínea
a), e 213.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada como o foi no
despacho judicial e no acórdão recorridos, no sentido de que, no despacho que
decide manter a prisão preventiva, não têm que ser reexaminados em concreto os
factos que porventura indiciam fortemente a prática de crime doloso punível com
pena de prisão máxima superior a três anos, com suas circunstâncias de tempo,
modo e lugar».
Ora, é manifesto que o tribunal a quo ponderou a suficiência dos indícios da
prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos
(cf. fls. 200 e ss., transcritas supra). A divergência do arguido relativamente
ao resultado de tal ponderação tal como é formulada situa‑se, assim, apenas ao
nível da impugnação da própria decisão, o que não pode constituir objecto do
recurso de constitucionalidade.
A questão identificada pelo recorrente não se reporta, pois, ao fundamento
normativo da decisão recorrida, pelo que o respectivo conhecimento também não
tem utilidade.
5. Por último, a quinta e última questão identificada pelo recorrente é a
seguinte: «a norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 204.° e
213.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada como o foi no despacho
judicial e no acórdão recorridos, no sentido segundo o qual o reexame da
subsistência dos pressupostos gerais de perigo, que permite decidir da
manutenção da prisão preventiva, se bastaria com a mera transcrição dos
requisitos legais tal como constam do artigo 204.° do CPP, sem curar de enunciar
os factos ou indícios que preencheriam esses pressupostos».
Mais uma vez, o tribunal a quo, no acórdão recorrido, não se limitou a
transcrever os requisitos legais do artigo 204.º do Código de Processo Penal. Na
verdade, a decisão recorrida contém a identificação das circunstâncias
concretas relacionadas com a posição institucional do arguido e as suas
relações pessoais, que, na perspectiva do tribunal, preenchem os pressupostos da
medida de coacção (cf. fls. 201 e ss. transcritas supra).
A questão identificada no n.º 5 do requerimento de interposição do recurso não
se reporta também ao fundamento da decisão recorrida. O seu conhecimento não
tem, igualmente, utilidade.
6. Notifique‑se o recorrente para produzir alegações quanto à questão
identificada no n.º 2 do requerimento de interposição do recurso para o
Tribunal Constitucional, reportada à norma do n.º 3 do artigo 194.° do Código
de Processo Penal, interpretada no sentido segundo o qual a enunciação dos
motivos de facto da decisão de aplicação da medida de prisão preventiva pode
consistir apenas em formulações gerais e abstractas, sem concretização das
circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a
prática dos crimes imputados, fixando‑se para o efeito o prazo de 15 (quinze)
dias, suscitando‑se desde já as presentes questões prévias, nos termos do artigo
3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável em conformidade com o artigo
69.º da Lei do Tribunal Constitucional.”
9. O recorrente, na peça de fls. 222 a 246, respondeu às
questões prévias suscitadas, propugnando a sua improcedência, e apresentou
alegações, que limitou à defesa da tese da inconstitucionalidade da norma do
artigo 194.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação impugnada,
nada alegando quanto às restantes quatro questões e não formulando conclusões.
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional contra‑alegou (fls. 251 a 255), concluindo do seguinte modo:
“1 – O dever de fundamentação da decisão impositiva da medida de prisão
preventiva, pronunciando‑se pela sua manutenção, no decurso da fase do
inquérito, não implica que deva necessariamente especificar, de modo
exaustivo, o tempo, modo e lugar em que teria sido cometidos os factos ilícitos
imputados ao arguido, em termos idênticos aos que deverão constar
necessariamente da decisão condenatória ou da acusação, bastando que se revele
ao arguido os factos essenciais que consubstanciam os tipos penais preenchidos
pelos seus comportamentos ilícitos.
2 – A decisão recorrida, ao fazer apelo e descrever tais factos essenciais, não
aplicou, como critério normativo da decisão, o de que a enunciação das questões
de facto da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva pode consistir
apenas numa formulação geral e abstracta, sem especificação do núcleo essencial
dos ilícitos cometidos e das provas fundamentais que o revelaram no processo.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
A primitiva Relatora proferiu então o seguinte despacho
(fls. 257):
“Nas contra‑alegações do Ministério Público, sustentou‑se a não correspondência
entre o objecto da segunda questão suscitada pelo recorrente (única questão em
relação à qual foi determinada a produção de alegações) e o fundamento normativo
da decisão recorrida. Verifica‑se, desse modo, que, na perspectiva do Ministério
Público, a dimensão normativa impugnada pelo recorrente não foi aplicada pelo
acórdão recorrido como critério normativo da decisão (cf. 2.ª conclusão das
contra‑alegações do Ministério Público).
Está assim suscitada perante o Tribunal Constitucional uma questão que poderia
conduzir ao não conhecimento do objecto do recurso nos termos do artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Tal formulação das
contra‑alegações do Ministério Público justifica que o recorrente tenha a
oportunidade processual de se pronunciar quanto a tal questão suscitada na
perspectiva do não conhecimento.
Notifique‑se, nessa medida, o recorrente para se pronunciar sobre a questão
prévia suscitada.”
Notificado, o recorrente não apresentou qualquer
resposta.
Após discussão do projecto de acórdão apresentado pela
primitiva Relatora, que não logrou integral vencimento, ocorreu mudança de
relator.
Tudo visto, cabe apreciar e decidir, começando pela
análise das questões prévias de não conhecimento das primeira, terceira, quarta
e quinta questões de inconstitucionalidade, suscitadas pela primitiva Relatora,
consignando‑se que quanto a elas (infra, 10. a 13.) se acolhe, sem alterações,
a formulação que constava do projecto de acórdão inicialmente apresentado, para,
por último, se apurar do não conhecimento, propugnado pelo Ministério Público,
da segunda questão de inconstitucionalidade apresentada pelo recorrente (infra,
14.).
II – Fundamentação
10. No despacho de fls. 215 e seguintes (transcrito
supra [8.]) demonstrou‑se que a dimensão normativa que o recorrente identifica
em primeiro lugar no requerimento de interposição do recurso (também transcrito
supra [7.]) não constitui a ratio decidendi da decisão recorrida, já que o
fundamento dessa decisão assenta na não invocação pelo arguido de novos factos
que podem justificar a revogação da prisão preventiva, na situação em que o
tribunal corrobore a decisão que aplicou a medida de coacção.
Afirma, porém, o recorrente que só ao juiz de instrução
cabe fundamentar os despachos. Ora, o que se referiu quanto à primeira questão
não infirma tal ideia.
O que se disse foi o seguinte: o recorrente não impugnou a totalidade do
fundamento normativo do despacho que manteve a prisão preventiva.
Sublinhe‑se que o Tribunal Constitucional não critica o
arguido recorrente “por não ter previamente invocado perante o juiz da instância
‘qualquer facto de carácter excepcional’ que determinasse a alteração da medida
imposta …”. O que se verifica é a não impugnação da globalidade do fundamento
da decisão recorrida.
O recorrente afirma igualmente não conhecer nenhuma
norma legal que lhe imponha o ónus de invocar factos de carácter excepcional ou
fundamentos que relevem para a diminuição das exigências cautelares. Afirma
também que o juiz, mesmo quando ouve o arguido, não fica dispensado de
fundamentar o despacho que mantém a medida de coacção. E conclui que não tem
validade o argumento expendido no acórdão recorrido e “acolhido pela Ex.ma
Conselheira Relatora”.
No entanto, a Relatora não acolheu os argumentos ou
fundamentos do acórdão recorrido; entendeu, sim, que os argumentos (fundamento
normativo) do acórdão recorrido não foram impugnados na sua globalidade. Tal
constatação não se confunde com o acolhimento dos argumentos não impugnados.
Afirma, ainda, o recorrente que basta, para inviabilizar
o recurso de constitucionalidade, a invocação de “uma outra dimensão oculta”,
confundindo o recorrente a circunstância de não ter sido impugnado o
entendimento do tribunal a quo com a dificuldade de invocação de factos
“contrários aos factos que o juiz tinha em mente antes de proferir o despacho”.
Ora, é manifesto que uma coisa é impugnar o fundamento da decisão recorrida,
outra é invocar factos. O fundamento da decisão recorrida é explícito, não é
oculto. Se o recorrente não tinha a possibilidade de invocar factos, teria,
porventura, nessa circunstância, um fundamento para impugnar a ratio decidendi
da decisão que lhe exige tal invocação. O que não se pode considerar procedente
é confundir o fundamento da decisão com o não conhecimento do objecto do recurso
de constitucionalidade por aquele fundamento não ter sido impugnado.
Assim, improcedem as considerações do recorrente sobre a
impossibilidade de invocação de factos novos. Na verdade, tudo o que o
recorrente deixa dito justifica a impugnação da decisão recorrida, não dos
argumentos do despacho da primitiva Relatora.
Não tomará o Tribunal Constitucional, portanto,
conhecimento da primeira questão suscitada pelo recorrente.
11. O recorrente, quanto à terceira questão por si
suscitada, entende que, efectivamente, o juiz não apreciou, em concreto, a
adequação e a proporcionalidade da medida às exigências cautelares do caso. O
recorrente insurge‑se, ainda, contra a vigência de um princípio rebus sic
stantibus, segundo o qual, nada de novo existindo, mantém‑se a prisão
preventiva.
No entanto, como se referiu no despacho da primitiva
Relatora e como resulta dos autos, o tribunal a quo analisou a adequação e a
proporcionalidade da prisão preventiva às exigências do caso (não cabe agora
apreciar se o fez bem ou mal).
Nessa medida, improcedem as considerações do recorrente,
pelo que também não se tomará conhecimento da terceira questão suscitada pelo
recorrente.
12. Em relação à questão que o recorrente identifica em
quarto lugar no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade,
entende o mesmo que não foi ponderada a suficiência dos indícios da prática de
crime doloso punível com pena superior a três anos de prisão.
Ora, como se afirma no despacho de fls. 215 e seguintes
e como resulta da decisão recorrida, o tribunal a quo ponderou tais indícios.
O recorrente invoca que da decisão recorrida não constam
as circunstâncias de tempo, modo e lugar dos crimes imputados ao arguido.
No entanto, a questão assim definida confunde‑se com a
questão enunciada pelo recorrente em segundo lugar no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade (questão que será apreciada
adiante).
Desse modo, e tal como se referiu no despacho de fls.
215 e seguintes, verifica‑se que o tribunal recorrido procedeu à ponderação dos
indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a três
anos, já que analisou a gravidade dos factos alegadamente praticados referindo
a existência de fortes indícios probatórios. A [alegada] não explicitação das
circunstâncias de tempo, modo e lugar dos factos indiciados consubstancia
questão diversa que será analisada adiante.
Não se tomará, portanto, conhecimento da questão
enunciada em quarto lugar no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade.
13. Quanto à quinta questão que o recorrente pretende
submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, considerou‑se, no despacho de
fls. 215 e seguintes, que o tribunal a quo não se limitou a proceder à
transcrição dos requisitos do artigo 204.º do Código de Processo Penal.
O recorrente reitera que o tribunal a quo não fez mais
do que transcrever tais requisitos, não especificando factos concretos.
Ora, como resulta de fls. 201 e seguintes, e como foi
referido no despacho de fls. 215 e seguintes, a decisão recorrida contém a
indicação das circunstâncias concretas relacionadas com a posição institucional
do arguido e as suas relações pessoais que, na perspectiva do tribunal,
preenchem os pressupostos da medida de coacção.
Não assiste, portanto, razão ao recorrente quanto a esta
questão, pelo que dela também não se tomará conhecimento.
14. Resta, assim, a segunda questão de
inconstitucionalidade identificada pelo recorrente no seu requerimento de
interposição de recurso.
14.1. Relativamente a esta questão, o Ministério
Público, nas contra‑alegações apresentadas, afirmou que:
“Como é evidente, não cabe no âmbito do presente recurso de fiscalização
concreta sindicar da correcção e adequação da fundamentação fáctica e
jurídico‑penal que suporta a decisão recorrida: com efeito, não cabe ao
Tribunal Constitucional verificar se tal decisão está devidamente fundamentada,
mas tão‑somente aferir se foi feito apelo a critério normativo violador de
princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais.
Note‑se liminarmente que não é exacto afirmar que o acórdão recorrido considerou
que a imposição de uma decisão, impositiva da medida de prisão preventiva, pode
«consistir apenas em formulações gerais e abstractas»: na verdade, o acórdão
recorrido mostra‑se alicerçado na invocação de factos, situações e imputações
minimamente concretizadas, concretizando o núcleo essencial da ilicitude
praticada e fazendo apelo (cf. fls. 200/202) a circunstâncias concretas, aliás
do pleno conhecimento do arguido, face ao auto de interrogatório a que foi
submetido e a que, aliás, se refere na sua alegação.”
E conclui:
“2 – A decisão recorrida, ao fazer apelo e descrever tais factos essenciais,
não aplicou, como critério normativo da decisão, o de que a enunciação das
questões de facto de aplicação da medida de coacção prisão preventiva pode
consistir apenas numa formulação geral e abstracta, sem especificação do núcleo
essencial dos ilícitos cometidos e das provas fundamentais que o revelaram no
processo.”
Tendo‑se entendido que estas considerações, implicando a
acusação de ausência de identidade entre a dimensão normativa apodada de
inconstitucional pelo recorrente e o critério normativo efectivamente aplicado
na decisão recorrida, poderiam conduzir ao não conhecimento desta parte do
recurso, foi determinada a notificação do recorrente para se pronunciar sobre
tal questão prévia, mas o mesmo não apresentou qualquer resposta.
14.2. Quanto a esta questão, o acórdão recorrido não
procedeu a uma enunciação expressa do critério normativo que adoptou em sede de
suficiência da fundamentação da decisão de decretação de prisão preventiva no
que concerne à enunciação dos factos imputados ao arguido, pelo que a
identificação desse critério – para efeitos de apuramento da sua coincidência
com o critério normativo apodado de inconstitucional pelo recorrente, como
pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade – terá de ser
extraída da análise do contexto processual em que foi produzido.
O despacho de 12 de Outubro de 2004, que decretou a
prisão preventiva do recorrente (transcrito supra, 1.), prolatado no termo do
interrogatório judicial dos arguidos, começa por referir terem sido
“exaustivamente comunicados” ao arguido, no decurso desse interrogatório, os
factos que considera “fortemente indiciados”, apesar de o arguido “«mostrar»
ignorar” esses factos, e, de seguida, explicita que:
“(...) os elementos de prova até este momento colhidos indiciam fortemente que
o mesmo, conjuntamente com outros dois arguidos já ouvidos em sede de primeiro
interrogatório judicial, pelo menos por duas vezes procuraram que promotores de
projectos devidamente identificados nos autos entregassem quantias elevadas em
dinheiro «vivo» em «troca» de uma futura aprovação de projectos mesmo contra o
Plano Director Municipal da Câmara Municipal de X..
Indiciado está fortemente e igualmente que o dinheiro a receber seria para ser
entregue ao ora arguido, que depois o repartiria com pelo menos o co‑arguido B.,
funcionário da referida Câmara.
Igualmente está fortemente indiciado que, usando da sua qualidade de Presidente
da Câmara, terá «forçado» um dos aludidos promotores de projectos a entregar a
elaboração do mesmo à co‑arguida C., a quem teria que pagar o preço da sua
execução para que se «facilitasse» a aprovação do projecto em causa.”
No recurso que interpôs deste despacho para o Tribunal
da Relação de Lisboa (cujas conclusões foram transcritas supra, 2.), o arguido
questionou apenas a necessidade de aplicação da mais gravosa das medidas de
coacção, sem expressar qualquer reparo quer quanto à regularidade do
interrogatório judicial a que foi sujeito (designadamente quanto à suficiência
da comunicação dos factos que lhe eram imputados), quer quanto à correcção da
fundamentação de facto de tal despacho (designadamente em sede de concretização
dos factos que lhe eram imputados).
Não deixou, porém, o acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa, de 16 de Dezembro de 2004, que negou provimento a esse recurso, de
consignar (conforme já transcrito supra, 2.):
“(...) da análise dos elementos probatórios já carreados para os autos,
designadamente os depoimentos dos também arguidos C. e B., reproduzidos a fls.
132 a 146, e que prestam, igualmente, serviço na Câmara Municipal de X. [a
primeira como arquitecta e o segundo como fiscal de obras], resulta claramente
indiciada a prática, pelo recorrente, dos imputados crimes.
Aqueles são peremptórios na imputação factual que fazem ao recorrente,
imputação essa que se reforça com o depoimento prestado pelo denunciante D., e
com a apreensão dos 15 000 euros feita pelo mesmo à referida C., logo após os
ter recebido daquele, como forma de ver aprovado um projecto de construção, há
muito apresentado na Câmara de X., mas que também não respeitava as imposições
do PDM e do RGEU.
Assim sendo, e na suficiência dos indícios nesta fase processual, as imputações
criminosas feitas ao recorrente mostram‑se claramente sustentadas, sendo também
as respectivas molduras penais aquelas que foram indicadas no despacho
recorrido.”
Antes de proferido o despacho que procedeu ao primeiro
reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o arguido apresentou os
requerimentos fotocopiados a fls. 83‑92 e 100‑109 destes autos, em que reitera a
pretensão de substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na
habitação, e nos quais evidencia conhecimento da essencialidade dos factos que
lhe são imputados, questionando a credibilidade dos depoimentos da arquitecta e
do fiscal de obras, funcionários da Câmara Municipal de X., que, na sua versão,
teriam caído numa armadilha montada pela Polícia Judiciária, servindo-se como
agente provocador (corruptor) de um promotor imobiliário, que identifica pelo
nome de D., e que pretenderiam endossar as suas responsabilidades para o
Presidente da Câmara, ora recorrente.
No despacho de 10 de Janeiro de 2005, que manteve a
prisão preventiva do arguido, assumiu‑se a fundamentação do primeiro despacho.
No recurso interposto desse despacho para o Tribunal da
Relação de Lisboa, o arguido arguiu, além do mais, a sua nulidade por falta de
fundamentação, com o que, no seu entender, teriam sido violadas as normas
constantes dos artigos 97.º, n.ºs 1 e 4, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a),
e 213.º do CPP e 28.º, n.ºs 1 e 2, 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da CRP.
No acórdão de 11 de Maio de 2005, o Tribunal da Relação
de Lisboa decidiu, quanto a esta arguição, que a mesma já havia sido decidida
nos autos, mormente nos acórdãos de 16 de Novembro de 2004 e de 3 de Fevereiro
de 2005, pelo que dela não conheceu.
No recurso interposto desse acórdão de 11 de Maio de
2005 para o Tribunal Constitucional, o recorrente suscitou a questão da
constitucionalidade da “norma do n.º 3 do artigo 194.° do Código de Processo
Penal, interpretada como o foi no despacho judicial e no acórdão recorridos, ou
seja, no sentido segundo o qual a enunciação dos motivos de facto da decisão de
aplicação da medida de prisão preventiva pode consistir apenas em formulações
gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e
lugar em que ocorreram os factos que integram a prática dos crimes imputados”.
Na Decisão Sumária do Relator desse recurso,
considerou‑se inadmissível o conhecimento dessa questão, com base nas seguintes
considerações:
“Sucede que o acórdão recorrido não fez aplicação, expressa ou implícita, deste
preceito legal, como seria necessário para que o recurso de constitucionalidade
pudesse incidir sobre a norma enunciada pelo recorrente.
Efectivamente, no que se refere à fundamentação do despacho impugnado, o
acórdão recorrido apenas analisou a questão à luz da norma do n.º 4 do artigo
97.º do Código de Processo Penal, sem qualquer referência ao n.º 3 do artigo
194.º. A invocação deste preceito e da respectiva inconstitucionalidade
fizera‑a o recorrente por referência ao despacho de 12 de Outubro de 2004,
argumentando que, na parte em que reproduz esse despacho (que impôs a prisão
preventiva) o despacho recorrido (que a reapreciou) é nulo. Só por essa via se
compreende a invocação do n.º 3 artigo 194.º nas alegações de recurso. Ora, o
acórdão recorrido, além de não fazer referência ao n.º 3 do artigo 194.º,
afastou expressamente, por considerá‑las resolvidas pelo anterior acórdão de 16
de Dezembro de 2004, as questões de nulidade que se prendam com o teor do
despacho de 12 de Outubro de 2004. Portanto, nem implicitamente pode
considerar‑se que fez aplicação da norma do n.º 3 do artigo 194.º do Código de
Processo Penal.”
No Acórdão n.º 420/2005, que desatendeu reclamação do
recorrente contra a referida Decisão Sumária de não conhecimento do recurso, o
Tribunal Constitucional, quanto à questão ora em causa, ponderou:
“Por outro lado, como se afirmou na decisão sumária e o reclamante acaba por
reconhecer, o acórdão recorrido entendeu que o que lhe cabia apreciar era a
fundamentação do despacho que reexaminou os pressupostos da medida de coacção
e, para tanto, considerou a norma do n.º 4 do artigo 97.º do Código de Processo
Penal, que não é objecto do recurso. Não apreciou a questão da fundamentação do
(primeiro) despacho de aplicação da prisão preventiva, por considerá‑la
resolvida pelo acórdão de 16 de Dezembro de 2004, proferido em recurso dele
interposto. Não cumpre ao Tribunal Constitucional sindicar a congruência desta
decisão ou o acerto desse entendimento, que seguramente se não socorre da norma
do n.º 3 do artigo 194.º do Código de Processo Penal.”
O despacho de 8 de Abril de 2005 (transcrito supra, 4.),
que manteve, após segundo reexame, a prisão preventiva do arguido, por
considerar “inalterados os pressupostos de facto e de direito que determinaram
a sujeição do arguido à medida de coacção prisão preventiva”, reproduziu a
fundamentação do despacho de 11 de Outubro de 2004, acrescentando: “Todos os
fundamentos mantêm actualidade e, neste momento, se encontram ainda mais
fortalecidos com a prova testemunhal, documental e pericial entretanto carreada
aos autos”.
O Tribunal da Relação de Lisboa, no recurso para ela
interposto deste último despacho, em que o recorrente acusava quer o despacho
que decretou a prisão preventiva quer o despacho recorrido de lhe ocultarem a
enunciação dos motivos de facto das duas decisões tomadas e em que suscitava a
questão de inconstitucionalidade agora em causa, decidiu:
“2. Ao contrário do que alega o recorrente, indiciam fortemente os autos que o
mesmo, conjuntamente com outros dois arguidos, já ouvidos em sede de 1.°
interrogatório judicial, pelo menos por duas vezes, procuraram que promotores
de projectos devidamente identificados nos autos entregassem quantias elevadas
em dinheiro «vivo» em «troca» de uma futura aprovação de projectos mesmo contra
o Plano Director Municipal da Câmara Municipal de X..
Indiciado está fortemente e igualmente que o dinheiro a receber seria para ser
entregue ao ora arguido, que depois o repartiria com pelo menos o co‑arguido B.,
funcionário da referida Câmara.
Igualmente está fortemente indiciado que, usando da sua qualidade de Presidente
da Câmara, terá «forçado» um dos aludidos promotores de projectos a entregar a
elaboração do mesmo à co‑arguida C., a quem teria de pagar o preço da sua
execução para que se «facilitasse» a aprovação do projecto em causa.
(...)
Improcede, pois, desde já e manifestamente, a argumentação do recorrente quando
defende que o juiz de instrução nunca enunciou, nem no despacho que impôs a
prisão preventiva nem no despacho que a manteve, os factos concretos imputáveis
ao arguido e que justificassem indiciar a prática de tais crimes.”
Afigura‑se manifesto que, subjacente a esta decisão não
se encontra a adopção de um critério normativo derivado de uma interpretação da
norma do n.º 3 do artigo 194.° do CPP “no sentido segundo o qual a enunciação
dos motivos de facto da decisão de aplicação da medida de prisão preventiva
pode consistir apenas em formulações gerais e abstractas, sem concretização das
circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a
prática dos crimes imputados”. É patente que o acórdão ora recorrido não
considerou suficientes “formulações gerais e abstractas”, antes entendeu que as
menções constantes do despacho de 12 de Outubro de 2004 – despacho esse que,
recorde‑se, foi proferido no termo do interrogatório judicial do arguido, no
decurso do qual, como no mesmo despacho se afirma, “lhe foram exaustivamente
comunicados” os “factos fortemente indiciados terem sido praticados por si”
(afirmação esta que o arguido não contestou no recurso interposto desse
despacho) –, reiterado no despacho de 8 de Abril de 2005, com referências
concretas aos comportamentos adoptados pelos diversos intervenientes, todos
eles identificados e que o recorrente, em diversas intervenções processuais,
demonstrou bem conhecer (a arquitecta e o fiscal de obras da Câmara Municipal
de que era Presidente e o promotor imobiliário D.) eram suficientes em termos
de fundamentação de facto das decisões de decretação e de manutenção da prisão
preventiva. Pode naturalmente discutir‑se o acerto desta decisão em termos de
valoração concreta da suficiência dos fundamentos de facto. O que, salvo o
devido respeito por opinião adversa, não se sufraga é o entendimento de que o
acórdão recorrido terá aplicado, como ratio decidendi, uma interpretação da
norma do n.º 3 do artigo 194.° do CPP “no sentido segundo o qual a enunciação
dos motivos de facto da decisão de aplicação da medida de prisão preventiva
pode consistir apenas em formulações gerais e abstractas, sem concretização
das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que
integram a prática dos crimes imputados”.
Inexistindo, também quanto a esta segunda questão, tal
como quanto às restantes quatro, coincidência entre as dimensões normativas
arguidas de inconstitucionais pelo recorrente e as dimensões normativas
efectivamente aplicadas no acórdão recorrido, impõe‑se a conclusão de que não se
pode conhecer do objecto do presente recurso, na sua totalidade.
III – Decisão
15. Em face do exposto, acordam em não tomar
conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 4 de Outubro de 2005
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto ao conhecimento da questão suscitada reportada à norma do
artigo 194º, nº 3, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido segundo
o qual a enunciação dos motivos de facto da decisão de aplicação da medida de
prisão preventiva pode consistir apenas em formulações gerais e abstractas, sem
concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os
factos que integram a prática dos crimes imputados. Entendo que esta dimensão
normativa (naquilo em que ela aponta para a ausência de circunstancialismo)
suscitada pelo recorrente se espelha na fundamentação do despacho questionado,
pela falta de uma específica concreticidade dos factos imputados.
Tal como o Tribunal Constitucional já referiu no Acórdão nº 607/2003, há uma
directa implicação funcional entre a fundamentação dos factos no inquérito e no
despacho que fundamenta a prisão preventiva (assim, diz aquele aresto: “Estando
o interrogatório do arguido orientado para a prolacção de tal despacho, de
acordo até com uma funcionalidade constitucionalmente prevista, como já se
acentuou, não pode a comunicação dos factos durante o interrogatório ter um grau
de concretização diferente daquele que há‑de servir de base factual a tal
despacho”). Tanto num caso como no outro trata‑se de dar oportunidade ao arguido
de exercer cabalmente o seu direito de defesa, impedindo a aplicação da própria
prisão preventiva através da possibilidade de impugnar a existência do seu
pressuposto consistente nos indícios suficientes.
Ora, no caso presente, o facto de o despacho recorrido, destinado à manutenção
da prisão preventiva, apenas se reportar a duas razões: a afirmação de que no
despacho proferido no termo do interrogatório judicial do arguido terem sido
exaustivamente comunicados os factos fortemente indiciados praticados pelo
arguido (que não se identificam) e a que decorre das vagas referências aos
comportamentos adoptados pelos diversos intervenientes, aponta para a adopção de
um critério normativo do qual estão ausentes as circunstâncias concretas de
tempo, lugar e modo que o recorrente impugna.
É certo que o recorrente ao identificar a dimensão normativa já o faz com uma
implícita crítica à mesma, não distinguindo claramente (o que aliás deveria ter
feito) a identificação dessa dimensão do critério de avaliação da sua validade.
Só aceitando essa confusão de momentos se poderá dizer que nenhum tribunal
decretaria a prisão preventiva apenas na base de formulações gerais e
abstractas. Na verdade, nunca se poderia considerar assumido um tal critério
pelo tribunal recorrido. Porém, a fixação da dimensão normativa aplicável não se
basta com a colocação do problema numa base de desentendimento linguístico sobre
o que efectivamente se fez. Reclama, antes, a interpretação jurídica do critério
de decisão que resulta dos autos analisados com todos os elementos disponíveis.
E, nessa medida, na ausência de uma formulação identificável nos autos de
concreticidade dos factos que constituíram o fundamento do juízo acerca dos
indícios suficientes, poder‑se‑á concluir que, pelo menos, na fundamentação do
despacho não se aplicou um critério que exigisse essa identificação.
A esta luz, teria tomado conhecimento da questão suscitada.
Maria Fernanda Palma