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Processo n.º 802/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Contra A. foi deduzida acusação pelo
representante do Ministério Público no Tribunal Judicial de Ponte da Barca, que
lhe imputou a autoria de um crime de maus tratos a cônjuge, previsto e punido
pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 6, do Código Penal, referindo‑se nessa
acusação que, na pendência do seu casamento com B. casamento entretanto
dissolvido por divórcio, o arguido infligiu à ofendida “maus tratos físicos e
psíquicos, ofendendo‑a na sua integridade física, ameaçando‑a e ofendendo‑a na
sua honra e consideração, procurando, por vários meios, perturbá‑la física e
psicologicamente; e esta situação foi‑se agravando até que, no desenvolvimento
dessa conduta, no dia 12 de Dezembro de 2002, cerca das 9h30m, no lugar da …,
Ponte da Barca, no interior da residência de ambos, o arguido deu socos e
pontapés à porta do quarto onde se encontrava a ofendida e, como esta abrisse a
porta, empurrou‑a para cima da cama e colocou‑se sobre ela, apertando‑lhe o
pescoço por forma a asfixiá‑la, prendendo‑lhe, ao mesmo tempo, os braços com os
seus joelhos, impedindo‑a de se movimentar, enquanto lhe cuspia para a face e
para a boca e lhe dizia: «puta», «ainda hás‑de morrer antes de mim», ao mesmo
tempo que lhe exigia que lhe devolvesse o dinheiro que lhe havia roubado, tendo
desta agressão resultado directa e necessariamente para a ofendida contusão na
região cervical que demandou um dia para curar». Entendeu ainda o Ministério
Público que «o arguido agiu com o propósito concretizado, assumido e levado a
cabo de forma livre, voluntária e consciente, de lesar a integridade física da
ofendida e de lhe infligir maus tratos, provocando‑lhe lesões físicas, medo e
inquietação».
Realizada a audiência de julgamento, a Juíza do
Tribunal Judicial de Ponte da Barca considerou provados os seguintes factos:
“1. O arguido A. e a assistente B. casaram em 4 de Julho de
1971, encontrando‑se divorciados desde 31 de Março de 2003;
2. Deste o início do casamento e ao longo de vários anos, na residência de
ambos, em Oleiros, Ponte da Barca, com uma frequência, pelo menos, mensal, e no
decurso de discussões ainda mais frequentes, o arguido dava murros e bofetadas à
assistente, chamando‑lhe «puta», «vaca», «cabra», «vai para a via norte» e
ameaçando‑a de que lhe batia e a matava. Mais concretamente:
3. Em data não apurada do ano de 1971, pouco depois de terem casado, o arguido
agrediu a assistente com bofetadas e bateu repetidamente com a cabeça da
assistente na parede;
4. Em data não apurada do ano de 1973, o arguido encostou uma arma de fogo à
cabeça da assistente, ameaçando‑a de que a matava, o que se voltou a repetir
noutras ocasiões não concretamente apuradas;
5. Em data não apurada do ano de 1974, quando a assistente estava grávida da
filha do casal, C., o arguido deu‑lhe bofetadas e socos;
6. Em data não apurada do ano de 1986, o arguido encostou o bico de uma faca ao
peito da assistente, ameaçando‑a de que a matava;
7. Em data não apurada do ano de 1996, o arguido bateu à assistente com um braço
que então tinha engessado, tendo‑lhe rachado a cabeça;
8. De cada vez que o arguido batia na assistente causava‑lhe, directa e
necessariamente, dores e hematomas nas regiões do corpo atingidas;
9. Também no decurso do ano de 1996, quando a assistente intentou pela 1.ª vez
acção de divórcio, o arguido ameaçou‑a de que tinha uma espingarda carregada e
a matava;
10. Era também frequente o arguido apelidar a assistente de «ladra», acusando‑a
de lhe furtar coisas;
11. No dia 12 de Dezembro de 2002, cerca das 9h30, no Lugar da …, Ponte da
Barca, no interior da residência de ambos, o arguido deu socos e pontapés na
porta do quarto onde se encontrava a assistente e, quando esta abriu a porta,
ele empurrou‑a para cima da cama e colocou‑se sobre ela, apertando‑lhe o
pescoço por forma a asfixiá‑la, prendendo‑lhe ao mesmo tempo os braços com os
seus joelhos, impedindo‑a de se movimentar, enquanto lhe cuspia para a face e
para a boca, dizendo‑lhe «puta», «ainda hás‑de morrer antes de mim», ao mesmo
tempo que lhe exigia que lhe devolvesse o dinheiro que lhe havia roubado;
12. Em consequência desta conduta do arguido, resultou directa e necessariamente
para a assistente contusão na região cervical, que demandou para curar 1 dia sem
incapacidade para o trabalho, tendo sido assistida no Serviço de Atendimento
Permanente no Centro de Saúde de Ponte da Barca nesse mesmo dia, tendo tal
assistência importado um custo de 15,40 €;
13. Em consequência de tal conduta do arguido a assistente teve de ser medicada
com calmantes e relaxantes;
14. Aquando de tais factos (12 de Dezembro de 2002), a assistente auferia, como
contrapartida do seu trabalho, o salário mínimo nacional;
15. Frequentemente, o arguido ameaçava a assistente que lhe dava dois tiros na
cabeça, sendo frequente colocar espingardas carregadas por detrás das portas e
apontar as mesmas à assistente;
16. Frequentemente, o arguido proibia a assistente de sair de casa, ameaçando‑a
de que se chegasse a casa e não tivesse a comida pronta lhe batia;
17. Por outro lado, o arguido mantinha frequentemente relações extra‑conjugais,
das quais não fazia segredo relativamente à assistente, com o propósito de a
humilhar;
18. Na verdade, era frequente o arguido ser visto a passear com outras mulheres,
que não a assistente, como se de marido e mulher se tratasse;
19. O arguido frequentemente recebia em casa telefonemas de outras mulheres,
algumas das quais expressamente se identificavam como sendo suas amantes;
20. O arguido trazia frequentemente consigo cartas de amor que lhe eram
dirigidas por outras mulheres que não a assistente, bem como fotografias não só
de outras mulheres que não a assistente, mas também algumas em que aparecia o
próprio arguido na cama com outras mulheres que não a assistente;
21. Por diversas vezes a assistente encontrou dentro do carro do arguido
preservativos usados e lenços usados com restos de esperma, elementos estes que
o arguido também deixava na sua roupa para a assistente lavar;
22. Na sequência do que o arguido lhe fazia e dizia, ficava a assistente
abatida, humilhada, nervosa e aterrorizada, temendo pela sua integridade física
e até pela própria vida;
23. Sempre que insultou, ameaçou e bateu na assistente, o arguido actuou de
forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo o que estava a fazer e
que nada justificava tal comportamento;
24. Sabia ainda o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo
actuado sempre com o propósito de maltratar física e psiquicamente a assistente,
sua mulher, desinteressando‑se por completo do bem‑estar desta;
25. No proc. n.º 4/00, deste Tribunal, foi o arguido condenado na pena de 102
dias de multa à taxa diária de 1600$00, pela prática, em 28 de Novembro de
1999, de um crime de ofensa à integridade física simples;
26. Em consequência das condutas do arguido supra descritas, ao longo de todo o
seu casamento a assistente viveu num permanente estado de medo e perturbação
física e psicológica, sentindo‑se profundamente humilhada, deprimida, triste e
nervosa;
27. Na fase final do casamento, a assistente trancava‑se à chave no quarto onde
dormia sem o arguido, com medo que este lhe batesse e concretizasse as ameaças
que frequentemente lhe dirigia;
28. O arguido é pirotécnico, auferindo mensalmente, pelo menos, 500 €, vive
actualmente em casa de uma irmã e é dono de um veículo automóvel de marca
Peugeot, modelo 504, de 1991, bem como de duas carrinhas de marca Toyota, modelo
Hayce, ambas com mais de 10 anos.”
Por considerar que estes factos integravam uma
alteração substancial da acusação, tal alteração foi comunicada ao arguido e ao
Ministério Público, dando‑se assim cumprimento ao disposto no artigo 359.º, n.º
1, do Código de Processo Penal (CPP), para que se pronunciassem nos termos do
n.º 2 do mesmo artigo. Tendo‑se o arguido oposto à continuação do julgamento
pelos novos factos, a Juíza do Tribunal Judicial de Ponte da Barca passou à
leitura da sentença.
Nessa sentença, de 14 de Janeiro de 2004, após
se enunciarem os factos considerados provados (atrás referidos) e não provados
e as razões da convicção do Tribunal, consignou‑se o seguinte:
“Tais factos são susceptíveis de configurar uma alteração
substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do disposto no artigo
1.º, alínea f), do Código de Processo Penal.
Na verdade, embora o arguido venha acusado da prática de um
crime de maus tratos a cônjuge, a verdade é que na acusação apenas é descrito um
episódio concreto em que o arguido atingiu a assistente na sua integridade
física.
Pelo que consideramos que, apesar de o arguido vir acusado de
um crime de maus tratos, a verdade é que os factos vertidos na acusação
substancialmente apenas consubstanciam a prática pelo arguido de um crime à
integridade física simples.
Na verdade, e conforme tem sido entendido por diversa doutrina
e jurisprudência, o tipo legal de crime de maus tratos, previsto e punido no
artigo 152.º do Código Penal, pressupõe «uma reiteração das condutas que
integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas,
constituírem, em si mesmas, outros crimes» (acórdão da Relação do Porto, de 5
de Novembro de 2003, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf). Daí que não sejam
suficientes para preencher este tipo legal de crime as situações isoladas,
exigindo‑se antes uma reiteração de maus tratos, sendo esta a ratio da
autonomização deste crime. Neste sentido, vejam‑se, entre outros, os acórdãos da
Relação do Porto, de 9 de Dezembro de 1998, de 3 de Novembro de 1999, de 20 de
Setembro de 2000, de 31 de Janeiro de 2001 e de 3 de Abril de 2002, todos in
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf.
Também Taipa de Carvalho, em anotação ao artigo 152.º do Código
Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I,
Coimbra Editora, 1999, p. 334, salienta a exigência de reiteração das
respectivas condutas, tal como o fazem Leal Henriques e Simas Santos, in Código
Penal Anotado, 3.ª edição, 2.º volume, p. 301: «(…) não basta uma acção isolada
do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à
integridade física, pelo menos), mas também não se exige habitualidade na
conduta. Afigura-se-nos que o crime se realiza com a reiteração do
comportamento, em determinado período de tempo.»
Constata‑se, assim, que os factos que o Tribunal considera
agora provados implicam a imputação ao arguido de um crime diverso, na medida
em que, estes sim, são susceptíveis de integrar a prática de um crime de maus
tratos a cônjuge, diversamente do que sucedia com os descritos na acusação, pois
que, embora tenham sido subsumidos ao crime de maus tratos, substancialmente
apenas seriam susceptíveis de integrar um crime de ofensa à integridade física.
Os factos que agora o Tribunal considera provados, face à prova
produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, apenas poderão ser
tomados em conta para efeitos de condenação do arguido neste processo, se o
Ministério Público, o arguido e a assistente estiverem de acordo com a
continuação do julgamento por estes novos factos, conforme resulta do
preceituado no artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
Uma vez que o arguido manifestou a sua oposição à continuação
do julgamento por estes novos factos, eles não serão tidos em conta pelo
Tribunal no âmbito destes autos.
Pelo exposto, e tendo em conta as disposições conjugadas dos
artigos 1.º, alínea f), e 359.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e
artigos 289.º e 493.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, absolvo o arguido A.
da instância.
Sem custas.
Extraia certidão da presente sentença e remeta ao Ministério
Público para os fins tidos por convenientes.”
´
O arguido interpôs recurso desta sentença para
o Tribunal da Relação de Guimarães, terminando a respectiva motivação com a
formulação das seguintes conclusões:
“A – 1. A douta sentença em mérito julgou provados (além de
outros que dela não constavam) os factos constantes da acusação.
2. Todavia, absolveu o recorrente da instância.
3. A manter‑se tal decisão, o recorrente poderá ser de novo julgado pelos mesmos
factos (complementados ou não por outros),
4. pelo que tem interesse em discutir da legalidade da decisão que, em concreto
e devido a tal efeito, tem de considerar‑se que foi proferida contra si.
5. Daí o seu interesse em agir e a sua legitimidade para a interposição do
presente recurso.
6. Um entendimento diverso implica a interpretação inconstitucional da norma
contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º do Código de Processo Penal, por
violação do disposto no n.º 4 do artigo 20.º, no n.º 5 do artigo 29.º e no n.º 5
do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
B – 7. O Tribunal procedeu ao julgamento do arguido e proferiu decisão sobre a
matéria de facto, considerando provados (além de outros) os factos descritos na
acusação, e qualificou esses factos como crime de ofensas à integridade física,
concluindo ter havido erro de qualificação no libelo.
8. O Tribunal estava, nessas circunstâncias, obrigado a pronunciar‑se sobre o
objecto do processo, condenando ou absolvendo o arguido pela prática desses
factos (e apenas desses) e pelo referido crime de ofensas à integridade física,
9. até porque o arguido apenas se opôs a que fosse julgado pelos novos factos,
não constantes da pronúncia.
10. Recebida a acusação, realizado o julgamento e decidida a matéria de facto, o
Tribunal tem de proferir uma decisão de fundo, condenando ou absolvendo o
arguido pelos factos da acusação.
11. Provados esses factos, o Tribunal tem de os qualificar (no tipo a que vêm
subsumidos ou em qualquer outro, ainda que mais grave) e de condenar ou absolver
o arguido da acusação.
12. Não o tendo feito, incorreu na nulidade prevista na primeira parte da alínea
c) do n.º 1 do artigo 379.º.
13. Ao absolver o arguido da instância, o Tribunal fez uma interpretação
inconstitucional das normas contidas nos artigos 289.º e 493.º, n.º 2, do CPC, e
nos artigos 1.º, n.º 1, alínea f), 4.º, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea c),
primeira parte, do CPP, por ofensa do disposto no n.º 4 do artigo 20.º, no n.º 5
do artigo 29.º e no n.º 5 do artigo 32.º da CRP.”
Por acórdão de 31 de Maio de 2004, o Tribunal
da Relação de Guimarães negou provimento ao recurso, com a seguinte
fundamentação jurídica:
“II. O crime de maus tratos a cônjuge ou a pessoa que conviva
com o agente, previsto no artigo 152.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal, persiste
enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas
corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando‑a, por exemplo) e a
relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente
(J. M. Tamarit Sumalla, in Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal,
1996, p. 100). Há quem por isso sustente que se trata de um crime de execução
permanente (cf., por exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Novembro
de 2003, Colectânea de Jurisprudência, 2003, tomo V, p. 135). O ilícito supõe a
repetição de condutas por forma a gerar‑se uma pluralidade indeterminada de
actos parciais. Faltando este aspecto reiterativo, os respectivos factos serão
elementos de ofensa à integridade física simples, ameaça ou crime contra a
honra, constituindo, em si mesmos, estes ou outros crimes. Quer isto dizer, em
traços breves, que o desenho típico dos maus tratos se não conexiona
descritivamente com aquele grupo de infracções, mas a lesão do bem jurídico que
suporta a agravação considerável da pena (pena de prisão de 1 a 5 anos, se o
facto não for punível pelo artigo 144.º) só se dá com a sua repetição plural,
justificando a existência de uma norma jurídica autónoma com o seu próprio
conteúdo de desvalor.
A primeira questão do recurso envolve a nulidade prevista na
primeira parte da alínea c) do n.° 1 do artigo 379.º do Código de Processo
Penal: «é nula a sentença ... quando o tribunal deixe de pronunciar‑se sobre
questões que devesse apreciar...».
Diz o recorrente: a sentença impugnada absolveu o arguido da
instância, o que em processo penal se não admite. Devia o arguido, isso sim,
ter sido absolvido da acusação. Se porventura se considerasse que os factos da
acusação são verdadeiros, deveria ter sido condenado pelo crime de ofensas
corporais simples do artigo 143.°, n.° 1, do Código Penal.
A sentença considerou provada a matéria da acusação e ainda
outros factos, resultantes da discussão da causa. E observou que, estando o
arguido acusado da prática de um crime de maus tratos a cônjuge, a verdade é que
na acusação apenas é descrito um episódio concreto em que o arguido atingiu a
assistente na sua integridade física, o que integraria, não o crime de maus
tratos, mas o de ofensa à integridade física simples. E porque de crime diverso
se trata, na perspectiva da sentença impugnada, os factos considerados provados
não podem ser levados em conta para efeitos de condenação do arguido neste
processo, dada a oposição manifestada pelo mesmo.
Como resulta do artigo 372.°, n.° 1, do Código de Processo
Penal, concluída a deliberação e votação, o presidente ou, se este ficar
vencido, o juiz mais antigo dos que fizerem vencimento elaboram a sentença de
acordo com as posições que tiverem feito vencimento, após o que é assinada e
lida publicamente. Os artigos 375.° e 376.° ocupam‑se, por esta ordem, da
sentença condenatória e da sentença absolutória. Segundo este último artigo, a
sentença absolutória declara a extinção de qualquer medida de coacção e ordena
a imediata libertação do arguido preso preventivamente, condena o assistente em
custas e dispõe que se o crime tiver sido cometido por inimputável, a sentença é
ainda absolutória. Daqui se alcança que o Código não define os contornos da
sentença absolutória. Por outro lado, e isso acontece frequentemente, pode a
sentença bastar‑se com uma decisão de preceito, por exemplo, o reconhecimento
que nela se faça de uma causa extintiva do procedimento criminal.
Se bem a interpretamos, a sentença parte do princípio de que
tudo aquilo que se congrega numa única infracção de execução permanente, como é
o crime de maus tratos, deverá ser tratado num mesmo processo. Os factos da
acusação e os que vieram a ser revelados pela discussão da causa, embora
naturalisticamente diversos, relacionam‑se entre si em termos de identidade
criminosa, mas a possibilidade de os levar em conta no presente processo teve a
oposição do arguido prevista no n.° 1 do artigo 359.° do Código de Processo
Penal.
Na lógica deste raciocínio, a decisão não poderia ter sido de
mérito. Na verdade, só houve lugar à alteração na medida em que os novos factos
apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de
sentido que não permite a sua autonomização. Levando‑se em conta apenas a
matéria da acusação, postergava‑se a imagem do comportamento global do
arguido, o que seria inaceitável mesmo do ponto de vista da entidade competente
para a acção penal, que o via comprometido num crime de maus tratos e nesta
precisa medida procedera à sua própria valoração jurídico‑social do
comportamento imputado. Daí que o Ministério Público deva proceder pelos novos
factos assim conformados, abrindo inquérito num outro processo penal autónomo.
Ainda que em contraste com a posição assumida no recurso, a
solução adoptada na sentença conheceu pois de todas as questões em apreciação,
não sendo justo dizê‑la inquinada de nulidade. O caminho seguido, que levou à
absolvição da instância, é que pode não gerar unanimidade. Ainda assim, é
certamente solução do processo civil (artigo 289.° do Código de Processo Civil)
que se harmoniza com o processo penal (artigo 4.°). Evita, por outro lado, os
inconvenientes da litispendência e é quanto a nós de acatar por não fornecer a
própria lei penal adjectiva disposição que possa aplicar‑se por analogia. Podem
é ligar‑se‑lhe prejuízos para a celeridade processual, mas é solução que não
deixa de estar em concordância com o procedimento ditado pelo artigo 359.° do
Código de Processo Penal e que dá saída à averiguação da verdade material. É o
próprio legislador que, ao erigir esse «incidente» processual como dando ao
arguido adequadas garantias de defesa, simultaneamente reconhece que os
correspondentes e necessários entorses à celeridade ainda se compatibilizam com
essas mesmas garantias, mesmo que, quanto a nós, se opte pela absolvição da
instância nos casos em que se torna impossível a continuação do julgamento por
factos que excederiam o objecto do processo, o que, isso sim, redundaria em
vício da sentença que deles viesse a conhecer (artigo 379.°, alínea b)). De
qualquer modo, não se mostra no recurso que esteja excluída a decisão em prazo
razoável, pelo que mal se compreende a menção que aí se faz do n.° 4 do artigo
20.° da Lei Constitucional. Por outro lado, a valoração dos mesmos factos em
outro processo não é de molde a conformar uma violação do ne bis in idem, por
dupla valoração, já que o recorrente não chegou a ser criminalmente
responsabilizado por esses factos, ficando nele igualmente assegurado o
contraditório. Não se violaram, por isso, outros preceitos constitucionais,
nomeadamente, o n.° 5 do artigo 29.º e o n.° 5 do artigo 32.°.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso de A.,
mantendo-se inteiramente a sentença recorrida.”
Contra este acórdão interpôs o arguido recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei
n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a
inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.º 4, 29.º, n.º 5, e
32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP), das normas contidas
nos artigos 289.º e 493.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC) e 1.º, n.º
1, alínea f), 4.º, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do
CPP, “na interpretação adoptada pelo douto aresto impugnado, segundo a qual,
tendo‑se procedido ao julgamento em processo crime e considerando‑se provados
todos os factos da acusação, opondo‑se o arguido a que o processo prossiga para
apreciação de novos factos, o Tribunal não está obrigado a conhecer do mérito,
absolvendo ou condenando o arguido, podendo limitar‑se a absolvê-lo da
instância”.
No Tribunal Constitucional, o recorrente
apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. O douto acórdão impugnado interpretou as normas contidas
nos artigos 289.° e 493.°, n.° 2, [do Código de Processo Civil] e nos artigos
1.°, n.º 1, alínea f), 4.°, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea c), primeira
parte, todos do Código de Processo Penal, no sentido de que, tendo‑se procedido
ao julgamento em processo crime e considerando‑se provados todos os factos da
acusação, opondo‑se o arguido a que o processo prossiga para apreciação de
novos factos, o Tribunal não está obrigado a conhecer do mérito, absolvendo ou
condenando o arguido, podendo limitar-se a absolvê-lo da instância.
2. Assim interpretadas, essas normas ofendem o disposto no n.°
4 do artigo 20.º, no n.° 5 do artigo 29.º e no n.° 5.° do artigo 32.°, todos da
CRP, por violarem o direito do arguido a um processo equitativo, o princípio do
acusatório e a proibição de duplo julgamento pelos mesmos factos.”
O representante do Ministério Público neste
Tribunal contra‑alegou, concluindo:
“1.º – O instituto da «absolvição da instância» pressupõe a
verificação judicial da inexistência de certo pressuposto processual – ou seja,
a verificação de uma «excepção dilatória», que obste a que o tribunal se possa
pronunciar sobre o mérito da causa – não podendo, todavia, ser utilizada face à
mera constatação de que a matéria de facto descrita pela acusação é insuficiente
para integrar a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público.
2.º – Na verdade, neste caso, nada obsta a que o tribunal
aprecie, em termos de decisão de mérito, a responsabilidade criminal do arguido
pelos factos que, em concreto, lhe eram imputados, sendo relegado para outro
processo o apuramento da sua responsabilidade criminal por factos diferentes e
autónomos, nesse processo se apreciando se a anterior condenação determinará ou
não a «consumpção» do tipo legal preenchido por estes novos factos.
3.º – A interpretação normativa, realizada pelas instâncias, ao
consentir que – sem ocorrência de qualquer excepção dilatória – o tribunal deixe
de apreciar a responsabilidade criminal do arguido pelos factos que lhe eram
imputados pela acusação, relegando‑a, em termos mais amplos, para outro
processo, não se coaduna com o princípio non bis in idem, proclamado pelo
artigo 29.º, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa.
4.º – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A possibilidade de, em audiência de
julgamento, se atender a factos não referidos na acusação pareceria, à primeira
vista, pouco compatível com a estrutura acusatória do processo criminal. Como se
referiu no Acórdão n.º 130/98 (com texto integral disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, tal como todos os outros adiante citados):
“Os factos descritos na acusação normativamente entendidos,
isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e
também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória, definem e fixam o objecto
do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, Coimbra
Editora, 1974, p. 145) é a este efeito que se chama vinculação temática do
tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade
ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, ou seja, os
princípios segundo os quais o objecto do processo deve manter‑se o mesmo, da
acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua
totalidade (unitária e indivisivelmente); e – mesmo quando o não tenha sido –
deve considerar‑se irrepetivelmente decidido.
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige,
para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária
correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a
desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que
não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação.”
Porém, este princípio não deve ser rigidamente
entendido. Como o citado Acórdão n.º 130/98 logo acrescentava:
“O processo penal admite, porém, que, sendo a descrição dos
factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou
circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo
dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam
alteração dos anteriormente descritos.
A este respeito os artigos 358.º e 359.º do CPP, que regulam
esta matéria, distinguem entre «alteração substancial» e «alteração não
substancial ou simples» dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo,
assim, apelo à definição constante do artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do CPP.
Neste preceito se estabelece que, para efeitos do disposto no presente Código,
«(...) considera‑se alteração substancial dos factos: aquela que tiver por
efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites
máximos das sanções aplicáveis».
O artigo 359.º rege para esta alteração substancial,
determinando que uma tal alteração da factualidade descrita na acusação não pode
ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em
curso (n.º 1), salvo se, havendo acordo entre o Ministério Público, o arguido e
o assistente na continuação do julgamento e o conhecimento dos factos novos não
acarretar a incompetência do tribunal (n.º 2), concedendo‑se então ao arguido,
sob requerimento, um prazo para preparação da defesa (n.º 3).
Ao invés, se a alteração dos factos for simples ou não
substancial, isto é, tal que não determine uma alteração do objecto do processo,
então o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem
da acusação e que tenham relevo para a decisão do processo. A lei exige apenas,
como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente
ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo
estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358.º, n.º 1, parte
final).
Assim, é uma exigência do princípio da plenitude das garantias
de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos
factos constantes da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos
relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem
levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que
sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos
indiciados ex novo e, se se vierem a provar, integrá‑los no processo, sem
violação do preceituado no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.”
Consequentemente, o citado Acórdão entendeu que
não violava os direitos de defesa nem o princípio do contraditório a norma do
artigo 358.º do CPP, na parte em que directamente confere ao juiz poderes para
oficiosamente seleccionar novos factos surgidos na audiência de julgamento, que
não implicavam uma alteração substancial da acusação, desde que, como no caso
ocorrera, tenha sido dada aos arguidos a oportunidade processual de organizarem
a sua defesa quanto a esses factos então especificados.
O juízo de não inconstitucionalidade da
referida norma foi reiterado no Acórdão n.º 442/99, que, após reproduzir a
fundamentação do Acórdão n.º 130/98, encarou a questão – suscitada nos autos em
que foi proferido – da violação do princípio da presunção de inocência,
consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, julgando‑a, porém, improcedente, já
que este princípio, apesar de não ser fácil determinar o seu exacto sentido
constitucional (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 203), “não tem, como pretende
o recorrente, o alcance de impedir que se considerem na decisão factos revelados
em audiência que, não configurando uma alteração substancial dos descritos na
acusação, sejam relevantes para a boa decisão da causa”, acrescentando que “a
consideração de tais factos não só não viola o princípio de presunção da
inocência como é, pelo contrário, exigida pelo princípio da verdade material”,
reconhecendo razão ao Ministério Público quando refere que o princípio da
presunção da inocência “não é obviamente susceptível de «apagar» a realidade dos
factos, demonstrada efectivamente em audiência, processada com todas as
garantias de defesa do arguido”, bem como quando alega que “a circunstância de o
tribunal se aperceber de tais factos no decurso da audiência e exercer o
poder‑dever de os valorar em nada contende com o princípio da independência e
imparcialidade do julgador”.
A problemática dos limites da alteração do
objecto do processo penal foi de novo apreciada no Acórdão n.º 463/2004, agora
pondo em contraste as diferenças de regime dos artigos 358.º e 359.º do CPP,
preceitos que “não pretendem mais do que expressar os limites da alteração
temática do processo penal constitucionalmente admissíveis à face destes
princípios do asseguramento de todas as garantias de defesa, da estrutura
acusatória do processo e do contraditório, distinguindo as situações de
alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia da
alteração substancial, e, ainda, enunciar os instrumentos jurídicos cuja
realização pretende fazer corresponder ao nível de concretização da
normatividade constitucional decorrente de tais princípios, em cada uma dessas
diferentes situações”. Este Acórdão julgou inconstitucional, por violação do
artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, a norma constante do artigo 359.º do CPP,
“quando interpretada no sentido de, em situação em que o tribunal de julgamento
comunica ao arguido estar‑se perante uma alteração não substancial dos factos
descritos na acusação, quando a situação é de alteração substancial da acusação,
pode o silêncio do arguido ser havido como acordo com a continuação do
julgamento”. Para tanto, após salientar serem muito diferentes a extensão e
intensidade com que os referidos princípios constitucionais sairiam afectados
nas duas situações de alteração temática do processo configuradas nos artigos
358.º e 359.º do CPP, bem como diferentes teriam que ser, e são, as exigências
da sua admissibilidade, prossegue:
“Tratando‑se de alteração não substancial dos factos descritos
na acusação ou na pronúncia, que tenha relevo para a decisão da causa, nela se
incluindo a mera alteração jurídica dos factos descritos na acusação ou na
pronúncia, permite o artigo 358.º do CPP que essa alteração temática do
processo possa ser tida em conta pelo tribunal do julgamento no apuramento e na
definição da responsabilidade criminal do arguido. No entanto, por mor do
respeito devido aos referidos princípios, o preceito impõe que se comunique ao
arguido essa alteração e que se lhe conceda o tempo estritamente necessário para
a preparação da defesa. A comunicação da alteração temática havida e a
concessão do tempo necessário para a preparação da defesa, dispensada por razões
evidentes de desnecessidade quando a alteração derive de posição tomada pela
própria defesa, apresentam‑se como modos que procuram dar cabal satisfação às
exigências postuladas pelos princípios examinados.
Já no caso de se tratar de alteração substancial dos factos
descritos na acusação ou na pronúncia, o n.º 1 do artigo 359.º do CPP impede
que ela possa ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no
processo em curso. É um simples postulado dos princípios da estrutura acusatória
do processo penal e da sua consequente vinculação temática, do contraditório e
do asseguramento das garantias de defesa. Contra o respeito por um tal resultado
não valem apenas por si, em tal hipótese, os argumentos do interesse público de
celeridade na reparação do mal do crime e do aproveitamento da actividade
desenvolvida pelos sujeitos processuais e pelo tribunal que são invocados, na
outra situação, para justificar a continuação do julgamento no caso de alteração
não substancial dos factos. A situação ofende em tão elevado grau e intensidade
aqueles princípios que o legislador, movendo‑se dentro dos critérios dos n.ºs 2
e 3 do artigo 18.º da Constituição, não poderia optar por outra solução. Mas
existe uma excepção, prevista no n.º 2 daquele artigo 359.º do CPP – a dos
«casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo
com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a
incompetência do tribunal», sendo que nestes casos «o presidente concede ao
arguido, a requerimento deste, prazo para a preparação da defesa não superior a
dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário». Note‑se, no
entanto, que, sendo exigido o acordo de todos os titulares dos interesses
contrapostos que se digladiam em processo penal para que o julgamento possa
prosseguir com o novo thema, a situação continua a ser de inteiro respeito pelos
direitos e garantias constitucionais de cada um.
Vale isto por dizer que os preceitos dos artigos 358.º e 359.º
do CPP surgem como disposições referentes ao estatuto substantivo do arguido em
processo penal, na fase de julgamento, demandando o enquadramento da situação
em um ou em outro desses preceitos por parte do tribunal a satisfação de
diferentes exigências cuja configuração está informada directamente pela
axiologia transportada pelos referidos princípios e o exercício de diferentes
direitos de defesa.
Sendo assim, a comunicação ao arguido de que a alteração
temática do processo tem a natureza de alteração não substancial quando, em boa
verdade, ela tem a natureza de substancial corresponde a dar‑lhe conhecimento de
um estatuto substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido
em uma tal situação, estatuto esse que comporta, mesmo à face do direito
infraconstitucional, uma diminuição dos seus direitos de defesa e,
consequentemente, não pode deixar de considerar‑se como violando o n.º 1 do
artigo 32.º da CRP. Na verdade, o estatuto comunicado não exige que o julgamento
apenas possa continuar se ele der o seu acordo a essa continuação e o mesmo
fizerem o Ministério Público e o assistente. Por outro lado, são também
diferentes as condições de que o arguido goza para poder preparar a sua defesa:
enquanto no caso do artigo 358.º do CPP, ele apenas dispõe do tempo que o juiz
considerar estritamente necessário, no caso do artigo 359.º do CPP, ele poderá
reclamar um prazo até 10 dias.”
2.2. No presente caso, porém, não está em
causa, não sendo questionados por nenhum interveniente processual, nem a
qualificação como substancial da alteração dos factos proposta pelo tribunal,
nem o rigoroso acatamento, por este, do adequado dever de comunicação ao
arguido para que este pudesse conscientemente optar entre a concordância com a
continuação do julgamento pelos novos factos (hipótese em que lhe seria
concedido prazo para preparação da defesa, com o consequente adiamento da
audiência, se necessário) ou a oposição a essa continuação.
O regime instituído pelo artigo 359.º do Código
de Processo Penal de 1987 constituiu uma inovação face ao regime resultante dos
artigos 444.º, 447.º e 448.º do Código de Processo Penal de 1929, e se dele
resulta, com suficiente clareza, o procedimento a adoptar quando se verifique
acordo do Ministério Público, do arguido e do assistente quanto à continuação
do julgamento pelos novos factos, já o mesmo não ocorre quando se verifica falta
de acordo, designadamente por oposição do arguido. A falta de explícita
pronúncia do legislador quanto ao procedimento a adoptar nesta última hipótese
tem dado lugar a diferenciadas soluções doutrinais e jurisprudenciais (cf.
António Quirino Duarte Soares, “Convolações”, Colectânea de Jurisprudência –
Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, 1994, tomo III, pp. 13‑28, em
especial p. 26), sendo de citar, como exemplo dessas posições contrastantes:
– o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), de 28 de Novembro de 1990, proc. n.º 40 909 (Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 401, p. 443, e Colectânea de Jurisprudência, ano XV, 1990, tomo V,
p. 12), que decidiu que, encerrada a discussão da causa, tem que ser proferida
sentença (nomeadamente, absolutória ou condenatória) relativamente ao objecto
da acusação, mesmo que anteriormente o tribunal tenha verificado situação de
alteração substancial dos factos descritos na acusação e a haja comunicado ao
arguido, desde que este se tenha oposto à continuação do julgamento pelos factos
novos;
– o acórdão do STJ, de 28 de Janeiro de 1993,
proc. n.º 43 395 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal
de Justiça, ano I, 1993, tomo I, p. 178), que decidiu que, comunicada ao arguido
alteração substancial dos factos e opondo‑se este à continuação do julgamento
pelos factos novos, o tribunal deve proceder à comunicação desses factos ao
Ministério Público para abertura de inquérito quanto a todos os factos (e não
somente quanto aos factos novos), e não havendo lugar a prolação de sentença
quanto ao facto por que o arguido estava acusado, devendo ser declarada a
suspensão (e não a extinção) da instância;
– o acórdão do STJ, de 17 de Dezembro de 1997,
proc. n.º 1347/97 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal
de Justiça, ano V, 1997, tomo III, p. 257), que decidiu que, no caso de
oposição, pelo arguido, ao prosseguimento pelo julgamento depois de indiciada
alteração substancial dos factos da acusação, nos termos do n.º 1 do artigo
359.º do CPP, deve o tribunal determinar a extracção de certidão de todo o
processado para remessa ao Ministério Público e ordenar o arquivamento do
processo em curso, por se tratar de “situação inequivocamente configuradora de
excepção dilatória inominada”, sendo “óbvio que a posição, legitimamente
assumida pelo arguido, de não aceitar a continuação do julgamento pelos novos
factos, impossibilitaria – como impossibilita – o julgamento imediato não só no
que concerne aos factos novos como também quanto aos da actual acusação, por
estes serem elementos essenciais comuns a ambos os tipos de crimes, que se
apresentam deste modo numa relação de interferência”; mais acrescentando o mesmo
acórdão que esta solução não beliscava os direitos do arguido
constitucionalmente garantidos, pois ela “não corresponde a recusa de decisão,
mas tão‑só a protelamento da decisão final (sobre a factualidade que vier a ser
definitivamente apurada e que poderá eventualmente coincidir com os factos da
actual acusação); e este protelamento tem em vista, como é de todo evidente,
tão‑só a real eficácia das garantias de defesa do arguido, possibilitando‑lhe
exercer cabalmente os seus direitos de defesa”.
A decisão ora recorrida adoptou entendimento
similar ao deste último acórdão (cuja doutrina foi seguida no acórdão do STJ, de
28 de Junho de 2000, proc. n.º 1049/2000).
Não compete ao Tribunal Constitucional
pronunciar‑se quanto à interpretação da lei ordinária que considera mais
correcta, mas unicamente apreciar se a interpretação acolhida na decisão ora
recorrida, que se recebe como um dado da questão de inconstitucionalidade,
ofende qualquer norma ou princípio constitucionais, designadamente os invocados
pelo recorrente.
2.3. Começando pela alegada violação do
princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da CRP (“Ninguém
pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo”), é sabido que
constitui entendimento doutrinal e jurisprudencial corrente o de que, apesar de
a formulação literal do preceito constitucional se reportar apenas à proibição
de duplo julgamento, cabe no âmbito da norma também a proibição da dupla
penalização. No presente caso, está em causa a primeira perspectiva, de índole
adjectiva ou processual, que visa evitar “a condenação de alguém que já tenha
sido definitivamente absolvido pela prática da infracção” (J. J. Gomes Canotilho
e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª
edição revista, Coimbra, 2007, p. 497; sublinhado acrescentado), constituindo
“uma garantia do cidadão contra arbitrárias repetições de julgamentos” (Jorge
Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005,
p. 331).
Como se referiu no Acórdão n.º 303/2005:
“11. Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa «[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela
prática do mesmo crime», dando‑se, assim, dignidade constitucional expressa ao
clássico princípio non bis in idem (ou ne bis in idem, na expressão mais
universalmente utilizada).
Numa primeira concretização, a doutrina penalística costuma
assinalar que o princípio tem uma vertente substantiva e outra processual.
Sempre de um modo geral, designadamente sem entrar na consideração da
pluralidade de ramos do direito sancionatório, pode dizer‑se que, do ponto de
vista substantivo, o princípio proíbe a plural imposição de consequências
jurídicas sancionatórias sobre a mesma infracção; do ponto de vista processual,
o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo
sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infracção penal sobre a qual
se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação.
O ne bis in idem processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo «mesmo
crime» em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da
segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não
permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já
condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Damocles de
uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena.” (sublinhados
acrescentados).
Por seu turno, no Acórdão n.º 452/2002,
entendeu‑se que não violava o artigo 29.º, n.º 5, da CRP a interpretação
normativa do artigo 390.º, alínea b), do CPP, que se traduzia em permitir ao
juiz – em processo sumário, finda a produção de prova e antes de prolatada a
sentença – a remessa dos autos para serem tramitados em processo comum, com
fundamento na necessidade de realização de novas diligências instrutórias,
incompatíveis com o prazo máximo previsto para o processo sumário, porquanto:
“De facto, da interpretação normativa do artigo 390.º, alínea b), do Código de
Processo Penal, que vem questionada pelo recorrente, não resulta qualquer
situação de duplo julgamento, no sentido proibido pelo artigo 29.º, n.º 5, da
Constituição, conduzindo tal interpretação normativa, simplesmente, a que o
único julgamento se faça seguindo a tramitação do processo comum, por não poder
seguir‑se a prevista para o processo sumário – na medida em que a produção de
prova revelou a necessidade, para a descoberta da verdade, de realização de
diligências probatórias insusceptíveis de serem efectuadas no prazo máximo
permitido para aquela forma processual.
Em suma: não existindo, ainda, qualquer sentença (condenatória ou absolutória) a
pronunciar‑se sobre os factos que são imputados ao arguido, não pode ver‑se na
simples ordem de remessa dos autos para serem tramitados sob a forma de processo
comum – por a prova produzida em audiência revelar a necessidade, para a
descoberta da verdade, da realização de diligências probatórias adicionais
insusceptíveis de serem levadas a cabo dentro do prazo máximo previsto para o
processo sumário – uma situação de duplo julgamento, no sentido proibido pelo
artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.”
De acordo com estes critérios, há que concluir
que, no presente caso – em que “os novos factos apurados formam, juntamente com
os constantes da acusação, uma unidade de sentido que não permite a sua
autonomização” –, a sujeição a “novo julgamento”, recaindo quer sobre os “factos
novos” detectados na audiência de julgamento, quer sobre o facto já constante
da acusação, não violará o princípio ne bis in idem, desde logo porque não
chegou a ser proferida decisão de mérito (absolutória e condenatória), nem,
muito menos, decisão definitiva (no sentido de transitada em julgado), sendo
pacífico o entendimento de que a repetição de julgamentos, na sequência da
anulação de julgamento anterior, mesmo que este tenha terminado por decisão de
mérito, não viola o referido princípio constitucional.
E a não prolação de decisão de mérito resultou
do entendimento de que, com a comunicação da detecção pelo tribunal de factos
novos relevantes para a prossecução da justiça material – actuação judicial
essa legitimada pela previsão do artigo 339.º, n.º 4, do CPP: “Sem prejuízo do
regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os
factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova
produzida em audiência, bem como todas as situações jurídicas pertinentes,
independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou
da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e
369.º” –, se operou uma substituição do objecto do processo (por adição ou
sobreposição dos novos factos aos factos constantes da acusação) e de que, face
a este objecto, surgiu um impedimento à prolação de decisão de mérito,
assimilável a uma excepção dilatória: não ter sido ainda exercitado o direito
de defesa do arguido nem pretender este exercê‑lo no âmbito do julgamento em
curso.
Contrariamente ao que o recorrente sugere, e
apesar da formulação usada pelo tribunal de 1.ª instância, é óbvio que este não
chegou a proferir nenhuma decisão definitiva relativamente aos “factos novos”.
No contexto em que foi proferida, a referência aos “factos julgados provados”
representa um mero juízo provisório e condicional (como, em situação similar,
foi sublinhado no Acórdão n.º 387/2005, n.º 14.2), como não poderia deixar de
ser, dado que a comunicação desses factos visa justamente propiciar ao arguido a
possibilidade de oferecer prova destinada a infirmá‑los, estando necessariamente
aberta a possibilidade de, caso o arguido consiga suscitar dúvida fundada sobre
a existência desses factos, os mesmos acabarem por ser julgados não provados.
Considera‑se, assim, não ter ocorrido violação
do princípio ne bis in idem.
2.4. E também não ocorre violação do princípio
do acusatório nem desrespeito do direito a um processo equitativo, imputações
estas que, aliás, o recorrente, em rigor, não substancia.
Não questionando o recorrente a
constitucionalidade da possibilidade de o tribunal estender o seu poder de
cognição a factos que resultem da prova produzida em audiência, mesmo que não
constantes da acusação nem da defesa, da solução perfilhada pelas instâncias,
determinando a abertura de inquérito pelos factos novos a cargo pelo Ministério
Público, que, a final, deduzirá, ou não, acusação, resultará integral respeito
pelo princípio do acusatório, com diferenciação das entidades acusadora e
julgadora.
Por outro lado, tal solução assegura integral
respeito pelos direitos de defesa e não afectará, de modo intolerável, o direito
a decisão em prazo razoável, não se vislumbrando razões para crer que o novo
julgamento pela totalidade dos factos (que as instâncias consideraram ser o
mais adequado em termos de asseguramento da justiça material, que é o objectivo
último do processo criminal) seja necessariamente muito mais moroso que um novo
julgamento apenas incidindo sobre os “factos novos”.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma,
extraída dos artigos 289.º e 493.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 1.º,
n.º 1, alínea f), 4.º, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea c), primeira parte,
do Código de Processo Penal, segundo a qual, comunicada ao arguido alteração
substancial dos factos descritos na acusação, resultante da prova produzida em
audiência – em situação em que “os novos factos apurados formam, juntamente com
os constantes da acusação, uma unidade de sentido que não permite a sua
autonomização” –, e opondo‑se o arguido à continuação do julgamento pelos novos
factos, o tribunal pode proferir decisão de absolvição da instância quanto aos
factos constantes da acusação, determinando a comunicação ao Ministério Público
para que este proceda pela totalidade dos factos; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a
decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Março de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos