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Processo n.º 923/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. Relatório
A., SA, com sede em Lisboa, intentou, em 11 de
Maio de 2006, no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, contra B. e
mulher C., residentes em … – Santa Joana, Aveiro, acção com processo especial
para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, nos termos
do Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, com base em contrato de mútuo
celebrado em 16 de Março de 2004, pelo qual emprestou ao réu marido a
importância de € 4247,08, alegando que este réu pagou as 19.ª e seguintes
prestações, o que implicou o vencimento imediato de todas as restantes
prestações, no valor global de € 1409,10, acrescido de juros e imposto de selo.
Logo aduziu que a escolha pelas partes (n.º 15 das “Condições gerais” anexas ao
contrato de mútuo), como foro convencional, da comarca de Lisboa, feita ao
abrigo do disposto no artigo 100.º, n.º 1, com referência ao artigo 110.º,
ambos do Código de Processo Civil (CPC), nas redacções dos ditos preceitos
anteriores às que lhes foram dadas pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, é
válida e legal, atento o disposto nos artigos 5.º e 12.º, n.ºs 1 e 2, do Código
Civil.
Posteriormente o A., SA, apresentou, em 22 de
Maio de 2006, “complemento à petição inicial”, no qual referiu:
“(…) a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, na parte e na medida em
que altera a redacção do artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo
Civil, é inconstitucional e, consequentemente, a referida alínea a) do n.º 1 do
dito artigo 110.º, com a mencionada redacção, é inconstitucional – logo
inaplicável pelos tribunais ex vi o disposto no artigo 204.º da Constituição da
República Portuguesa – na interpretação que permita a aplicação do disposto no
referido artigo 110.º, n.º 1, alínea a), a contratos celebrados anteriormente à
publicação da referida Lei em que as partes tenham optado, nos termos do artigo
100.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, por um foro convencional
no que respeita à competência dos tribunais em razão do território, por violação
dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não
retroactividade, consignado nos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da
República Portuguesa e, também ainda, por violação dos princípios da segurança
jurídica e da confiança corolários ambos do Estado de Direito Democrático
consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, donde o
Tribunal de Lisboa ser o competente para conhecer da presente acção.”
Os réus, citados para a acção e depois
notificados do precedente requerimento, nada disseram.
Em 7 de Julho de 2006, o Juiz do 6.º Juízo do
Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, proferiu o seguinte despacho:
“A., S. A., veio intentar junto do Tribunal de Pequena
Instância Cível de Lisboa a presente acção especial contra B. e C., residentes
em … – Santa Joana, 3810-318 Aveiro.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 74.º do Código de Processo Civil, na
versão introduzida pela Lei n.º 14/2006, é competente para a acção destinada a
exigir o cumprimento de obrigações o tribunal do domicilio do réu (artigo 94.º,
n.º 1, do CPC).
No caso em apreço, o/a(s) réu(s) reside(m) em Santa Joana – Aveiro, pelo que
este Tribunal não é territorialmente competente para conhecer desta causa.
Nos termos do artigo 108.º do Código de Processo Civil, a infracção das regras
de competência fundadas na divisão judicial do território determina a
incompetência relativa do tribunal.
A incompetência relativa é uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal
conheça do mérito da causa e dá lugar à remessa do processo para o tribunal
competente, nos termos dos artigos 493.º, n.ºs 1 e 2, 494.º, n.º 1, alínea a), e
111.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil.
Por outro lado, estabelece o artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do CPC, na versão
introduzida pela lei supra, referida que a incompetência em razão do território
deve ser conhecida oficiosamente nos processos a que se refere o artigo 74.º,
n.º 1, 1.ª parte, e n.º 2 do CPC.
Face ao exposto, declaro este Tribunal incompetente em razão do território e
competente o Tribunal da comarca de Aveiro.”
Notificado deste despacho, dele interpôs o
autor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea
b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo
do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC),
referindo no respectivo requerimento de interposição que:
“b) Pretende ver‑se apreciada a inconstitucionalidade da alínea
a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe
foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 6 de Abril, na parte e na medida em que
permite a interpretação do dito preceito no sentido de o considerar aplicável a
contratos celebrados anteriormente à publicação da referida Lei n.º 14/2006;
c) Efectivamente, tal norma, aplicada no sentido referido,
viola os princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e
também da não retroactividade, consignados no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da
Constituição da Republica Portuguesa e, também, por violação dos princípios da
segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do Estado de Direito
Democrático, consignado no artigo 2.º da Constituição da Republica Portuguesa:
d) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos no requerimento
neles apresentado a fls. …, aos [22] de Maio de 2006.”
Neste Tribunal, o recorrente apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“(i) A interpretação e aplicação, como feita no despacho
recorrido, da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil,
com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, à
hipótese dos autos e, consequentemente, a não consideração, como válida e
eficaz, da escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento
a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, do
Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110.º do mesmo
normativo legal, maxime na alínea a) do respectivo n.º 1, é inconstitucional por
violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e
da não retroactividade consignados no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição
da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da
segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de
Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da Republica
Portuguesa.
(ii) Deve, assim, como se requer, ser julgada inconstitucional
a interpretação e aplicação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º
do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
14/2006, de 26 de Abril, a contrato validamente celebrado antes da entrada em
vigor da referida Lei n.º 14/2006, desta forma se fazendo Justiça.”
Os recorridos não contra‑alegaram.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º
329‑A/95, de 12 de Dezembro, dispunha o artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do CPC
que: “1 – A incompetência em razão do território deve ser conhecida
oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos
necessários, nos casos seguintes: a) Nas causas a que se referem os artigos
73.º, 74.º, n.º 2, 82.º, 83.º, 88.º, 89.º, 90.º, n.º 1, e 94.º, n.º 2”, isto é,
nas acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, as
acções de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução
específica sobre imóveis, e ainda as acções de reforço, substituição, redução ou
expurgação de hipotecas (artigo 73.º); nas acções destinadas a efectivar a
responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco (artigo
74.º, n.º 2); nos processos especiais de recuperação da empresa e de falência
(artigo 82.º – preceito expressamente revogado pelo artigo 10.º, n.º 2, do
Decreto‑Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o Código da Insolvência e
Recuperação de Empresas, devendo, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, daquele
Decreto‑Lei, a remissão feita para o artigo 82.º do CPC considerar‑se agora como
feita para o artigo 7.º do referido Código); nos procedimentos cautelares
(artigo 83.º); nos recursos (artigo 88.º); em acções em que seja parte o juiz de
direito, seu cônjuge, algum seu descendente ou ascendente ou quem com ele
conviva em economia comum (artigo 89.º); nas execuções fundadas em decisões
proferidas por tribunais portugueses (artigo 90.º, n.º 1); e nas execuções para
entrega de coisa certa ou por dívida com garantia real (artigo 94.º, n.º 2).
Por força da alteração introduzida na referida
alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do CPC pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril
(“1 – …: a) Nas causas a que se referem o artigo 73.º, a primeira parte do n.º 1
e o n.º 2 do artigo 74.º, os artigos 83.º, 88.º e 89.º, o n.º 1 do artigo 90.º,
a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 94.º”), aos anteriores casos de
conhecimento oficioso da incompetência territorial do tribunal aditaram‑se mais
dois: (i) as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a
indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução
do contrato por falta de cumprimento (primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º); e
(ii) a generalidade das execuções não fundadas em sentença (primeira parte do
n.º 1 do artigo 94.º). Simultaneamente, pela nova redacção dada a estes dois
preceitos foi alterado o critério de determinação do tribunal territorialmente
competente: o artigo 74.º, n.º 1, na redacção anterior, permitia a escolha pelo
credor entre o tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou o
tribunal do domicílio do réu, e o artigo 94.º, n.º 1, considerava competente
para as execuções em causa o tribunal do lugar onde a obrigação deve ser
cumprida. Agora, quer quanto ao “foro obrigacional geral” previsto no artigo
74.º, n.º 1, quer quanto ao “foro executivo extrajudicial geral” previsto no
artigo 94.º, n.º 1, atribui-se competência ao tribunal do domicílio do réu ou do
executado e o credor ou o exequente só podem optar pelo tribunal do lugar em
que a obrigação deveria ser cumprida quando o réu ou o executado forem pessoa
colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor ou do exequente na área
metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu ou o executado tenham domicílio na
mesma área metropolitana.
Justificando estas alterações, lê‑se na
“Exposição de motivos” da Proposta de Lei n.º 47/X (Diário da Assembleia da
República, II Série‑A, n.º 69, de 15 de Dezembro de 2005, pp. 11‑15), que esteve
na origem da Lei n.º 14/2006:
“1 – O Programa do XVII Governo Constitucional assumiu como prioridade a
melhoria da resposta judicial, a consubstanciar, designadamente, por medidas de
descongestionamento processual eficazes e pela gestão racional dos recursos
humanos e materiais do sistema judicial.
A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça
para a protecção de bens jurídicos que efectivamente mereçam a tutela judicial,
e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função constitui um dos
objectivos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, de 30 de Maio de
2005, que, aprovando um Plano de Acção para o Descongestionamento dos
Tribunais, previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência
territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao
cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância
característica das grandes Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto».
A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância
cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se
situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à
recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento
contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente
concentrada.
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do
demandado para este tipo de acções reforça‑se o valor constitucional da defesa
do consumidor – porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permitindo‑lhe um
pleno exercício dos seus direitos em juízo – e obtém‑se um maior equilíbrio da
distribuição territorial da litigância cível.
O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação
deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa colectiva ou quando,
situando‑se o domicílio do credor na Área Metropolitana de Lisboa ou do Porto, o
demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a excepção
justifica‑se por estar ausente o referido valor constitucional de protecção do
consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade.
Com efeito, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto não se afigura
especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser
demandado em qualquer das demais comarcas da área metropolitana em que reside,
nem se descortinam especiais necessidades de redistribuição do volume
processual hoje verificado em cada uma das respectivas comarcas.”
Porém, como é evidente, estas alterações
produzidas pela Lei n.º 14/2006, quer quanto à definição do tribunal
territorialmente competente para conhecer das acções destinadas a exigir o
cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo
cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento (“foro
obrigacional geral”) e da generalidade das execuções não fundadas em sentença
(“foto executivo extrajudicial geral”), quer quanto ao alargamento dos casos de
conhecimento oficioso da incompetência territorial do tribunal, eram
insusceptíveis de, por si sós, produzirem o resultado que o recorrente reputa
inconstitucional. Para esse resultado contribuiu, necessariamente, uma outra
norma: a da parte final do n.º 1 do artigo 100.º do CPC, que dispõe: “As regras
de competência em razão da matéria, da hierarquia, do valor e da forma do
processo não podem ser afastadas por vontade das partes; mas é permitido a estas
afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão
do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 110.º” (sublinhado
acrescentado). É da conjugação desta última norma – que proíbe o afastamento,
por vontade das partes, das regras de competência em razão do território
referidas no artigo 110.º – com o aditamento, operado pela Lei n.º 14/2006, na
alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º, da referência às primeiras partes dos n.ºs 1
dos artigos 74.º e 94.º, todos do CPC, que resulta a invalidação de convenção do
foro, que o recorrente reputa inconstitucional.
A circunstância de o recorrente não ter
mencionado expressamente a norma do artigo 100.º, n.º 1, do CPC, não deve,
porém, constituir impedimento ao conhecimento do mérito do recurso, pois, apesar
dessa omissão, é incontroversa qual a questão de inconstitucionalidade que
pretende suscitar, assim como não obsta a esse conhecimento o facto de a decisão
recorrida não se ter pronunciado sobre a questão de inconstitucionalidade
suscitada. Esta questão foi apresentada, em termos processualmente adequados,
perante o tribunal recorrido e é certo que a decisão recorrida fez aplicação da
norma arguida de inconstitucional, o que basta para dar por verificados os
requisitos de admissibilidade do recurso.
Emergindo a questão de uma acção destinada a
exigir o cumprimento de obrigações, constitui objecto do presente recurso a
questão da constitucionalidade da norma, decorrente da conjugação da parte final
do n.º 1 do artigo 100.º com a alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º, enquanto se
refere às causas mencionadas na primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º, todos do
CPC, sendo os dois últimos artigos na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26
de Abril.
2.2. Questão idêntica à ora em apreço foi
objecto do recente Acórdão n.º 691/2006 deste Tribunal, proferido em recurso com
o mesmo recorrente. Esse Acórdão concluiu pela não inconstitucionalidade da
norma questionada, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:
“5. O presente recurso tem por objecto a norma constante da alínea a) do n.º 1
do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, quando interpretada no sentido de ser
aplicável a contratos, celebrados antes da entrada em vigor desta Lei, dos quais
conste cláusula estipulando qual o tribunal territorialmente competente para a
resolução de eventuais litígios dele emergentes, por alegada «violação dos
princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não
retroactividade consignados no artigo 18.º, n.ºs. 2 e 3, da Constituição da
República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança
jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito
Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa». A
alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º, na referida redacção, estatui: «1. A
incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo
tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos
seguintes: a) Nas causas a que se referem [...], a primeira parte do n.º 1 [...]
do artigo 74.º [...]». Por seu turno, a primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º
passou a ter, também por força da alteração introduzida pela Lei n.º 14/2006, a
seguinte redacção: «1. A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações,
a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução
do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu
[...]», sendo certo que, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, é permitido às
partes «afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência
em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 110.º»
(itálicos aditados).
6. Começa o recorrente, na sua alegação, por dar conta de uma
orientação que vem sendo seguida por alguma jurisprudência no sentido de
considerar que, tal como o próprio defendeu nos presentes autos e diferentemente
do que se decidiu no despacho ora recorrido, as alterações introduzidas, em sede
de processo civil, pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não se aplicam às
questões emergentes de contratos celebrados antes da sua entrada em vigor em que
as partes tenham escolhido foro convencional. Acontece, porém, como o próprio
recorrente reconhece, que está fora do âmbito do presente recurso a questão de
saber se essa é ou não a melhor (de acordo com os cânones hermenêuticos)
interpretação dos preceitos em causa. Com efeito, não cabe ao Tribunal
Constitucional dirimir conflitos de interpretação de normas
infraconstitucionais, nem determinar qual a melhor interpretação de tais normas,
mas, apenas, como é sabido, decidir se a interpretação por que optou a decisão
recorrida é ou não compatível com a Constituição e, designadamente, com os
preceitos e princípios indicados pelo recorrente. Com esta advertência, vejamos
então.
6.1. Da alegada violação dos princípios da adequação, da
exigibilidade, da proporcionalidade e da não retroactividade consignados no
artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Alega o recorrente, em primeiro lugar, que a norma que vem
questionada viola o disposto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição. É,
contudo, manifesto que, nesta parte, não lhe assiste qualquer razão. E, desde
logo, pela razão evidente de que aquele preceito constitucional se refere às
leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, o que, manifestamente, não
é o caso da norma que vem questionada. Com efeito, não se vislumbra qual o
direito, liberdade e garantia que possa estar a ser restringido pela norma cuja
constitucionalidade vem questionada, sendo certo que não pode ser, ao contrário
do que o recorrente refere na sua alegação, o «direito das partes contraentes
[…] a poderem escolher, poderem acordar, um foro convencional, em razão do
território, para dirimir conflitos emergentes do dito contrato, isto é do
contrato dos autos». Como é óbvio, o direito de as partes convencionarem o foro
territorialmente competente para a resolução dos litígios eventualmente
resultantes dos contratos que celebrem não é um direito constitucionalmente
garantido, não constituindo direito, liberdade e garantia, no sentido do artigo
18.º da Constituição, pelo que, no caso, este preceito não é, pura e
simplesmente, aplicável.
Aliás, ainda que se pretendesse fundar a alegada
inconstitucionalidade numa eventual violação da exigência de proporcionalidade,
como limitação geral ao exercício do poder público, decorrente do princípio do
Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição – o que
o recorrente, todavia, não faz –, sempre se dirá que tal pretensão também não
procederia, pois, além de não estar em causa nenhum direito constitucionalmente
garantido, também se não vislumbra que a medida legislativa seja manifestamente
inadequada, corresponda a opção manifestamente errada do legislador ou tenha
carácter manifestamente excessivo ou inconvenientes manifestamente
desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.
6.2. Da alegada violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança,
decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo
2.º da Constituição.
Alega ainda o recorrente que a norma que vem questionada, na
parte em que seja aplicável a contratos celebrados antes da entrada em vigor da
referida Lei n.º 14/2006, é inconstitucional, por se traduzir numa situação de
retroactividade violadora dos princípios da segurança jurídica e da confiança,
decorrentes do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo
2.º da Constituição. Vejamos.
6.2.1. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, o princípio
da não retroactividade da lei encontra‑se consagrado na Constituição, de modo
expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova não seja mais
favorável ao arguido) – n.ºs 1 e 4 do artigo 29.º –, para as leis restritivas
de direitos, liberdades e garantias – n.º 3 do artigo 18.º –, e para o
pagamento de impostos – artigo 103.º, n.º 3 –, podendo, consequentemente,
dizer‑se que a Constituição não consagra um princípio geral de proibição de
emissão de leis retroactivas.
O Tribunal vem, porém, igualmente afirmando, na sequência de
entendimento que vem já da Comissão Constitucional, que o princípio do Estado
de direito democrático (consagrado no artigo 2.º da Constituição) postula «uma
ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e
na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no
direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas»,
razão pela qual «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável,
arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as
pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do
Estado de direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela
lei básica» (cf., entre vários outros nesse sentido, o Acórdão n.º 303/90, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17.º vol., pág.65). Mas, sendo assim, o
Tribunal tem, contudo, tido sempre o cuidado de esclarecer que o que se acaba de
dizer não conduz a que seja absolutamente vedada ao legislador a emissão de
normas com eficácia retroactiva. Como se ponderou, por exemplo, no Acórdão n.º
304/2001 (disponível na página Internet do Tribunal em
www.tribunalconstitucional.pt), citando Vieira de Andrade (Os Direitos
Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p. 309), «entender o
contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a ‘liberdade constitutiva e
a auto‑revisibilidade’ do legislador, características que são ‘típicas’, ‘ainda
que limitadas’, da função legislativa».
Tem, pois, o Tribunal sempre dito (cf. Acórdão n.º 304/2001, já
citado) que, em cada caso, haverá que «proceder a um justo balanceamento entre a
protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de
direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador,
também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há
que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as
soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as soluções mais
acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam ‘tocadas’ relações ou
situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o
Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de
regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas
já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável,
arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos
e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e
fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição
daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de
certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de
um Estado de direito, impondo‑se, então, a intervenção do princípio da
protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio
do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma
acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e
segurança, que todos têm de respeitar.» (Negrito aditado). No caso em apreço,
porém, tal não se verifica.
6.2.2. Em primeiro lugar, porque qualquer expectativa que as partes possam ter
no momento da celebração de um contrato relativamente à intangibilidade de uma
cláusula de escolha do foro territorialmente competente para julgar eventuais
litígios emergentes do mesmo é sempre, no mínimo e por natureza, limitada. E
isto porque uma tal cláusula sempre estará condicionada pela eventualidade de
uma reorganização judiciária, a que o legislador decida proceder, e que, no
limite, pode mesmo fazer desaparecer o tribunal que as partes convencionaram
como territorialmente competente.
Por outro lado, há que ter em conta que a cláusula de convenção
de foro é uma cláusula que não respeita ao sinalagma do contrato, tendo antes a
ver com a patologia deste e com a fixação de um pressuposto processual da
competência territorial dos tribunais. Competência esta que também possui
normas que estão subtraídas, de todo, à possibilidade de convenção. Ora, o facto
é que, sempre se entendeu que, em matéria processual, as expectativas das partes
ou não merecem, de todo, a tutela da confiança ou só em termos mitigados dela
podem beneficiar. Além disso, no caso concreto, a acção foi proposta já após a
entrada em vigor da nova lei, sendo certo que a competência dos tribunais se
fixa de acordo com a lei em vigor à data da respectiva propositura.
Não pode, assim, designadamente pelas razões que se acabam de
expor, afirmar‑se que no momento da celebração do contrato o ora recorrente
gozasse de uma forte expectativa jurídica, legitimamente fundada, de que, mesmo
no domínio do regime jurídico vigente antes da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril,
qualquer litígio resultante do mesmo viria a ser julgado pelo tribunal
convencionado. Com efeito, embora pudesse existir a expectativa de que um
eventual litígio decorrente do contrato celebrado viesse a ser julgado pelo foro
convencionado, essa expectativa sempre seria «enfraquecida» ou «menos
consistente» (para utilizarmos, uma vez mais, as palavras do Acórdão n.º
304/2001, já citado), pela possibilidade, razoável, de uma interpretação do
quadro normativo anterior à entrada em vigor da citada Lei n.º 14/2006, que
conduzisse já, por outra via, à invalidade da referida cláusula.
Acresce, finalmente, que, no caso concreto, no que se refere às
acções destinadas à cobrança de dívidas resultantes da celebração de contratos
de crédito ao consumo, a solução normativa editada pelo legislador, mesmo na
interpretação que agora vem questionada – no sentido da aplicação, a contratos
já existentes, da regra da impossibilidade de alteração, por convenção das
partes, das normas sobre a competência territorial, por força do disposto na
nova alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º, que, passando a determinar o
conhecimento oficioso da incompetência em razão do território nas causas a que
se refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º, inviabiliza o funcionamento
da estipulação efectuada ao abrigo do artigo 100.º, n.º 1, todos do Código de
Processo Civil –, também não é arbitrária, podendo justificar‑se à luz do
objectivo constitucional de protecção dos interesses dos consumidores, enunciado
no artigo 60.º da Constituição.
6.2.3. Assim sendo, pode, então, concluir‑se que a aplicação da
alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção
que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, aos contratos celebrados
antes da entrada em vigor desta última Lei, ainda que se entenda que se trata de
uma aplicação retroactiva da mesma, não consubstancia violação de forma
inadmissível, intolerável ou arbitrária dos direitos ou expectativas fundadas
do recorrente, não se verificando, por isso, o desrespeito dos mínimos de
certeza e segurança salvaguardados pelo artigo 2.º da Constituição.”
Subscrevendo‑se, na sua essência, as
precedentes considerações, resta concluir, também aqui, pela improcedência da
tese do recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma,
decorrente da conjugação da parte final do n.º 1 do artigo 100.º com a alínea a)
do n.º 1 do artigo 110.º, enquanto se refere às causas mencionadas na primeira
parte do n.º 1 do artigo 74.º, todos do CPC, sendo os dois últimos artigos na
redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, interpretada no sentido de
que a proibição do afastamento, por convenção expressa das partes, da regra de
competência em razão do território, constante do último preceito citado, se
aplica às acções instauradas depois da entrada em vigor da Lei n.º 14/2006,
mesmo que a convenção de foro conste de contrato celebrado antes dessa vigência;
e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o
despacho recorrido, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos