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Processos n.ºs 672/2005 e 673/2005
Plenário
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. No processo n.º 672/2005, Helder Rui Santos
Bernardo, na qualidade de mandatário da coligação “Mais Acção Mais Famalicão”,
constituída pelo Partido Social Democrata PPD/PSD e pelo Partido Popular CDS-PP,
interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 31.º e
seguintes da Lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias
locais, aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto (doravante
designada por LEOAL), da decisão do Juiz do Tribunal Judicial de Vila Nova de
Famalicão, de 26 de Agosto de 2005, que, julgando procedente reclamação
apresentada pelo mandatário eleitoral do Partido Socialista contra o despacho
de 18 de Agosto de 2005, que admitira as candidaturas de todas as listas
apresentadas à eleição da Assembleia de Freguesia de Calendário, declarou
Armindo Fernando Gomes inelegível, como 1.º candidato da lista da citada
coligação, para essa Assembleia de Freguesia, por ser sócio gerente de sociedade
que tem contratos celebrados com a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão,
ainda não executados ou findos (artigo 7.º, n.º 2, alínea c), da LEOAL).
No processo n.º 673/2005, apensado ao anterior por
determinação do Presidente do Tribunal Constitucional, o mesmo mandatário
interpôs idêntico recurso da decisão judicial, da mesma data, que, com o mesmo
fundamento, declarou Artur Lopes Fernandes inelegível, como 1.º candidato da
lista da citada coligação, para a Assembleia de Freguesia de Joane.
1.2. Os despachos judiciais impugnados deram como
provados os seguintes factos:
1) No processo eleitoral da Assembleia de Freguesia de
Calendário:
Armindo Fernando Gomes é o 1.º candidato da lista
apresentada pela coligação “Mais Acção Mais Famalicão” à Assembleia de Freguesia
de Calendário e é sócio gerente da sociedade Armindo Fernandes Gomes, L.da, que
celebrou contratos com a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, ainda em
execução, concretamente contrato de empreitada da rede de saneamento básico em
Ribeirão, contrato de empreitada de ligação ao saneamento público do entreposto
da empresa LIDL e C.ª, em Ribeirão, e contrato de empreitada da rede de
saneamento básico em Joane;
2) No processo eleitoral da Assembleia de Freguesia de
Joane:
Artur Lopes Fernandes é o 1.º candidato da lista
apresentada pela coligação “Mais Acção Mais Famalicão” à Assembleia de Freguesia
de Joane e é sócio gerente da sociedade Ribeiro da Silva & C.ª, L.da, tendo
nessa qualidade contratado directamente com a Câmara Municipal de Vila Nova de
Famalicão os contratos de empreitada, ainda em execução, relativa à construção
do edifício para a sede da Junta de Freguesia de Nine e relativa à construção do
jardim de infância da Freguesia de Arnoso Santa Maria.
Os despachos judiciais em causa, invocando
jurisprudência do Tribunal Constitucional, consideraram que incorre na
inelegibilidade prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 7.º da LEOAL o 1.º
candidato à assembleia de freguesia que seja gerente de sociedade que tenha
contrato não integralmente cumprido com o município em que a freguesia se
integra, porquanto, se for eleito, assumirá o cargo de presidente da junta de
freguesia e integrará, por inerência, a assembleia municipal.
Quanto ao momento relevante para aferição da
inelegibilidade, consignou-se no despacho exarado no processo relativo à
Assembleia de Freguesia de Calendário:
“A inelegibilidade tem de se verificar no momento em que se decide.
Aliás, o artigo 7.º da Lei eleitoral permite concluir que a situação ou causa de
inelegibilidade se reporta ao momento em que a candidatura é apresentada [Artigo
7.º, n.º 1, alínea d): «Os funcionários dos órgãos das autarquias locais ou dos
entes por estes constituídos ou em que detenham posição maioritária que exerçam
funções de direcção, salvo no caso de suspensão obrigatória de funções desde a
data da entrega da lista de candidatura em que se integram»]. Não é
posteriormente, haja ou não reclamação, que o candidato vai renunciar à
gerência ou ceder a sua quota na sociedade que tem contratos não cumpridos com o
município. Ele é inelegível se no momento em que se candidata tal situação de
verifica. Contudo, mesmo uma interpretação mais permissiva não tem qualquer
efeito para o caso em apreço, porque não só os contratos existem
(confessadamente) e se mantêm (confessadamente dois estão por cumprir) como não
alegou nem fez prova de que os contratos já estarão cumpridos na data da eleição
ou na data em que o candidato poderá ser empossado deputado municipal.”
Idêntico parágrafo consta da decisão relativa à
Assembleia de Freguesia de Joane, com excepção do último período, que aí tem o
seguinte teor:
“Contudo, mesmo uma interpretação mais permissiva não tem qualquer efeito para o
caso em apreço, porque não só os contratos existem (confessadamente) como se
fez prova de que não estarão cumpridos na data da eleição ou na data em que o
candidato poderia ser empossado deputado municipal.”
1.3. As alegações apresentadas pelo recorrente são de
teor substancialmente idêntico nos dois recursos, ambas terminando com a
formulação das seguintes conclusões:
“a) O candidato considerado inelegível não é sócio nem gerente da
sociedade contratante com o Município de Vila Nova de Famalicão.
b) Apesar de ser sócio no momento da apresentação da candidatura
autárquica, não o é no momento da interposição deste recurso.
c) Inexistindo qualquer vínculo contratual com a sociedade, não se
verificam os pressupostos de que a lei eleitoral das autarquias locais, no seu
artigo 7.°, n.º 2, alínea c), faz depender a declaração de inelegibilidade.
d) O candidato é assim elegível como primeiro candidato da lista
apresentada à assembleia de freguesia.
e) Nas situações em apreço, os referidos candidatos, sendo eleitos
presidentes das respectivas juntas de freguesia e tomando posse como deputados
municipais, quer no momento do sufrágio em 9 de Outubro próximo, quer
posteriormente, nenhuma relação terão com as empresas cujos contratos estão em
execução com a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão.
Acresce que,
f) Já no momento em que foi proferida a decisão em apreço, não se
verificavam os pressupostos legais de que depende a decisão proferida e agora
impugnada.
g) Já nesse momento não se logrou provar que o agora candidato era
gerente ou membro dos corpos sociais da sociedade contratante.
h) Apesar de tal facto se considerar provado, estamos perante claro
erro na apreciação das provas, porque dos documentos juntos pelo reclamante não
existe sequer um indício da declarada relação de gerência com a sociedade.
i) O candidato em apreço, ou a empresa de que foi sócio, nada tem a
ver com a Assembleia de Freguesia a que se candidata, pois nunca foi
adjudicatário de qualquer empreitada por parte da mesma.
Acresce ainda,
j) As garantias de isenção e imparcialidade vertidas no direito
eleitoral português, concertadas com o regime das competências e atribuições dos
órgãos autárquicos, exigem a aferição, em concreto, de existência de situações
de efectiva incompatibilidade de interesses.
k) É essa incompatibilidade de interesses que a ordem jurídica quer
precaver, pelo que essa é a ratio normativa que deve estar subjacente ao
raciocínio de subsunção normativa a fazer nos presentes autos.
l) No caso em apreço, haveria que determinar se o exercício do cargo
de deputado municipal, por parte do eventual e futuro Presidente da Junta de
Freguesia, lhe conferiria, de alguma forma, capacidade de determinar ou
influenciar a decisão e/ou a deliberação da contraparte contratante (Câmara
Municipal) no que respeita à decisão de formalizar tal relação contratual com a
empresa de que foram sócios.
m) Tal ocorreria necessariamente numa situação em que competisse à
Assembleia Municipal aprovar, autorizar ou ratificar a formalização das
relações contratuais entre a Câmara Municipal e os seus fornecedores.
n) Que sentido fará considerar inelegível um candidato quando ele já
[é] presidente de Junta ou que o venha a ser no futuro, não perde o mandato,
porque as normas que tutelam o exercício de cargos públicos não impedem essa
mesma relação contratual aqui invocada para fundar a pretendida
inelegibilidade?!
Quanto à requerida declaração de inconstitucionalidade,
o) A norma vertida no artigo 7.° n.º 2, alínea c), fere o disposto
nos artigos 18.°, 48.° e 50.º da Constituição da República Portuguesa.
p) A norma em apreço configura uma desmedida restrição em direitos
constitucionalmente garantidos, como o da capacidade eleitoral passiva.
q) O sistema de incompatibilidades e os mecanismos de tutela
administrativa são disposições e instrumentos que permitem garantir a isenção
que a norma em apreço pretende acautelar.
r) Ir além do que é estritamente necessário para acautelar os
interesses em causa é violentar o disposto no artigo 18.° da CRP, o que funda a
solicitada inconstitucionalidade.”
Com as referidas alegações, o recorrente juntou
certidões de escrituras, celebradas em 29 de Agosto de 2005, em que,
respectivamente, Armindo Fernandes Gomes cedeu a quota que detinha na firma
Armindo Fernandes Gomes, Limitada aos seus dois filhos, já sócios da mesma
sociedade, e renunciou à gerência da mesma, e Artur Lopes Fernandes cedeu a
quota que detinha na firma Ribeiro da Silva & Companhia Limitada aos seus dois
filhos, já sócios da mesma sociedade, e renunciou à gerência da mesma.
1.4. O mandatário do Partido Socialista apresentou
contra-alegação comum a ambos os recursos, concluindo:
“A – À data da apresentação das candidaturas os candidatos
considerados inelegíveis pelo Tribunal ad quem [ter-se-á querido escrever a
quo] eram sócios e gerentes de sociedades que tinham e têm contratos de
empreitada com a Câmara Municipal.
B – A cessão de quotas feita apressadamente à hora da apresentação
do presente recurso mais não representa do que uma simulação negocial e nada tem
a ver com a vontade dos contraentes, mas antes com a fundamentação deste
recurso.
C – O Tribunal Constitucional, Tribunal de recurso, tem de se
pronunciar quanto aos factos existentes à data da tomada de decisão pelo
Tribunal recorrido.
D – Os factos alegados pela ora respondente estão todos comprovados
nos autos. Estavam-no anteriormente e estão-no mais agora, com a junção por
parte da coligação recorrente aos autos de documentos comprovativos daquilo que
a impugnante alegou – que os candidatos rejeitados eram sócios de sociedades
que tinham e têm celebrados contratos de empreitada com a Câmara Municipal,
contratos esses que estão em execução ou em vias de começar a sua execução.
E – A lei fala em inelegibilidade e não em assunção de cargo. A
elegibilidade ou inelegibilidade tem de verificar-se aquando da apresentação de
candidaturas, não aquando da realização do acto eleitoral, até porque, nesta
altura, nada há que impeça um candidato inelegível de ser eleito, o que se
transforma numa enorme contradição.
F – A lei, quando se refere territorialmente a círculos eleitorais
refere-se a toda a área de um concelho e não à área de uma freguesia.
G – O primeiro candidato à eleição à Assembleia de Freguesia faz
parte, por inerência, e com todos os deveres e obrigações de qualquer eleito
para a Assembleia Municipal.
H – A Assembleia Municipal é o órgão que tem competência para
fiscalizar o trabalho da Câmara Municipal, para aprovar contratos a celebrar
pela Câmara Municipal de valor mais elevado, a aprovar o relatório de
actividades e as contas do Município. Assim são membros da Assembleia Municipal,
o mais importante órgão da autarquia
J – Ao pretender-se elegíveis pessoas que têm por si ou através de
sociedades familiares – como é o caso dos autos – contratos com a Câmara
Municipal é tentar fazer do Estado de Direito Democrático um país em que os
favorecimentos e a promiscuidade negocial é permitida.”
1.5. Não se evidenciando a existência de obstáculos ao
conhecimento do mérito dos recursos, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
As questões centrais que integram o objecto do presente
recurso já foram objecto de anteriores pronúncias pelo Tribunal Constitucional.
Quanto à inelegibilidade em causa, quer face à norma
actualmente vigente (artigo 7.º, n.º 2, alínea c), da LEOAL), quer à
correspondente norma da anterior lei eleitoral para as autarquias locais (artigo
4.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de Setembro), o
Tribunal Constitucional tem sustentado que a sua justificação radica na
preocupação de assegurar o exercício isento, desinteressado e imparcial dos
cargos autárquicos e que a sua extensão abarca os candidatos que, por virtude
das eleições a que pretendam concorrer, possam vir a fazer parte dos órgãos da
autarquia com a qual tenham contrato pendente; por isso, “se o contrato tiver
sido celebrado com um concelho, o candidato só é atingido pela inelegibilidade
em causa se pretender eleitoralmente concorrer à câmara municipal ou à
assembleia municipal de tal município ou ainda, e como cabeça de lista, à
assembleia de qualquer uma das freguesias do mesmo concelho, já que neste último
caso será automaticamente presidente da junta de freguesia (...) e terá, em
consequência, assento, por direito próprio, na assembleia municipal do
respectivo concelho” (Acórdão n.º 253/85, doutrina reiterada nos Acórdãos n.ºs
720/93, 505/2001 e 516/2001).
Porém, também tem o Tribunal Constitucional atribuído
relevância à cessação da situação geradora da inelegibilidade mesmo que ocorrida
após a prolação da decisão do juiz do tribunal judicial que declarou a
inelegibilidade. Já no Acórdão n.º 719/93 se salientou que “em sede de
contencioso de apresentação de candidaturas, cabe ao Tribunal Constitucional
(...) apreciar a decisão recorrida, os fundamentos do recurso e tomar a tal
propósito uma decisão final, determinando a elegibilidade ou a inelegibilidade
da candidatura controvertida”, pelo que, “atenta a competência assim definida
do Tribunal Constitucional, tem este, pois, que decidir em função do quadro
legal e da situação fáctica existente neste momento, ou seja, actuando no uso
de poderes próprios e em face da específica valoração do quadro legal e dos
elementos de facto constantes do processo ou a ele trazidos pelas partes
envolvidas, subsumindo o caso à previsão legal em função da situação existente
no momento em que é chamado a decidir”. Doutrina que foi reiterada no Acórdão
n.º 495/2001, onde se salientou que a mesma se conjuga “com o princípio
processual civil relativo à atendibilidade, na sentença, dos factos
supervenientes, constitutivos, modificativos ou extintivos do direito, que se
produzam posteriormente à propositura da acção, «de modo que a decisão
corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão» (n.º
1 do artigo 663.º do Código de Processo Civil)”. Na verdade, o recurso para o
Tribunal Constitucional da decisão judicial sobre a apresentação de
candidaturas não é um recurso do tipo revisão (ou reponderação, revisio prioris
instantiae), que tem por objecto a decisão recorrida e por finalidade a
averiguação da correcção dessa decisão face aos elementos de prova, aos dados de
facto e à disciplina jurídica existentes à data em que essa decisão foi
proferida, mas antes um recurso do tipo reexame, que tem por objecto a questão
sobre que incidiu a decisão recorrida e por finalidade a emissão de novo juízo
(novum judicium) sobre o fundo da causa, com eventual recurso a novos meios de
prova e atendendo às alterações de facto e de direito ocorridas até à data da
decisão do recurso (cf. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil,
Lisboa, 1992, pp. 138-139).
Ora, face às certidões das escrituras de cessão de
quotas juntas com as alegações do recorrente, é patente que desapareceram as
causas de inelegibilidade em que se fundaram as decisões judiciais recorridas,
sendo de atribuir relevância, pelas razões acabadas de enunciar, a esta
alteração dos factos.
Em situações similares tem sido esse o entendimento
seguido pelo Tribunal Constitucional, designadamente:
– no Acórdão n.º 717/93, em que se atribuiu relevância
ao facto de o contrato ter ficado integralmente cumprido em data posterior à
apresentação da candidatura e da decisão judicial que a rejeitou, mas anterior
à decisão do Tribunal Constitucional;
– no Acórdão n.º 720/93, em que se atribuiu relevância a
renúncia ao cargo de administrador que só produziria efeito no final do mês de
Novembro de 1993, posteriormente à própria data do acórdão do Tribunal
Constitucional, mas anteriormente à data da realização do acto eleitoral;
– no Acórdão n.º 516/2001, em que se atribuiu relevância
à cessação de produção de efeitos de contrato de fornecimento em data que,
sendo embora posterior à apresentação da candidatura, à emissão das decisões do
tribunal judicial e do Tribunal Constitucional e ao próprio acto eleitoral, era
seguramente anterior à data da instalação das assembleias de
freguesia e municipal.
Representando as inelegibilidades restrições ao direito
fundamental de ser eleito para cargos políticos, as normas que as estabelecem
devem ser tidas como enumerações taxativas, não podendo ser objecto de
interpretações extensivas ou aplicações analógicas, e estão sujeitas ao respeito
do princípio da necessidade. Assim, não é lícito estender a inelegibilidade
que atinge os membros dos corpos sociais, os gerentes de sociedades e os
proprietários de empresas que tenham contratos com a autarquias por forma a
abranger os seus familiares, por mais próximos que sejam, e, por outro lado,
não se justifica manter a situação de inelegibilidade quando é seguro que, no
momento em que assumir funções autárquicas, já não se verifica a situação
susceptível de afectar o desempenho isento e imparcial do cargo.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em, concedendo provimento
aos recursos, declarar Armindo Fernando Gomes e Artur Lopes Fernandes
elegíveis, como 1.ºs candidatos das listas da coligação “Mais Acção Mais
Famalicão”, para as Assembleias de Freguesia de Calendário e de Joane,
respectivamente.
Lisboa, 6 de Setembro de 2005.
Mário José de Araújo Torres
Vítor Manuel Gonçalves Gomes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Carlos Pamplona de Oliveira
Paulo Mota Pinto
Artur Maurício