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Processo n.º 297/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. Notificado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de
Março de 2005, que negou provimento ao recurso por si interposto do despacho
que, no Tribunal da Relação de Lisboa, lhe indeferiu um pedido de abertura de
instrução, com fundamento em extemporaneidade (fls. 158 e v.º), veio o
assistente A. interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional,
através do requerimento de fls. 234 e seguintes.
Nesse requerimento indica o recorrente que “o recurso é interposto
com base nas alíneas b), c) e g) do n.º 1 do artº 70º da LTC, quanto à decisão
do TR Lx de 8.10.04 e ao acórdão de 16.03.05, de fls. , do STJ Lx”,
acrescentando que “a decisão e o acórdão recorridos interpretam de forma
inconstitucional a norma do artº 287º/1/ do CPP, nos termos já referidos no
recurso interposto em 23.11.04, a fls. ”, por entender terem sido violados os
“direitos de cidadania, de intervenção processual do assistente e da estrutura
acusatória do processo” e o “princípio da paridade processual entre as partes”.
2. Já no Tribunal Constitucional, foi proferido pela relatora, a fls.
243 e seguinte, o seguinte despacho:
“[…]
Embora o recorrente mencione duas decisões recorridas – o despacho do Tribunal
da Relação de Lisboa que indeferiu o pedido de abertura de instrução e o acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu o recurso interposto de tal despacho
de indeferimento –, só este acórdão constitui decisão recorrível, para efeitos
de interposição de recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, embora o recorrente indique como fundamento do recurso o
disposto nas alíneas b), c) e g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, o Tribunal
Constitucional não pode conhecer do recurso interposto ao abrigo das alíneas c)
e g), por falta de verificação dos respectivos pressupostos processuais.
Quanto ao recurso previsto na alínea c), resulta claramente dos autos que a
decisão recorrida não recusou a aplicação de norma constante de acto
legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado. Quanto ao recurso previsto na alínea g) – e para além de o recorrente
não indicar qual o acórdão que teria decidido a questão suscitada –, este
Tribunal nunca julgou inconstitucional ou ilegal a norma indicada pelo
recorrente, na interpretação por ele impugnada.
Nestes termos – e sem prejuízo de outras questões que venham porventura a
suscitar-se quanto ao conhecimento do recurso – o presente recurso só pode
prosseguir com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, para
apreciação da norma contida no n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o assistente requerer a
abertura da instrução se conta a partir da notificação do despacho de
arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do
despacho que, em reclamação hierárquica, o confirme.
[…].”.
3. O recorrente alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
“Primeira: O inquérito constitui, no sistema do CPP, uma fase decisiva/própria
do processo penal, que é iniciada, dirigida e encerrada pelo MP, o que só sucede
no último limite hierárquico, isto é, na decisão/posição/intervenção definitiva
e relevante quando ocorreu a necessária reclamação. (Veja-se o referido Voto de
vencido).
Segunda: A reapreciação, uma outra leitura indiciária do superior hierárquico,
do inquérito por outro Magistrado do MP, consubstancia um verdadeiro direito à
apreciação em outro grau, passível de exercício intraprocessual, em sede do
poder de direcção do superior hierárquico. (Veja-se o referido voto de vencido).
Terceira: Assim, só após o esgotamento do resultado da intervenção hierárquica é
que ocorre o momento do despacho de arquivamento como posição processual
definitiva e confirmativa, pelo que o Acórdão recorrido violou a coerência
interna do sistema processual, designadamente as normas dos arts. 262º, 263º e
264º do CPP e dos arts. 20º/4/5, 22º e 32º/4/5/7/9 da Lei Fundamental.
Quarta: O impedimento de intervenção simultânea, com idêntica finalidade, da
decisão hierárquica e da confrontação judicial não constitui impossibilidade de
usar de todos os meios processuais até obter despacho que constitua a última
intervenção possível no domínio do encerramento do inquérito, e, após o prazo
devido, requerer a abertura de instrução.
Quinta: No caso dos autos, o despacho notificado em 5.9.03, a fls ,
constituiu a posição final de encerramento do inquérito, o qual atempadamente
foi objecto de requerimento para abertura de instrução, pelo que foi cumprida a
norma do art. 287º/1/ do CPP.
Sexta: Donde, deve ser julgada inconstitucional/ilegal a norma do n.º 1 do art.
287º do CPP, quando interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o
assistente requerer a abertura de instrução se conta da notificação do despacho
de arquivamento do inquérito pelo MP e não da notificação do despacho que, em
intervenção hierárquica, o confirme.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso de
inconstitucionalidade/ilegalidade com a revogação do Acórdão recorrido, para ser
substituído por outro que conheça do requerimento para abertura de instrução,
dado que a interpretação que o STJ Lx deu à norma do n.º 1 do art. 287º do CPP é
inconstitucional/ilegal, por violação da coerência interna do sistema
processual, designadamente das normas dos arts. 262º, 263º e 264º do CPP e dos
arts. 20º/4/5, 22º e 32º/4/5/7/9/ da Lei Fundamental.”
O Ministério Público contra-alegou, sustentando o seguinte:
“1- Em nenhum dos seus princípios ou normas a Constituição impõe que o prazo de
20 dias concedidos ao assistente para requerer a abertura de instrução,
estabelecido no n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal se comece a
contar da notificação do despacho que em intervenção do imediato superior
hierárquico, confirme o despacho de arquivamento proferido pelo titular do
inquérito.
2- Qualquer solução legal que dilate o prazo de 20 dias do n.º 1 da alínea b) do
artigo 287º do Código de Processo Penal, a contar da notificação do despacho de
arquivamento, proferido pelo titular do processo, não lhe estabelecendo limites,
invade o núcleo de garantias de defesa do arguido constitucionalmente
consagradas.
3- Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
II
3. Tendo em conta que transitou em julgado o despacho de delimitação do
objecto do recurso, proferido pela relatora a fls. 243 e seguinte, cumpre
apreciar no presente recurso a constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo
287º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o prazo de 20
dias para o assistente requerer a abertura da instrução se conta da notificação
do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da
notificação do despacho que, em intervenção hierárquica, o confirme.
O n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal dispõe como
segue:
“1. A abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da
notificação da acusação e do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o
assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem
deduzido acusações; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular,
relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido
acusação.”
4. A questão de constitucionalidade suscitada no presente processo, a
propósito da norma transcrita, foi recentemente apreciada no Tribunal
Constitucional, que, no acórdão n.º 501/05, concluiu que a interpretação
normativa questionada não viola o n.º 7 do artigo 32º nem o n.º 4 do artigo 32º
da Constituição.
É a seguinte a fundamentação do acórdão n.º 501/05 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt):
“A instrução é uma fase facultativa do processo penal, que visa a comprovação
judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a
submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286º, n.ºs 1 e 2, do CPP), podendo
ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, consoante a finalidade (artigo
287º, n.º 1, do CPP). À apreciação do caso só interessa considerar a finalidade
que consiste na comprovação da decisão de arquivar o inquérito, isto é, o
requerimento de abertura de instrução enquanto meio ao dispor do assistente para
acusar por crimes públicos (ou semi-públicos), na hipótese ou na medida em que o
Ministério Público opte pelo arquivamento.
A afirmação de que a instrução tem carácter facultativo deve ser
contextualizada, no que respeita à posição processual do assistente. Com efeito,
o assistente tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actuação
subordina a sua intervenção, salvo nos casos excepcionais previstos na lei
(artigo 69º do CPP), um dos quais é a faculdade de apresentar requerimento de
abertura de instrução quando o Ministério Público, findo o inquérito, se abstém
de acusar por crimes públicos, ou de um modo mais geral, quando pretende acusar
por factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido
acusação (artigo 287º, n.º 1, alínea b) do CPP). Mas, nestes casos, em que actua
contra a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito por crimes que
não dependam de acusação particular (ou em que pretende alargar o objecto do
processo a factos que impliquem uma alteração substancial da acusação deduzida
pelo Ministério Público), a instrução é para o assistente uma fase judicial
necessária (hoc sensu), porque só por essa via poderá obter a submissão do
arguido a julgamento (ou a julgamento com essa extensão; cf. artigos 284º e 285º
do CPP). Para tanto, o n.º 1 do artigo 287º concede ao assistente o prazo de 20
dias a contar da notificação do despacho de arquivamento (ou da notificação da
acusação, se o que pretende é uma alteração substancial dos factos).
No presente recurso de constitucionalidade não cabe apreciar o acerto da decisão
à luz do que seja a melhor aplicação do direito ordinário infraconstitucional,
mas tão só se a interpretação da norma do n.° 1 do artigo 287° do Código de
Processo Penal, na tese que fez vencimento no Supremo Tribunal de Justiça e que
se precisou no despacho de delimitação do objecto do recurso, viola ou não
normas ou princípios constitucionais.
Designadamente, está fora da competência cognitiva do Tribunal tudo quanto
respeita a averiguar se «a coerência interna do sistema», para usar a expressão
adoptada pela recorrente, é melhor servida por uma outra interpretação – a
defendida pela recorrente e desenvolvida no voto de vencido lavrado pelo Cons.º
B., no acórdão recorrido – que considere que o referido prazo se inicia com a
notificação da decisão do superior hierárquico do magistrado do Ministério
Público titular do inquérito, para quem se tenha reclamado e que confirme o
arquivamento. Como igualmente o está aquela outra, que lhe vai pressuposta, de
saber se o denunciante com a faculdade de se constituir assistente pode, como
faculdade processual própria, antes de confrontar judicialmente a decisão do não
exercício da acção penal, provocar a intervenção da estrutura hierárquica do
Ministério Público, na continuação da tradição que vinha do Decreto-Lei n.º
35.007, de 13 de Outubro de 1945 e do artigo 6º-A do Decreto-Lei n.º 605/75, de
3 de Novembro.
Dos preceitos constitucionais que a recorrente diz violados, só o n.º 4 do
artigo do artigo 20º e o n.º 7 do artigo 32º podem ser utilmente invocados, com
um mínimo de racionalidade argumentativa, para confrontar a solução normativa em
crise.
Com efeito,
-Quanto ao n.º 5 do artigo 20º, independentemente de não se vislumbrar de que
modo direitos, liberdades e garantias pessoais, na acepção desta norma, possam
estar em causa na determinação do início do prazo para o assistente em processo
penal requerer a abertura da instrução, é contraditório com a finalidade da
norma constitucional, que é a de que existam procedimentos judiciais
caracterizados pela celeridade e prioridade, preferir uma solução normativa que
diferisse o início do prazo para o exercício de tal direito;
-Quanto ao artigo 22º, a norma sujeita a apreciação não respeita à constituição,
modificação, extinção ou a qualquer aspecto da regulação da responsabilidade
civil do Estado e demais entidades públicas;
-Quanto aos n.ºs 4, 5 e 9 do artigo 32º, nem a recorrente se esforça por
demonstrar nem o Tribunal vislumbra de que modo pode a disciplina de aspectos
relativos ao prazo para requerer a instrução contender com aspectos relativos à
competência jurisdicional para a instrução, com a estrutura acusatória do
processo penal ou com o princípio do «juiz natural».
Consequentemente, resta confrontar a norma em crise com o n.º 7 do artigo 32º e
com o n.º 4 do artigo 20º da Constituição, isto é, para ir directamente ao que
pode fazer sentido como problema de constitucionalidade, saber se o modo de
determinar o início do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 287º do Código de
Processo Penal retira ou restringe desproporcionadamente ao ofendido, directa ou
indirectamente, o direito de participar no processo penal que tenha por objecto
a ofensa de que alegadamente tenha sido vítima ou conforma esse processo de modo
a que deixe de ser um «processo equitativo».
O Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar, no acórdão n.º 27/2001,
publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Março, sobre a
constitucionalidade do n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal, ainda
que numa outra dimensão, mas com algumas afinidades com aquela que a recorrente
lhe submete no presente recurso.
Ponderou-se nesse acórdão:
«Ainda que a propósito de outro problema, a questão de saber se o direito a
constituir-se assistente se encontra constitucionalmente reconhecido ou
garantido foi colocada e respondida no Acórdão nº 690/98 (in ‘Diário da
República’, II Série, de 8 de Março de 1999). Escreveu-se nesse aresto:
‘O artigo 20º, nº 1, dispõe que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, o
que, como este Tribunal tem entendido, implica o reconhecimento da garantia da
via judiciária, a qual se estende necessariamente a todos os direitos e
interesses legítimos, ou seja, a todas as situações juridicamente protegidas.
Assim, e como se pode ler no Acórdão nº 24/88 (in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11º Vol., pp. 525 e segs.):
“A articulação deste preceito com as injunções contidas no artigo 206º, onde, em
termos genéricos, se prescreve que «incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos, e no artigo 286º, nº3, onde se
garante aos interessados recurso contencioso para obter o reconhecimento de um
direito ou interesse legalmente protegido», impõe que dele se faça uma
interpretação alargada, ou seja, no sentido de que a garantia judiciária
assegura o acesso aos tribunais não só para a defesa de direitos mas também de
interesses legalmente protegidos”.
Nesta perspectiva, o que há que averiguar é se a constituição de assistente “põe
judicialmente em acto algum direito ou interesse juridicamente protegido”, nos
termos do Acórdão nº 24/88, citado, e no qual se respondeu pela forma seguinte:
“E sem necessidade de lançar mão de outros argumentos que se poderiam extrair
dos artigos 49º e 217º, nº1, da Constituição ou da autonomia que o assistente
goza em matéria de audiência, de interrogatório, de alegações e de recursos
relativamente ao Ministério Público, pode desde já afirmar-se que a lei protege
o interesse do ofendido em contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos
autores do crime de que foi vítima.
Este interesse é juridicamente protegido através do próprio instituto do
assistente e do direito à sua constituição e dos diversos poderes de intervenção
processual que a lei, como se viu, amplamente lhe reconhece.
E a ponderação de que no caso de crimes públicos, a acção exercida para defesa
do interesse público violado pela conduta criminosa, se há-de considerar como da
própria comunidade, mercê da sua dimensão sócio-jurídica, não invalida que com
este interesse possa coexistir um outro do ofendido, a que a lei dispensa
protecção”.
Reconhece-se, assim, a existência de um interesse específico do ofendido em
intervir mais eficazmente em processo penal.
Com a Revisão Constitucional de 1997 (Lei nº 1/97, de 20 de Setembro, com início
de vigência em 5 de Outubro de 1997), o reconhecimento daquele interesse
específico passou a constar da própria Lei Fundamental. Com efeito, o nº 7 do
artigo 32º passou a estabelecer que ‘o ofendido tem o direito de intervir no
processo, nos termos da lei’.
Assim, no caso em apreço, o assistente defende um interesse constitucionalmente
protegido e, para além disso, o nº 4 do artigo 32º, também da Constituição,
estabelece que ‘toda a instrução é da competência de um juiz (...)’. É certo que
este preceito constitucional se refere à judicialização da instrução no processo
penal, mas é manifesto que o assistente, em caso de crime público em que o
Ministério Público se pronunciou pelo arquivamento do processo de inquérito, tem
o direito de requerer a abertura da instrução, para assim controlar
judicialmente a posição do Ministério Público. Este direito integra-se
indubitavelmente no conjunto dos diversos poderes de intervenção processual do
assistente e inclui-se no interesse constitucionalmente protegido de uma
intervenção mais eficaz do ofendido no processo penal.
Porém, o que está em causa nos presentes autos é a questão de saber se o decurso
do prazo peremptório para requerer a abertura da instrução impede a renovação de
um requerimento que, tendo sido apresentado com aquela finalidade, foi
considerado nulo. Ou seja, na formulação do recorrente, a questão de saber se o
direito do assistente de requerer a acusação foi desproporcionadamente
restringido.
A este respeito, importa reconhecer que a dimensão garantística do processo
penal, face à sua repercussão nos direitos e liberdades fundamentais do arguido,
obsta, por um lado, a um entendimento de tal processo como um verdadeiro
processo de partes e, por outro, não proporciona uma perspectiva de total
simetria entre os direitos do arguido e do assistente no que se refere ao modos
de concretização das garantias de acesso à justiça.
Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se
decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é
reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira
acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual
acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a
sua apresentação.
O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução
– prazo esse que, uma vez decorrido impossibilita a prática do acto – insere-se
ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a
possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de
instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal
requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das
garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a
admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o
despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por
aqueles factos não seria de novo acusado.
Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação
através do requerimento de abertura da instrução, a não admissibilidade de
renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação
desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é
exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível
concretização – uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido.
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece
maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que
protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias
decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do
arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes
para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.
Este balanceamento dos interesses em causa basta para mostrar que a aceitação da
exclusão do direito de renovar um requerimento nulo pelo decurso do prazo
peremptório fixado não desencadeia uma limitação excessiva ou desproporcionada
do direito de acusar do assistente, pelo que o recurso de constitucionalidade
não pode proceder».
Estas considerações são transponíveis para a apreciação da constitucionalidade
da norma agora sujeita, seja no que se refere aos termos do reconhecimento
constitucional da intervenção do ofendido no processo penal, seja quanto ao
entendimento do peso relativo dos interesses do assistente – a veste que no
nosso processo penal assume a intervenção qualificada do ofendido como sujeito
processual (embora, nem sempre o assistente seja o ofendido ou o seu «sucessor»
ou representante; cf., além de casos especiais, a previsão da alínea e) do n.° 1
do artigo 68.° do CPP) – no confronto com o de outros sujeitos processuais,
designadamente com os do arguido (No sentido de que os direitos que são
reconhecidos ao arguido e aos outros sujeitos processuais se projectam
constitucionalmente em termos diferenciados, vejam-se também os acórdãos n.ºs
269/97 e 189/2000, publicados no Diário da República, II série, de 23/5/97 e de
30 de Outubro de 2000, respectivamente).
Com efeito, o n.° 7 do artigo 32.° da Constituição confere dignidade
constitucional ao direito do ofendido de intervir no processo penal, mas não
especifica o seu conteúdo, remetendo expressamente para o legislador ordinário a
sua concretização, conferindo a este larga margem de conformação. O que a lei
não pode, por força deste preceito, é retirar ao ofendido, directa ou
indirectamente, o direito de participar no processo penal que tenha por objecto
a ofensa de que alegadamente tenha sido vítima (Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, p. 361).
No presente recurso não se põe em crise a razoabilidade do prazo de 20 dias para
o assistente requerer a abertura da instrução, isto é, a suficiência ou a
adequação desse lapso de tempo para a tarefa processual que a apresentação do
requerimento implica. Também não se discute a idoneidade da notificação prevista
nos n.°s 3 e 4 do artigo 277.° do Código de Processo Penal, enquanto acto de
comunicação, para habilitar o interessado com o conhecimento de que pode exercer
a referida faculdade. O que a recorrente questiona é a conformidade
constitucional de a essa notificação continuar a ligar-se o efeito de definir o
termo inicial do prazo para requerer a instrução naqueles casos em que o
interessado tenha optado por provocar a intervenção da estrutura hierárquica do
Ministério Público. Ou seja, aquilo que, em último termo, está subjacente à
pretensão da recorrente de diferir o termo inicial do prazo para a notificação
da decisão confirmativa do despacho de arquivamento é o entendimento de que a
protecção constitucional da posição do ofendido em processo penal exige o
reconhecimento da faculdade de optar pela via da impugnação hierárquica do
despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito previamente a
requerer a abertura da instrução e sem perda do prazo respectivo.
Ora, independentemente de saber se a consagração constitucional da intervenção
do ofendido em processo penal impunha (como condição necessária) que se levasse
a preocupação de lhe conferir voz autónoma logo ao nível da conformação do
objecto do processo até ao ponto de lhe ser permitido acusar independentemente
(contra ou substancialmente para além) do Ministério Público por crimes públicos
(a isso equivale o requerimento de abertura da instrução que venha a culminar na
pronúncia do arguido), o que não parece poder negar-se é que tal faculdade
realiza a tutela judicial dos seus interesses de modo suficiente e efectivo.
Porventura, seria mais cómodo e mais económico para o ofendido que a lei lhe
permitisse diferir o início do prazo de apresentação do requerimento para o
momento em que se verificasse o insucesso da via hierárquica. Mas, uma vez que o
exercício desse direito não está condicionado ao prévio esgotamento (necessário)
da via hierárquica, o entendimento de que o prazo para requerer a abertura da
instrução se inicia com a notificação do despacho do magistrado subalterno que
decide pelo arquivamento do inquérito não pode ser apresentado como
restringindo, e muito menos de modo desproporcionado, a tutela judicial dos
interesses do ofendido pela via da perseguição criminal do pretenso ofensor.
Dificilmente se concebe que uma norma que imediatamente abre o prazo para acesso
ao tribunal possa ser acusada de, só por isso, restringir esse acesso.
Por último, para além do que já vai compreendido no que antecede, também se não
vislumbra em que aspecto pode ser imputada à referida regra de determinação do
termo inicial do prazo desconformidade com a exigência constitucional do
«processo equitativo».
Tanto basta para concluir que a norma do n.º 1 do artigo 287º do CPP, quando
interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o assistente requerer a
abertura da instrução se conta da notificação do despacho de arquivamento do
inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do despacho que, em
intervenção hierárquica, o confirme, também não viola o n.º 7 do artigo 32º nem
o n.º 4 do artigo 32º da Constituição.”.
5. É esta jurisprudência que aqui se reitera. Pelos fundamentos do
acórdão n.º 501/05, que acaba de se transcrever, conclui-se que não viola o n.º
7 do artigo 32º nem o n.º 4 do artigo 32º da Constituição a norma do n.º 1 do
artigo 287º do CPP, interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o
assistente requerer a abertura da instrução se conta da notificação do despacho
de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do
despacho que, em intervenção hierárquica, o confirme.
III
6. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 14 de Outubro de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício