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Processo n.º 554/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.No processo de inquérito n.º 209/03.5JELSB do Tribunal Judicial de Sintra, o
Ministério Público requereu o julgamento, entre outros, do arguido A.,
imputando-lhe a prática dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado,
previsto e punido no artigo 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro, de associação criminosa, previsto e punido no artigo
28.º, n.ºs 1 e 3, do mesmo diploma, e de detenção de arma proibida, previsto e
punido no artigo 275.º, n.º 3, do Código Penal, com referência ao artigo 3.º,
n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 207-A/75, de 17 de Abril.
O arguido requereu, então, a abertura da instrução e nela arguiu a nulidade das
escutas telefónicas, por violação dos princípios da necessidade e
excepcionalidade e do imediato controlo judicial da sua captação e
acompanhamento, consignados nos artigos 187.º, n.º 1, e 188.º, n.º 1, do Código
de Processo Penal, mas, por despacho de 14 de Janeiro de 2005, o Juiz de
Instrução Criminal indeferiu tal pretensão.
Desse despacho recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa,
concluindo assim a sua motivação:
«1.ª – Nos presentes autos verificou-se, no entender do recorrente, uma
intolerável violação dos princípios da necessidade e da
excepcionalidade/subsidiariedade que norteiam as intercepções telefónicas.
2.ª - Com efeito, face ao nosso ordenamento processual penal e constitucional, o
recurso a intercepções telefónicas está subordinado aos princípios da
necessidade, da excepcionalidade e/ou subsidiariedade.
3.ª - Assim, só quando for de todo impossível a obtenção de prova com recurso a
outros meios de prova será possível à investigação socorrer-se das intercepções
telefónicas, as quais são assim uma medida de “ultima ratio”.
4.ª - A opinião do Mm.º Juiz “a quo”, plasmada no despacho recorrido ao
considerar que, sempre que existam dificuldades de investigação, com o recurso a
outros meios de prova, então deve-se partir para as intercepções, contraria,
frontalmente, os princípios supra referidos.
5.ª - Sendo consabido que, na prática, as polícias, por uma questão de
facilidade e de comodismo, invocam sistematicamente dificuldades de
investigação, com o único intuito de obter autorização para as intercepções.
6.ª - Importa pôr cobro a este procedimento e lembrar às polícias que
investigação com recurso a intercepções telefónicas é, segundo o art.º 187.º do
CPP e bem assim o art.º 34.º da CRP, excepcional.
7.ª - O papel do Juiz de Instrução é fundamental pois é ele o garante do
cumprimento da lei.
8.ª - Caso esse papel tivesse sido observado facilmente se teria constatado que
“in casu”, manifestamente, os princípios supra referidos não foram respeitados,
bem pelo contrário, foram violados.
10.ª - Uma vez que na génese dos presentes autos, quanto ao recorrente temos os
relatórios de vigilâncias e após a informação elaborada pela PJ a fls. 197 a
199, na sequência da qual e pelos fundamentos nela enumerados, foi autorizada a
intercepção do n.° utilizado pelo recorrente.
11.ª - Não consta do despacho a autorizar a intercepção, a fls. 209, nem
tão-pouco da informação que esteve na sua génese, fls. 197 a 199, e ao contrário
do que consta da decisão recorrida, que as vigilâncias já efectuadas ao
recorrente fossem insuficientes para a investigação do crime em apreço, e que só
com recurso a este meio excepcional fosse possível investigá-lo sendo desde
logo, e por esta via, ilegais as intercepções.
12.ª - Cumulativamente entende o recorrente que as escutas são nulas uma vez
que, na prática, quem seleccionou a matéria transcrita foi a PJ e não a Mm.ª
JIC, como a lei impõe.
13.ª - E a lei não é cumprida pelo facto de a Mm.ª JIC ter procedido à audição
das conversas transcritas, pois foi ordenada a transcrição “ipsis verbis”
conforme o sugerido pela PSP, o que significa uma mera homologação.
14.ª - Muito embora o Juiz possa ser coadjuvado pelas polícias, só ele tem
competência para apreciar e valorar a matéria constante das escutas e relevante
para a investigação.
15.ª - O meio que melhor garante que uma medida tão excepcional como as escutas
telefónicas (por contender com os direitos fundamentais) se contenha nas
apertadas margens fixadas pelo texto da Constituição – é a imediação entre o
Juiz e a recolha da prova por escutas telefónicas.
16.ª - Além dos princípios anteriormente referidos, também mas de forma mais
flagrante, foi violado o princípio da imediatividade, sobre o qual a MM.ª Juiz
se pronunciou, apenas ao de leve.
17.ª - Nos presentes autos entre o início da gravação e apresentação dos cd’s
dos diversos alvos ao JIC decorreu um período entre um e cinco meses.
18.ª - De acordo com o entendimento da jurisprudência referido na motivação, a
não apresentação atempada ao Mm.º Juiz de tais elementos significa
desconhecimento do teor das comunicações interceptadas, bem como falta de
acompanhamento próximo e falta de controlo judicial do modo como a escuta se
desenvolve.
19.ª - Com efeito, entender que situações como as que ocorreram no presente
processo – atento o referido na conclusão 17.ª -, em que os autos de intercepção
e gravação de conversações telefónicas que tinham sido entretanto autorizadas só
foram levados ao conhecimento do juiz que as ordenou mais de 5 meses depois de
elas terem tido início – são ainda abrangidas pela expressão “imediatamente”,
colide frontalmente com os interesses que se pretendem acautelar com aquela
exigência, na medida em que impede o seu acompanhamento próximo pelo juiz.
20.ª - O entendimento por nós aqui defendido logrou acolhimento por inúmeras
decisões não só desta Relação, como também do Tribunal Constitucional
mencionadas, a título meramente exemplificativo, na motivação.
21.ª - Deve portanto ser declarada a nulidade das intercepções nos presentes
autos, mas a questão não se limita aí.
22.ª - É um princípio bem firmado em matéria de proibições de prova que a prova
obtida por métodos proibidos inquina a prova subsequente, mesmo que esta não
tenha assentado em actos probatórios em si proibidos.
23.ª - Da prova proibida pode resultar um “efeito a distância”, isto é, uma
situação em que só a prova ilegalmente obtida torna possível a descoberta de
novos meios de prova.
24.ª - Da prova proibida, escutas telefónicas, deve resultar um “efeito à
distância” quanto a todas as provas obtidas nos autos. É uma situação em que só
a prova ilegalmente obtida torna possível a descoberta de novos meios de prova
como foi o caso de todas as apreensões nos presentes autos.
25.ª - Não declarando a nulidade das escutas o Tribunal “a quo” violou o
disposto nos art.º 187.º, 188.º e 189.º todos do C.P.P e ainda o art.º 34.º, n.°
1, da C.R.P».
Por acórdão de 24 de Maio de 2005, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar
provimento ao recurso por entender não existir “qualquer violação dos art.ºs
187.º e 188.º do CPP”.
2.O recorrente interpôs então o recurso de constitucionalidade ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), dizendo
logo na “motivação” que apresentou:
«O douto acórdão decidiu que as intercepções telefónicas cuja nulidade havia
sido arguida, se não verificava, sendo, por conseguinte, as mesmas legais.
Começa por referir:
1.ª Quanto à questão dos princípios da necessidade e subsidiariedade que:
“... constata-se que havia razões para crer que a diligência de escuta
telefónica ao recorrente A., que foi requerida e deferida por despacho judicial
de 14/10/2003, a fls. 209 e segs. dos autos, correspondendo a fls. 212 e segs.
destes autos, se revelaria de grande interesse para a descoberta da verdade ou
para a prova do crime de tráfico de estupefacientes de que está indiciado.
Não seria possível outro meio menos gravoso de investigação desse crime,
‘maxime’ por observação directa, relativamente aos contactos havidos entre os
seus agentes à distância por telemóvel, quanto às circunstâncias de tempo e modo
da sua actuação delitiva.
Não se colhe assim ter havido violação do art.º 181.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal.”
*
Desde logo cumpre referir que o Tribunal da Relação, tal como o MM.º JIC,
olvidaram que, na génese dos presentes autos, quanto ao recorrente temos os
relatórios de vigilâncias de fls. 184 a 190 e após a informação elaborada pela
PJ a fls. 197 a 199, na sequência da qual e pelos fundamentos nela enumerados,
foi autorizada a intercepção, entre outros do alvo 1A564, correspondente ao n.º
9xx xxx xxx utilizado pelo requerente.
Não consta do despacho a autorizar a intercepção a fls. 209 nem tão-pouco da
informação que esteve na sua génese fls. 197 a 199 e ao contrário do que consta
da decisão recorrida que as vigilâncias já efectuadas ao recorrente fossem
insuficientes para a investigação do crime em apreço, e que só com recurso a
este meio excepcional, fosse possível investigá-lo sendo desde logo, e por esta
via, inconstitucionais as intercepções.
Ora, em matéria de intromissão na vida privada dos cidadãos, o legislador
consagrou uma série de requisitos, aos quais, sob pena de nulidade, as
intercepções têm que obedecer.
À cabeça de tais requisitos temos o princípio da necessidade e
subsidiariedade/excepcionalidade, o qual logrou consagração, nos n.ºs 1 e 4 do
art.º 34.º da CRP.
Sendo que, na hierarquia de valores, consagrada pelo legislador, a
inviolabilidade da vida privada, sobrepõe-se à eventual necessidade de
investigação, daí que, só em casos excepcionais, seja permitida a intromissão,
nomeadamente nas telecomunicações desde que respeitados, para cada sujeito,
todos os requisitos legais, o que conforme explanado, se não verificou nos
presentes autos.
Princípios esses, que, “in casu”, no que tange ao recorrente não foram
manifestamente violados.
A interpretação que foi dada pelo douto acórdão, de que se recorre, viola o
estatuído pelo menos nos artigos 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1 e 4,
da CRP, inquinada as normas supra referidas, na interpretação dada pelo tribunal
“a quo”, de inconstitucionalidade material.
2.ª - Quanto à questão da selecção das escutas, referiu que:
“o recorrente A. alega que quem seleccionou a matéria transcrita das escutas foi
a Polícia Judiciária, e não o MM.º Juiz de Instrução Criminal.
No entanto, a este respeito, o art.º 188.º do Código de Processo Penal determina
que sejam indicadas ao juiz as passagens das gravações ou elementos análogos
considerados relevantes para a prova (n.º 1), cumprindo ao juiz ordenar a sua
transcrição em auto, se os entender como tal (n.º 3).
Também por aqui se não colhe ter havido violação do art.º 188.º do Código do
Processo Penal.”
Portanto o douto acórdão interpretou o artigo 188.°, n.° 3, do CPP, com o
sentido de que o Juiz não necessita de ouvir e ser ele a seleccionar os diálogos
constantes das escutas telefónicas.
Sendo certo que, nos termos da Lei em vigor, o Juiz pode ser coadjuvado pelo
OPCs, todavia o respectivo papel não pode ser meramente passivo mas sim activo,
determinante e essencial.
Acontece que “in casu” se verificou uma mera homologação do sugerido pela PJ,
quem na prática seleccionou a matéria a transcrever.
Ora daqui resulta que não foi o Juiz que apreciou e valorou a matéria constante
das escutas e relevante para a investigação.
Com efeito, na prática quem seleccionou a matéria transcrita foi a inspectora da
PJ, titular do processo.
De facto e não obstante o MM.º JIC ter feito constar dos despachos a ordenar a
transcrição que tomou conhecimento do conteúdo das gravações, o facto é que foi
ordenada a transcrição “ipsis verbis” conforme o sugerido pela PJ, vide fls. 773
e 774, fls. 784, 1129, 1479, 2305; fls. 2305 e 2306 e fls. 2392.
O meio que melhor garante que uma medida tão excepcional como as escutas
telefónicas (por contender com os direitos fundamentais) se contenha nas
apertadas margens fixadas pelo texto constituição – é a imediação entre o Juiz e
a recolha da prova por escutas telefónicas.
Já o Acórdão 407/97 do Tribunal Constitucional, de 21/05/97, in B.J.M, 467-199,
refere que: “a intervenção do Juiz é vista como uma garantia que assegura a
menor compressão possível dos direitos fundamentais afectados com as escutas
telefónicas, tal intervenção pressupõe o acompanhamento da operação de
intercepção telefónica, de modo a que o Juiz apenas ‘adquira como prova’ aquilo
que efectivamente o pode ser”.
No caso dos Autos – foram violados tanto os art.ºs 187.º e 188.º do C.P.P., como
o 34.º, n.º 1, da C.R.P. pois que não houve o controlo judicial no
acompanhamento das operações de intercepção telefónica.
Entendemos que é exclusivamente ao Juiz que incumbe a tarefa de seleccionar,
segundo o seu critério, do material gravado, aquele que é relevante para a
prova.
A interpretação dada pelo douto acórdão é inconstitucional porquanto viola os
artigos 32.º, n.º 1, e 34.º, n.º 1, da CRP.
3.ª Finalmente quanto à questão do princípio da imediatividade refere, em
síntese:
“... não se demonstra ... o alegado alheamento por parte do MM.º Juiz de
Instrução Criminal do acompanhamento e resultado das mesmas escutas, tanto mais
que, em várias ocasiões do processo, fixou à Polícia Judiciária prazos máximos
de apresentação dos autos de intercepção de escutas – verba gratia, 5 dias, a
fls. 1479 (fls. 1491 dos autos principais), e 10 dias a fls. 2382 (fls. 1392 dos
autos principais).”
... “o critério interpretativo neste campo não pode deixar de ser aquele que
assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais afectados pela
escuta telefónica. Também já se assentou – e importa lembrá-lo de novo que a
intervenção do juiz é vista como uma garantia de que essa compressão se situe
nos apertados limites aceitáveis e que tal intervenção, para que de uma
intervenção substancial se trate (e não de um mero tabelionato), pressupõe o
acompanhamento da operação de intercepção telefónica. Com efeito, só
acompanhando a recolha de prova, através desse método em curso, poderá o juiz ir
apercebendo os problemas que possam ir surgindo, resolvendo-os e, assim,
transformando apenas em aquisição probatória aquilo que efectivamente pode ser.
Por outro lado, só esse acompanhamento coloca a escuta a coberto dos perigos –
que sabemos serem consideráveis – de uso desviado.”
*
Neste particular o Tribunal “a quo” andou muitíssimo mal, pois deveria ter
declarado a nulidade das intercepções, dada a ostensiva violação deste
princípio.
Senão, vejamos, Colendos:
Efectivamente tal princípio foi ostensivamente violado, senão vejamos:
As escutas ao primeiro alvo 1A564, correspondente ao n.° 9xx xxx xxx, foram
autorizadas a 14/10/03, fls. 209, pelo período de 90 dias, tiveram início a
16/10/03, a fls. 245, a autorização após prorrogação a fls. 784 terminou a
13/03/04, fls. 1465, e apenas foram presentes ao JIC os respectivos suportes
técnicos, CD's, a 26/4/04, fls. 1495, por remissão para fls. 1479, OU SEJA 6
MESES E 12 DIAS, APÓS O Início DA INTERCEPÇÃO.
Quanto ao Alvo 23014 correspondente ao n.º 9yy yyy yyy, a intercepção teve
início a 05/03/04, a fls. 1242, os suportes técnicos, CDs, foram presentes ao
MM.º Juiz a 16/06/04, fls. 2392, OU SEJA MAIS DE 3 MESES DEPOIS.
Quanto ao Alvo 24276 correspondente ao n.º 9zz zzz zzz, a intercepção teve
início a 06/05/04, a fls. 1756, os suportes técnicos foram presentes ao MM.º
Juiz a 16/06/04, fls. 2392, OU SEJA MAIS DE 1 Mês DEPOIS.
Finalmente quanto ao Alvo 24277 correspondente ao n.º 9ww www www, a intercepção
teve início a 06/05/04, a fls. 1757, e os suportes técnicos foram presentes ao
MM.º Juiz a 16/06/04, fls. 2392, OU SEJA MAIS DE 1 MÊS DEPOIS.
*
Na verdade já no acórdão n.° 407/97, este Tribunal decidiu julgar
inconstitucional, por violação do disposto no n.° 6 do artigo 32.° da
Constituição, a norma do n.° 1 do artigo 188.° do Código de Processo Penal,
quando interpretado em termos de não impor que o auto da intercepção e gravação
de conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado
ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a
junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles,
e bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de
novo auto da mesma espécie, sobre a manutenção ou alteração da decisão que
ordenou as escutas.
No acórdão n.° 347/01, em que se trouxe também à colação a jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a problemática das escutas
telefónicas, escreveu-se que “cobrir” situações como a de o auto de transcrição
ser apresentado ao juiz meses depois de efectuadas a intercepção e gravação das
comunicações telefónicas, mesmo tendo em conta a gravidade do crime investigado
e a necessidade daquele meio de obtenção de prova, restringe despropositadamente
o direito à inviolabilidade de um meio de comunicação privada e faculta uma
ingerência neste meio para além do que se considera ser constitucionalmente
admissível.
Ficar no desconhecimento do juiz, durante tal lapso de tempo, o teor das
comunicações interceptadas, significa o desacompanhamento próximo e o controlo
judiciais do modo como a escuta se desenvolve.
No acórdão n.° 528/03, salientando a evolução da jurisprudência mais recente do
TEDH, o Tribunal Constitucional considerou “inconstitucional a interpretação do
n.º 1 do artigo 188.° do Código de Processo Penal, na redacção anterior à que
lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro.
Com efeito, entender que situações como as que ocorreram no presente processo em
que os autos de intercepção e gravação de conversações telefónicas que tinham
sido entretanto autorizadas só foram levados ao conhecimento do juiz que as
ordenou entre um hiato de tempo que vai de mais de 1 mês a mais de 6 meses
depois de elas terem tido início – são ainda abrangidas pela expressão
imediatamente, colide frontalmente com os interesses que se pretendem acautelar
com aquela exigência, na medida em que impede o seu acompanhamento próximo pelo
juiz”.
E, na sequência desta fundamentação, decidiu-se julgar inconstitucional a norma
constante do n.º 1 do artigo 188.° do Código de Processo Penal, “por violação
dos mesmos preceitos da Constituição da República Portuguesa a citada norma, na
interpretação segundo a qual, a primeira audição, pelo juiz de instrução
criminal, das gravações efectuadas pode ocorrer mais de três meses após o início
da intercepção e gravação das comunicações telefónicas”.
Pelo que, V.ªs Ex.ªs devem julgar inconstitucional, por violação das disposições
conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa, a norma constante do n.º 1 do artigo 188.º do Código de Processo
Penal, quando interpretada no sentido de que a audição das gravações efectuadas
pode ocorrer mais de 6 meses e mais de um mês após o início da intercepção e
gravação das comunicações telefónicas».
3.Uma vez que se não encontravam preenchidos os requisitos para o conhecimento
do objecto do recurso, foi proferida decisão sumária neste sentido, e condenando
o recorrente em custas, cuja fundamentação era do seguinte teor:
«3. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, mas tal decisão não
vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), pelo que, entendendo-se
que não pode dele tomar-se conhecimento, é de proferir decisão sumária nos
termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
4. Com efeito, no presente caso não foi adequadamente suscitada pelo recorrente,
durante o processo, a questão de constitucionalidade do n.º 1 do artigo 188.º do
Código de Processo Penal – única que ora se traz à apreciação deste Tribunal,
nos termos do último parágrafo da “motivação” do recurso de constitucionalidade
(que o recorrente logo apresentou em lugar de um mero requerimento de recurso).
Como sobejamente resulta das próprias transcrições da decisão recorrida
apresentadas pelo recorrente no seu requerimento/motivação, aquilo de que o
tribunal a quo cuidou foi a questão da conformidade da actuação instrutória em
face dos artigos 187.º e 188.º (e 189.º) do Código de Processo Penal. E fê-lo
porque, como também resulta da transcrição efectuada das conclusões da motivação
do recurso do recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, foi isso que lhe
foi requerido: antes mesmo de expor as suas conclusões, o recorrente indicara
como “Normas violadas” os “Artigos 187.º, 188.º e 189.º todos do C.P.P. e ainda
o art.º 34.º, n.º 1, da C.R.P.”, pondo em causa os procedimentos adoptados em
matéria de autorização, validação e implicações das escutas, e concluindo que “o
Tribunal a quo” violara “o disposto nos art.ºs 187.º, 188.º e 189.º todos do
C.P.P. e ainda o art.º 34.º, n.º 1, da C.R.P.”. Ora, no nosso sistema, as
decisões dos tribunais – ou a própria actividade policial –, em si mesmas, podem
ser sindicadas em recurso pelos restantes tribunais, quando a ele houver lugar,
mas não podem constituir objecto de apreciação por parte do Tribunal
Constitucional, em recurso de constitucionalidade.
Foi, aliás, para fundamentar tais violações imputadas ao tribunal recorrido que
o recorrente invocou jurisprudência constitucional, e não para impugnar a
constitucionalidade de nenhuma das normas dos artigos 187.º, 188.º e 189.º do
Código de Processo Penal – coisa que só fez, e apenas em relação ao n.º 1 do
artigo 188.º desse Código, no requerimento/motivação do recurso de
constitucionalidade, já perante o Tribunal Constitucional.
Falha, pois, em parte, logo o primeiro requisito do recurso de
constitucionalidade: ter, nos termos do respectivo requerimento, por objecto a
apreciação da constitucionalidade de uma norma (em si mesma ou numa determinada
interpretação, devidamente enunciada).
5. Por outro lado, a adequada suscitação de uma questão de constitucionalidade
normativa acabou, assim, por ter lugar, não perante o tribunal recorrido, mas
apenas na apresentação do recurso de constitucionalidade, perante o Tribunal
Constitucional – posto que em acto processual inadequado, já que, em vez de um
requerimento com os elementos exigidos nos n.ºs 1 a 3 do artigo 75.º da Lei do
Tribunal Constitucional, foi prematuramente apresentada uma “motivação” (que só
deveria ser entregue, no momento das alegações, após o recebimento do recurso no
Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 5, da sua Lei), a qual
se não pode considerar em tudo o que não corresponde aos elementos legalmente
exigidos para um requerimento do recurso de constitucionalidade.
Só que, tendo aí sido adequadamente suscitada, tal questão de
constitucionalidade normativa foi também extemporânea, e consequentemente inepta
para dar por preenchidos os requisitos do tipo de recurso interposto (cfr., por
exemplo, o acórdão n.º 351/91, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional
[ATC], 20.º vol., pp. 401, e o acórdão n.º 1144/96, ATC, 35.º vol., pp.
349-359), pois não tinha sido referida perante o tribunal recorrido.
É o que resulta da lei (artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) e
o que se vem uniformemente decidindo, dizendo-se, pelo menos desde o acórdão n.º
90/85 (ATC, vol. 5.º, pp. 663-672), que, para se suscitar adequadamente uma
questão de constitucionalidade normativa, é mister fazê-lo “antes de esgotado o
poder jurisdicional (…) sobre a matéria a que tal questão de constitucionalidade
respeita”, por parte do tribunal a quo. No caso, já se viu que, embora invocando
jurisprudência constitucional sobre a questão das escutas, perante os tribunais
com jurisdição sobre a matéria, tal ocorreu a propósito de artigos do Código de
Processo Penal que nunca foram, em si, alvo de censura, a qual se dirigiu,
perante esses tribunais, isso sim, à aplicação errada da lei: o que o recorrente
defendeu perante o tribunal recorrido foi a violação das normas legais,
infra-constitucionais, pela actuação instrutória e na aplicação que delas fez o
tribunal de 1.ª instância. Em consequência, o Tribunal da Relação de Lisboa veio
a emitir um juízo sobre a inexistência de “qualquer violação dos art.ºs 187.º e
188.º do C.P.P.”, mas não sobre a compatibilidade constitucional de quaisquer
normas, e isto muito embora tenha igualmente transcrito passagens do acórdão n.º
407/97 deste Tribunal (publicado em ATC, 37.º vol., pp. 245-269).
Ora, sem que o tribunal recorrido tenha formulado anteriormente um juízo de
conformidade constitucional de normas, e sem que devesse tê-lo feito, por tal
questão não lhe ter sido suscitada, não pode a intervenção, em recurso, do
Tribunal Constitucional servir o seu único propósito: reapreciar tal juízo. Não
pode, pois, considerar-se adequadamente suscitada durante o processo qualquer
questão de constitucionalidade normativa, nem já atempadamente suscitada a
questão de constitucionalidade que foi colocada perante este Tribunal, pelo que
não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.»
4.Inconformado veio o arguido apresentar reclamação para a conferência nos
seguintes termos:
«Nos presentes autos o recorrente interpôs recurso do acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao seu recurso sobre a
arguição de nulidade das intercepções telefónicas, ao mesmo tempo que confirmou
a decisão de primeira instância, fê-lo ao abrigo do disposto no artigo 70.°, n.º
1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe
introduziu a Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
Em vez de se limitar a um mero requerimento de interposição de recurso, à
cautela, caso se entendesse ser o Acórdão que decide o recurso intercalar
irrecorrível, desde logo, apresentou a respectiva motivação, indicando:
“A) A interpretação que foi dada pelo douto acórdão, de que se recorre, viola o
estatuído pelo meno[s] nos artigos 26.º, n.º 1, 32.°, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1 e 4,
da CRP, inquinando as normas supra referidas, na interpretação dada pelo
tribunal “a quo”, de inconstitucionalidade material.
B) A interpretação dada pelo douto acórdão é inconstitucional porquanto viola os
artigos 32.°, n.º 1, e 34.º, n.º 1, da CRP.
C) Inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.°,
n.º 8, e 18.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante
do n.º 1 do artigo 188.° do Código de Processo Penal, quando interpretada no
sentido de que a audição das gravações efectuadas pode ocorrer mais de 6 meses e
mais de um mês após o início da intercepção e gravação das comunicações
telefónicas.”
Assim, e ao contrário do que consta do pontos 4.° e 5.° da decisão de que ora se
reclama, o recorrente cumpriu todos os requisitos para a interposição de recurso
para este Tribunal e justificou o porquê da apresentação antecipada das
respectivas alegações.
De resto, a apresentação antecipada de alegações, sob pena de violação do n.º 1
do art.º 32.º da CRP, jamais pode dar lugar à rejeição de recurso.
Por outro lado, e conforme resulta da motivação do recurso interposto da
primeira instância para a Relação, a questão da inconstitucionalidade das normas
foi logo suscitada, e apreciada por aquela instância, conforme resulta,
expressamente, entre outras, da página 12 daquela decisão.
O presente recurso cumpriu todos os requisitos legais para o efeito, e deveria
ter ido conhecido.»
Notificado o Ministério Público para responder, considerou a presente reclamação
manifestamente improcedente, por o reclamante não ter suscitado “durante o
processo e em termos processualmente adequados, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso
interposto”.
II. Fundamentos
5.Na presente reclamação são invocados três argumentos: o de que a questão de
constitucionalidade foi adequadamente suscitada na motivação do recurso de
constitucionalidade apresentada perante o Tribunal Constitucional; o de que a
produção antecipada de alegações não pode levar ao não conhecimento do recurso;
e o de que a questão da inconstitucionalidade das normas foi suscitada perante o
Tribunal da Relação de Lisboa e por ele apreciada, invocando-se em abono, “entre
outras”, a “página 12 daquela decisão”.
A primeira afirmação é verdadeira, mas irrelevante para a sorte do recurso. Como
se explicou na decisão reclamada, não é só perante o Tribunal Constitucional que
a questão da inconstitucionalidade das normas tem de ser suscitada em termos
adequados: é também, e desde logo, perante o tribunal recorrido – e foi por não
o ter sido feito perante este que o recurso não foi admitido.
O segundo argumento é igualmente irrelevante: mau grado o ora reclamante ter
apresentado alegações de recurso em vez de um requerimento de recurso,
aproveitaram-se daquelas os elementos necessários a substanciar este
requerimento, não tendo sido essa produção antecipada de alegações que teve
qualquer interferência na decisão (como poderia ter tido se se tivessem mandado
desentranhar).
O terceiro argumento seria relevante se fosse exacto. Porém, como se explicou na
decisão recorrida, uma coisa é invocar a violação de normas legais por parte dos
actos que concretamente as aplicam, outra é invocar violação de normas
constitucionais (inconstitucionalidade) pelas normas aplicadas em tais actos. A
diferença é, desde logo, que o objecto de censura no primeiro caso não é uma
norma – e, por isso, escapa ao controlo do Tribunal Constitucional – e no
segundo já é – e, por isso, já compete ao Tribunal Constitucional aferir a sua
compatibilidade com a Constituição (verificados que estejam os restantes
requisitos do recurso). Ou, numa formulação alternativa, a diferença é que no
primeiro caso as normas legais servem de parâmetro de censura, enquanto que,
para poderem constituir objecto do recurso de constitucionalidade teriam de ser
objecto de tal censura. Ora, embora estes dois aspectos não sejam incompatíveis,
no caso concreto o que a página citada da decisão do Tribunal da Relação
documenta é a transcrição de uma decisão do Tribunal Constitucional invocada a
propósito “da violação do art.º 188.º do Código de Processo Penal” e da “análise
do acompanhamento das escutas telefónicas por parte do M.mo Juiz de Instrução”
(cfr. p. 11 da decisão ora reclamada). E foi apenas nestes termos que, perante o
tribunal a quo, a questão (dita de inconstitucionalidade) foi posta.
Improcedendo assim as razões do reclamante, há que confirmar a decisão
recorrida.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação, condenando o
reclamante em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 13 de Setembro de 2005
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura ramos