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Processo nº 483/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em
que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1,
alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC).
2. Em 6 de Julho de 2005, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do previsto
no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, pela qual se entendeu não conhecer do objecto do
recurso de constitucionalidade interposto.
É a seguinte a fundamentação constante desta decisão:
«Conforme jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional,
“constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b)
do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: a aplicação pelo
tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é
questionada pela recorrente; a suscitação da inconstitucionalidade normativa
durante o processo; e o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso
cabiam” (cf. Acórdão nº 497/99, não publicado). Requisitos que são objecto do
exame preliminar previsto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, que tem precisamente
como finalidade indagar se pode ou não conhecer-se do objecto do recurso.
Como ficou já dito, um dos requisitos do recurso de constitucionalidade é a
aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja
constitucionalidade é questionada pela recorrente. Ora, no presente caso, a
norma cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente – a norma contida
no nº 1 do artigo 170º do Código Penal – não foi aplicada pelo Tribunal da
Relação de Coimbra, como ratio decidendi.
Na verdade, no que toca à condenação da recorrente, a norma que foi aplicada,
efectivamente, foi a constante do nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95, de
2 de Dezembro – o diploma legal que, então, estabelecia medidas de natureza
repressiva contra o branqueamento de capitais e de outros bens, provenientes,
entre outros, do crime de lenocínio. Como se escreveu no acórdão da Vara Mista
de Coimbra, de 4 de Dezembro de 2003,
“No caso dos autos, apenas está em causa a factualidade prevista no artigo 2º,
nº 1 al. a) do Decreto-Lei nº 325/95 de 2 de Dezembro, onde se alude ao crime de
lenocínio, crime este pelo qual as arguidas foram condenadas”.
Dito de outra forma: a norma cuja constitucionalidade é agora questionada pela
recorrente – a contida no nº 1 do artigo 170º do Código Penal – foi aplicada,
como ratio decidendi, pelo tribunal que a condenou pela prática de um crime de
lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170º, nº 1, do Código Penal, no âmbito
do Processo nº 76/00.0JAAVR, da 2ª secção da Vara Mista de Coimbra. Ou seja, tal
norma não foi aplicada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, quando, em 12 de
Janeiro de 2005, acordou em negar provimento ao recurso interposto pela
recorrente do acórdão da Vara Mista de Coimbra, pelo qual foi condenada pela
prática do crime previsto e punido no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 325/95.
Esta asserção resulta, desde logo, da própria decisão recorrida, quando,
reportando-se ao acórdão da Vara Mista de Coimbra, aos factos aí dados como
provados e à fundamentação da matéria de facto, dá como provado que
“Por acórdão proferido no Processo Comum n.º76/00.0JAAVR, da 2.ª Secção da Vara
Mista de Coimbra, transitado em julgado no dia 16 de Agosto de 2002 (…) a
arguida A. [foi condenada]
- pela prática, em co-autoria, de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo
artigo 170.º nº 1, do Código Penal, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, cuja
execução foi suspensa pelo período de 3 anos”,
considerando que, quanto a este facto, o tribunal baseou a sua convicção
“(…) na certidão do acórdão proferido no processo comum colectivo n.º
76/00.0JAAVR, da 2.ª secção da Vara Mista da Comarca de Coimbra, junta a folhas
3735”.
Por outras palavras, o Tribunal da Relação de Coimbra, para dar como preenchido
o tipo legal de crime previsto e punido no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº
325/95, de 2 de Dezembro, na parte em que aí se exige que o agente saiba que os
bens ou produtos são provenientes da prática de crime de lenocínio, utilizou,
como meio de prova, a certidão do acórdão proferido naquele processo: a certidão
da decisão judicial que aplicou, como ratio decidendi, a norma cuja
constitucionalidade é agora – extemporaneamente – questionada pela recorrente.
Extemporaneidade da questão de constitucionalidade formulada no requerimento de
interposição do recurso para o Tribunal Constitucional que a própria decisão
recorrida reconhece, quando, concordando com a posição do Ministério Público,
conclui que
“(…), processualmente a discussão sobre o tema encontra-se deslocada porquanto
se verdadeiramente este era um ponto de divergência das arguidas com o
legislador penal, o lugar próprio para a discussão era o processo n.º76/00 onde
foram condenadas pelo referido crime”.
Afirmação decisiva para concluir que, apesar das considerações expendidas sobre
a conformidade constitucional do artigo 170º, nº 1, do Código Penal, o Tribunal
da Relação de Coimbra não acordou no sentido de não julgar inconstitucional a
norma contida neste artigo. E assim sendo, não pode a recorrente interpor
recurso para o Tribunal Constitucional, por não se conformar com a decisão que
considera a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal constitucional.
Em suma, o tribunal recorrido não aplicou, como ratio decidendi, a norma cuja
constitucionalidade é questionada pela recorrente, não se verificando, por
conseguinte, um dos requisitos do recurso de constitucionalidade que a
recorrente pretendeu interpor, com a consequência de não se poder conhecer do
seu objecto. E bem se compreende que assim seja, pois, a “exigência, de que a
norma aplicada constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de
só nesse caso a decisão da questão de constitucionalidade poder reflectir-se
utilmente no processo” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 497/99, não
publicado, e, no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos nºs 367/94, Diário da
República, II Série, de 7 de Setembro de 1994, 496/99, não publicado, 674/99,
Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, 155/2000, Diário da
República, II Série, de 9 de Outubro de 2000, e 418/01, não publicado)».
3. Desta decisão vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo
do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, alegando o seguinte:
«Na realidade, só por “ficção” se pode aceitar que a norma cuja
constitucionalidade foi suscitada, não foi aplicada no processo em questão.
Importa ter presente o tipo legal do crime em questão, denominado por
“branqueamento de capitais”.
O “pedaço de vida” abrangido pelo tipo legal do crime de branqueamento de
capitais é complexo.
Tal complexidade advém do facto deste tipo legal de crime pressupor e implicar o
preenchimento de um outro tipo legal de crime (lenocínio), traduzindo-se este
num tipo legal base ou subjacente.
Analisemos, em detalhe, o tipo legal do crime de branqueamento de capitais,
previsto no artº 2°, nº1, al. a) do DL n° 325/95:
Quem, sabendo que os bens ou produtos são provenientes da prática, sob qualquer
forma de comparticipação, de crimes de (...) lenocínio (...):
a) Converter; transferir; auxiliar ou facilitar alguma operação de
conversão ou transferência desses bens ou produtos, no todo ou em parte, directa
ou indirectamente, com o fim de ocultar ou dissimular a sua origem ilícita ou de
ajudar uma pessoa implicada na prática de qualquer dessas infracções a eximir-se
às consequências jurídicas dos seus actos, é punido com pena de prisão de 4 a 12
anos.
3- A punição pelos crimes previstos no nº1 tem lugar ainda que os factos que
integram a infracção principal tenham sido praticados fora do território
nacional.
Significa isto que a tarefa cometida ao Tribunal de 1ª instância e ao Tribunal
da Relação de Coimbra, era decidir sobre a verificação dos elementos
constitutivos do tipo legal do crime de branqueamento de capitais.
O mesmo é dizer que, tal implicava e pressupunha, naturalmente, a verificação
também do preenchimento de todos os elementos do tipo legal de lenocínio, isto
é, do crime base ou subjacente.
Chamamos a atenção para a análise doutrinal do crime de branqueamento de
capitais levada a efeito por Januário Lourenço, “Branqueamento de Capitais”, in
Verbo Jurídico, Abril de 2002
pág.7
4.Fases do Branqueamento
Em termos de análise, existem quatro factores universais nestas lides, a saber:
1° A verdadeira origem e propriedade do dinheiro deve ser ocultada. (...) 2° De
seguida, a forma do dinheiro deverá ser alterada, reduzindo-lhe o volume, não
ficando com a esmiúça, etc.; 3° Disfarçando o rasto de todo o procedimento, por
forma a ninguém, além do estritamente necessário, ter acesso a factos que mais
tarde possam denunciar o seu autor moral; 4° E, por fim, deverá ser mantido um
permanente controlo do dinheiro, uma vez que os intermediários poderão, sem
qualquer punição, apropriar-se indevidamente do mesmo, visto o facto do seu
autor originário jamais o processar.
Este “faseamento” está intimamente relacionado com a análise dos elementos
objectivos constitutivos do tipo legal do crime em apreço.
São eles, e no que à presente, interessa:
a) Bens ou produtos
b) Provenientes da prática de crime de lenocínio
Ora, o Tribunal tem que dar como provados e verificados os elementos objectivos
do tipo legal do crime de branqueamento de capitais, entre outros, a
proveniência (dos bens ou produtos) da prática do crime de lenocínio.
Assim, ainda que tal verificação se faça (mal) por remissão para o decidido em
processo anterior, tal implica e pressupõe que no presente processo, ainda que
por remissão, dizíamos, se aplique a norma do nº1 do artº 170° do Código Penal.
Se assim não for, fica por preencher um dos elementos objectivos do tipo legal
do crime de branqueamento de capitais!
Donde, em coerência, só por ficção se pode defender que a norma do n° 1 do artº
170° do C.P., não foi aplicada nos autos em causa.
E, ao ser aplicada, ainda que por remissão, aplicou-se também o juízo de
constitucionalidade, cujo mérito foi, desde o início, repudiado pela reclamante.
A não ser assim e a aceitar-se que a norma do nº1 do artº 170° do C.P. não foi
aplicada, temos que nos confrontar com as consequências que, em coerência, daí
decorrem e que são insuportáveis do ponto de vista dos princípios subjacentes ao
nosso sistema processual penal.
Assim:
Aceitar-se aquele entendimento, da não aplicabilidade do n° 1 do artº 170° do
CP, nos autos relativos ao branqueamento de capitais, ao menos por remissão e
implicitamente, teremos que aceitar que neste tipo de crimes complexos, do ponto
de vista dos seus elementos objectivos:
A) O princípio da “presunção de inocência” sofre uma insustentável restrição.
Isto é, só vale, para parte do crime. O arguido, apenas goza da presunção de
inocência quanto a parte dos elementos constitutivos do tipo legal do crime.
A reclamante desconhece o preceito legal que permite operar tal restrição!
Nem se diga, que o arguido já gozou, no processo anterior de tal presunção. Na
verdade, trata-se (quanto ao crime de branqueamento de capitais) de novo “pedaço
de vida”, em relação ao qual deve poder usufruir, plenamente, de todos os
direitos processual e constitucionalmente consagrados.
B) Restrição insuportável e ilegal das garantias de defesa em processo criminal
O artº 32° da CRP estabelece que o processo criminal assegura todas as garantias
de defesa.
Assim, impedindo-se o arguido de apresentar defesa quanto ao tipo legal do crime
base, significa que o processo criminal relativo ao crime de branqueamento de
capitais, não assegura todas as garantias de defesa.
Logo, parece que se admite que, em “certos” processos criminais o princípio
constitucionalmente consagrado sofre limites.
Também aqui, desconhece a reclamante qual a norma que permite a existência
destas excepções à defesa plena em processo penal.
C) O processo penal oferece menos garantias que o processo civil
De facto, retira-se do processo civil que o caso julgado penal apenas constitui
um “princípio de prova”.
Os artºs 674°-A e 674°-B do CPC estabelecem que a decisão penal transitada em
julgado (tendo pressuposto que o arguido teve todas as garantias de defesa),
absolutória ou condenatória, apenas vale, nas acções de natureza civil, como
presunção ilídivel.
Ora significa isto que, em coerência, afastada a presunção de inocência quanto
ao crime base, em processo de branqueamento de capitais, o arguido tem neste
processo menos garantias do que as que teria em processo civil !!!
Tal raciocínio é insustentável!
Tudo isto para concluir que o Tribunal que julga o crime de branqueamento de
capitais, terá, ao menos implicitamente, que aplicar a norma incriminatória
relativa ao crime base ou subjacente (no caso o artº 170°, nº1 do CP), sob pena
de não poder condenar o arguido por falta da verificação de um dos elementos
objectivos do crime de branqueamento de capitais (provenientes da prática do
crime de lenocínio).
Caberá ao Tribunal verificar a ocorrência/prática do crime de lenocínio, como
questão prévia ao conhecimento do elemento “proveniência”. No entanto tal
verificação não se pode esgotar, na simples alusão a caso julgado penal
anterior, sob pena de restringir de modo intolerável o princípio da presunção de
inocência, as garantias de defesa plena em processo penal e permitir que em
processo civil o que foi arguido em processo penal tenha mais garantias de
defesa.
Finalmente dizer que,
ainda que se aceite que, pelo menos implicitamente se tenha que operar a
verificação do crime base e com isso se tenha por aplicada a norma
incriminatória do mesmo, dando assim lugar ao necessário conhecimento por parte
do Tribunal Constitucional da constitucionalidade da referida norma,
sempre diremos que a coerência sistemática do nosso ordenamento penal impunha
que no crime de branqueamento de capitais, todos os factos relevantes para a
verificação do tipo legal do crime de lenocínio (crime base, como elemento
constitutivo do crime de branqueamento de capitais), tivessem de ser provados
perante o tribunal que julga a existência ou não da prática do crime de
branqueamento de capitais.
Na verdade, tal decorre do mais elementar respeito pelas garantias de defesa
plena em processo penal e princípio da presunção da inocência, não tendo o
legislador ordinário ou constitucional consagrado processos relativamente aos
quais tais direitos e garantias pudessem ser coarctados.
Também os princípios subjacentes ao sistema processual penal, da oralidade,
imediação e livre apreciação da prova se mostram prejudicados, sendo que a
reclamante desconhece qualquer norma que restrinja tais princípios a
determinados processos criminais.
Aceitar, sem mais, que o crime base se mostra verificado, apenas por remissão a
certidão judicial, é violar frontalmente os princípios processuais penais
indicados.
Tudo o que se expôs coloca à evidência que, pelo menos implicitamente, a norma
do n° 1 do ano 170° CP, norma incriminatória referida ao crime base, foi, pelo
tribunal a quo aplicada, sendo por isso, legítimo à reclamante suscitar o juízo
da respectiva constitucionalidade».
4. Notificado desta reclamação, o Ministério Público junto deste Tribunal
respondeu nos seguintes termos:
«1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, assentando a definitiva condenação da arguida em tipo penal
autónomo, constante de norma incriminadora diferente da especificada pelo
recorrente no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, é evidente a inadmissibilidade – e inutilidade – de tal recurso
de fiscalização concreta, direccionado para norma diferente da que motivou a
condenação da arguida».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos de recurso foi proferida decisão sumária, ao abrigo do
disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, por se ter entendido que o tribunal
recorrido não aplicou, como ratio decidendi, a norma cuja constitucionalidade é
questionada no recurso interposto para o Tribunal Constitucional – o artigo
170º, nº 1, do Código Penal –, não se verificando, por conseguinte, um dos
requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Vem agora a recorrente reclamar para a conferência. Porém, em nada são abalados
os fundamentos da decisão reclamada, pois não se demonstra que tal norma tenha
sido, de facto, aplicada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, quando confirmou a
decisão que condenou a reclamante como autora material de um crime de
branqueamento de capitais, previsto e punido no artigo 2º, nº 1, alínea a), do
Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro.
Como bem conclui o Ministério Público junto deste Tribunal, “assentando a
definitiva condenação da arguida em tipo penal autónomo, constante de norma
incriminadora diferente da especificada pelo recorrente no requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, é evidente a
inadmissibilidade – e inutilidade – de tal recurso de fiscalização concreta,
direccionado para norma diferente da que motivou a condenação da arguida”.
Resta, assim, concluir pelo indeferimento da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 14 de Outubro de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício